Administração n.º 98, vol. XXV, 2012-4.º, 1083-1110
A Questão das Infracções Administrativas no
âmbito do Sistema das Fontes Normativas
internas estatuído pela Lei Básica e
desenvolvido pela Lei n.º 13/2009
Paulo Cardinal* Zheng Wei**
I. Introdução
A Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China estabeleceu, para vigorar a partir do dia 20 de Dezembro de 1999, um sistema de fontes normativas internas radicalmente
diferente daquele outro que vigorava no território de Macau.
Isto é, contrariamente ao sucedido em muitas outras matérias que
transitaram abrigadas pelo magno princípio da continuidade — e.g.
ordem jurídica em geral, direitos fundamentais, sistema social, sistema
financeiro, etc.. — neste nevrálgico ponto do sistema jurídico-político a
opção foi a da descontinuidade.1 Com efeito, e para além de outras diferenças2, ao invés de ter sido mantido um sistema bifronte de produção
local de actos legislativos — Lei, pela Assembleia Legislativa, e DecretoLei, pelo Executivo — que, essencialmente, ocupavam o mesmo patamar
hierárquico, a opção foi no sentido de restringir a produção de actos legislativos ao parlamento apenas.
As razões desta opção de corte com um passado que, neste capítulo,
funcionava bem e oleadamente, não serão, de imediato, fáceis de descor* Docente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, Doutorando,
Coimbra.
** Mestre, Universidade de Pequim, PhD, MUST, Macau.
1
«Prosseguindo nesta análise, é necessário tomar ainda em consideração que o sistema que se
acha divisado pela Lei Básica da RAEM é diferente daqueloutro que vigorava anteriormente.», sublinha o competente Parecer n.º 3/III/2009 da 1.ª Comissão Permanente, disponível em Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de Enquadramento das
Fontes Normativas Internas, http://www.al.gov.mo/colect/col_lei-10/283-426.pdf
2
Com efeito, há várias outras alterações estatuídas, categorização de novos actos normativos, de actos totalmente alienígenos como a ordem executiva (da “executive order” do
direito de Hong Kong), cuja natureza normativa não é sequer pacífica, introdução de
importantes limitações à iniciativa legislativa, etc..
1083
1084
tinar, menos ainda de a colher. Prima facie, se poderá avançar que por
ventura, nesta questão, Macau foi, mais uma vez, vítima do princípio de
copiar a congénere Lei Básica de Hong Kong. Isto é, ao importar um sistema concebido para Hong Kong e que, grosso modo, assentava na tradição
anterior, habitual para um sistema jurídico de matriz inglesa, foi-se indiferente ao modelo jurídico próprio de Macau escolhendo-se uma soluçãorevolução ao findar a competência legislativa do Governo, sem quaisquer
precedentes, sem quaisquer benfeitorias visíveis, ao menos no imediato.
No entanto, há quem avance ainda a seguinte razão: «O Governador
tem poder legislativo, cujo âmbito abrange todas as matérias não reservadas
a órgãos soberanos da República ou à Assembleia Legislativa. O poder legislativo ainda pertence ao Governador quando a ele a Assembleia Legislativa
confere autorização legislativa ou após a sua dissolução. O Chefe do Executivo
não pode gozar das mesmas competências. No futuro, o Chefe do Executivo
não terá poder legislativo, não terá poder de promulgar Decretos-Leis com
eficácia jurídica. Já a Lei Básica não pode tomar como referência ou transplantar essas competências do Governador. Agora, a Assembleia Legislativa
de Macau não tem o poder legislativo pleno, depois de 1999, a Assembleia
Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau goza do poder legislativo... Na fase da redacção dos articulados sobre as competências funcionais
do Chefe do Executivo já considerou e estudou estas circunstâncias.».3
Por outro lado, é mister constatar que a questão das fontes de Direito: v.g. identificação e tipificação, delimitação de competências materiais e
3
XIAO WEIYUN, Lei Básica de Macau, Peking University Press, Edição de 2003, p. 78.
O mesmo conhecido autor afirma ainda, «O Governador tem poder de requerer ao Tribunal Constitucional para apreciar se as normas estabelecidas pela Assembleia Legislativa violam a Constituição ou violam a lei. O Governador também tem poder legislativo. Quando a
Assembleia Legislativa confere autorização legislativa ao Governador ou após a sua dissolução,
o poder legislativo também pertence ao Governador. Sobre estas competências do Governador,
já o Chefe do Executivo não poderá gozar no futuro. Não pode copiar. O Chefe do Executivo
não tem poder legislativo. Depois de 20 de Dezembro de 1999 o poder legislativo da Região
Administrativa Especial de Macau pertence à Assembleia Legislativa. O Chefe do Executivo
precisa de ter poderes, mas deve sujeitar-se a controlo. Na fase da redacção da Estrutura Política da Lei Básica, o grupo de trabalho especializado para a estrutura política discutiu uma
ideia de princípio, i.e., o Chefe do Executivo precisa de ter poderes materiais, mas também
precisa de sujeitar-se a controlo e fiscalização. O poder do Chefe do Executivo é relativamente grande, que de outro modo dificilmente cumpre a sua atribuição e desenvolve a eficiência
administrativa, mas ao mesmo tempo o poder do Chefe do Executivo não é excessivamente
grande, ele precisa de sujeitar-se ao controlo da Assembleia Legislativa.», idem, p. 230.
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orgânicas, relações mútuas, nomeadamente de hierarquia, de reservas, de
complementaridade são questões presentes e determinantes em qualquer
sistema jurídico de qualquer areópago. E, como se consabe, normalmente
é na Constituição que o núcleo essencial destas matérias do processo de
produção normativa vem definido. Por exemplo, que tipos de actos normativos existem (ao menos os principais, por exemplo Lei, Decreto-Lei,
Regulamento Administrativo, Resolução, etc.), sua designação e proveniência orgânica, áreas de reserva de normação legal ou — menos frequente
— de normação regulamentar administrativa, estatuição de hierarquização
geral, por exemplo princípio da superioridade constitucional, princípio
da prevalência da lei, relações mútuas de hierarquia paramétricas (ou,
em alguns casos, inexistência de hierarquia entre 2 ou mais tipos de acto
normativo), de sentido binário, por exemplo Lei de Bases versus DecretoLei de desenvolvimento, ou lei de enquadramento orçamental versus lei do
Orçamento; eventualmente relações de titulação, por exemplo necessidade
de existência de lei prévia autorizadora de acto normativo regulamentar.
Por outro lado, também normal é que existindo uma estruturação,
definição e traçar de fronteiras se estatua do mesmo passo um conjunto
de mecanismos de fiscalização — esmagadoramente por via judicial — da
produção normativa. Por exemplo, fiscalização da conformidade constitucional, fiscalização da conformidade legal, etc..
Em Macau, por força do Estatuto Orgânico de Macau — diploma
de natureza constitucional — o modelo de fontes normativas achavase devidamente expresso e concretizado na constituição local,4 com um
desenho de várias relações entre as duas fontes de lei, por exemplo estatuindo áreas de reserva de lei, áreas de reserva de decreto-lei, áreas concorrenciais, relações especiais entre determinadas lei e decretos-lei (e.g. lei
de autorização legislativa e decreto-lei autorizado), sistema esse que vinha
acompanhado dos competentes e necessários mecanismos de fiscalização
judicial. Em várias vertentes e modalidades, nomeadamente recurso de
constitucionalidade de normas jurídicas.
4
Quanto ao sistema de produção legislativa em vigor no quadro do EOM e CRP, ver,
por exemplo, PAULO CARDINAL, A transição e o sistema político de Macau: continuidade ou convergência?, Revista Jurídica de Macau, Vol. IV, n.º 3, 1997, CARLOS
BLANCO DE MORAIS, A organização do poder político-legislativo no território de
Macau, in Estudos em Homenagem a Rogério Soares, 1999, ANTÓNIO KATCHI, As
fontes do direito em Macau, FDUM, Macau, 2006.
1086
Com a Lei Básica, no entanto, poucas matérias restaram com
morada constitucional. A saber, por exemplo, identificação de Lei —
proveniente da Assembleia Legislativa — consagração da figura(s) do
Regulamento Administrativo, previsão da Resolução (também da AL),
reconhecimento do Decreto-Lei, enquanto fonte normativa preexistente,
estabelecimento da Lei Básica como acto normativo superior ao qual todos os demais actos normativos internos devem obediência, princípio da
publicação oficial. De forma assistemática e/ou esparsa também algumas
matérias de reserva de lei, por exemplo, direitos fundamentais, definição
de crimes, definição de impostos, etc..
Todavia, inexiste expressamente no texto imediato da Lei Básica, um
rigoroso recortar de competências entre os órgãos de soberania regionais.
