4.º CURSO DE FORMAÇÃO PARA JUÍZES EM DIREITO DA CONCORRÊNCIA (INSTITUTO EUROPEU, IDEFF, CEJ) SESSÃO DE ENCERRAMENTO MARIA JOÃO MELÍCIAS LISBOA, 2 DE JUNHO DE 2015 Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Sr. Juiz Conselheiro António Silva Gaspar Senhor Presidente do IDEFF, Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira, Senhores Magistrados, Minhas Senhoras e Meus Senhores, Introdução Começo por felicitar o Instituto Europeu e o IDEFF (o Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal) da Faculdade de Direito de Lisboa, bem como o CEJ (Centro de Estudos Judiciários), por mais esta oportuna e bemsucedida organização do Curso de Formação para Juízes em Direito da Concorrência da União, que já vai na sua quarta edição. Quero agradecer naturalmente o convite que foi endereçado à Autoridade da Concorrência para participar na sessão de encerramento. É com muito prazer que aqui me encontro hoje, na qualidade de membro do conselho de administração da Autoridade, até porque este curso, tal como as suas anteriores edições, constitui uma importante fonte de divulgação das regras de concorrência e um instrumento, por excelência, para a sua aplicação eficaz em Portugal. Portanto, um bem-haja aos organizadores por esta relevante iniciativa. Contributo da concorrência para o bem-estar dos cidadãos e para o crescimento económico 1 Todos sabemos que a concorrência é fundamental para garantir a mais eficiente alocação de recursos, no interesse da maximização do bem-estar dos cidadãos, assim contribuindo para uma economia mais robusta e dinâmica, assente no crescimento sustentado. Mas não será apenas isso: No final de 2014, a Autoridade da Concorrência lançou uma campanha de sensibilização sobre as virtualidades da concorrência, sem precedentes a nível nacional, junto dos principais destinatários das regras – a comunidade empresarial. A AdC foi para o terreno, foi ao coração das empresas, percorrendo o país de Norte a Sul, com o intuito de disseminar uma literacia de concorrência junto do nosso tecido empresarial. A concorrência como questão de responsabilidade social e de cidadania Na retórica que utilizámos, procurámos transmitir uma mensagem da concorrência, não apenas como uma boa ideia do ponto de vista de eficiência económica – por contribuir para a competitividade e robustez das empresas, preparando-as para os desafios do mercado global – mas sobretudo como uma questão de responsabilidade social, como uma questão de cidadania. Sabemos que merecem hoje a reprovação dos portugueses situações como a evasão fiscal e como a corrupção. A sociedade é cada vez menos tolerante para com aqueles que distorcem as regras do jogo em seu benefício próprio, lesando a economia como um todo. De igual modo, também não se pode tolerar que as empresas se envolvam em práticas anticoncorrenciais, cartelizando-se para combinar preços ou dividir mercados ou que abusem do seu poder de mercado, porque quando o fazem, apropriam-se – na realidade, furtam – uma mais-valia que não lhes pertence, que é da sociedade, que é de todos e cada um dos cidadãos. Portanto, repito, pois é importante que tenhamos consciência disso enquanto aplicadores do direito, para além de uma questão económica, de eficiência, a concorrência é necessariamente também uma questão de responsabilidade social, uma questão de cidadania. Papel da AdC A Autoridade da Concorrência tem naturalmente um papel central a desempenhar no domínio da aplicação pública das regras de concorrência no território nacional. A sua principal missão passa justamente por prevenir, dissuadir e sancionar, de forma determinada e vigorosa devo 2 acrescentar, comportamentos anticoncorrenciais, tendo como objetivo último a criação de incentivos para que as empresas rivalizem entre si, através do mérito, da eficiência e da inovação – i.e., afinal, promover uma cultura de concorrência. Mas, como todos sabemos também, a AdC não está só neste campeonato da promoção de uma cultura de concorrência (aquilo a que também por vezes chamamos advocacy). A AdC está empenhada no diálogo interinstitucional a este respeito e consciente da necessidade de fomentar a participação de todos os stakeholders neste ciclo virtuoso – empresas, cidadãos, academia, advogados, outras entidades públicas e, claro está, tribunais. Papel