“METENDO A COLHER”: CONFLITOS E VIOLÊNCIAS ENTRE CASAIS DAS CAMADAS POPULARES – SANTO ANTONIO DE JESUS Andréa Ribeiro da Silva LESSA [email protected] Universidade do Estado da Bahia – Campus V O presente trabalho consiste na análise do relacionamento entre homens e mulheres da classe pobre, onde procuram-se enfocar as tensões vividas entre os casais, seu cotidiano e sociabilidades. Para tanto, partiremos da análise de três processos de agressão física, envolvendo homens e mulheres que mantinham relacionamento amoroso, ocorridos em Santo Antonio de Jesus, Bahia. O período em questão refere-se aos anos iniciais do século XX – 1901,1902 e 1905. O recorte temporal justifica-se não só pelo fato de demarcar os anos em que ocorreram os conflitos aqui analisados, mas principalmente por esses conflitos estarem inseridos numa conjuntura de (re) discussão sobre o papel e lugar dos homens e mulheres na sociedade. Optamos por narrar primeiramente os episódios para dar uma dimensão dos conflitos e, posteriormente, discutiremos os elementos centrais do processo. Vejamos nossos personagens. O primeiro caso dá-se entre Otília Maria, lavadeira, preta, vinte anos, casada, e Manuel Frutuoso Batista, vinte dois anos, solteiro, magarefe. A história se passa na casa do casal, localizada à Rua da Linha Férrea. No seu depoimento Otília, relatou que Manoel Frutuoso pediu-lhe que fizesse uma camisa para ele, ao que se negou, pois: “não sabia cortar e coser camisa de homem. Bastou dizer assim para ele me agarrar, amarrando meus braços e depois, deu-me pancadas com uma corda de couro trançado, jogando-me no chão, levantou minhas pernas e deitou-me pimenta ralada na vagina”[1] Temendo o pior, e não se intimidando com as ameaças do seu agressor - já que o mesmo prometeu que “a mataria caso contasse a alguém, ou desse parte à autoridade”- gritou por socorro. Seus vizinhos – Manoel Francisco, Antonio Rodrigues, Maria Felícia e Maria Constança - correram para atender mas, ante as ameaças do agressor, resolveram se retirar do local. No seu depoimento, Manoel Frutuoso negou que houvesse colocado pimenta na genitália da companheira, pois “ele retirando o prato de molho, ela deu com o ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 1 braço no prato e o molho caiu por cima das vestes dela”, mas admite ter dado “diversas pancadas que não ofenderam”, bem como ter amarrado pela cintura com uma corda de couro, uma vez que Otília “respondeu que não fazia a camisa de chita porque não sabia fazer camisa de homem e atirou o pano no chão”. Porém, as pancadas que Frutuoso disse não ter ofendido, provocou diversas escoriações, além de a vítima apresentar inflamações nas partes genitais, provocadas por “substância irritante”, ficando o dano causado à Otília avaliado em torno de cinqüenta mil réis, conforme atestou o laudo do exame de corpo e delito. Este processo não foi concluído, talvez Otília tenha retirado à queixa ou tenha sido arquivado. Vejamos outro caso: no dia 24 de dezembro de 1902, Maria Antônia de Jesus, preta, trinta anos de idade, jornaleira, fora convidada por seu companheiro, João Rodrigues, para passar a noite na Fazenda Má-vida, local onde morava o agressor. Entretanto, recusou o convite, pois segundo ela, iria vender doces na noite de Natal. No dia seguinte, João Rodrigues apareceu na casa de Maria Antônia para “jantar e dormir” e, por volta das 4 horas da tarde, João perguntou por que motivo não tinha ido à Fazenda junto com ele. Ela respondeu que já tinha dito o motivo e “isso foi o bastante para que João lhe desse uma bofetada e daí continuou a bater e que não podendo mais agüentar as pancadas gritou pelos vizinhos, os quais conseguiram livrá-la das garras de João Rodrigues”[2]. A versão do acusado não foi possível saber, pois nos autos não consta o seu depoimento. Sabe-se que foi decretada a prisão preventiva em 30 de dezembro de 1902, mas no ano seguinte o réu já estava solto. Por fim, o terceiro caso. Maria Honorata, preta, 18 anos, solteira, filha de Maria Arcanja de Jesus, vivia de