A Voz Que Ensina: O Professor e a Comunicação em Sala de Aula Trabalho realizado por: Elisa Castro Docente: Doutor Elias Blanco Mestrado em Educação – Tecnologia Educativa Braga 2004/2005 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Índice Introdução ...................................................................................................................... 2 O que é a comunicação?............................................................................................. 3 O que é a linguagem? ................................................................................................. 6 Linguagem áudio .......................................................................................................... 7 Linguagem visual ......................................................................................................... 7 Linguagem scripto ........................................................................................................ 7 Linguagem audiovisual ................................................................................................ 7 Linguagem scriptovisual .............................................................................................. 8 Linguagem audio-scripto-visual ................................................................................... 8 Como comunicamos?.................................................................................................. 9 Os vectores não verbais da comunicação ............................................................ 10 Os vectores táctil, térmico, olfactivo .................................................................... 11 Os vectores voco-acústicos ..................................................................................... 11 O vector visual............................................................................................................ 11 A comunicação na sala de aula .............................................................................. 12 Relação entre corpo e voz........................................................................................ 15 A voz ............................................................................................................................. 18 Fisiologia da voz......................................................................................................... 19 O corpo ......................................................................................................................... 21 Fisiologia do corpo humano ....................................................................................... 21 Sistema muscular........................................................................................................ 23 Postura corporal correcta ............................................................................................ 25 Como manter uma voz saudável? .......................................................................... 26 Conclusão .................................................................................................................... 28 Índice de Ilustrações.................................................................................................. 29 Bibliografia.................................................................................................................. 30 1 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Introdução O presente trabalho tem como objectivo principal sensibilizar para a importância da voz como meio privilegiado de comunicação. Mais do que falar durante a aula inteira e passar o conteúdo, o professor precisa conquistar a atenção do aluno e, para que isso aconteça, é importante utilizar todas as formas que a comunicação oferece. Numa primeira parte, apresentamos algumas definições de “comunicação”, tendo sempre presente a ideia de que este é um conceito invocado em campos e acepções muito diversos. No entanto, retemos como ideia principal o facto de que, quando comunicamos, transmitimos e recebemos mensagens por meio de signos ou símbolos e que além da fala, as expressões corporais, o olhar, o silêncio e outros factores também são formas importantes de se comunicar. A voz é a grande