“METENDO A COLHER”: CONFLITOS E VIOLÊNCIAS ENTRE CASAIS DAS
CAMADAS POPULARES – SANTO ANTONIO DE JESUS
Andréa Ribeiro da Silva LESSA
[email protected]
Universidade do Estado da Bahia – Campus V
O presente trabalho consiste na análise do relacionamento entre
homens e mulheres da classe pobre, onde procuram-se enfocar as tensões
vividas entre os casais, seu cotidiano e sociabilidades. Para tanto, partiremos
da análise de três processos de agressão física, envolvendo homens e
mulheres que mantinham relacionamento amoroso, ocorridos em Santo
Antonio de Jesus, Bahia. O período em questão refere-se aos anos iniciais do
século XX – 1901,1902 e 1905. O recorte temporal justifica-se não só pelo fato
de demarcar os anos em que ocorreram os conflitos aqui analisados, mas
principalmente por esses conflitos estarem inseridos numa conjuntura de (re)
discussão sobre o papel e lugar dos homens e mulheres na sociedade.
Optamos por narrar primeiramente os episódios para dar uma dimensão dos
conflitos e, posteriormente, discutiremos os elementos centrais do processo.
Vejamos nossos personagens.
O primeiro caso dá-se entre Otília Maria, lavadeira, preta, vinte anos,
casada, e Manuel Frutuoso Batista, vinte dois anos, solteiro, magarefe. A
história se passa na casa do casal, localizada à Rua da Linha Férrea. No seu
depoimento Otília, relatou que Manoel Frutuoso pediu-lhe que fizesse uma
camisa para ele, ao que se negou, pois: “não sabia cortar e coser camisa de
homem. Bastou dizer assim para ele me agarrar, amarrando meus braços e
depois, deu-me pancadas com uma corda de couro trançado, jogando-me no
chão, levantou minhas pernas e deitou-me pimenta ralada na vagina”[1]
Temendo o pior, e não se intimidando com as ameaças do seu agressor
- já que o mesmo prometeu que “a mataria caso contasse a alguém, ou desse
parte à autoridade”- gritou por socorro. Seus vizinhos – Manoel Francisco,
Antonio Rodrigues, Maria Felícia e Maria Constança - correram para atender
mas, ante as ameaças do agressor, resolveram se retirar do local. No seu
depoimento, Manoel Frutuoso negou que houvesse colocado pimenta na
genitália da companheira, pois “ele retirando o prato de molho, ela deu com o
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braço no prato e o molho caiu por cima das vestes dela”, mas admite ter dado
“diversas pancadas que não ofenderam”, bem como ter amarrado pela cintura
com uma corda de couro, uma vez que Otília “respondeu que não fazia a
camisa de chita porque não sabia fazer camisa de homem e atirou o pano no
chão”. Porém, as pancadas que Frutuoso disse não ter ofendido, provocou
diversas escoriações, além de a vítima apresentar inflamações nas partes
genitais, provocadas por “substância irritante”, ficando o dano causado à Otília
avaliado em torno de cinqüenta mil réis, conforme atestou o laudo do exame de
corpo e delito. Este processo não foi concluído, talvez Otília tenha retirado à
queixa ou tenha sido arquivado.
Vejamos outro caso: no dia 24 de dezembro de 1902, Maria Antônia de
Jesus, preta, trinta anos de idade, jornaleira, fora convidada por seu
companheiro, João Rodrigues, para passar a noite na Fazenda Má-vida, local
onde morava o agressor. Entretanto, recusou o convite, pois segundo ela, iria
vender doces na noite de Natal. No dia seguinte, João Rodrigues apareceu na
casa de Maria Antônia para “jantar e dormir” e, por volta das 4 horas da tarde,
João perguntou por que motivo não tinha ido à Fazenda junto com ele. Ela
respondeu que já tinha dito o motivo e “isso foi o bastante para que João lhe
desse uma bofetada e daí continuou a bater e que não podendo mais agüentar
as pancadas gritou pelos vizinhos, os quais conseguiram livrá-la das garras de
João Rodrigues”[2]. A versão do acusado não foi possível saber, pois nos autos
não consta o seu depoimento. Sabe-se que foi decretada a prisão preventiva
em 30 de dezembro de 1902, mas no ano seguinte o réu já estava solto.