De um dividir de águas entre os poderes legislativo e executivo. Quid
Juris quanto aos actos normativos legados do passado como o DecretoLei? Que natureza tem a ordem executiva? Muitas dúvidas surgiram —
na doutrina, na jurisprudência, na praxis política da RAEM — como por
exemplo, existência ou não de uma reserva geral de lei, existência ou não
de uma reserva de regulamento, necessidade ou não de uma lei prévia
habilitadora de regulamento administrativo, legitimidade ou não de produção de regulamentos administrativos sem lei prévia e fundados directa
e imediatamente na Lei Básica, tipologia e natureza dos regulamentos
administrativos, existência ou não de mecanismos de fiscalização de conformidade constitucional e legal para tutelar a hierarquia das fontes normativas, etc., etc..
Destarte, não é pois de estranhar, o enorme caudal de problemas,
dúvidas, incertezas, que assolaram a comunidade jurídica local em geral,
Administração Pública e tribunais incluídos, a comunidade política e a
sociedade em geral. Em tão relevante e sensível ponto uma tamanha e tão
súbita alteração dificilmente poderia concretizar-se sem dores. E, como
também era previsível mesmo sem recurso a qualquer bola de cristal, a
tendência natural das coisas seria o Executivo vir paulatinamente a estender mais e mais as fronteiras da sua esfera de acção normativa por via de
regulamento administrativo.5
5
Constatado que se operava uma verdadeira revolução com a retirada de competência
legislativa ao Chefe do Executivo perguntava-se, «Esperemos pelo futuro para perceber
qual a densidade normativa dos regulamentos administrativos...», escrevia PAULO CARDINAL, em A transição e o sistema político de Macau: continuidade ou convergência?,
Revista Jurídica de Macau, Vol. IV, n.º 3, 1997, p. 54.
1087
Em verdade, citando QIAO XIAOYANG, Vice-Secretário-Geral do
Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional e Coordenador da
Comissão da Lei Básica, «Depois da transferência de poderes de Macau e devido a hábitos do passado, o órgão executivo assumiu um poder algo excessivo
no que respeita à regulamentação através de regulamentos administrativos.
Daí a Assembleia Legislativa ter, por exemplo, no ano passado, definido o
Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas, o que veio
assim resolver, e bem, essa questão.».6
Por outro lado, a convivência com a possibilidade de haver sido
constituído um poder regulamentar independente, isto é, sem necessidade de intermediação legislativa prévia, também não se apresentava fácil,
isto independentemente de qual a posição adoptada quanto a limites do
poder regulamentar e concomitantes áreas de reserva de lei.
As controvérsias judiciais são, de per se, exemplo bem ilustrativo deste estado de coisas em ebulição, em incerteza.
Um bom elemento auxiliar que permite situar algumas destas questões é o famigerado Acórdão do Tribunal de Última Instância (TUI) 7:
«Uma outra questão é a que se relaciona com o princípio da prevalência
da lei, relativamente ao regulamento, o princípio de que este não pode contrariar a Lei Básica e as leis em geral. Ele consta do 2.º parágrafo do artigo 11.º
— quanto à Lei Básica (“Nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode
contrariar esta Lei”) e do artigo 65.º, quanto às leis em geral (”O Governo da
Região Administrativa Especial de Macau tem de cumprir a lei...”). Não tem
suscitado dúvidas a vigência deste princípio.».
E prosseguindo com o TUI, se esclarece, naturalmente, que, por
exemplo, os despachos normativos do Executivo são, também, regulamentos administrativos lato sensu: «a Lei Básica o utiliza [o regulamento]
com o sentido de normas jurídicas dimanadas de órgãos da Administração no
exercício da função administrativa.». «Por conseguinte, a espécie de diploma
designado por “Regulamento Administrativo”, criado pelo artigo 3.º, alínea 2)
da Lei n.º 3/1999, é apenas uma espécie do género regulamentos administra6
Aprofundar o estudo e o debate sobre a Lei Básica e empenhar esforços na elevação do nível
de qualidade dos trabalhadores da Administração Pública, inédito.
7
Proferido no Processo n.º 28/2006.
1088
tivos, previsto na Lei Básica, aliás, como se retira dos arts. 3.º, alíneas 4) e 5),
13.º, n.º 1, 15.º, n.º 2 e 16.º, n.º 2 da mesma Lei n.º 3/1999, que cria, ao
lado dos “Regulamentos Administrativos”, os “despachos regulamentares externos” exarados pelo Chefe do Executivo e pelos titulares dos principais cargos da
RAEM, uns com base no artigo 50.º da Lei Básica, outros com fundamento
no artigo 64.º da mesma Lei, que são igualmente regulamentos administrativos previstos na Lei Básica.». «No que respeita à forma dos regulamentos
administrativos a Lei Básica não a define. O artigo 3.º da Lei n.º 3/1999
prevê a existência de regulamentos administrativos do Chefe do Executivo e
os despachos regulamentares externos exarados pelo Chefe do Executivo e pelos
titulares dos principais cargos da Região Administrativa Especial de Macau.»
E, ainda com o TUI, «Conclui-se, assim, que o Chefe do Executivo
pode aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das
matérias reservadas à lei pela Lei Básica e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei (o regulamento não pode contrariar os actos normativos de força
hierárquica superior, designadamente, a Lei Básica, as leis, ...».
Como também afirma aquele mesmo aresto, nomeadamente, a inexistência de reserva de regulamento administrativo.8
II. Génese da Lei n.º 13/2009
Nos termos antevistos e em suma, reinava a confusão, a incerteza, o
arbítrio. Grave situação pois, ademais em matéria tão estruturante, transversal e nobre9.
8
No mesmo sentido, JOÃO ALBUQUERQUE, Regime geral das leis e regulamentos
administrativos, BFDM, 27, pp. 89 e 90, PAULO CARDINAL, Notas Breves e esparsas
sobre o regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas — Lei Básica e
Lei n.º 13/2009, cit..Aliás,citando representantes do Executivo em reunião formal de
Comissão, peremptoriamente afirmando: «não há reserva de regulamento administrativo
mesmo nos casos em que o poder Executivo tem poder regulamentar por regulamento administrativo independente», (registo áudio arquivado com os autores).
9
Para uma análise da doutrina sobre o sistema de produção normativa da RAEM entre
a sua instituição e a Lei n.º 13/2009 e/ou sobre o processo legislativo desta, veja-se,
por exemplo, ZHENG WEI, Discussion on the Division of Legislative Power in Macau
SAR, GOMES CANOTILHO, Inédito, ANTÓNIO KATCHI, As fontes do direito em
Macau, FDUM, Macau, 2006, LUÍS PESSANHA, Breves Reflexões em Torno da Reserva
de Lei da Assembleia Legislativa da RAEM, inédito, WANG YU, The Reconsideration of
the Legal Status of the Administrative Regulations, WANG YU, On the Nature and Sta-
1089
Recorde-se de imediato a Nota Justificativa da proposta de lei no
que diz respeito à questão da necessidade, «Com a execução aprofundada
da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República
Popular da China, acrescida da subida progressiva do volume de trabalho e
da complexidade no processo legislativo, as comunidades jurídica e judiciária,
assim como os académicos e a sociedade civil aumentaram e diversificaram o
seu conhecimento sobre o sistema legislativo da RAEM, nomeadamente em
relação ao estatuto, à natureza e à eficácia dos regulamentos administrativos,
tendo registado não poucos diferentes pontos de vista. O Governo pretende,
por iniciativa legislativa, enquadrar as matérias relativas às leis e regulamentos administrativos, bem como a sua correlação, com base nos estudos profundos, tendo ainda em conta as opiniões sociais colhidas.».10
Era, pois, necessário estabelecer um quadro normativo ordenador
que viesse, na medida do possível e dentro do quadro superior da Lei Básica, disciplinar a matéria.
tus of Administrative Regulations, JOÃO ALBUQUERQUE, Regime geral das leis e dos
regulamentos administrativos, BFDM, 27, JOÃO ALBUQUERQUE, Contributo para
a proposta de lei intitulada «Enquadramento das leis e dos regulamentos administrativos»,
JOÃO ALBUQUERQUE, Contributo para a versão final da proposta de lei intitulada
«Enquadramento das leis e dos regulamentos administrativos», LIAN XISHENG, Analysis
on the Evolution of the Legislative System of Macau —from Dual Levels and Dual Tracks to
Dual Levels and Single Track, MI JIAN, Analysis on the Legislative Power of the Chief Executive of Macau, LINO RIBEIRO, Curso de Procedimento Administrativo, VITALINO
CANAS, A estrutura normativa da Região Administrativa Especial de Macau, BFDM, 27,
DUARTE SANTOS, Lei e regulamentos — será desta que os regulamentos administrativos
vão ter uma lei de habilitação?, LINO RIBEIRO / CÂNDIDO DE PINHO, Código
do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, Fundação Macau/
SAFP, 1998 CHEANG KAM IO, Brief Analysis on the Proposal of “Rules on Laws and
Administrative Regulations”, CHEANG KAM IO, Analysis on Questionable Issues in the
Judgment of Court of Second Instance, CHEANG KAM IO, The Possibility of the Administrative Regulations becoming the Object of Administrative Litigations, CHEANG KAM
IO, Continuação da análise da proposta de lei sobre «Regime jurídico de enquadramento das
fontes normativas internas, JORGE BAPTISTA BRUXO, Direito e Procedimento Administrativo de Macau, XU CHANG, Litígio e Respectiva Resolução sobre a Competência Regulamentar dos Regulamentos Administrativos da Região Administrativa Especial de Macau,
Revista de Estudos de “Um País, Dois Sistemas ” (Edição em Português), n.º 1, 2012.