ferramenta para a comunicação verbal, mas quando usada de forma inadequada, pode trazer prejuízos na qualidade do trabalho e problemas de saúde. É sobre este aspecto que incidirá a segunda parte do trabalho, ou seja, a comunicação em sala de aula. Até que ponto os professores estão sensibilizados para uma correcta utilização da voz, sendo ela o principal instrumento de trabalho? De que modo a comunicação não verbal, como a expressão corporal e as atitudes, influenciam e condicionam a comunicação na sala de aula? Partindo destas questões, importa reflectir sobre a relação corpo/voz, já que o nosso corpo também “fala” e, tal como a voz, ele é uma poderosa ferramenta de trabalho. O professor deverá ter um conhecimento de si próprio e do seu corpo e sobretudo, deverá estar consciente para o facto de que cada aluno tem uma maneira diferente de estar na aula e de prestar atenção ao que é dito. 2 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula O que é a comunicação? O Petit Larousse define comunicação como “a acção de comunicar alguma coisa: notícia, mensagem, informação”. Para Colin Cherry, comunicação significa "compartilhar elementos de comportamento ou modos de vida, pela existência de um conjunto de regras". Berlo, entende comunicação "como sendo o processo através do qual um indivíduo suscita uma resposta num outro indivíduo, ou seja, dirige um estímulo que visa favorecer uma alteração no receptor por forma a suscitar uma resposta". Abraham Moles, define comunicação "como o processo de fazer participar um indivíduo, um grupo de indivíduos ou um organismo, situados numa dada época e lugar, nas experiências de outro, utilizando elementos comuns". 3 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Em Psicologia, a comunicação foi definida a partir do modelo da transmissão da informação concebido por Shannon1. Weaver difundiu o modelo de Shannon e aplicouo à comunicação (Shannon e Weaver, 1949): Canal Canal Mensagem Fonte Codificação Receptor Descodificação Fig. 1 - A comunicação segundo Shannon e Weaver Um emissor E transmite a um receptor R uma mensagem M por meio de um sinal emitido e recebido através de um canal C. Por sua vez, o receptor responde do mesmo modo. Os ruídos podem ainda deformar o sinal, ou seja, tornar a descodificação ambígua. A esta deformação do sistema damos o nome de entropia. Em Sociologia, a comunicação é definida a partir de Durkheim como uma interacção no seio de uma rede onde se permutam e partilham representações colectivas. Segundo G. H. Mead, interagir não é somente estar em relação com indivíduos que permaneceriam independentes e indiferentes uns aos outros como bolas em movimento. Pelo contrário, exemplos de empatia ou de contágio emocional são citados para definir relações interpessoais. Mead exemplifica a sua argumentação apoiando-se no combate de dois cães, que se afrontam e se medem, avaliam-se mutuamente, fingem, esquivamse, enquanto se batem realmente. 1 Engenheiro de telecomunicações inspirado pelo filósofo Locke e pelo esquema elaborado por Wiener (1948), concebeu o modelo supostamente capaz de explicar a distorção da informação no telégrafo. 4 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Em 1996, Morin afirma que há comunicação quando uma mensagem é emitida por A e recebida por B, sendo que A e B podem ser um indivíduo ou um grupo. O autor considera ainda cinco elementos na comunicação: - o emissor (fonte de mensagem); - o receptor ( destinatário da mensagem); - a mensagem (conteúdo transmitido) - o media (canal de transmissão); - os intermediários eventuais. Esta concepção coloca a tónica sobre o receptor, segundo Morin o elemento principal, e os intermediários entre o emissor e o receptor. Em Linguística, a comunicação efectua-se através da língua, sistema abstracto de signos. Na moderna acepção de Charles S. Pierce, a semiótica é a doutrina dos signos. Basicamente, um signo é qualquer elemento que seja utilizado para exprimir uma dada realidade física ou psicológica; nesta relação, o primeiro funciona como significante em relação à segunda, que é o significado (ou referente). As relações entre significantes e significados podem ser do tipo denotativo e do tipo conotativo. Os signos por si próprios nada significam. Para se tornarem compreensíveis, há que existir um código que estabeleça as relações entre significantes e significados, por forma a tornar possível a interpretação dos signos. É a partir de Saussure que se passa a fazer a distinção entre língua e palavra. A língua é um sistema de signos arbitrários constituído por unidades interdependentes, os signos, cuja combinação constitui aquilo que o locutor quer comunicar. O termo palavra refere-se à maneira pela qual o locutor a usa a seu gosto, susceptível de modulações pessoais da língua. Depois de “definirmos” língua e palavra, resta a pergunta: o que é a linguagem? 