serviços domésticos, foi agredida por Manoel Antonio, conhecido como “Antonio Copióba” , com quem tivera um relacionamento amoroso. Segundo Maria Honorata, as agressões que sofreu deveram-se ao fato de que, após um relacionamento de quatro meses com “Copióba”, ela o “desprezou” e, por conta disso, ele constantemente a ameaçava e, na manhã do dia 22 do corrente mês, estando ela na porta de sua casa, à Rua Santo Antonio, fora surpreendida pela presença de Manoel Antonio, o qual lhe pedira um copo de água. Aproveitando-se da ocasião em que Maria Honorata entrou para buscar a água, Manoel a acompanhou e ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 2 fechou a porta “e, com um cinto de couro, lhe espancou barbaramente”. Os gritos proferidos pela vítima chamaram a atenção dos vizinhos, entre eles, Manoel Antonio, Juvenal Lima Pontes e Zeferino de tal, os quais correram até o local e fizeram com que Manoel não mais a espancasse[3]. O réu não foi encontrado para ser intimado e, após um período de quatro anos, tal processo prescreveu. Os processos acima narrados apresentam diversos pontos em comum, os quais são indicativos das formas de relacionamento cotidiano, sociabilidades e solidariedade entre os envolvidos e seu meio. As mulheres envolvidas nos processos – Otília, Maria Antônia e Maria Honorata – além de terem em comum o fato de serem negras, pobres, compartilharam as formas em que estavam inseridas no mundo do trabalho, ou seja, ocupavam atividades informais e mal remuneradas - lavadeira, jornaleira e serviços domésticos, respectivamente. Funções que possivelmente foram desempenhadas pelas escravas, negras livres e libertas no período anterior à abolição – entre as quais poderiam estar as avós, mães, tias das nossas personagens. Cecília Moreira Soares no seu trabalho, Mulher negra da Bahia do século XIX, aborda os diversos tipos de trabalho exercidos pelas mulheres negras (escravas ou não), tanto no âmbito doméstico quanto no espaço da rua. De acordo com a autora, o trabalho da mulher negra foi utilizado em diversos setores da economia escravista, mais predominantemente nas atividades domésticas[4] - lavadeiras, cozinheiras, domésticas, amas-de-leite. Apesar disso, algumas escravas e negras livres também exercerem atividades de ganho, como as vendedoras, quituteiras, lavadeiras, ou se “alugarem” para o trabalho doméstico. No entanto , no pós-abolição, esses serviços continuaram a ser prestados pela maioria das mulheres negras. Se escravas, algumas talvez continuaram a viver trabalhando para o seus antigos senhores, dado o laço de “afetividade” que conseguiram estabelecer; outras, mesmo abandonando o local de serviço, continuaram exercendo trabalhos domésticos, atividades ligadas à lavoura ou ocupando-se das atividades de ganho, transitando assim pelas ruas das cidades para oferecerem seus serviços. Nascidas antes da abolição da escravatura[5], nossas personagens devem ter acompanhado as estratégias de suas mães para ajudarem e/ou ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 3 garantirem o sustento de si e da família e, devido às condições sócioeconômicas, possivelmente, foram cedo inseridas no mundo do trabalho. Essas mulheres continuaram a exercer atividades mal remuneradas, tendo a necessidade de complementar com outros serviços. Mesmo passando a conviver em companhia masculina, nossas personagens continuaram exercendo suas profissões para ajudar na renda familiar. Tais são os exemplos de Otília e Maria Antônia, lavadeira e jornaleira, respectivamente, as quais assumiam juntamente com os companheiros a tarefa de provisão do lar. O fato de a mulher pobre trabalhar tem sido apontado como um dos fatores que modelam a forma de relacionamento homem-mulher . Sidney Chaloub em, Trabalho, lar e botequim, quando discute sobre as formas de amar da classe trabalhadora do Rio de Janeiro, da Primeira República, afirma que o fato da mulher pobre trabalhar lhe confere uma “relativa autonomia” com relação ao seu parceiro, havendo, assim, uma relação de simetria entre os casais, pois “a experiência de vida destas pessoas não oferecia bases concretas que justificassem uma pesada dominação masculina no relacionamento de um casal, o que resultava num papel mais ativo da mulher”.