10
Disponível em Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de Enquadramento das
Fontes Normativas Internas, http://www.al.gov.mo/colect/col_lei-10/283-426.pdf
1090
Daí, a iniciativa legislativa que veio a cristalizar-se na Lei n.º
13/2009, que concretizou e estabeleceu o Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas.
Ou seja, sentiu-se a necessidade premente de estender e detalhar a
longa manus da Lei Básica. Isto é, operou-se uma concretização legislativa
do superior enquadramento constitucional previsto na Lei Básica e, do
mesmo passo e porque necessário, providenciaram-se soluções normativas
que preencheram espaços lacunosos, dentro de um espírito de alguma
liberdade conformadora por parte do legislador. Legislador em sentido
lato, aqui se englobando, primacialmente, dois sujeitos do procedimento
legiferante, o Executivo enquanto actor da iniciativa legislativa e o parlamento enquanto órgão aprovador competente.
Não é possível esconder que o processo legislativo foi moroso, complexo tecnicamente, complexo politicamente — como, de resto ilustra a
circunstância inédita e ainda não repetida de ter havido 5 versões formais
da proposta de lei11 — e com consensos difíceis de alcançar e estabelecer,
em termos daquilo que seria a boa solução em termos de enquadramento
e delimitação das fontes normativas da RAEM.
Como salienta o Parecer n.º 3/III/2009, da 1.ª Comissão Permanente, de 29 de Junho de 2009: «complexidade jurídica das matérias constantes
da proposta de lei em apreço, o debate havido e concomitantes diferenças
importantes de opinião, o seu carácter inovatório, a sua horizontalidade visà-vis o sistema organizatório público da RAEM, e as implicações futuras no
plano da produção normativa.».12 Ou ainda o sublinhar de, «as circunstâncias jurídicas e judiciais que a precederam».13
E ainda se disse naquele mesmo Parecer que «A já mencionada complexidade jurídica implicou uma aturada reflexão e uma investigação pelos
domínios do direito comparado em particular quanto aos modos de produção
normativa, repartição de poderes de feitura de actos normativos — legislativos
e regulamentares –, relação entre fontes normativas internas, seja de hierarquia, seja de articulação e diferenciação, o estudo da jurisprudência relevante,
11
Para além de muitas outras versões informais, naturalmente.
Disponível em Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de Enquadramento das
Fontes Normativas Internas, http://www.al.gov.mo/colect/col_lei-10/283-426.pdf.
13
SUSANA CHOU, Nota Prévia, Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de
Enquadramento das Fontes Normativas Internas.
12
1091
tendo sempre presente que, na RAEM, a Lei Básica impôs um novo desenho
constitucional, o qual, nestes aspectos, se diferencia a vários níveis daqueloutro
outrora vigente.».
Aqui chegados, será mais fácil recorrer ao recorrentemente citado Parecer da comissão especializada da Assembleia Legislativa, como forma de
obtermos uma panorâmica da Lei n.º 13/2009.
Com efeito, em jeito de resumo do regime ordenador vigente, escreveu a Comissão no aludido Parecer que alguns pressupostos devem ser
dados como assentes no actual quadro constitucional-legal de Macau, a
saber:
«1) A função legislativa pertence, em exclusivo, à Assembleia Legislativa.
2) O Governo, no exercício da sua função administrativa, pode emitir
actos normativos que, porém, não têm a natureza ou força de lei.
3) A AL, enquanto titular exclusivo do Poder Legislativo, pode fazer leis
sobre todas as matérias compreendidas no âmbito da autonomia de Macau.
4) O Chefe do Executivo, enquanto responsável máximo da RAEM e
do Governo, pode emitir regulamentos administrativos visando a regulação
primária e originária (ancorando-se a sua legitimação na Lei Básica) sobre
aspectos da vida social, políticas públicas ou actividades públicas, e adoptar
providências necessárias à satisfação das necessidades colectivas.
5) A Lei Básica não restringe o âmbito do universo dos regulamentos administrativos a actos de mera execução das leis da AL.
6) A Lei Básica é uma lei com valor superior, supra-ordinário, e nenhum acto normativo da RAEM a pode contrariar.
7) Os regulamentos administrativos independentes não podem, em circunstância alguma, prevalecer e contrariar as leis da AL, à luz do princípio
da prevalência da Lei.
8) Existem matérias que só à AL cabe regular através de leis.
9) Não há reserva de regulamentos administrativos.».
Estas nove alíneas providenciam, pois, um bom resumo da arquitectura do regime jurídico-constitucional vigente estabelecido pelo binómio
Lei Básica-Lei n.º 13/2009. Este é o regime vigente. Goste-se dele ou dele
se desgoste.
1092
Não é, naturalmente, um regime absolutamente imutável mas constitui, enquanto vigorar, o regime a que se deve obediência. E, ao se afirmar enquanto vigorar, é mister não olvidar a colocação hierárquica deste
binómio normativo, para além da sua função constitucional ordenadora,
como se verá de seguida.
III. Função e valor da Lei n.º 13/2009
A Lei n.º 13/2009, assume-se como uma lei dotada de uma constitucionalidade emprestada.14 Emprestada, naturalmente, pela Lei Básica, a
qual estende o seu manto de superioridade hierárquica e de matéria constitucional a esta lei estruturante que vem desenvolver e explicitar o regime
jurídico das fontes normativas internas.
Ou seja, esta lei n.º 13/2009, assume-se como uma lei de matéria
constitucional e dotada de valor paramétrico face às leis posteriores e,
bem assim, aos regulamentos administrativos que surjam após a sua entrada em vigor.15
Com verdade, anote-se, «Por outro lado, a lei a elaborar não é, nem
podia ser, uma lei modificadora da Lei Básica. É uma lei ordinária e, como
tal, sujeita ao princípio da conformidade com a Lei Básica. Consequentemente, a concretização a fazer no articulado tem de obedecer aos parâmetros
fixados naquela lei superior. Trata-se de um ponto indiscutível: a exigência
fundamental de legitimação material desta lei é a sua conformidade com o
direito superior, a Lei Básica. Isto, claro está, sem prejuízo de se impor como
lei de referência nas matérias que regula, isto é, de qualquer modo, ela é uma
14
Cfr. PAULO CARDINAL, Em Torno De Algumas Questões Relativas Ao Sistema
Das Fontes Normativas Internas Estatuído Pela Lei Básica E Desenvolvido Pela Lei
N.º 13/2009, inédito.
15
XU CHANG, Litígio e Respectiva Resolução sobre a Competência Regulamentar dos
Regulamentos Administrativos da Região Administrativa Especial de Macau, afirma «A
presente lei define uma série de importantes normas do regime do ordenamento jurídico da
Região Administrativa Especial de Macau.» e, «a Lei Básica não define expressamente o
pleno poder legislativo da Assembleia Legislativa, apesar de se poder deduzir uma relativa
implicação através da intenção da legislação da Lei Básica e numerosos documentos relevantes; a presente lei, porém, define-o expressamente pela primeira vez.» e ainda, «A presente
lei afirma, pela primeira vez, a hierarquia entre as leis e os regulamentos administrativos,
constituindo uma norma de eficácia essencial do ordenamento jurídico da Região.», Revista
de Estudos de “Um País, Dois Sistemas ” (Edição em Português), n.º 1, 2012, p. 108.
1093
lei que serve de parâmetro aos actos normativos posteriores devendo, como tal,
ser respeitada por estes, sob pena de não desempenhar então qualquer função
de utilidade.», e ainda, «o impacto da aprovação da proposta de lei far-se-á
sentir de uma forma profunda e horizontal impregnando-se no restante tecido
jurídico com uma densidade que, normalmente, não ocorre com outras leis. A
função, natureza e a importância da futura lei assim acarreta.» e, adiante, a
«lei será útil ao estabelecer e clarificar, com a precisão possível, regras sobre a
produção normativa, desempenhando neste âmbito a função de lei (ordinária)
de referência para actos normativos posteriores.».16
Ou ainda, «A relevância desta lei é deveras elevada, sendo incontornável
para o futuro nos procedimentos de produção normativa. Na verdade, entre
outros factores mais, a extrema complexidade jurídica conatural da lei em
questão, as circunstâncias jurídicas e judiciais que a precederam, a sua natureza material de direito constitucional, o seu impacte político, o debate havido
e concomitantes diferenças importantes de opinião, o seu carácter inovatório,
a sua horizontalidade vis-à-vis o sistema organizatório público da RAEM, o
rico debate havido nas sessões plenárias de apresentação e votação na generalidade e pertinentes dúvidas e sugestões aí apresentadas, e, bem assim, as inevitáveis consequências da sua aprovação a diversos níveis, mormente, no plano
da produção normativa doravante, aconselham vivamente a sua publicação
na colecção de «Colectâneas de legislação» da Assembleia Legislativa.».17
Por outro lado, o objecto da Lei n.º 13/2009 é deveras claro e elucidativo:
«Artigo 1.º
Objecto
A presente lei desenvolve o regime jurídico de enquadramento
das fontes normativas internas, nos termos da Lei Básica da Região
Administrativa Especial de Macau (...).»
