Litigância de má-fé: razoável duração do processo que decorre da responsabilização de quem dela se vale. Constitui meta dos Presidentes dos Tribunais do país, oficializada no chamado “Pacto dos Três Poderes”, o encontro de mecanismos tendentes a se imprimir maior celeridade aos feitos, visando a conferir-se eficácia ao disposto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República. Desse modo, buscar-se-ia “dar a cada um o que é seu” não só mediante a aplicação de uma fórmula que traduza justiça, mas, além disso, justiça rápida e eficaz, evitando-se aquela situação que Rui Barbosa denominou “injustiça qualificada”. Nessa quadra, e longe de se propor uma solução dita infalível, muito menos de se lhe emprestar o adjetivo “única”, é de se refletir acerca das disposições processuais relacionados à litigância de máfé, frívola, temerária, enfim. A litigância de má-fé vem sendo identificada como uma anomalia processual responsável, no mais das vezes, pela eternização dos litígios, na contramão do mandamento constitucional que exige a razoável duração do processo (CR, art. 5º, inciso LVXXVIII). 1 De se conferir, a propósito, da ementa do V. Acórdão proferido no julgamento do REsp nº 1.102.194/RS, de lavra do Ministro Mauro Campbell Marques, publicado no DJe de 3.2.2009, de cujo teor segue transcrito: “(...) 10. É por isso que, enfrentando situações como a presente, na falta de modificação no comportamento dos advogados - que seria, como já dito, o ideal -, torna-se indispensável que também os magistrados não fiquem inertes, que também eles, além dos legisladores, tomem providências, notadamente quando o próprio sistema já oferece arsenal para tanto (...)”. Merece transcrição magistral voto da lavra do Eminente Desembargador Munhoz Soares, condutor do V. Acórdão proferido no julgamento da Apelação Cível com Revisão nº 510.146-4/4-00, j. 26.2.2008, de cujo teor se extrai: “(...) V. Nestes autos, é perceptível a nítida litigância de má-fé pelos aptes, assumindo atitude comportamental de contornar as decisões judiciais, o que se descoaduna com os objetivos da lei, importando na caracterização de condições à aplicabilidade da pena correspondente a tal comportamento. Referem THEOTONIO NEGRÃO e JOSÉ ROBERTO F. GOUVÊA, ofertando cristalina transparência ao aspecto ético comportamental em face das partes litigantes, e tal, à vista da disposição adjetiva contida na Lei Processual Civil (arts. 17 e 18), colacionando o seguinte aresto ‘0 advogado não tem o direito de procrastinar o andamento do feito. Não tem o direito de criar incidentes, de sonegar provas, de dificultar a apreciação, a distribuição da justiça. O 2 advogado é um auxiliar da justiça, não um inimigo dela. Ele está para servir a algo mais alto do que o cliente: a Justiça, Pode até perder uma causa, mas não pode perder a sua ética profissional. Ganhar tempo indevidamente é contra a ética profissional’ (op. cit.nota 20a, p. 143) (gn). Ainda que parte no processo, os aptes, indisfarçavelmente exercitaram comportamento protelatório, acoimado como de má-fé, de molde a obstruir a ordem processual, sem que, contudo, viessem a toldar as convicções judicantes nesta Instância. Nesta altura da análise processual, convém trazer à colação supinas lições de ética profissional contidas, talvez, na mais consagrada obra sobre tão delicado tema RUY DE AZEVEDO SODRÉ, honra e glória da Nobre Classe, pontificou que ‘A ética condena a moral dos resultados, impondo-se a moral dos princípios; a advocacia é o encontro de uma confiança, que se entrega a uma consciência’ e, unindo ambas, em traço único e indelével, concluiu que ‘Confiança e consciência que só podem existir quando alicerçadas nas normas morais a que deve estar vinculado o advogado’ (in A ÉTICA PROFISSIONAL E O ESTATUTO DO ADVOGADO, SP, 4a ed. LTR, SP., 1991, p. 57) VI. Assim, de par à exegese da lei adjetiva (art. 339) e, desde PEDRO BAPTISTA MARTINS, em lúcido magistério, provém a lição de que ‘Há uma constante na legislação de todos os povos e que se tem manifestado em todos os momentos históricos: a preocupação de prevenir ou reprimir a atividade maliciosa ou fraudulenta dos litigantes‘ (cf O ABUSO DO DIREITO E O ATO ILÍCITO, 3a ed. Forense, 1997, p. 65) De notar-se que as lições