5 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula O que é a linguagem? Na Era de EMEREC, a palavra linguagem será empregue num sentido geral, aquele que o Petit Robert designa como sendo “todo o sistema de signos que permite a comunicação entre os homens ou possibilita que um conjunto complexo se torna inteligível”. Certos linguistas referem-se à linguagem como “a função de expressão do pensamento e da comunicação entre os homens, exercida pelos órgãos de fonação (palavra) ou por uma notação de signos materiais (escrita).” (Petit Robert) A este tipo de linguagem, tipicamente humano, chamaremos a linguagem verbal. Para estudar as linguagens recorremos à semiologia, ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social. As linguagens de base são três: a linguagem áudio, a linguagem visual e a linguagem scripto. 6 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Linguagem áudio A linguagem áudio destina-se a ser percebida pelo ouvido, o qual mergulha numa atmosfera sonora. Trata-se de uma verdadeira imersão, visto que o som se propaga em todas as direcções e o ouvido não fornece um “ponto de vista” como o olho. O ouvido é selectivo, ou seja, escolhe num campo vibratório os sons significativos que pode descodificar, rejeitando os outros. Linguagem visual A estruturalidade do olho permite-lhe estabelecer relações significativas entre elementos visuais, realçar este ou aquele ponto, focar a sua atenção sobre um elemento em detrimento dos outros, que, de certo modo, são colocados “fora do foco”. Linguagem scripto A mensagem escrita é conservada num documento visual, que deve ser olhado em função da luz, no seio do campo de visão do leitor e segundo um certo ângulo que constitui um “ponto de vista”. É esse ponto de vista que dá ao leitor uma certa distância relativamente à palavra impressa. O suporte serve essencialmente para transmitir uma informação, funcionando o menos possível ao nível da percepção. Linguagem audiovisual A linguagem audiovisual funde o áudio e o visual e é destinada a ser percebida simultaneamente pelo olho e pelo ouvido. O movimento é o elemento fundamental do audiovisual e é graças a ele que a fusão da imagem com o som é perfeita e que o “continuum” espacio-temporal é reconstituído. 7 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Linguagem scriptovisual O scripto e o visual, ou seja, a palavra e a imagem, conjugam-se de modo a que linguagem assim criada seja nova. A linguagem scriptovisual destina-se ao olho e a sua interpretação faz-se sucessivamente: de uma informação geral passamos a decifrar informações suplementares, lemos o que está escrito, descodificamos os símbolos gráficos, analisamos estruturalmente as imagens. Para existir linguagem scriptovisual é necessária a articulação entre os elementos de informação e a perspectiva. Esta articulação que encontramos tanto no grafismo como na gráfica, é de certo modo, a “escrita” scriptovisual. Linguagem audio-scripto-visual A linguagem áudio-scripto-visual dirige-se ora ao olho, ora ao ouvido, ora aos dois simultaneamente. Ela permite adoptar a linguagem, e por consequência o medium mais adaptado a cada necessidade. Cada uma das linguagens pode ser usada em complementaridade da outra. 