[6] Para o autor, as “bases concretas”, no período por ele estudado, seriam o trabalho feminino e o número desproporcional entre homens e mulheres. O fato de a mulher trabalhar, aliado ao grande contigente da população masculina serviria para quebrar a dominação do homem sobre a mulher. Entretanto, prefiro concordar com Helleiet Saffiot quando afirma que a relação homem-mulher não deve ser vista como uma relação permanentemente assimétrica, com predominância da dominação do lado masculino sobre o feminino, mas como uma relação em que constantemente se altera os poderes. Ainda segundo a autora, “ em todas as sociedades conhecidas, as mulheres detêm parcelas de poder que lhes permitem meter cunhas na supremacia masculina e, assim, cavar/gerar espaços nos interstícios da falocracia”. [7] Sendo assim, as mulheres, sejam elas ricas ou pobres, trabalhadoras ou não, não permanecem totalmente na condição de dominadas. Elas encontram meios e utilizam de variadas estratégias para inverter essa situação. E justamente neste momento de inversão, ou melhor, de ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 4 fragmentação da dominação masculina, que podem ser gerados conflitos e atos de violência entre o casal. Como aponta Saffioti, O poder apresenta duas faces: a da potência e a da impotência. As mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens – sempre vinculados à força – são preparados para o exercício do poder. Convivem mal com a impotência. Acredita-se ser no momento da vivência da impotência que os homens praticam atos violentos, estabelecendo relações desse tipo. [8] Impotência. É o que deve ter sentido Frutuoso ao ser contestado, por Otília e dessa forma, se sentiu no direito de agredir a companheira. É o que deixa claro na sua fala - “ ela disse que não fazia, porque não sabia fazer camisa de homem e atirou o pano no chão, respondendo-me que não ia apanhar e descompondo-me também, então a peguei pelos braços e dei diversas pancadas que não ofenderam”[9]. Lançando um olhar sobre a atitude de Otília, podemos inferir que o ato da mesma em se negar a fazer uma camisa para o seu marido, tanto pode ter sido uma estratégia para demonstrar a sua insatisfação com Manuel Frutuoso, quanto pode ser que Otília não soubesse realmente costurar “camisa de homem”, como alegou. A primeira hipótese ganha mais força quando comparada com as falas do réu e das testemunhas. Estes sinalizaram que o casal já não vivia “harmonicamente”, sendo constante as brigas entre os dois, e por isso, Otília fugia constantemente de casa, por medo do seu companheiro, e já teria prometido cometer suicídio caso Manuel Frutuoso não a deixasse. Por outro lado, para Manuel Frutuoso, era inadmissível uma mulher não saber ou se recusar a costurar suas roupas. O mesmo deve ter tido acesso aos papéis sociais do homem e da mulher, bastantes divulgados na época pelos jornais, revistas, igreja, manuais escolas, bem como repassados pela oralidade. Atributos que transcenderiam fronteiras de classe, nível de escolaridade, entre outros. Sendo assim, deve ter chegado a seus ouvidos, que a mulher É mais dominada pelo instinto materno, pelo desejos de servir. E, assim, ela prepara o conforto, é mestra em acolher o marido, o seu senhor, quando chega cansado do trabalho[...]; é mais segura e econômica, é capaz de criar quase tudo, do nada”[10]. E mais, de acordo com os preceitos da época, a mulher, ou melhor, uma ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 5 boa dona de casa, era aquela que, além de dar conta dos serviços domésticos, deveria ser hábil nos trabalhos manuais, como por exemplo o bordado, a costura e o conserto de roupas para a família. Tarefas estas que em muito poderiam ajudar na economia doméstica., principalmente no caso de Otília e Manuel que eram pobres. Situação similar foi a de Maria