retro e supra transcritas, refletindo posição doutrinária do próprio Direito Português, fazem salientar adequado escólio de FERNANDO LUSO SOARES que, em obra 3 maiúscula sobre tal tema, houve por bem transcrever V. acórdão da SUPREMA CORTE DE LISBOA, que decidiu ‘Relativamente à má fé material de que se trata, tem a doutrina considerado má fé material ou dolo material os casos de dedução de pedido ou oposição cuja falta de fundamento se conhece, e a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais, e má fé instrumental ou dolo instrumental aquele que respeita ao uso reprovável do processo, ou dos meios processuais para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Lisboa, de 9 de dezembro de 1975, BMJ. 252, 105)’ (cf. A RESPONSABILIDADE PROCESSUAL CIVIL. Ed. ed. Livraria Almedina, Coimbra, 1987, p. 189) (...)”. Assim, contribuindo decisivamente para a configuração da litigância de má-fé (má-fé material) ou a praticando como estratégia resultante de sua livre opção (má-fé instrumental), deve o profissional da advocacia responsabilizar-se, respectivamente, de forma solidária ou exclusiva. Nada obstante respeitáveis entendimentos em contrário, a prática revela que nem sempre se vislumbra utilidade ou mesmo justiça no condenar-se exclusivamente o jurisdicionado leigo em decorrência de desobediência ao comando das disposições contidas nos arts. 14 e 17 do Código de Processo Civil, como já se observou, com muita propriedade: “Sancionar a parte sem sancionar o patrono é conduta que a nada leva; pune quem nada fez e protege quem fez, mas não devia ter feito; e deixa no julgador um sabor de injustiça, 4 por saber que a parte o mais das vezes desconhece o que se faz em seu nome e acaba pagando com dinheiro próprio o malfeito do outro” (TJSP - Agravo Interno nº 89.806.5/6-02 – Rel. Des. Torres de Carvalho). Afirma-se que não se vislumbra utilidade ou justiça em condenações que têm por mira exclusivamente o jurisdicionado leigo e explica-se: (a) não há utilidade porque se “A” pratica conduta abusiva e desleal e “B” sofre a sanção processual daí decorrente, é justo supor que “A” não ver-se-ia motivado a alterar seu comportamento; (b) igualmente não se vislumbra justiça porque, adotado o mesmo exemplo, “B” seria condenado pelo malfeito de outrem, situação que revela responsabilidade objetiva do jurisdicionado pelo ilícito, muito embora, nesses casos, sequer compreenda o que se passa. Malgrado proferido em outro contexto, inspira reflexão o raciocínio assim expendido: “O advogado que, atuando de forma livre e independente, lesa terceiros no exercício de sua profissão responde diretamente pelos danos causados” (STJ, REsp 1.022.103/RN – Rel. Min. Nancy Andrighi). Já se teve oportunidade de se sustentar a desnecessidade de atividade legislativa a respeito, consoante artigo publicado na Escola Paulista da Magistratura, sob o título “Condenação solidária de advogado com cliente em lide temerária e o Projeto de Lei nº 4.074/08” (disponível no sítio da EPM na Internet, Seção de Artigos, nº 228), para o qual ora se remete a atenção do leitor para eventual consulta, evitando-se a prolixidade e o vício da tautologia. 5 E assim se sustenta, porque, data venia, cuida-se de matéria de conteúdo eminentemente jurisdicional, como, bem a propósito, vem reconhecendo o Egrégio Tribunal de Justiça Bandeirante: “(...) De sorte que, constatada a má-fé processual, por ela respondem a parte e seus advogados, nos moldes do artigo 14, do Código de Processo Civil, cc. parágrafo único do art. 32, do Estatuto do Advogado e art. 17, cc. art. 18, ambos do Código de Processo Civil (...)” (Agravo de Instrumento n° 7.063.767-7 – Rel. Des. Souza Lopes – j. 1º.8.2007). Confira-se, ainda: Apel. n° 562.340.4/5 – Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani; Agravo n° 7.295.859-1 – Rel. Des. Jacob Valente; Apelação 193.682.4/0-00, Rel. Des. Grava Brazil, j. 27.07.2005; Embargos de Declaração n.° 261.880.4/6-01 – Rel. Juiz Antonio Marcelo Cunzola Rimola – j. 14.11.2008; Apel nº 842.579.5/0-00 - Rel. Des. Urbano Ruiz; Agravo Interno nº 689.806.5/6-02 – Rel. Des. Torres de Carvalho; Embargos de Declaração nº 157.183-0/7-01 – Rel. Des. Viana Santos; Apel. nº 854.914.5/2-00 – Rel. Des. Pires de Araújo; Embargos de Declaração n.