8 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Como comunicamos? Os suportes da informação são as mensagens e a comunicação permite a transmissão de mensagens. Segundo o Petit Larousse, mensagem é a “informação nova transmitida a alguém... uma sequência discursiva produzida por um locutor no quadro da comunicação linguística.” O Petit Robert define mensagem como “o objecto, a informação, as palavras que o mensageiro transmite.” Porque se comunica? A comunicação representa apenas uma parte do conjunto das trocas interpessoais. Outra parte do que produz o locutor não se destina aos outros mas serve para fins privados, o que conduz à dicotomia comunicação social / comunicação não social. A comunicação social diz respeito à interacção, à troca e à comunicação com o outro; a comunicação não social diz respeito à comunicação consigo próprio, ou seja, ao solilóquio (o locutor está só, fala para si) e ao monólogo (o locutor encontra-se em presença de outrem mas não é perceptível um comportamento socialmente orientado). 9 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Os vectores não verbais da comunicação Segundo Scherrer, designamos por verbal os signos registados no dicionário da língua e por não verbal aqueles que lá se não encontram. A comunicação não verbal designa toda a comunicação que se estabelece entre duas ou várias pessoas mediante vectores não verbais e neste caso a comunicação é plurifuncional: - assegura o desenrolar da interacção no jogo dos posicionamentos mútuos; - veicula informação referencial, ou seja, relativa ao tema tratado (co-texto); - veicula informação sobre os interlocutores em vias de interagir e sobre a situação de enunciação (contexto); - desempenha um papel funcional como as verbalizações. Scherrer propõe uma tipologia funcional dos sinais não verbais: Função semântica: quando um sinal não verbal apoia, ilustra, amplifica ou contradiz um signo verbal; Função sintáctica: quando os sinais não verbais regulam a aparição e a organização de signos verbais simultâneos ou que se sucedem ou ainda que regulam também outros sinais não verbais; Função pragmática: quando os sinais informam sobre os estados ou características dos emissores/receptores, sobre o posicionamento social mútuo dos interlocutores. 10 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Os vectores táctil, térmico, olfactivo Estes vectores correspondem à transmissão das impressões ligadas ao contacto cutâneo e aos odores. A distância “conveniente” entre indivíduos é regulada por normas sociais implícitas, dependentes do tipo de cultura. Há trabalhos que mostram como os indivíduos regulam a sua distância respectiva, numa sucessão de posicionamentos mútuos no decorrer das suas trocas e como se sentem acanhados quando as distâncias habituais da sua cultura não podem ser mantidas, como por exemplo, quando alguém, à força de recuar perante um interlocutor invasivo, se encontra encostado à parede. Os vectores voco-acústicos Através das cordas vocais podem transitar mensagens muito diversas. Qualquer enunciado compreende uma parte verbal e uma parte vocal. Chamam-se componentes paralinguísticas as manifestações deste segundo tipo. Elas são portadoras de sentido, sozinhas ou mais frequentemente associadas a verbalizações. Temos como exemplos o timbre da voz, a altura do tom, a intensidade, o débito, o ritmo e o tempo, as pausas e os acentos. O vector visual A visão é o mais poderoso de todos os nossos sentidos. O vector visual transmite o que pode ser veiculado por um movimento de amplitude variada. Para que serve a gestualidade na comunicação? As manifestações corporais são designadas por cinestésicas. Os gestos das mãos, dos braços e de todo o copo, a postura, a distância que o locutor mantém com o seu auditor representam fontes de informação muito importantes. O rosto do parceiro é o alvo privilegiado da exploração visual. O olhar, as mímicas e os movimentos do rosto constituem índices que podem bastar para assegurar a significação. 11 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula A comunicação na sala de aula A linguagem é mais do que a língua falada e escrita, ela engloba toda e qualquer forma de comunicar: olhares, expressões, gestos, posturas, tons de voz e até o próprio espaço. De facto, os estudiosos da linguagem corporal concordam que é esta que tem maior impacto numa mensagem, sendo que cerca de um terço corresponde ao impacto da informação vocal (tom de voz, inflexões e outros sons). A informação verbal (apenas palavras) tem uma percentagem mínima no impacto. É principalmente a comunicação não verbal que é responsável pela primeira impressão de uma pessoa. O investigador americano Mehrabian2 fez uma