Antônia, que fora agredida por seu parceiro, ao que tudo indica, pelo fato de dispensar a sua companhia para vender doces na noite de Natal. Para ela, a venda dos doces seria mais vantajosa, ainda mais se levarmos em consideração a instabilidade de sua atividade profissional – jornaleira – o a que obrigava improvisar outras formas de subsistência. Certamente, a falta de habilidade para lidar com a sensação de impotência e talvez certo grau de desconfiança tenham levado João Rodrigues a espancar Maria Antônia. Uma outra questão a ser tratada é as relações sócio-familiares dos envolvidos no processo. No caso de Otília , esta se descreve como casada, enquanto o seu parceiro se qualifica de solteiro. Seria ela casada civilmente com outro homem e vivia amasiada com Manoel Frutuoso? Quanto a este questionamento, os depoimentos constantes no processo crime não sinalizaram para a possibilidade de Otília ter sido casada com outro homem; as testemunhas não fazem menção a isto. Por outro lado, este fato pode apontar para as diferenças de concepções de casamento entre Otília e Manuel. Para ela, o fato de viver em companhia de um homem poderia ser considerado um casamento, tanto é que se qualificou como casada, já para Manuel, talvez a união que não fosse selada pela Igreja ou pelo Estado, não lhe conferia o estatuto de casado, por isso se considerava solteiro. Já Maria Antônia, mantinha uma relação amorosa com João Rodrigues, mas viviam em casas separadas e era de costume também João Rodrigues fazer refeições e passar a noite na casa de sua companheira, como aconteceu no dia do crime. Tais tipos de relações, como a dos casais citados, foram fortemente combatidas pelos higienistas, médicos, Igreja e, por não serem consumadas pela Igreja e/ou Estado foram classificadas de imorais e, assim como as outras ameaças ao modelo de casamento burguês – os celibatários, libidinosos e prostitutas - foram alvo de intervenções e medidas educativas.[11] ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 6 Nos casos analisados, não foi possível saber a extensão familiar dos casais, ou melhor, a existência de filhos, pais, mães, irmãos e tios das vítimas. Com exceção de Maria Antônia que possuía uma irmã ,Maria Madalena, a qual aparece nos depoimentos, e para quem a vítima foi pedir guarida e Maria Honorata, que apenas declarou ser filha natural de Maria Arcanja de Jesus, mas não fez alusão se vivia ou não com a genitora. Entretanto, os vizinhos desempenhavam um importante papel de solidariedade, chegando a intervir nos momentos de conflitos. Questionando frases como : “Em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “ Em queima de roça e brigas de casal, não dês conselhos”, os vizinhos procuravam intervir nos conflitos, além de servirem como testemunhas. No conflito entre Maria Honorata e Antonio “Copióba”, foram chamadas quatro testemunhas, todas vizinhas da vítima. Entre elas estava Zeferino de Brito, cinqüenta anos, negociante, o qual afirmou que estando em sua casa ouvira, na casa vizinha, gritos e pancadas “por mais de meia hora seguramente” e, dessa forma, resolveu invadir a casa de Maria Honorata para tomar conhecimento do que estava acontecendo. Para a mesma casa também se dirigiu Maria Catarina, trinta e cinco anos. Encontrando a porta de um dos cômodos fechada, ameaçaram arrombar. Após “muita demora”, o agressor atendeu ao pedido e abandonou a casa portando uma faca e um cinturão de couro curtido, utilizados no espancamento da vítima. Apesar de socorrerem a vítima, os vizinhos declararam não saber do motivo do conflito apenas um ano depois, em novo depoimento, algumas testemunhas declararam que a vítima não possuía um bom procedimento e que “gostava de rixas e trocas de palavras”. Mas esse “não saber” pode ser indicativo de uma tentativa dos vizinhos em esconder algum outro motivo causador do conflito, como por exemplo um envolvimento com outro homem, daí ter “abandonado” Antonio “Copióba”. Afinal, todas as testemunhas afirmaram conhecer vítima e agressor há bastante tempo, sabiam do