Por fim, o terceiro caso. Maria Honorata, preta, 18 anos, solteira, filha de
Maria Arcanja de Jesus, vivia de serviços domésticos, foi agredida por Manoel
Antonio, conhecido como “Antonio Copióba” , com quem tivera um
relacionamento amoroso. Segundo Maria Honorata, as agressões que sofreu
deveram-se ao fato de que, após um relacionamento de quatro meses com
“Copióba”, ela o “desprezou” e, por conta disso, ele constantemente a
ameaçava e, na manhã do dia 22 do corrente mês, estando ela na porta de sua
casa, à Rua Santo Antonio, fora surpreendida pela presença de Manoel
Antonio, o qual lhe pedira um copo de água. Aproveitando-se da ocasião em
que Maria Honorata entrou para buscar a água, Manoel a acompanhou e
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fechou a porta “e, com um cinto de couro, lhe espancou barbaramente”. Os
gritos proferidos pela vítima chamaram a atenção dos vizinhos, entre eles,
Manoel Antonio, Juvenal Lima Pontes e Zeferino de tal, os quais correram até o
local e fizeram com que Manoel não mais a espancasse[3]. O réu não foi
encontrado para ser intimado e, após um período de quatro anos, tal processo
prescreveu.
Os processos acima narrados apresentam diversos pontos em comum,
os quais são indicativos das formas de relacionamento cotidiano, sociabilidades
e solidariedade entre os envolvidos e seu meio. As mulheres envolvidas nos
processos – Otília, Maria Antônia e Maria Honorata – além de terem em
comum o fato de serem negras, pobres, compartilharam as formas em que
estavam inseridas no mundo do trabalho, ou seja, ocupavam atividades
informais e mal remuneradas - lavadeira, jornaleira e serviços domésticos,
respectivamente. Funções que possivelmente foram desempenhadas pelas
escravas, negras livres e libertas no período anterior à abolição – entre as
quais poderiam estar as avós, mães, tias das nossas personagens.
Cecília Moreira Soares no seu trabalho, Mulher negra da Bahia do
século XIX, aborda os diversos tipos de trabalho exercidos pelas mulheres
negras (escravas ou não), tanto no âmbito doméstico quanto no espaço da rua.
De acordo com a autora, o trabalho da mulher negra foi utilizado em diversos
setores da economia escravista, mais predominantemente nas atividades
domésticas[4] - lavadeiras, cozinheiras, domésticas, amas-de-leite. Apesar
disso, algumas escravas e negras livres também exercerem atividades de
ganho, como as vendedoras, quituteiras, lavadeiras, ou se “alugarem” para o
trabalho doméstico. No entanto , no pós-abolição, esses serviços continuaram
a ser prestados pela maioria das mulheres negras. Se escravas, algumas
talvez continuaram a viver trabalhando para o seus antigos senhores, dado o
laço
de
“afetividade”
que
conseguiram
estabelecer;
outras,
mesmo
abandonando o local de serviço, continuaram exercendo trabalhos domésticos,
atividades ligadas à lavoura ou ocupando-se das atividades de ganho,
transitando assim pelas ruas das cidades para oferecerem seus serviços.
Nascidas antes da abolição da escravatura[5], nossas personagens
devem ter acompanhado as estratégias de suas mães para ajudarem e/ou
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garantirem o sustento de si e da família e, devido às condições sócioeconômicas, possivelmente, foram cedo inseridas no mundo do trabalho. Essas
mulheres continuaram a exercer atividades mal remuneradas, tendo a
necessidade de complementar com outros serviços. Mesmo passando a
conviver
em
companhia
masculina,
nossas
personagens
continuaram
exercendo suas profissões para ajudar na renda familiar. Tais são os exemplos
de Otília e Maria Antônia, lavadeira e jornaleira, respectivamente, as quais
assumiam juntamente com os companheiros a tarefa de provisão do lar.