estimativa da proporção verbal / não verbal do comportamento e concluiu que 55% da mensagem é transmitida via linguagem corporal. Ainda segundo o mesmo estudo, a voz é responsável por 38% e as palavras por 7%. Gráfico 1 – Proporção verbal/não verbal do comportamento 2 Albert Mehrabian, psicólogo e professor na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Há 25 anos conduziu um estudo pioneiro sobre a relação entre o que ele cunhou como os "três Vês" da comunicação falada. Estes três são a Verbal (as palavras que se dizem - quase que laconicamente lendo a página) a Vocal (a forma como se verbalizam estas palavras - entoação e projecção) e Visual (a forma como alguém se apresenta e age enquanto fala). Ele publicou estes dados no seu livro “Silent Messages” (Mensagens Silenciosas). 12 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula A linguagem corporal pode ser distinguida em sinais consoante a sua origem: - sinais inatos (são todos aqueles que transmitem as emoções básicas como o sorriso); - sinais genéticos (existe muita discussão sobre quais os que correspondem a estes; um exemplo é o cruzar dos braços, pois depende de pessoa para pessoa qual a maneira que se sente ser a correcta: por cima fica o braço direito ou o esquerdo?); - sinais aprendidos e culturais (são todos aqueles que podem variar de cultura para cultura). As mensagens transmitidas por gestos ou outros sinais, como expressões faciais, podem transmitir mais informação: - falsidade / sinceridade; - confiança / insegurança; - nervosismo / calma; - felicidade / infelicidade; - ... Estas são, regra geral, informações fiáveis pois o corpo transmite-as sem que nós nos apercebamos disso. Claro que podemos sempre tentar limitar ao máximo a quantidade de sinais que o nosso corpo transmite, mas para tal é necessário um grande auto-controlo e treino. Que outras partes do corpo podem transmitir mensagens? Não só todas as partes do nosso corpo transmitem mensagens, como também interagem entre si e com outros objectos, influem o modo como nos colocamos face a objectos e pessoas, e como usamos ou arrumamos esses objectos (exemplos: apontar o pé para aquilo que nos interessa, cruzar as pernas ou os braços quando estamos na defensiva, sentarmo-nos em sítios altos ou ficarmos de pé para aumentar a nossa autoridade). 13 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Espaço pessoal Todas as pessoas possuem um espaço pessoal que se divide em diversas zonas: - zona íntima – 15 a 46 cm (trata-se de uma zona onde só são permitidas pessoas muito próximas ou íntimas); - zona pessoal – 46 cm a 1 ou 2 m (distância típica entre pessoas em festas formais ou informais e reuniões de amigos); - zona social – 1 ou 2 m a 3 ou 6 m (distância típica entre desconhecidos); - zona pública – mais de 3 ou 6 m (distância a que nos sentimos mais seguros quando nos dirigimos a um grupo grande de pessoas). 14 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Relação entre corpo e voz A voz é responsável pelos primeiros contactos entre professor / alunos, e é também um dos principais instrumentos de trabalho do professor. Assim, alterações na voz prejudicam o desempenho profissional e limitam a psicodinâmica da relação professor / aluno. De ente os diversos estudos enfocando a etiologia e a prevenção dos distúrbios da voz dos professores destaca-se o de J. A. Mattiske: “Voice disorders are thought to be one of the major occupational hazards of school teaching. The resulting symptoms can affect teachers' ability to function in the classroom and prevent them from developing effective working relationships with other staff and students.” (Mattiske: 489) O mesmo autor apresenta alguns pontos para reflexão: - desordens de voz podem reduzir a inteligibilidade da fala e serem esteticamente inaceitáveis, resultando em severas perdas pessoas, sociais, vocacionais e económicas; - as desordens de voz podem ser causadas por doenças, mau uso do mecanismo vocal e por psicogenias; - os professores, tal como os cantores e os locutores são presumíveis profissionais de risco para problemas de voz; - o impacto de desordens vocais é imenso entre os professores. 