Retomando o Parecer, «A Comissão manifesta a sua concordância com
este artigo e realça a sua importância no sentido em que o presente preceito
16
Parecer n.º 3/III/2009 da 1.ª Comissão Permanente, disponível em Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de Enquadramento das Fontes Normativas Internas,
http://www.al.gov.mo/colect/col_lei-10/283-426.pdf
17
SUSANA CHOU, Nota Prévia, Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de
Enquadramento das Fontes Normativas Internas.
1094
permite traçar de imediato que se está perante uma lei que vem fazer o enquadramento das fontes normativas e, por outro lado, que o faz nos termos
da Lei Básica, ou seja, procede à concretização, densificação e dilucidação do
esquema previamente exposto por aquela.»
É, pois, uma lei mais com função ordenadora do processo normativo, a outras leis se devendo impor como tal,18 concretizadora da Lei Básica e, como tal, dotada de valor paramétrico, assim se pretende, face aos
restantes actos normativos internos.19
E, anote-se, é uma lei ordinária dotada todavia deste valor paramétrico que nem sequer significa uma espécie de revolução no panorama do
direito constitucional comparado. Com efeito, e sem mais delongas, para
além dos consabidos casos de Macau, antes de 1999, Portugal e a República Popular da China, vários exemplos mais poderão facilmente ser
encontrados.
A sobredita questão, como se disse, não é absolutamente nova
no contexto constitucional comparado. Porventura o exemplo que se
afigurará mais próximo do da Lei n.º 13/2009 v.g. quanto à função e
18
Um outro exemplo fácil será o da Lei n.º 3/1999, Publicação e formulário dos diplomas, não se vislumbrando como admissível, antes de uma alteração, que determinada
que a lei seja publicada sem respeitar os comandos de publicação, máxime no Boletim
Oficial, ou ainda, por exemplo, de título ou de formulário ali estatuídos. Recorde-se
que, nos termos da Lei Básica há obrigatoriedade de publicação das leis (artigos 78.º
e 50.º, alínea 3)), mas não se identifica um jornal oficial nem sequer a sua existência.
Assim, quid juris se uma dada lei, numa norma final, estabelecer que a presente lei
é publicada em dois jornais de língua chinesa e dois jornais de língua portuguesa,
dispensando-se a publicação no B.O.? Não se está perante uma violação da letra da Lei
Básica mas, é manifesto, que se viola o bloco constitucional Lei Básica/Lei formulário.
O princípio da publicidade é directamente estabelecido na Lei Básica e é densificado e
concretizado na lei formulário. Esta detém, pois, aspectos de materialidade constitucional e, por conseguinte, aí dotada de valor paramétrico face às outras leis. Veja-se, por
exemplo, ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 112.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, coordenação Paulo Otero, Almedina, 2008, pp. 153 e 154.
19
No mesmo sentido de esta constituir uma lei de valor reforçado, e/ou com função
complementar da Lei Básica veja-se ainda, JOÃO ALBUQUERQUE, Regime geral
das leis e regulamentos administrativos, cit., p. 77, PAULO CARDINAL, Notas Breves
e esparsas sobre o regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas — Lei
Básica e Lei n.º 13/2009, cit..
1095
natureza, será o da lei italiana sobre o poder normativo do Governo,20
sendo certo que, naquele ordenamento jurídico europeu, a referida lei é
respeitada como lei ordenadora de procedimento normativo a que se deve
obediência e cujo estudo e referência são incontornáveis.21
IV. Breve panorama da Lei n.º 13/2009
Avançando um pouco mais pode sublinhar-se que esta, apesar do seu
enorme relevo, é uma lei relativamente curta com cerca de uma dezena de
artigos.22 Iremos dedicar algumas curtas páginas a vários dos seus artigos,
em particular àqueles que mais directamente ligados estão à questão de
que se ocupa o presente trabalho.
O seu artigo 1.º determina o objecto da lei e constitui um precioso e
inelutável elemento interpretativo da natureza e função desta lei, pelo que
remetemos a sua análise para o capítulo precedente.
O artigo 3.º epigrafado Hierarquia e prevalência, estabelece algumas
novidades de relevo, desde logo, «A validade das leis, dos regulamentos administrativos independentes, e dos regulamentos administrativos complementares e demais actos normativos internos da RAEM depende da sua conformidade com a Lei Básica.». Este princípio vector fica pois expressamente
consagrado e densificado em forma de lei local, afastando quaisquer even20
Lei n.º 400/1988, intitulada Disciplina dell’attività di Governo e ordinamento della
Presidenza del Consiglio dei Ministri, de 23 de Agosto de 1988 (com alterações posteriores). Para o caso de Macau interessa sobretudo o capítulo III, sobre potestade normativa do Governo, em especial os artigos 14.º a 17.º
21
Cfr., por exemplo, LUCIO PEGORARO, Le fonti del diritto in Diritto Costituzionale
e Publico, Giappichelli, 2005, pp. 105 e seguintes, ROMINA GALLO, I regolamenti
di delegificazione per l’organizzazione ministeriale. Sublinhe-se ainda, nas palavras de
outro autor, houve o objectivo de operar, na medida máxima consentida pelo modelo
constitucional, a extensão da actividade de normação ordinária do Governo, seja primária, seja secundária, ENZO CHELI, Ruolo dell’esecutivo e sviluppi recenti del potere
regolamentare.
22
Embora bem mais elevado que o escassíssimo número de artigos da primeira versão
formal da proposta de lei, número que se cifrava em cerca de metade. Isto é, cresceu
de 6 para 11 artigos, para além da notória densificação e do patente encorpamento de
todos os artigos originais. Pense-se, por exemplo, na listagem de matérias expressamente identificadas como estando sob reserva de lei no texto primeiro e na correspondente
listagem final, que também dobraram, passando de 10 para 19.
1096
tuais dúvidas. Por outro lado, concretiza de uma forma clara o n.º 2 que
«As leis prevalecem sobre todos os demais actos normativos internos, ainda que
estes sejam posteriores.», ao passo que o número 3 esclarece que «Os regulamentos administrativos independentes não podem ter o efeito de, com eficácia
externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar preceitos constantes de leis.», daqui devendo retirar o intérprete mais um importante
elemento de configuração da natureza do regulamento administrativo em
causa e da sua relação com o acto normativo que lhe é primaz, a lei.
O artigo 4.º, assume-se como um verdadeiro polo gravitacional na
questão que nos ocupa. Com efeito, aqui se traçam, formalmente, tipologias dos actos normativos principais, os quais passaram a ser os seguintes:
Lei da Assembleia Legislativa; Regulamento administrativo independente
do Chefe do Executivo; e Regulamento administrativo complementar do
Chefe do Executivo.
Ora, e contrariamente ao que em dado passo do procedimento legislativo ocorria,23 a lei deve ter um conteúdo determinado, preciso e suficiente, que inclua uma prescrição clara dos comandos que se destinam
a criar normas jurídicas de conduta para os particulares, regras de acção
para a administração e padrões de controlo para a decisão judiciária de litígios. Isto é, o princípio da suficiência da lei — ou da integralidade da lei
— apresenta-se injuntivamente, não deixando destarte espaço normativo
relevante para preenchimento por parte de regulamento administrativo
complementar. Ou seja, já não pode a lei satisfazer-se com uma refracção
normativa que se traduza em, meramente, ter um conteúdo razoavelmente determinado e preciso que estabeleça o conteúdo essencial do regime
jurídico da matéria que visa regular, ou menos ainda em somente estabelecer o sentido, o objecto e as dimensões fundamentais do regime complementar ou concretizador a definir posteriormente por regulamentos
administrativos complementares.24
Este é um ponto absolutamente essencial no design da Lei n.º 13/2009,
o qual parece, por vezes, esquecido ou, de outra maneira, parece haver a
tentação de ressuscitar a desnecessidade de a lei ter um conteúdo determinado, preciso e suficiente, podendo, outrossim, por exemplo, limitar-se a
estabelecer em termos genéricos o sentido, o objecto e as dimensões fun23
Veja-se, versão formal da proposta de lei datada de 29/03/2009.
Cfr. idem.
24
1097
damentais de um dado regime. Não é assim. Não foi esta, afinal, a opção
do binómio proponente (Governo) — aprovador (AL).
De outra banda, estabelece o mesmo artigo 4.º que o regulamento
administrativo independente pode criar disciplina primária e originária
relativamente a matérias não disciplinadas por lei, ao passo que o outro
tipo de regulamento — que com aquele não se confunde — isto é, o regulamento administrativo complementar, o qual se limitará a estabelecer
as concretizações necessárias à execução de leis.