O fato de a mulher pobre trabalhar tem sido apontado como um dos
fatores que modelam a forma de relacionamento homem-mulher . Sidney
Chaloub em, Trabalho, lar e botequim, quando discute sobre as formas de
amar da classe trabalhadora do Rio de Janeiro, da Primeira República, afirma
que o fato da mulher pobre trabalhar lhe confere uma “relativa autonomia” com
relação ao seu parceiro, havendo, assim, uma relação de simetria entre os
casais, pois “a experiência de vida destas pessoas não oferecia bases
concretas
que
justificassem
uma
pesada
dominação
masculina
no
relacionamento de um casal, o que resultava num papel mais ativo da
mulher”.[6] Para o autor, as “bases concretas”, no período por ele estudado,
seriam o trabalho feminino e o número desproporcional entre homens e
mulheres. O fato de a mulher trabalhar, aliado ao grande contigente da
população masculina serviria para quebrar a dominação do homem sobre a
mulher.
Entretanto, prefiro concordar com Helleiet Saffiot quando afirma que a
relação
homem-mulher
não
deve
ser
vista
como
uma
relação
permanentemente assimétrica, com predominância da dominação do lado
masculino sobre o feminino, mas como uma relação em que constantemente
se altera os poderes. Ainda segundo a autora, “ em todas as sociedades
conhecidas, as mulheres detêm parcelas de poder que lhes permitem meter
cunhas na supremacia masculina e, assim, cavar/gerar espaços nos interstícios
da falocracia”. [7] Sendo assim, as mulheres, sejam elas ricas ou pobres,
trabalhadoras ou não, não permanecem totalmente na condição de dominadas.
Elas encontram meios e utilizam de variadas estratégias para inverter essa
situação. E justamente neste momento de inversão, ou melhor, de
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fragmentação da dominação masculina, que podem ser gerados conflitos e
atos de violência entre o casal. Como aponta Saffioti,
O poder apresenta duas faces: a da potência e a da impotência. As mulheres
são socializadas para conviver com a impotência; os homens – sempre
vinculados à força – são preparados para o exercício do poder. Convivem mal
com a impotência. Acredita-se ser no momento da vivência da impotência que
os homens praticam atos violentos, estabelecendo relações desse tipo. [8]
Impotência. É o que deve ter sentido Frutuoso ao ser contestado, por
Otília e dessa forma, se sentiu no direito de agredir a companheira. É o que
deixa claro na sua fala - “ ela disse que não fazia, porque não sabia fazer
camisa de homem e atirou o pano no chão, respondendo-me que não ia
apanhar e descompondo-me também, então a peguei pelos braços e dei
diversas pancadas que não ofenderam”[9].
Lançando um olhar sobre a atitude de Otília, podemos inferir que o ato
da mesma em se negar a fazer uma camisa para o seu marido, tanto pode ter
sido uma estratégia para demonstrar a sua insatisfação com Manuel Frutuoso,
quanto pode ser que Otília não soubesse realmente costurar “camisa de
homem”, como alegou. A primeira hipótese ganha mais força quando
comparada com as falas do réu e das testemunhas. Estes sinalizaram que o
casal já não vivia “harmonicamente”, sendo constante as brigas entre os dois, e
por isso, Otília fugia constantemente de casa, por medo do seu companheiro, e
já teria prometido cometer suicídio caso Manuel Frutuoso não a deixasse. Por
outro lado, para Manuel Frutuoso, era inadmissível uma mulher não saber ou
se recusar a costurar suas roupas. O mesmo deve ter tido acesso aos papéis
sociais do homem e da mulher, bastantes divulgados na época pelos jornais,
revistas, igreja, manuais escolas, bem como repassados pela oralidade.
Atributos que transcenderiam fronteiras de classe, nível de escolaridade, entre
outros. Sendo assim, deve ter chegado a seus ouvidos, que a mulher
É mais dominada pelo instinto materno, pelo desejos de servir. E, assim, ela
prepara o conforto, é mestra em acolher o marido, o seu senhor, quando
chega cansado do trabalho[...]; é mais segura e econômica, é capaz de criar
quase tudo, do nada”[10].
E mais, de acordo com os preceitos da época, a mulher, ou melhor, uma
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boa dona de casa, era aquela que, além de dar conta dos serviços domésticos,
deveria ser hábil nos trabalhos manuais, como por exemplo o bordado, a
costura e o conserto de roupas para a família. Tarefas estas que em muito
poderiam ajudar na economia doméstica., principalmente no caso de Otília e
Manuel que eram pobres.