15 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Poderíamos dizer que a nossa voz é o nosso cartão de apresentação aos alunos. Mas não é só a voz que fala. O que dizem a voz e o corpo? “Se alguma coisa se incorpora na matéria das vozes que as torna recalcitrantes a quase todas as palavras com que as tentamos definir, essa resistência tem por contraponto o estranho mistério de elas parecerem inesquecíveis – e por vezes ao atender um telefonema, ao ouvir um programa de rádio, ao encontrar alguém numa esquina de uma rua, é uma antiquíssima voz que vem segredar-me ao ouvido que a memória tem mais voltas, estratos e volutas do que nós costumamos imaginar. E mais surpreendente é ainda esse momento em que a voz fica presa ao desconhecido de um passado sorvido pelo tempo, e nós perguntamos desamparadamente: a que momento da minha história pertence esta voz? Como se nelas houvesse sempre um segredo que tudo soterrou e de que apenas resta uma ampola de som, um círculo de vibrações sonoras, uma percussão de afectos. É disto que é feito o amor das vozes – desta convicção de que um corpo pode ser sempre mais do que a mensagem que numa voz se diz..” Eduardo Prado Coelho, Público, 21 de Março de 2002 Os alunos estão particularmente atentos à voz e ao corpo do professor. É vulgar os alunos referirem que o professor fala muito alto ou muito baixo e “não se percebe o que ele (ela) diz”. O falar alto acarreta efeitos nocivos para a saúde vocal para além de provocar resistências à audição por parte dos alunos; os mesmos efeitos de resistência acontecem no caso do professor falar baixo. A voz e o corpo expressam a personalidade. Talvez os professores ainda não se tenham dado conta de que as primeiras reacções à voz e ao corpo são a repetição (imitação) ou a negação pelo “outro” (o aluno). 16 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Para se ter uma “boa voz” é necessário ter, em primeiro lugar, um bom ouvido. Tomatis recorda, no seu livro, o papel primordial do ouvido nos mais longínquos antepassados da humanidade: “... de todos os nossos ‘radares’, ele [o ouvido] sabia funcionar de dia, de noite... pareceu rapidamente mais apto para este género de operação táctica do que o podiam ser a visão, o olfacto ou o tacto... O ouvido regista-se como sendo a nossa primeira arma de sondagem e de controlo.” (Tomatis: 42) No longo caminho da humanização, o ouvido é anterior à escuta. O ouvido é a primitiva antena do homem primitivo, como diria Tomatis. Depois o ouvido vai abandonando o seu papel mecânico, humanizando e intelectualizando o seu sistema de escuta. “É do poder de se ouvir que nasce a faculdade de se escutar. É do poder de se escutar que nasce a faculdade de falar.” (Tomatis: 69) 17 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula A voz No sistema de comunicação verbal entre duas pessoas o processo de comunicação é complexo. Todo e qualquer acto de comunicação implica vários níveis de codificação e descodificação de naturezas diversas. Ao sistema linguístico correspondem as seguintes fases de processamento do acto comunicativo: Fig. 2 – Sistema de comunicação Como emissor, produtor de uma mensagem linguística, o sujeito A terá que formular, a nível de conceito, aquilo que quer transmitir ao receptor B. Esta primeira fase processa-se ao nível do sistema nervoso central, transmitindo este as instruções necessárias através do sistema nervoso periférico para que os órgãos de articulação oral produzam os movimentos devidamente coordenados de forma a produzirem uma cadeia de sons correspondentes à mensagem a transmitir. O sinal emitido, acústico, deverá propagar-se no meio até atingir o receptor B – a fala. O receptor recebe o sinal acústico através do sistema auditivo que transmite pelo sistema nervoso periférico a codificação da mensagem até ao sistema nervoso central, onde é de novo codificado numa mensagem linguística. Este percurso inverte-se, podendo B passar a ser o emissor e A o receptor. 18 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Fisiologia da voz A produção da voz depende dos órgãos e do sistema de respiração. O ar entra (inspiração) e sai (expiração) do organismo através do nariz e da boca, passando para os pulmões através das vias respiratórias. Quando se inspira pelo nariz, o ar é filtrado antes de entrar nos pulmões Fig. 3 – Aparelho fonador O som é uma deslocação do ar que atinge o ouvido. Esse som pode ser directo na fala, do falante ao ouvinte, ou pode ser recolhido e transmitido de um gravador ao ouvido. O som é produzido por uma fonte vibratória. As vibrações são transmitidas por meio aéreo, por meio sólido ou líquido constituídos por partículas. 