Saliente-se, também aqui e de harmonia com o princípio da suficiência das leis que, ao regulamento administrativo complementar já não
lhe assiste, pois, a faculdade de desenvolver e complementar a normação
em termos genéricos estabelecida nas leis.25
Isto é claro, resultando quer da letra da lei, quer dos trabalhos preparatórios maxime as diversas versões formais que bem espelham a evolução
do processo legislativo, quer do parecer, quer também dos debates havidos em Plenário.
V. A questão da normação das infracções administrativas
Importa agora tratar concretamente da questão da normação das infracções administrativas.
O artigo 6.º, epigrafado «Leis», apresenta uma listagem exemplificativa do elenco de matérias sujeitas a reserva de lei. Elenco este que se cifra
quase no dobro da listagem constante da proposta de lei na sua versão
original.
Para o caso que nos ocupa assume especial relevância o seguinte: «A
normação jurídica das seguintes matérias é feita por leis: 6) Regime geral das
infracções administrativas, seu procedimento e estatuição das respectivas sanções, sem prejuízo do disposto na alínea 6), do n.º 1 do artigo 7.º;».
Muito brevemente se deixa aqui a nota essencial, a matéria das
infracções administrativas — regime geral, procedimento e sanções —
25
Tal como ocorreria, por exemplo, na versão formal da proposta de lei datada de
29/03/2009. Vide, idem. Ou seja, o espaço de normação disponibilizado ao regulamento administrativo complementar é significativamente mais reduzido do que aquele
que resultaria daquela versão da proposta de lei.
1098
é matéria de reserva de lei. Todavia, e por força deste mesmo preceito,
admite-se uma espécie de área de competência concorrencial limitada
entre a lei e o regulamento administrativo independente, nos termos da
alínea 6) do n.º 1 do artigo 7.º, o qual estabelece: «1.Podem ser objecto
de regulamentos administrativos independentes as seguintes matérias: 6) Infracções administrativas e respectivas multas que não excedam 500 000,00
(quinhentas mil patacas);».26 A Lei n.º 13/2009 refere-se para este efeito
claramente apenas ao regulamento administrativo independente e não ao
regulamento administrativo complementar, que são dois tipos diversos de
actos normativos.
Avance-se então na dilucidação desta vexata quaestio. A qual apenas
se apresenta vexata por virtude de uma, por vezes, imprecisa e inadequada
concretização do regime jurídico estabelecido pelo binómio Lei BásicaLei n.º 13/2009.
Conforme repetidamente recordado, quer a letra da Lei n.º 13/2009,
quer o espírito desta, quer o Parecer da Comissão Permanente, quer o debate em Plenário, incluindo afirmações inequívocas de representantes do
Executivo apontam, em uníssono para a conclusão de inadmissibilidade
de regulamentos administrativos complementares estatuírem sobre infracções administrativas. Esta é a realidade. Realidade vertida em lei em vigor,
apresentada pelo Governo, aprovada pela Assembleia Legislativa, assinada
pelo Chefe do Executivo, publicada no Boletim Oficial e registada pelo
Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional.
E, como se viu, é uma lei fundamental, que ocupa uma posição estrutural no nosso sistema jurídico, ao clarificar o sentido das reservas de
competências da Assembleia Legislativa na Lei Básica e ao admitir que o
Executivo possa fazer uso de regulamentos administrativos independentes
para realizar intervenções normativas primárias em matérias não abrangidas pela reserva de lei parlamentar. Assim resulta do seu artigo 1.º, também já aqui recordado.
26
Esta opção legal foi criticada por alguma doutrina que entende que todas as matérias
relativas às infracções administrativas, mesmo que apenas relativamente à regulação
normativa de multas de baixo valor, deveriam ser sempre previstas por lei formal, dado
que tal consiste numa restrição do direito à propriedade o que, nos termos da Lei Básica, não deveria ocorrer por regulamento administrativo. Esta perspectiva doutrinal
mais favorável a uma reserva de lei parlamentar mais ampla não teve acompanhamento
pela Lei n.º 13/2009.
1099
A solução para o problema reside na compreensão, de resto não muito difícil de apreender, do recorte do âmbito da reserva de competências
da Assembleia Legislativa em sede de infracções administrativas e do âmbito de «abertura» que é feita expressamente para que o Executivo possa,
através de regulamentos administrativos independentes,27 respeitando determinados limites legais gerais (por exemplo, apenas sanções pecuniárias
e nunca sanções acessórias), prever ele próprio infracções administrativas.
Isto é, esta abertura de competência concorrencial só pode ser
concretizada em forma de regulamento administrativo independente,
só pode estabelecer sanções pecuniárias e o montante destas não pode
exceder as 500 mil patacas. Ou seja, e do avesso, ao regulamento administrativo complementar está vedado estatuir infracções administrativas,
o regulamento administrativo independente não pode estatuir infracções
administrativas não pecuniárias, como por exemplo a inibição do exercício de dada profissão ou o encerramento de estabelecimento, quer a título
principal quer a título acessório,28 e não pode este estatuir infracções de
montante superior a 500 mil patacas nem estatuir infracções de montantes indefinidos, por exemplo aferidos percentualmente. E, reafirme-se,
27
Há quem considere, sem mais e com enorme arrojo dado o teor do texto legal, que a
expressão «necessárias à execução de leis» é bastante vasto e poderá porventura levar a que
se faça uso de regulamentos administrativos complementares para regular infracções
administrativas. Porquê? E qual o relevo de tal afirmação perante o regime expresso
vertido nos artigos 6.º, alínea 6) e 7.º, n.º 1, alínea 6)?
28
Este ponto é absolutamente claro. Daí que, o recente Regulamento Administrativo
n.º 18/2012, Certificação de aeródromos, se apresenta inelutavelmente ferido de ilegalidade porquanto, independentemente de se aceitar um regulamento administrativo
independente que complementa um outro regulamento administrativo independente,
vem estabelecer sanções não pecuniárias e que consubstanciam uma directa intervenção restritiva de direitos fundamentais, no caso do direito ao trabalho, ao estatuir no
seu artigo 15.º: «3. Quando se revele necessário para a instrução do processo ou para a
defesa da segurança operacional da aviação civil, a AACM pode, como medida cautelar, suspender de imediato o exercício das funções do director de aeródromo, mediante
decisão devidamente fundamentada.», e no n.º 5 desse mesmo artigo refere-se a perda
da titularidade do cargo em virtude do artigo 20.º do Regulamento Administrativo n.º
10/2004 (Diploma enquadrador da actividade de aviação civil em Macau). Ora, este
sendo anterior à Lei n.º 13/2009, poderia, eventualmente, considerar-se — o que se
não acolhe — imune à reserva de lei. Todavia, não pode um regulamento administrativo de 2012, ainda que por alguma remissão, estatuir este tipo de sanção administrativa.
Aliás, dúvidas não haverá quanto à natureza desta sanção.
1100
não pode nunca o regulamento administrativo complementar beneficiar
desta abertura tipificada e delimitada pela Lei n.º 13/2009.29
Aliás, este ponto é incontroverso e assumido e revelador da distinta
natureza de regulamento administrativo independente versus regulamento administrativo complementar. Estes não se confundem, a qualquer título. São dois tipos distintos de actos normativos, com regimes distintos e
próprios e com limitações diferentes. Tal implica, também, um diferente
formulário legal para cada um deles. Não se confundem.
A este propósito, «Há dois tipos de regulamentos administrativos, tal
como referiu a Sr.ª Presidente da comissão. Um é o regulamento administrativo independente e o outro é regulamento administrativo complementar. São
de facto dois diplomas distintos. (...) O regulamento administrativo indepen29
Parecer n.º 3/III/2009 da 1.ª Comissão Permanente «Cabe ainda referir nesta sede a
questão das infracções administrativas dado que, na versão primeira da proposta de lei, e
votada em plenário, não constavam da elencagem da reserva de lei estando outrossim colocadas no conjunto das matérias objecto de regulamentos administrativos independentes,
ou seja, o regime das infracções administrativas, incluindo a estatuição das respectivas
sanções passou a ser da competência da AL.» (negritos nossos).«Destarte, podem ser objecto
de regulamentos administrativos independentes as seguintes matérias: (...) 6) Infracções
administrativas e respectivas multas que não excedam 500 000,00 (quinhentas mil patacas);» (negritos nossos).«Quanto à questão das infracções administrativas recorde-se o que foi
expendido no ponto precedente e assinale-se que, salvo a situação especial e limitada prevista
no presente artigo, a matéria é agora expressamente objecto de reserva de lei da Assembleia
Legislativa. A Comissão entendeu que deve revestir a natureza de lei (com o inerente envolvimento do órgão de representação da população), a produção de normas jurídicas que
estatuem punições que, em virtude da sua gravidade e natureza, não podem estar disponibilizadas ao exercício do poder regulamentar.». «Todavia, tendo presente a realidade concreta
de o Governo ter necessidade de intervir, primária e originariamente, em áreas da sua competência administrativa, designadamente em aspectos regulatórios do exercício de algumas
importantes actividades económicas (v.g. Actividades económicas objecto de concessão pública), entende-se que o regulamento administrativo independente pode estabelecer infracções
administrativas e respectivas sanções de natureza pecuniária (isto é, multas), desde que não
excedam determinado montante. Note-se que, de fora desta permissão de normação
por regulamento ficam, nomeadamente, as multas superiores àquele montante e,
bem assim, outras sanções que não pecuniárias, por exemplo sanções de inibição de
profissão ou de encerramento de estabelecimento.» (negritos nossos). Ou seja, este é
o esquema de distribuição de competências vigente em sede de infracções administrativas. Lugar primacial à lei com alguma abertura e flexibilidade ao regulamento administrativo independente. Ficando de fora deste esquema de repartição de competências o
regulamento administrativo complementar. Este é o sentido único objectivado na lei e é,
de resto, aquele que corresponde à vontade do legislador.