Situação similar foi a de Maria Antônia, que fora agredida por seu
parceiro, ao que tudo indica, pelo fato de dispensar a sua companhia para
vender doces na noite de Natal. Para ela, a venda dos doces seria mais
vantajosa, ainda mais se levarmos em consideração a instabilidade de sua
atividade profissional – jornaleira – o a que obrigava improvisar outras formas
de subsistência. Certamente, a falta de habilidade para lidar com a sensação
de impotência e talvez certo grau de desconfiança tenham levado João
Rodrigues a espancar Maria Antônia.
Uma outra questão a ser tratada é as relações sócio-familiares dos
envolvidos no processo. No caso de Otília , esta se descreve como casada,
enquanto o seu parceiro se qualifica de solteiro. Seria ela casada civilmente
com outro homem e vivia amasiada com Manoel Frutuoso? Quanto a este
questionamento,
os
depoimentos
constantes
no
processo
crime
não
sinalizaram para a possibilidade de Otília ter sido casada com outro homem; as
testemunhas não fazem menção a isto. Por outro lado, este fato pode apontar
para as diferenças de concepções de casamento entre Otília e Manuel. Para
ela, o fato de viver em companhia de um homem poderia ser considerado um
casamento, tanto é que se qualificou como casada, já para Manuel, talvez a
união que não fosse selada pela Igreja ou pelo Estado, não lhe conferia o
estatuto de casado, por isso se considerava solteiro.
Já Maria Antônia, mantinha uma relação amorosa com João Rodrigues,
mas viviam em casas separadas e era de costume também João Rodrigues
fazer refeições e passar a noite na casa de sua companheira, como aconteceu
no dia do crime. Tais tipos de relações, como a dos casais citados, foram
fortemente combatidas pelos higienistas, médicos, Igreja e, por não serem
consumadas pela Igreja e/ou Estado foram classificadas de imorais e, assim
como as outras ameaças ao modelo de casamento burguês – os celibatários,
libidinosos e prostitutas - foram alvo de intervenções e medidas educativas.[11]
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Nos casos analisados, não foi possível saber a extensão familiar dos
casais, ou melhor, a existência de filhos, pais, mães, irmãos e tios das vítimas.
Com exceção de Maria Antônia que possuía uma irmã ,Maria Madalena, a qual
aparece nos depoimentos, e para quem a vítima foi pedir guarida e Maria
Honorata, que apenas declarou ser filha natural de Maria Arcanja de Jesus,
mas não fez alusão se vivia ou não com a genitora. Entretanto, os vizinhos
desempenhavam um importante papel de solidariedade, chegando a intervir
nos momentos de conflitos.
Questionando frases como : “Em briga de marido e mulher não se mete
a colher” ou “ Em queima de roça e brigas de casal, não dês conselhos”, os
vizinhos
procuravam
intervir
nos
conflitos,
além
de
servirem
como
testemunhas.
No conflito entre Maria Honorata e Antonio “Copióba”, foram chamadas
quatro testemunhas, todas vizinhas da vítima. Entre elas estava Zeferino de
Brito, cinqüenta anos, negociante, o qual afirmou que estando em sua casa
ouvira, na casa vizinha, gritos e pancadas “por mais de meia hora
seguramente” e, dessa forma, resolveu invadir a casa de Maria Honorata para
tomar conhecimento do que estava acontecendo. Para a mesma casa também
se dirigiu Maria Catarina, trinta e cinco anos. Encontrando a porta de um dos
cômodos fechada, ameaçaram arrombar. Após “muita demora”, o agressor
atendeu ao pedido e abandonou a casa portando uma faca e um cinturão de
couro curtido, utilizados no espancamento da vítima. Apesar de socorrerem a
vítima, os vizinhos declararam não saber do motivo do conflito apenas um ano
depois, em novo depoimento, algumas testemunhas declararam que a vítima
não possuía um bom procedimento e que “gostava de rixas e trocas de
palavras”. Mas esse “não saber” pode ser indicativo de uma tentativa dos
vizinhos em esconder algum outro motivo causador do conflito, como por
exemplo um envolvimento com outro homem, daí ter “abandonado” Antonio
“Copióba”. Afinal, todas as testemunhas afirmaram conhecer vítima e agressor
há bastante tempo, sabiam do procedimento de ambos e certamente deveriam
saber a causa do conflito.