19 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula A produção da voz, para além de ser controlada pelo sistema nervoso central, passa na sua produção por três etapas: a respiração, a fonação e a articulação. Pode-se considerar que, como sistema acústico, a respiração é equivalente à fonte de energia acústica para a fonação; essa energia traduz-se em pressão de ar com determinado volume e velocidade. Fig. 4 – Produção de fala 20 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula O corpo Fisiologia do corpo humano O esqueleto humano constitui a estrutura que serve para apoiar o corpo, protegendo os órgãos internos e assegurando a realização dos movimentos em conjunto com o sistema muscular. O nosso esqueleto contém, na maioria dos casos, 206 ossos. O osso é um tecido conjuntivo. A componente mole deste tecido conjuntivo contém depósitos de sais de cálcio que lhe confere a sua rijeza característica. Outro mineral componente do osso é o fósforo. A hormona do crescimento actua indirectamente sobre as epífises (zona de crescimento) dos ossos determinando a altura do indivíduo. A falta de vitaminas A, C ou D prejudica o desenvolvimento de ossos saudáveis. Fig. 5 –Principais ossos do esqueleto Fig. 6 – O crânio 21 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Uma articulação é um ponto de conexão entre dois ossos. Os cordões fibrosos que ligam as extremidades dos ossos são os ligamentos. Certos exercícios físicos podem causar uma ruptura dos ligamentos. Em certos casos, os ligamentos aderem de tal modo aos ossos que estes podem quebrar mesmo antes de os ligamentos se romperem. Lesões menos graves têm o nome de distensão ou entorse. Fig. 7 – Exemplo de articulação adução/abdução da perna e entorse de um ligamento 22 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Sistema muscular Fig. 8 – Os músculos O corpo humano contém mais de 600 músculos. Um músculo é formado por milhares de fibras musculares individuais ligadas por tecido conjuntivo e irrigadas por um vasto conjunto de vasos sanguíneos. 23 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Os músculos podem contrair-se e descontrair-se. A acção do músculo consiste em transformar a energia química em energia mecânica. A força de um músculo é criada pela contracção muscular provocando o movimento dos ossos a que se ligam. Portanto não é o músculo que exerce directamente a força sobre os objectos (resistências); não é o músculo que empurra directamente o objecto; é a contracção muscular que faz os ossos agirem como alavancas em conexão e que fazem então mover o corpo ou os objectos (as resistências externas ao corpo): Quando um músculo se contrai para produzir movimento, o músculo que se lhe opõe descontrai-se. Fig. 9 – Contracção muscular 24 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Postura corporal correcta O som produzido será sempre influenciado pela postura que se adopta, por diversas razões. Uma boa postura: • é bem menos cansativa do que uma postura má ou relaxada, pois assim, os ossos e músculos ficam posicionados de modo a que haja o mínimo de esforço e de tensão; • causa um melhor aproveitamento respiratório; • dá um melhor aspecto à visualização, além de transmitir maior segurança; • coloca o mecanismo vocal na melhor posição para o seu posicionamento, tornando mais fácil a produção de uma sonoridade com qualidade; • traz confiança, bem-estar psicológico e físico a todo o organismo; • faz o corpo funcionar melhor, consequentemente beneficia a saúde vocal; • a boa postura para falar deve ser aprendida e praticada até que se torne um bom hábito. 