° 7.252.575-6/01 – Rel. Des. Araldo Telles – J. 3.3.2009; Embargos de Declaração n° 542.448.4/5-02 - Rel. Des. José Luiz Gavião de Almeida – j. 3.3.2009; Apelação Cível com Revisão n° 531.929-4/1-00 Rel. Des. Dimas Carneiro – j. 15.10.2008. Confira-se, outrossim, do voto condutor do V. Acórdão de lavra do Nobre Desembargador Ademir Benedito, proferido no julgamento da Apelação com Revisão nº 7.246.238-1, registrado em 14 de setembro de 2009: 6 “(...) A condenação de forma solidária da patrona dos apelantes, nas penas por litigância de má-fé, também deve ser mantida. Correto o entendimento esposado pelo nobre magistrado sentenciante, ao ponderar que não só as partes, mas também seus advogados, têm o dever de agir com lealdade processual, nos termos do art. 14, II, do CPC. A patrona dos requerentes efetivamente agiu de forma temerária e sua condenação não foi por defender alguém que não seja titular do direito material, mas sim pela forma como o fez. Todos têm direito à defesa, mas não pode a conduta ardilosa e protelatória ser tida como tal. Deixa de ser defesa e passa a ser mero expediente odioso, que atravanca a máquina judiciária e impede que causas verdadeiramente relevantes sejam analisadas com maior rapidez. Quanto ao art. 32 do Estatuto da Advocacia, por ferir os princípios constitucionais da isonomia e da celeridade processual garantida a todos, foi corretamente declarado inconstitucional de forma incidental, permitindo-se, assim, a condenação da advogada, o que, aliás, encontra-se em consonância com o entendimento jurisprudencial do E. STJ colacionado no decisum, ao qual se reporta como razão de decidir. Por outro lado, não se faz apropriada a majoração de sobredita condenação. O valor a que condenados os litigantes é suficiente ao intuito do instrumento, de modificação da atuação processual das partes. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantida a r. sentença por seus próprios fundamentos (...)”. 7 A condenação do advogado em lide temerária não é vedada por qualquer disposição do Código de Processo Civil, que, ao contrário, impõe os deveres de probidade e lealdade às partes e “a todos aqueles que de qualquer forma participam do processo” (art. 14) e responsabiliza “autor, réu ou interveniente” que “pleitear de má-fé” (art. 16). A expressão “a todos aqueles que de qualquer forma participam” lembra, e parece não ser obra do acaso, a fórmula prevista no art. 29 do Código Penal, cujo sentido e alcance são por demais conhecidos dos profissionais do direito. Daí decorre que qualquer interpretação dos arts. 14 a 18 do Código de Processo Civil tendente a elidir a responsabilidade advocatícia pelas condutas abusivas e desleais, sob o fundamento de ausência de previsão expressa quanto à figura do advogado, parece, s.m.j., partir de um sofisma, porquanto diante de cláusula genérica que se destina a todos que participam do processo (Código de Processo Civil, arts. 14 e 16), o que se exigiria para a exclusão do advogado seria, ao contrário do que se supõe, a previsão expressa de sua imunidade. Entender-se de outro modo, permissa venia, significa conferir maior proteção ao litigante de má-fé (por vezes responsável único pela eternização dos litígios) do que aquela que se empresta a quem concorre para um crime, muito embora em dadas hipóteses as situações se equivalham, como, por exemplo, no caso de fraude processual (Código Penal, art. 347). Ademais, a responsabilização do profissional da advocacia tem previsão expressa no Estatuto da Ordem dos 8 Advogados do Brasil (art. 32, § único da Lei nº 8.906/94 - “em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente”) e o tópico final do dispositivo (necessidade de ação própria, que gera a repetição imotivada de atos processuais) parece incompatível com a ratio da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, de modo a não mais subsistir na ordem jurídica vigente qualquer empecilho para que aja o magistrado de acordo com sua convicção e senso de justiça, com a consciência de que, com isso (responsabilizando pelo malfeito o seu autor), contribuirá para que a razoável duração do processo deixe de ser apenas uma cláusula pétrea e ganhe contornos de realidade. Márcio Estevan Fernandes – Juiz de Direito 9