1101
dente e o regulamento administrativo complementar são os dois tipos de regulamento administrativo. E caso esta proposta de lei seja aprovada, a RAEM
vai ter leis e regulamentos administrativos. Os regulamentos administrativos
dividem-se em regulamento administrativo independente e regulamento administrativo complementar. Portanto, são dois regulamentos diferentes, não
podendo confundir-se. Quero frisar que não é de facto possível que um regulamento administrativo complementar venha a suplementar um regulamento
administrativo independente. Não é possível.».30
Aliás, para além do mundo do Direito, o mundo dos factos também
alinha por esta conclusão. Com efeito, desde a entrada em vigor da Lei n.º
13/2009, das várias leis entretanto aprovadas31 há várias que contemplam
a matéria das infracções administrativas e num levantamento de todas estas leis, repete-se que todas elas sem uma única excepção, tratam de pleno
das infracções administrativas não deixando/delegando/enviando para
regulamento administrativo complementar uma única infracção administrativa que seja, por insignificante que possa ser.32 Das várias propostas de
30
Presidente, debate da reunião plenária de 14 de Julho de 2009, que pode ser consultado em Colectânea de Legislação sobre o Regime Jurídico de Enquadramento das Fontes Normativas Internas.
31
Cfr., leis aprovadas que incluem as normas sobre infracções administrativas: Lei
n.º 21/2009 — Lei da contratação de trabalhadores não residentes, Lei n.º 3/2010
— Proibição de prestação ilegal de alojamento, Lei n.º 4/2010 — Regime da Segurança Social, Lei n.º 5/2011 — Regime de prevenção e controlo do tabagismo, Lei n.º
6/2011 — Imposto do selo especial sobre a transmissão de bens imóveis destinados a
habitação, Lei n.º 10/2011 — Lei da habitação económica, Lei n.º 2/2012 — Regime
jurídico da videovigilância em espaços públicos (que faz referência ao regime sancionatório previsto na Lei n.º 8/2005).
32
Assinale-se uma pretensa excepção. Reafirme-se pretensa porquanto na lei nada se diz e
dela nada se pode inculcar, sobre uma pretensa «permissão» de estatuição de infracções
administrativas por via de regulamento administrativo complementar. Estamos a fazer
referência à Lei n.º 21/2009, Lei da contratação de trabalhadores não residentes, e ao
complementar Regulamento Administrativo n.º 8/2010 — Regulamentação da Lei
da contratação de trabalhadores não residentes. Este, apesar de a lei conter uma secção
dedicada às infracções administrativas, que se julgava completa, e de o seu artigo 42.º
sobre regulamentação nada permitir em matéria de sanções administrativas ao futuro
regulamento administrativo complementar, antes se referindo sobremaneira a meros
procedimentos, acabou por, com surpresa e choque, incluir um capítulo sobre infracções administrativas, artigos 21.º e seguintes! Aliás, a leitura do Parecer competente,
3.ª Comissão Permanente — Parecer N.º 5/III/2009, inculca precisamente o sentido
contrário, isto é estas matérias deveriam constar na sua integralidade na lei. Lê-se no
Parecer: «Por outro lado, porque se reconheceu que a clareza e a coerência do regime jurídi-
1102
lei entradas33 também várias delas tratam da matéria não deixando uma
única infracção administrativa para regulamento administrativo complementar. E isto sucede com normas prescrevendo multas superiores a 500
mil patacas, inferiores a esse montante, de montantes percentuais variáveis, etc...
Nem para o efeito pode relevar o Decreto-Lei n.º 52/99/M. Não
se encontra utilidade numa eventual referência a um diploma legal, não
apenas anterior à Lei n.º 13/2009, mas também à própria vigência da
Lei Básica. Evidentemente que não se pode legitimamente esperar que
um Decreto-Lei que resulta de um ordenamento jus-constitucional dico regulador da contratação de trabalhadores não residentes teriam a ganhar se o seu núcleo
essencial, e não apenas os seus princípios, constasse do acto normativo emanado do órgão
legislativo. Assim, foi feito um trabalho de selecção das matérias que deveriam ser consagradas em sede legal. A premência deste trabalho ficou acrescida com a entrada em vigor, no
passado dia 15 de Agosto, da Lei n.º 13/2009, que aprovou o Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas, nos termos da qual o poder regulamentar de matérias
disciplinadas por lei é profundamente reduzido. Assim, um esforço adicional foi efectuado
no sentido de reunir na lei da contratação de trabalhadores não residentes um regime jurídico mais completo, deixando para sede regulamentar as matérias procedimentais e aquelas
que a própria lei prevê necessárias para uma adaptação do regime legal às características de
determinados sectores económicos ou à dimensão das empresas, em cumprimento do princípio da especificidade. De tudo isto resultou a quase duplicação do articulado da proposta de
lei.» E mais, «A consagração de um regime sancionatório completo que, a par da definição
de um conjunto alargado de infracções administrativas por violação dos comandos previstos
na presente iniciativa legislativa (artigo 32.º), alarga a responsabilidade infraccional às
pessoas colectivas (artigos 29.º e 30.º). O regime sancionatório prevê a responsabilidade dos
empregadores (artigo 32.º, n.ºs 1 a 4), das agências de emprego (artigo 32.º, n.º 3) e dos
próprios trabalhadores não residentes (artigo 32.º, n.º 5). Estão ainda previstas diversas sanções acessórias, as quais visam adequar a resposta sancionatória à gravidade da infracção,
à culpa do agente e ao número de trabalhadores prejudicados (artigo 33.º).» Destarte, as
normas do referido regulamento administrativo sobre infracções administrativas estão
fulminadas de ilegalidade.
33
Propostas de Lei que recentemente deram entrada na Assembleia Legislativa que
incluem as normas sobre infracções administrativas: Proposta de Lei intitulada “Condicionamento do acesso, permanência e prática de jogos nos casinos”, Proposta de
Lei intitulada “Regime Jurídico do Reordenamento dos Bairros Antigos”, Proposta de
Lei intitulada "Lei de Segurança Alimentar", Proposta de Lei intitulada "Regime de
Garantia de Depósitos", Proposta de Lei intitulada "Lei de Salvaguarda do Património
Cultural", Proposta de Lei intitulada "Regime jurídico da promessa de transmissão de
edifícios em construção", Proposta de Lei intitulada "Lei da investigação de acidentes e
incidentes aeronáuticos e da protecção da informação de segurança aérea".
1103
verso venha agora a servir de pretexto para afastar uma lei fundamental
da RAEM. Esta Lei n.º 13/2009 prevalece sempre sobre aquele DecretoLei. Seja, por uma questão de aplicação da lei no tempo. Seja por uma
questão de relação lei geral (DL) lei especial (normas específicas da Lei
n.º 13/2009 sobre infracções administrativas). Seja por uma questão de
hierarquia e respeito pela Lei Básica da RAEM.34
Como também há quem, em uma contradição insanável, afirme
que nos termos do Decreto-Lei n.º 52/99/M, as sanções administrativas
podem ser previstas em sede de lei ou regulamento (regulamentos administrativos). De acordo com o princípio “As leis novas prevalecem sobre
as leis antigas”, a Lei n.º 13/2009 tem um estatuto de prevalência superior. Neste contexto, deve-se concluir com toda a segurança que o regime
geral das infracções administrativas só pode ser estabelecido em sede de
lei, mas, em sentido absolutamente contrário e postergando uma relação
causal lógica, e sem qualquer fundamentação, acabando por se afirmar
que em relação às sanções administrativas pode-se adoptar uma solução
diferente! Porquê? Como? São afirmações desprovidas de qualquer suporte jurídico científico.
Rememore-se o Parecer já citado: «Quanto à questão das infracções
administrativas recorde-se o que foi expendido no ponto precedente e assinalese que, salvo a situação especial e limitada prevista no presente artigo, a matéria é agora expressamente objecto de reserva de lei da Assembleia Legislativa.
A Comissão entendeu que deve revestir a natureza de lei (com o inerente
envolvimento do órgão de representação da população), a produção de normas
jurídicas que estatuem punições que, em virtude da sua gravidade e natureza, não podem estar disponibilizadas ao exercício do poder regulamentar.