25 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Como manter uma voz saudável? As alterações de voz manifestam-se habitualmente por rouquidão, alterações no timbre, instabilidade nas características vocais e por fadiga vocal. Estas alterações têm causas diferentes podendo ser o resultado de esforços ou de abuso vocal, assim como de infecções, traumatismos ou tumores. Beber água Para ter uma ‘voz saudável’, deve beber-se água (seis a oito copos diários), pois é a única forma de manter as cordas vocais hidratadas. Mesmo quando emitimos apenas um som as cordas vocais vibram intensamente; a hidratação vai melhorar a produção de muco contribuindo para a sua ‘lubrificação’. Deve-se reduzir e em alguns casos evitar a ingestão de bebidas que podem provocar desidratação das cordas vocais (ex: álcool, café e bebidas com cafeína, chá preto e bebidas gaseificadas). Não fumar É do conhecimento geral que o tabaco pode provocar cancro do pulmão e cancro da laringe. Tanto nos fumadores como nos ‘fumadores passivos’ as cordas vocais sofrem uma ‘agressão’ que se traduz por alterações persistentes na qualidade da voz. 26 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Não esforçar nem abusar da voz Não se deve falar muito alto em locais ruidosos pois o ruído obriga a aumentar a intensidade da voz comprometendo a sua qualidade. Devemos falar no nosso tom. Se esforçarmos a voz falando em tons mais graves ou mais agudos do que o normal, podemos provocar ‘traumatismos’ nas cordas vocais, que vão provocar rouquidão (disfonia). Deve evitar-se pigarrear Ao pigarrear as cordas vocais batem uma na outra, agredindo-se mutuamente. A rouquidão pode ser uma das consequências do pigarrear repetido. Em vez de pigarrear, é melhor beber um golo de água ou engolir ‘em seco’. As causas mais frequentes que levam à necessidade de pigarrear são o refluxo gastro-esofágico, o refluxo faringolaríngeo, as rinites, as sinusites e as doenças alérgicas. 27 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Conclusão Estamos em permanente contacto com os outros na nossa vida quotidiana. No entanto, utilizamos outros métodos para além da fala para comunicar com os outros. A expressão facial, o tom de voz, a postura e os gestos constituem uma série de sinais sem palavras intimamente relacionados com as nossas emoções e os nossos sentimentos. A voz é a forma mais comum de comunicação, sendo da maior importância nas relações sociais e na vida profissional. Só usando a voz de uma forma correcta e tendo cuidados com a sua utilização é possível manter uma ‘voz saudável’ durante toda a vida. Devemos cuidar da nossa voz porque ela é um sinal de saúde. Se ela não está bem pode indicar que a estamos a usar demasiado ou de uma forma errada. Assim, devemos ter alguns cuidados para manter a voz sempre bonita, limpa e saudável, prevenindo deste modo as alterações e doenças vocais. Devemos ‘ouvir a nossa voz’, ou melhor, ‘ouvir o que a nossa voz nos quer dizer’. 28 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Índice de Ilustrações Fig. 1 - A comunicação segundo Shannon e Weaver Fig. 2 – Sistema de comunicação Fig. 3 – Aparelho fonador Fig. 4 – Produção de fala Fig. 5 – Principais ossos do esqueleto Fig. 6 – O crânio Fig. 7 – Exemplo de articulação adução/abdução da perna e entorse de um ligamento Fig. 8 – Os músculos Fig. 9 – Contracção muscular Gráfico 1 – Proporção verbal/não verbal do comportamento Restantes imagens retiradas de: www.corbis.com 29 A Voz que Ensina: o Professor e a Comunicação em Sala de Aula Bibliografia ANTÃO, José Augusto da. Comunicação na sala de aula”. Edições Asa. Porto: 1995 BEAUDICHON, Janine. “A Comunicação. Processos, formas e aplicações”. Porto Editora. Porto: 2001 BLANCO, Elias. SILVA, Bento. “Comunicação educativa: Natureza e Formas”. Universidade do Minho. Instituto de Educação e Psicologia. Braga: 1991 BOUDON, R. BOURRICAUD, F. “Dictionnaire critique de la sociologie” . PUF. Paris : 1982 CLOUTIER, Jean. “A Era de EMEREC”. Le Petit Larousse Illustré, dictionnnaire, 1974 Le Petit Robert, dictionnaire, 1973 MARTINS, Maria Raquel Delgado. “Ouvir Falar. Introdução à Fonética do Português”. Editorial Caminho. Lisboa: 1988 MATTISKE J.A. Oates J.M. Greenwood K.M. “Vocal problems among teachers: a review of prevalence, causes, prevention, and treatment.” Journal of Voice n.º4, p. 48999: 1998 MONTEIRO, Guilhermino. “O Professor, o corpo e a voz”. Edições Asa. Porto: 2003 MORIN, J. –M. “Précis de Sociologie”. Nathan. Paris : 1996 TOMATIS, Alfred. “L’oreille et le langage”. Éditions du Seuil: 1991 VIEIRA, Margarida Magalhães. “Voz e relação educativa”. Edições Afrontamento. Porto: s/d 30