procedimento de ambos e certamente deveriam saber a causa do conflito. No Processo de Maria Antônia, nota-se também a interferência dos vizinhos no conflito. Foi para Manoel Rodrigues, trinta e seis anos, que Maria ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 7 Antônia pediu por socorro. Este, ao ouvir a vítima gritar pelo seu nome, correu juntamente com Alípio Ferreira, vinte seis anos, para socorrer Maria Antônia. Como o agressor não se intimidou com a presença dos dois homens, foi preciso que um deles – Alípio – o segurasse pelo braço e só assim pôde livrar Maria Antônia das mãos do referido agressor. Vale ressaltar que Maria Antônia não pediu socorro de forma aleatória e sim clamou por Manoel Rodrigues. Talvez entre eles existisse uma grau maior de amizade ou Manoel fosse referência na vizinhança. Momentos depois da briga, chegou ao local Maria Madalena, irmã da vítima, reclamando o mau procedimento de João e, por isso, recebeu um “bofetada” das mãos de João, ato que foi presenciado não só pelos que socorreram Maria Antônia, mas por outras pessoas que foram para a casa da referida vítima. A notícia do conflito deve ter circulado por toda a vizinhança, chegando também ao conhecimento do patrão de João Rodrigues. Uma das testemunhas afirmou que o agressor tinha por costume fazer confusões “fiando” no seu patrão, Manuel Nunes, o qual sempre pedia pelo seu encarregado. Apesar de aparecer na casa de Maria Antônia, provavelmente para apurar o ocorrido, Manuel Nunes alegou que já estava cansado de “pedir” por João Rodrigues e que não iria se “meter na confusão”. Vimos que as atitudes dos vizinhos muitas vezes, não ficavam restritas ao socorro, já que encorajavam a vítima procurar a delegacia, além de servirem como testemunhas. Principalmente nos casos em que o agressor mantinha uma relação de inimizade com os vizinhos, talvez fosse, para estes, fundamental ver o agressor punido pelos erros que cometera. Nos depoimentos das testemunhas, ficaram evidentes as opiniões que estes tinham sobre o conflito ou sobre o procedimento dos agressores. A exemplo de Manoel Frutuoso que, de acordo com as testemunhas, “vivia sempre armado e prometia espancar os vizinhos” . Por que ameaçava espancar os vizinhos? Certamente, por causa das interferências em sua vida familiar, bem como as reprovações dos seus atos de espancar a sua companheira. Nos casos de Otília e Maria Antônia, não fora a primeira vez que foram agredidas por seus parceiros. Tanto é que Otília afirmou que todas as vezes que brigavam Manuel Frutuoso “só queria espancar”, assim como Maria Antônia que em outro conflito afirmou ter “saído quase morta das mãos de seu ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 8 companheiro”. Aliada à violência física, sofrida por essas mulheres, estava também a violência simbólica, pois provavelmente os agressores devem ter proferido palavras ofensivas, usaram também armas para intimidá-las, além disso, a notícia das agressões não deve ter ficado restrita aos vizinhos, como afirmou uma das testemunhas de Otília, que no açougue aonde Manoel Frutuoso trabalhava sabiam do “caso da pimenta”, provavelmente fora a pauta do dia. Mas, diante a tanta violência, por que ainda assim continuavam a conviver com parceiros extremamente agressivos? A partir das falas das vítimas e testemunhas, podemos inferir algumas respostas, vejamos. Antônio Rodrigues Pires Queiroz, uma das testemunhas de Otília, afirmou que a vítima “vivia obrigada”, pois tinha medo de deixar o companheiro por medo de ele lhe matar. Além disso Maria Felícia da Conceição relatou que Otília sempre falava em se envenenar ou se enforcar caso Manuel “não a deixasse”. Já Maria Antônia afirmou que havia abandonado o parceiro uma vez, mas diante das promessas de não mais espancá-la, resolveu lhe dar mais uma chance. Diante do exposto, alguns questionamentos podem ser feitos: já que Manuel não a abandonava, por que Otília não tomou a iniciativa de abandonálo? Ou, quando fugiu de sua casa, por que retornou? Apesar das ameaças de