No Processo de Maria Antônia, nota-se também a interferência dos
vizinhos no conflito. Foi para Manoel Rodrigues, trinta e seis anos, que Maria
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Antônia pediu por socorro. Este, ao ouvir a vítima gritar pelo seu nome, correu
juntamente com Alípio Ferreira, vinte seis anos, para socorrer Maria Antônia.
Como o agressor não se intimidou com a presença dos dois homens, foi
preciso que um deles – Alípio – o segurasse pelo braço e só assim pôde livrar
Maria Antônia das mãos do referido agressor. Vale ressaltar que Maria Antônia
não pediu socorro de forma aleatória e sim clamou por Manoel Rodrigues.
Talvez entre eles existisse uma grau maior de amizade ou Manoel fosse
referência na vizinhança. Momentos depois da briga, chegou ao local Maria
Madalena, irmã da vítima, reclamando o mau procedimento de João e, por isso,
recebeu um “bofetada” das mãos de João, ato que foi presenciado não só
pelos que socorreram Maria Antônia, mas por outras pessoas que foram para a
casa da referida vítima. A notícia do conflito deve ter circulado por toda a
vizinhança, chegando também ao conhecimento do patrão de João Rodrigues.
Uma das testemunhas afirmou que o agressor tinha por costume fazer
confusões “fiando” no seu patrão, Manuel Nunes, o qual sempre pedia pelo seu
encarregado. Apesar de aparecer na casa de Maria Antônia, provavelmente
para apurar o ocorrido, Manuel Nunes alegou que já estava cansado de “pedir”
por João Rodrigues e que não iria se “meter na confusão”.
Vimos que as atitudes dos vizinhos muitas vezes, não ficavam restritas
ao socorro, já que encorajavam a vítima procurar a delegacia, além de servirem
como testemunhas. Principalmente nos casos em que o agressor mantinha
uma relação de inimizade com os vizinhos, talvez fosse, para estes,
fundamental ver o agressor punido pelos erros que cometera. Nos depoimentos
das testemunhas, ficaram evidentes as opiniões que estes tinham sobre o
conflito ou sobre o procedimento dos agressores. A exemplo de Manoel
Frutuoso que, de acordo com as testemunhas, “vivia sempre armado e
prometia espancar os vizinhos” . Por que ameaçava espancar os vizinhos?
Certamente, por causa das interferências em sua vida familiar, bem como as
reprovações dos seus atos de espancar a sua companheira.
Nos casos de Otília e Maria Antônia, não fora a primeira vez que foram
agredidas por seus parceiros. Tanto é que Otília afirmou que todas as vezes
que brigavam Manuel Frutuoso “só queria espancar”, assim como Maria
Antônia que em outro conflito afirmou ter “saído quase morta das mãos de seu
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companheiro”. Aliada à violência física, sofrida por essas mulheres, estava
também a violência simbólica, pois provavelmente os agressores devem ter
proferido palavras ofensivas, usaram também armas para intimidá-las, além
disso, a notícia das agressões não deve ter ficado restrita aos vizinhos, como
afirmou uma das testemunhas de Otília, que no açougue aonde Manoel
Frutuoso trabalhava sabiam do “caso da pimenta”, provavelmente fora a pauta
do dia. Mas, diante a tanta violência, por que ainda assim continuavam a
conviver com parceiros extremamente agressivos? A partir das falas das
vítimas e testemunhas, podemos inferir algumas respostas, vejamos. Antônio
Rodrigues Pires Queiroz, uma das testemunhas de Otília, afirmou que a vítima
“vivia obrigada”, pois tinha medo de deixar o companheiro por medo de ele lhe
matar. Além disso Maria Felícia da Conceição relatou que Otília sempre falava
em se envenenar ou se enforcar caso Manuel “não a deixasse”. Já Maria
Antônia afirmou que havia abandonado o parceiro uma vez, mas diante das
promessas de não mais espancá-la, resolveu lhe dar mais uma chance.