Todavia, tendo presente a realidade concreta de o Governo ter necessidade de
intervir, primária e originariamente, em áreas da sua competência administrativa, designadamente em aspectos regulatórios do exercício de algumas
importantes actividades económicas (v. g. Actividades económicas objecto de
concessão pública), entende-se que o regulamento administrativo independen34
Prescindimos de nos alongar numa análise da teoria interpretativa ao Decreto-Lei
n.º 52/99/M dada a sua manifesta desadequação para afastar o regime do binómio Lei
Básica-Lei n.º 13/2009. Como também não cabe aqui procurar descortinar quais as
normas caducas daquele diploma por desconformidade com a Lei n.º 13/2009 e a Lei
Básica. É vero que normas há que ainda se manterão vigentes mas, neste particular,
vero também é que normas há que estão afastadas desde a entrada em vigor da Lei
n.º 13/2009.
1104
te pode estabelecer infracções administrativas e respectivas sanções de natureza
pecuniária (isto é, multas), desde que não excedam determinado montante.
Note-se que, de fora desta permissão de normação por regulamento ficam,
nomeadamente, as multas superiores àquele montante e, bem assim, outras
sanções que não pecuniárias, por exemplo sanções de inibição de profissão ou
de encerramento de estabelecimento.».35
E, já agora, passos do debate em Plenário: «Quanto à outra questão
colocada, das infracções administrativas, entendeu-se que, em princípio, as
matérias relativas a sanções administrativas é competência da Assembleia
Legislativa. No entanto, e à semelhança do que acontece em muitos países do
mundo, em matérias altamente técnicas ou ligadas à actividade económica,
ou a agressões contra o ambiente, designadamente em actividades económicas importantes, objecto de concessão, entendeu-se remeter ao Governo
essa hipótese de através de regulamento independente poder — porque
são matérias técnicas, que exigem muito conhecimento, quer técnico, quer
com fortes implicações económicas precisamente — entendeu-se cometer essa
competência ao Executivo, através de regulamento independente, estabelecendo, no entanto, um limite que se achou razoável das 500 mil patacas,
não esquecendo que já hoje existe, portanto, um Regime Geral do Decreto-Lei
52/99 sobre as infracções administrativas.», assim foi explicado, e bem, pelo
representante do Executivo.36
Prosseguindo, o Executivo afirmou que, «Portanto, não se põe em causa o princípio de que isto é matéria da competência da Assembleia, estabelece35
Parecer n.º 3/III/2009 da 1.ª Comissão Permanente.
Em consonância, de resto, com as explicações dadas em sede de Comissão, onde um
representante do Executivo afirmou que, perante a lei com conteúdo determinado,
preciso e suficiente restaria ao regulamento administrativo complementar estatuir sobre
«impressos». Com verdade, foi esclarecido pelo representante do Executivo: «Esta especificação vai ter efeitos não nas leis da Assembleia mas no conteúdo dos regulamentos não
independentes. Ou seja, quando se diz, ..., a lei deve ter um conteúdo determinado, preciso
e suficiente, ou seja, só deixa ao regulamento administrativo aquelas coisas que são mesmo,
aprovar um impresso, etc., aquelas coisas de execução, e aí o Governo sabe que nesta lei da
Assembleia tem uma margem mais pequena...», (registo áudio arquivado com os autores). Relembre-se que a exigência unívoca e tipologia única de lei sobrevivente no texto
final do artigo 4.º da Lei n.º 13/2009, é a da lei com conteúdo determinado, preciso
e suficiente, tendo desaparecido a possibilidade de haver leis com mero conteúdo razoavelmente determinado e preciso que estabeleçam o conteúdo essencial do regime, menos
ainda leis que se limitem a estabelecer o sentido, o objecto e as dimensões fundamentais do
regime, como ocorria na versão formal da proposta de lei de 29/03/2009.
36
1105
se uma excepção com um limite até às 500 mil, nos casos em que não haja lei
anterior sobre esta matéria, como é evidente.».
Aliás, do que foi dito resulta que a previsão de um regulamento administrativo complementar que preveja infracções administrativas estaria
em violação da Lei n.º13/2009, o que implicaria a ilegalidade da regulamentação administrativa em causa. Tal é susceptível de levar à impugnação judicial destas normas administrativas.37
E bem se compreenderá que assim seja — para além dos motivos
expostos — estará também presente uma preocupação natural qual seja
com a completude do sistema sancionatório (ou todo em lei ou todo em
regulamento administrativo independente). Assim o aconselham as boas
técnicas legislativas, ademais em matérias de direito sancionatório, com
consequentes compressões na esfera jurídica pessoal.
E novamente na mesma linha de ideias, por exemplo, o Parecer
n.º 3/IV/2011, da 3.ª Comissão Permanente, «A proposta de lei contém a
37
Com efeito, cfr., o estatuído no Código do Processo Administrativo Contencioso,
mormente no seu artigo 88.º (Natureza e finalidade da impugnação de normas):
«1. A impugnação de normas tem por finalidade a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma contida em regulamento administrativo.».
E artigo 89.º (Efeitos da declaração de ilegalidade):
«1. A declaração de ilegalidade de uma norma produz efeitos desde a data da sua entrada em
vigor.
2. Quando razões de equidade ou de interesse público de excepcional relevo, devidamente
fundamentadas, o justifiquem, o tribunal pode reportar os efeitos da declaração à data do
trânsito em julgado da decisão ou a momento anterior.
3. A declaração de ilegalidade de uma norma determina a repristinação das normas que ela
haja revogado, excepto quando tenha entretanto ocorrido outra causa de cessação da sua
vigência.
4. A retroactividade permitida pelos n.os 1 e 2 não afecta os casos julgados nem os actos administrativos consolidados na ordem jurídica, excepto quando o tribunal decida em contrário
com fundamento no facto de a norma respeitar a matéria sancionatória e ser de conteúdo
menos favorável ao particular.». Recorde-se, todavia, «o regime de impugnação das normas
previsto no Art. 88.º do Código do Processo Administrativo Contencioso exclui deliberadamente a norma contida num regulamento administrativo que viole uma norma constante
na lei constitucional; dado que os regulamentos administrativos independentes são elaborados, como se expressa, sobre matérias não disciplinas pela lei, elimina-se assim o pressuposto
substancial para a apreciação da sua contrariedade com a lei.», XU CHANG, Litígio e
Respectiva Resolução sobre a Competência Regulamentar dos Regulamentos Administrativos
da Região Administrativa Especial de Macau, Revista de Estudos de “Um País, Dois Sistemas ” (Edição em Português), n.º 1, 2012, p. 110.
1106
plenitude do regime sancionatório aplicável à violação dos deveres e obrigações
nela previstos. Não só contém uma norma de natureza penal, como também a
totalidade dos factos ilícitos que unicamente consistem na violação ou na falta
de observância de disposições preventivas da lei (de acordo com a definição de
infracção administrativa constante do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 52/99/M,
de 4 de Outubro, que aprovou o Regime geral das infracções administrativas e
respectivo procedimento).».38
Importa ainda dedicar umas palavras sucintas a dois argumentos
ajurídicos que normalmente se apresentam para esgrimir a defesa da possibilidade de estatuição de infracções administrativas por regulamentos
administrativos complementares.
Um argumento usado ad nausea, é o da supremacia do Chefe do
Executivo no sistema político local. Ora, ainda que assim seja, que luz
nos trará à nossa questão esse patamar de superioridade? Nenhuma ou
então um foco de tal intensidade que, afinal, significaria, precisamente
por força da supremacia do Executivo a inversão da pirâmide normativa.
Isto é, se há essa prevalência e esta se deverá inelutavelmente reflectir no
sistema de fontes então, por força disto, o regulamento administrativo
deveria ser situado em patamar superior ao nível hierárquico das leis. Para
além de, naturalmente, dever haver uma ampla e larga reserva de regulamento administrativo. Ora, como se consabe, nada disto ocorre nem na
Lei n.º 13/2009, nem na Lei Básica. No sistema jurídico da RAEM vigora pacificamente o princípio do primado da lei. Adiante.
O outro argumentário usado e abusado é também uma mão cheia
de tudo ou uma mão cheia de nada. Isto é, clamar que o processo criativo de regulamentos administrativos é bem mais leve e célere do que o
processo criativo das leis — aparentemente uma evidência — também
não nos deve incomodar ou sobressaltar. Ainda que possa ser verdadeiro
em muitos casos, o que é que daí de útil, e de constitucional e de legal, se
deverá retirar? Por razões de celeridade afastam-se princípios fundamentais do sistema jurídico da RAEM como o princípio da reserva de lei? Por
exemplo, criar crimes perante uma situação novel e urgente? O argumentário avançado pode servir para, no limite, defender a inexistência total
de leis ou, inversamente, servir para nada. Não é argumento jurídico.
E, por outro lado, se a situação clamar mesmo muita urgência, há uma
38
Respeitante à Lei n.º 10/2011 — “Lei da habitação económica”.
