TERAPIA PARA DRAMAS E AFLIÇÕES GANHA ESPAÇO NO SERVIÇO PÚBLICO (FABIANE LEITE – Folha de São Paulo) Publicado domingo, 2 de julho de 2006 Treinamento para implantar iniciativa, surgia no Ceará há 20 anos e adotada na Europa, reúne interessados em prevenir doença mental em comunidades Terapia para não ficar com “cara de azedo”. Terapia “a la carte”, em que cada um escolhe o que pode lhe aliviar. Reunião para falar dos problemas, escutar e se aproximar dos outros, resumiram os franceses. A terapia comunitária surgiu há 20 anos no Pirambu, um dos bairros mais pobres de Fortaleza, chegou à França e à Suíça e se expande em serviços públicos de todo o país com a proposta de acolher dramas humanos – solidão, perdas – e prevenir o adoecimento mental. Em Fortaleza, a prefeitura promete expandir o método do Pirambu, na zona oeste da cidade, para outras sete regiões de risco social. Na cidade de São Paulo, há cerca de 300 terapeutas comunitários, e o método já atingiu 138 equipamentos de saúde, como hospitais e postos – a prefeitura promete implanta-lo em todas as unidades básicas de saúde até 2008. Sobral (CE) e Londrina (PR) são outras cidades que também já implantaram o método. Já a Senad (Secretaria Nacional Antidrogas) utiliza a terapia para preparar 720 pessoas de 12 Estados que trabalham com usuários de drogas. Segundo a Associação Brasileira de Terapia Comunitária, há cerca de 8.000 terapeutas formados ou em formação em todos os Estados, em serviços públicos, igrejas ou ONGs, que já realizaram mais de 1,7 milhão de sessões da terapia. As rodas do programa – todas as sessões são em circulo – têm quase sempre a mesma dinâmica: quem quer fala de algo que lhe aflige, os demais votam na história com a qual mais se identificam e podem fazer perguntas e contar suas experiências pessoais. É proibido falar dos outros, dar conselhos, sermões. Cada fala é precedida por um “eu” – o que vale é o que cada um passou. Músicas que tenham a ver com o tema escolhido, piadas, são bem-vindas. Chá e bolo também costumam circular. “É bem caloroso”, resume o psiquiatra, teólogo e antropólogo cearense Adalberto Barreto, 57, professor do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará que desenvolveu e propaga o método nesses 20 anos. O objetivo, resume, é criar espaços de fala em comunidades cada vez mais caladas. O lema é ditado cearense que Barreto não se cansa de repetir. “Quando a boca cala, os órgãos falam. Quando a boca fala os órgãos saram.” No centro de uma oca estilizada, em uma pousada de Morro Branco, Beberibe, a 80 km de Fortaleza, Barreto ensinava mais um grupo de futuros terapeutas. Eram assistentes sociais, médicos, psicólogos, religiosos, enfermeiros, integrantes da defesa civil e até uma secretária de saúde que buscam maneiras de lida com suas comunidades atormentadas. “Não precisa ser médico para tratar do sofrimento”, dizia. A terapia, explicava Barreto ao grupo, não substitui psicoterapias nem o trabalho dos psiquiatras, mas pode ser complementar em tratamentos médicos e psicológicos. O foco não são doenças, mas sofrimentos. “Nosso trabalho é construir vínculos, não dar remédios.” Barreto preparou no ano passado avaliação de impacto da terapia a pedido do ex-ministro da Saúde Humberto Costa. Os dados apontam que efetivamente houve aumento da “base de apoio” dos participantes e também da qualidade de relacionamentos que já existiam, afirma. Mas o ministro caiu e a avaliação não chegou à pasta. O ministro informou apenas reconhecer o método de Barreto e que os gestores têm liberdade para adotá-lo ou não na rede básica de saúde, assim como para implementar outros tipos de terapia. O psiquiatra diz ter encaminhado dados também aos conselhos federais de Medicina e Psicologia, mas esse informaram que não os receberam. Secretarias da Saúde, como a de São Paulo, que começou a treinar terapeutas em 2003, descreveu a iniciativa como instrumento que “vem somar com a promoção de saúde”. “Por mais que se tenha psiquiatra, remédio, você não dá conta do problema da saúde mental. A terapia é uma possibilidade de trabalhar com as comunidades, filtrar o que é doença, o que tem de ser encaminhado [aos médicos e psicólogos] e aquilo que a comunidade tem recurso para resolvem”, afirma a secretária da Saúde de Várzea Paulista, Maria do Carmo Carpintéro, que participava do curso de Barreto. A secretária e os colegas foram ao Pirambu, onde tudo começou, ver a terapia em ação. Maria de Sena Lima, 64, é uma das que foram buscar ajuda para os dias sofridos com o marido doente. Ouviu as histórias de Olga, de Isa, de Karen, que também sofrem e sofreram com parentes doentes mentais. “Nunca assisti a esse negócio bonito. Estava estressada”, disse Maria. “Me sinto leve, os problemas diminuíram”, afirmou o pintor Ednaldo Teixeira, 40, que também acompanhava tudo e cuja preocupação era aluguel vencido. FAVELA NO CEARÁ FOI ORIGEM NO TRATAMENTO Doutor em psiquiatria pela Universidade René Descartes Paris V, Adalberto Barreto diz que voltou da França e recebeu do irmão Airton, advogado que fora morar na favela do Pirambu, um pedido para atender seus clientes e conhecidos pobres, atormentados por aflições. “Primeiro eram três, depois oito, até que eram 33. Decidi então ir à favela e fazer uma reunião”, afirma o professor do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC). Nascia aí a terapia comunitária, relata o docente, mas a idéia só ganharia anos depois a teoria. Dona Zilma Saturnina, de 67 anos, rezadeira que conforta os que chegam ao projeto 4 Varas, sede da terapia no Pirambu, foi uma das primeiras “acolhidas” pelo método. “Eu era louca, vivia em hospital. Tinha mania de limpeza.” “Um dia ela me disse que poderia rezar por um rapaz. Eu perguntei, por que não agora? Dali ela passou a ‘varrer’ o povo”, diz o professor. Depois dessa passagem, Zilma passou a ter fala, função no projeto. Melhorou tanto que hoje não toma mais os medicamentos. “Eu antes não sabia que sou uma pessoa de alta categoria”, diz Zilma.