morte se constituírem num elemento coercitivo, será que realmente continuava unida à Manuel contra a sua vontade?. Será que realmente “vivia obrigada”?. E, no caso de Maria Antônia, será que para ela a fama atribuída a João Rodrigues – “malvado, “turbulento” e “espancador de mulheres” – não fazia sentido? A partir daí podemos perceber que além das ameaças de agressão e de morte para evitar uma separação, existiam outros fatores que influenciaram a permanência de uma relação conjugal – o amor, a sobrevivência econômica, a existência de filhos. Dessa forma, Otília não “vivia obrigada”, mas os laços de afetividade talvez falavam mais alto, dentre outros motivos. O mesmo pode-se falar de Maria Antônia. Se deu mais uma chance a João Rodrigues foi porque mantinha um sentimento forte para como ele, foi porque confiava no parceiro, ou ainda, tinha esperanças de restabelecer a relação, mesmo com a fama que João Rodrigues possuía. Uma separação poderia significar a redução do padrão de vida de um dos parceiros ou de ambos, ou implicar numa série de ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 9 transformações como, mudança de local, nova moradia, enfim novas, estratégias de sobrevivência. Além de outros elementos que influenciavam na manutenção de uma relação, como os valores e a religião. Estamos aqui nos referindo a casais pertencentes à camada popular, os quais não seguiam fielmente os padrões do “ser homem e ser mulher” propalado pela “cultura dominante” para gerirem seus relacionamentos. Mas, esses padrões era reelaborados ou adaptados às condições de vida dessas pessoas, mostrando, portanto, que não havia uma “autonomia” das relações sócio-culturais da camada popular, nem um total “encapsulamento” destes aos valores dominantes. Como aponta Stuart Hall, Afirmar que essas formas impostas não nos influenciam equivale a dizer que a cultura do povo pode existir como um enclave isolado[...] há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por toda parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular.[...] há pontos de resistência e também pontos de superação. Está é a dialética da luta cultural.” [12] Se, por um lado os casais aqui abordados não seguiam as formas ditas legítimas de união conjugal, por outro, pautavam tais relações nos papéis de gênero. Mesmo não assumindo exclusivamente o papel de provedores do lar, os homens procuravam manter sob o seu domínio a sua companheira, reagindo, muitas vezes, de forma violenta a qualquer tentativa de não submissão feminina. NOTAS [1] Arquivo Municipal de Santo Antonio de Jesus (APMSAJ), processo de Manoel Frutuoso, 1901, caixa crime 1901-1903 [2] APMSAJ, Processo de João Rodrigues, 1902, caixa crime 1901-1903. [3] APMSAJ, Processo de Manuel Antonio, 1905, caixa crime 1904-1907. [4] SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia do século XIX. Dissertação de Mestrado – UFBA, 1994. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, p. 22. [5] A partir da idade apresentadas pelas três vítimas podemos inferir que elas nasceram antes da abolição: Otília, 1881; Maria Antonia, 1872; Maria Honorata, 1887. [6] CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de janeiro da Belle Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986 P. 154 [7] SAFFIOT, H. Rearticulando gênero e classe social. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org) Tendências e Impasses: O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, P. 184 ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 10 [8] SAFFIOTT, op. cit. p. 186 [9] APMSAJ, processo de Manoel Frutuoso, 1901, caixa crime 1901-1903 [10] VERONESE, Maria Nazareth Moura. Enciclopédia de formação familiar. São Paulo: COGRAE, vol. 1, p. 85. [11] COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e norma familiar. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. [12] HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: UNESCO, 2003, p. 255. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 10: Arquivos e Fontes: a pesquisa histórica na Bahia. 11