Diante do exposto, alguns questionamentos podem ser feitos: já que
Manuel não a abandonava, por que Otília não tomou a iniciativa de abandonálo? Ou, quando fugiu de sua casa, por que retornou? Apesar das ameaças de
morte se constituírem num elemento coercitivo, será que realmente continuava
unida à Manuel contra a sua vontade?. Será que realmente “vivia obrigada”?.
E, no caso de Maria Antônia, será que para ela a fama atribuída a João
Rodrigues – “malvado, “turbulento” e “espancador de mulheres” – não fazia
sentido?
A partir daí podemos perceber que além das ameaças de agressão e de
morte para evitar uma separação, existiam outros fatores que influenciaram a
permanência de uma relação conjugal – o amor, a sobrevivência econômica, a
existência de filhos. Dessa forma, Otília não “vivia obrigada”, mas os laços de
afetividade talvez falavam mais alto, dentre outros motivos. O mesmo pode-se
falar de Maria Antônia. Se deu mais uma chance a João Rodrigues foi porque
mantinha um sentimento forte para como ele, foi porque confiava no parceiro,
ou ainda, tinha esperanças de restabelecer a relação, mesmo com a fama que
João Rodrigues possuía. Uma separação poderia significar a redução do
padrão de vida de um dos parceiros ou de ambos, ou implicar numa série de
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transformações como, mudança de local, nova moradia, enfim novas,
estratégias de sobrevivência. Além de outros elementos que influenciavam na
manutenção de uma relação, como os valores e a religião.
Estamos aqui nos referindo a casais pertencentes à camada popular, os
quais não seguiam fielmente os padrões do “ser homem e ser mulher”
propalado pela “cultura dominante” para gerirem seus relacionamentos. Mas,
esses padrões era reelaborados ou adaptados às condições de vida dessas
pessoas, mostrando, portanto, que não havia uma “autonomia” das relações
sócio-culturais da camada popular, nem um total “encapsulamento” destes aos
valores dominantes. Como aponta Stuart Hall,
Afirmar que essas formas impostas não nos influenciam equivale a dizer que a
cultura do povo pode existir como um enclave isolado[...] há uma luta contínua
e necessariamente irregular e desigual, por toda parte da cultura dominante, no
sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular.[...] há
pontos de resistência e também pontos de superação. Está é a dialética da luta
cultural.” [12]
Se, por um lado os casais aqui abordados não seguiam as formas ditas
legítimas de união conjugal, por outro, pautavam tais relações nos papéis de
gênero. Mesmo não assumindo exclusivamente o papel de provedores do lar,
os homens procuravam manter sob o seu domínio a sua companheira,
reagindo, muitas vezes, de forma violenta a qualquer tentativa de não
submissão feminina.
NOTAS
[1] Arquivo Municipal de Santo Antonio de Jesus (APMSAJ), processo de
Manoel Frutuoso, 1901, caixa crime 1901-1903
[2] APMSAJ, Processo de João Rodrigues, 1902, caixa crime 1901-1903.
[3] APMSAJ, Processo de Manuel Antonio, 1905, caixa crime 1904-1907.
[4] SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia do século XIX.
Dissertação de Mestrado – UFBA, 1994. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFBA, p. 22.
[5] A partir da idade apresentadas pelas três vítimas podemos inferir que elas
nasceram antes da abolição: Otília, 1881; Maria Antonia, 1872; Maria Honorata,
1887.
[6] CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos
trabalhadores no Rio de janeiro da Belle Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986
P. 154
[7] SAFFIOT, H. Rearticulando gênero e classe social. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org) Tendências e Impasses: O feminismo como crítica da cultura.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994, P. 184
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pesquisa histórica na Bahia.
10
[8] SAFFIOTT, op. cit. p. 186
[9] APMSAJ, processo de Manoel Frutuoso, 1901, caixa crime 1901-1903
[10] VERONESE, Maria Nazareth Moura. Enciclopédia de formação familiar.
São Paulo: COGRAE, vol. 1, p. 85.
[11] COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e norma familiar. 3 ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1989.
[12] HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: Editora UFMG; Brasília: UNESCO, 2003, p. 255.
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