1107
figura regimental apropriada para responder a essas situações, e sem furar
as malhas da constitucionalidade e da legalidade estabelecida, que é a do
processo de urgência no procedimento legislativo,39 a que acresce a prioridade da inserção de propostas de lei na fixação da ordem do dia, a pedido
do Chefe do Executivo, ex vi da alínea 2), do artigo 74.º da Lei Básica.
VI. Conclusões e sugestões
Pelo exposto, conclui-se, nomeadamente, pela ilegalidade de estatuir,
por regulamento administrativo complementar, infracções administrativas e, pela existência de limitações legais para a estatuição por parte de
regulamentos administrativos independentes.
Estas são as conclusões válidas para o respeito do tecido constitucional e legal vigente. Conclusões opostas e por vezes vocalizadas defendendo, mormente, a estatuição de infracções administrativas por regulamento
administrativo complementar, redundam, necessariamente, na assunção
de uma posição flagrantemente contrária ao direito vigente e que implica
necessariamente uma violação do princípio da legalidade, do princípio da
constitucionalidade, do princípio da reserva de lei, do princípio da limitação do âmbito do poder regulamentar complementar, do princípio da
tipologia dos actos regulamentares.
Todavia, se o Executivo no futuro vier a entender que a Lei n.º 13/2009
é um espartilho aos seus poderes, merece ajustamentos ou não ilustra
bem a realidade com base na Lei Básica o que deve fazer é estudar a questão devidamente e, porventura, propor a alteração desta lei fundamental
concretizadora da Lei Básica, a qual resultou dos esforços comuns e do
acordo, nomeadamente, entre a AL e o Governo.
Em suma, se necessário, altere-se a lei. Mas não se viole a lei. Isto é,
se se pretender, por exemplo, alargar a folga normativa do regulamento
administrativo complementar em conexão com uma menor densidade
normativa da lei — tal como chegou a constar de uma das versões da pro39
Vide, artigos 155.º e seguintes do Regimento da Assembleia Legislativa, nomeadamente: «Artigo 155.º (Objecto), 1. Pode ser objecto de processo de urgência qualquer projecto
ou proposta de lei ou de resolução.», «Artigo 157.º (Efeitos da deliberação) Se o Plenário
decidir adoptar o processo de urgência, pode determinar, designadamente: a) A dispensa de
exame na especialidade em comissão; b) A dispensa de envio à comissão competente para
redacção final ou redução do respectivo prazo.».
1108
posta de lei — então, proceda-se à devida alteração da Lei n.º 13/2009.
Alteração comedida e dentro do balizamento da Lei Básica, entenda-se.
Por outro lado, e como abundantemente resulta do exposto, afigurase cada vez mais necessário e adequado estabelecer um mecanismo
judicial formal de controlo da conformidade dos regulamentos administrativos com a Lei Básica e das leis com a Lei Básica.40 É uma evidência
esta necessidade para suprir conflitos entre fontes normativas e conferir
certeza ao Direito que devidamente vigora, logo impera perante os particulares, perante os tribunais, perante a Administração Pública, a qual vem
sendo apresentada em muitos estudos doutrinais.
Este mecanismo é a peça que falta para uma devida arquitectura e
para o fecho do sistema de fontes normativas41. Que, de resto, existiu anteriormente em Macau e que existe na generalidade dos sistemas jurídicos
de matriz continental e que, ademais, é praticado na Região Administrativa Especial de Hong Kong. A sua inexistência implica um sistema imperfeito e inacabado.
Como se escreveu, «Permanece em aberto, no entanto, a relevante
questão da fiscalização judicial da conformidade constitucional das leis e dos
regulamentos e da conformidade legal dos regulamentos. Inexiste um processo judicial específico genérico. A Doutrina vem defendendo a criação desses
mecanismos, ademais após a aprovação da Lei n.º 13/2009, por exemplo,
Paulo Cardinal, Região de Direito — alguns tópicos sobre fiscalização
da constitucionalidade e jurisdição da liberdade num Direito (também) em
Língua Portuguesa, Zhao Guoqiang, O meio de tutela do processo
40
E eventualmente considerar a possibilidade do existente mecanismo de fiscalização da
conformidade regulamentar com as leis, preconizado no Código do Processo Administrativo Contencioso, poder vir a ser aperfeiçoado.
41
Aliás, como bem avisa XU CHANG, «Qualquer Constituição política deve estabelecer o
respectivo mecanismo para efeitos de controlo legal, que é um requisito interno e a demonstração essencial da política democrática moderna. A presente lei (Lei n.º 13/2009) criou
pela primeira vez o sistema de elaboração de regulamentos administrativos independentes
pelo Chefe do Executivo na história do sistema político de Macau. No entanto, no caso
de não se estabelecer um mecanismo eficiente de fiscalização, caso surjam falhas, é difícil
corrigi-las a tempo, até que uma parte possa ser capaz de as solucionar, o que constitui um
problema grave que não pode ser resolvido facilmente pelo ordenamento jurídico vigente.»,
Litígio e Respectiva Resolução sobre a Competência Regulamentar dos Regulamentos Administrativos da Região Administrativa Especial de Macau, Revista de Estudos de “Um País,
Dois Sistemas ” (Edição em Português), n.º 1, 2012, p. 110.
1109
executivo da Lei Básica, Guo Tianwu/Chen Yan, As sugestões das
Leis Básicas de Hong Kong e de Macau para o alargamento do regime jurídico da China, António Malheiro Magalhães, O princípio da
separação dos poderes na Lei Básica da futura Região Administrativa Especial
de Macau, Wang Ai Min, Perfecting the system of control of the Macau
Basic Law. Tudo isto sem esquecer os mecanismos de «fiscalização» política,
como por exemplo o mecanismo de registo das leis — tão-somente das leis, que
não dos regulamentos administrativos — estabelecido no artigo 17.º da Lei
Básica e a interpretação oficial consagrada no artigo 143.º da mesma lei fundamental, e a fiscalização da legalidade de regulamentos administrativos na
lei processual administrativa de âmbito e contornos limitados, nomeadamente
impedindo a declaração de desconformidade de normas regulamentares por
violação directa de normas da LB (problema ainda mais agudo quando se
permite a publicação de regulamentos administrativos directamente fundados
na LB) os quais são, todavia, manifestamente, insuficientes.».42
Acrescente-se a este coro doutrinário mais alguns outros estudos
recentes, por exemplo, «É necessário criar e completar na RAEM um modelo de exame jurídico que tenha por objectivo verificar se os regulamentos
administrativos correspondem à Lei Básica como principal conteúdo», GUO
TIANWU e Chen Xuezhen43, JoÃo ALBUQUERQUE44 , e ainda, aparentemente, Chio Heong Ieong.45
Em suma, é mister concretizar devidamente o regime estipulado pela
Lei Básica e pela Lei n.º 13/2009, o que nem sempre tem sucedido.
Se, no entanto, se considerar — o que é, diga-se razoável — que a
folga de normação complementar se acha porventura demasiado restrita,
então proceda-se aos devidos ajustamentos.
42
PAULO CARDINAL, Notas Breves E Esparsas Sobre O Regime Jurídico De Enquadramento Das Fontes Normativas Internas, Lei Básica E Lei N.º 13/2009, inédito.
43
Um estudo sobre a fiscalização independente dos regulamentos administrativos da Região
Administrativa Especial de Macau, comunicação apresentada ao seminário académico
Governação científica e desenvolvimento institucionais, Instituto Politécnico de Macau, 23 de Junho de 2011.
44
Regime geral das leis e dos regulamentos administrativos, cit., como bem afirma o autor,
«De pouco vale ter um catálogo de matérias reservadas à Assembleia Legislativa — por
mais exaustivo que ele seja -, se não se criam os mecanismos de controlo jurisdicional, que
permitam o controlo da actividade regulamentar independente (e delegada) do Chefe do
Executivo.», p. 123.
45
Um estudo preliminar sobre as normas, Administração, n.º 93, 2011, p. 742.
1110
Posto que, a mexer-se na Lei n.º 13/2009, as alterações não poderão
ser de sentido único e de desequilíbrio. Ao alterar-se o regime materialmente constitucional vigente será necessário ponderar a globalidade do
sistema,46 não se deverá destituir a AL da sua função primacial de feitura
de leis, não se deverá reduzir a lei a um mero curto repositório de alguns
vagos princípios gerais, não se poderão instituir reservas de regulamento
administrativo, deverá regular-se a importante matéria das reservas de
iniciativa legislativa, nomeadamente as que recaem sobre a Assembleia
Legislativa, e será completamente adequado — ainda mais se a normação
legítima por regulamento crescer — instituir um mecanismo de fiscalização judicial da conformidade dos regulamentos com a Lei Básica e das
leis com a Lei Básica.
46
Veja-se, com bastante interesse em várias questões, JOÃO ALBUQUERQUE, Regime
geral das leis e regulamentos administrativos, cit..
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A Questão das Infracções Administrativas no âmbito do Sistema das