dos tribunais E aos tribunais cabe essencialmente um duplo e exigente papel neste domínio: Por um lado, controlam o chamado enforcement público – ou seja, controlam a atuação da própria Autoridade da Concorrência (em particular, através do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, sediado em Santarém, e da Relação de Lisboa, enquanto instância de recurso); e, por outro lado, compete aos tribunais dirimir litígios de natureza privada quando estes coloquem questões de concorrência, designadamente, mas não só, em matéria indemnizatória. Uma rápida palavra sobre cada uma destas vertentes. No que respeita ao controlo judicial da aplicação pública do direito da concorrência (i.e. o controlo judicial das decisões da autoridade): A criação de um tribunal especializado que teve lugar em 2012 era algo já muito reclamado pela comunidade jurídica, tendo em conta o grau de complexidade e a tecnicidade jurídico-económica que estas matérias normalmente suscitam. Devo sublinhar que o Tribunal de Santarém tem tido uma atuação profícua e exemplar, atendendo à magnitude e importância dos casos que é chamado a resolver e aos meios de que dispõe. Convém não esquecer que lhe cabe a exigente responsabilidade de julgar sobre medidas com um potencial impacto estratégico sobre o funcionamento da economia 3 nacional (ou mesmo transnacional), para além do mérito de sanções de múltiplos milhões de euros. Por isso, é de toda a conveniência que a especialização formal do Tribunal de concorrência que foi já conquistada, e bem, seja também acompanhada da especialização efetiva ou material, em termos de experiência e knowhow dos magistrados que o compõem. E creio que este resultado poderá ser alcançado se houver algum grau de permanência, de estabilidade nos respetivos quadros. Neste sentido, será também importante a criação de incentivos à atração de magistrados com a experiência e maturidade requeridas pela função, o que se faz, por excelência, através da consagração de um estatuto remuneratório consentâneo com essa responsabilidade. Seria igualmente de toda a utilidade que o Tribunal pudesse contar, ainda que ocasionalmente, com uma assessoria técnica especializada sobretudo em ciências jurídico-económicas ou outras, destinada a apoiar o exercício da função judicial (como de resto o contempla a própria Constituição, nos termos do seu artigo 207.º, n.º 31). Outro aspeto importante e que a todos preocupa é o da celeridade das nossas decisões (leia-se, das da Autoridade da Concorrência e dos Tribunais). A Autoridade está empenhada em reforçar a robustez jurídica das suas decisões, para que passem with honours pelo escrutínio judicial, mas também em conferir a adequada celeridade às suas investigações, para que, designadamente, se evitem a todo o custo situações de prescrição, nomeadamente na fase judicial (seja em Santarém, seja a nível da Relação), com todas as consequências nocivas daí decorrentes, em termos de efeitos de dissuasão ou prevenção geral (ou seja, para que não se corra o risco de disseminar no mercado um sentimento de impunidade relativamente a práticas anticoncorrenciais quando uma decisão sancionatória acaba por prescrever). Este objetivo exige o empenho e a dedicação de todos. No que à AdC respeita, excecionados os casos, devidamente fundamentados, de extrema complexidade, as investigações da Autoridade devem ser legalmente concluídas num total de dois anos e meio. De notar que a litigância que frequentemente se segue a uma decisão sancionatória é naturalmente saudável, desejável e inerente ao Estado de O qual autoriza, a propósito do exercício da função jurisdicional, que a lei estabeleça “a participação de assessores tecnicamente qualificados para o julgamento de determinadas matérias.” 1 4 Direito. Mais do que isso, na nossa opinião, o processo de controlo judicial é uma oportunidade de enriquecimento e aprendizagem mútua que leva a uma melhor aplicação para o futuro do direito da concorrência. Portanto, sendo caso disso, importa que as nossas decisões sejam anuladas ou corrigidas se forem merecedoras de reparo, mas também é crucial que se condenem exemplarmente as empresas infratoras quando as infrações se dão por provadas. E sobretudo que se evite que investigações que demoraram vários anos a concluir, à custa de avultados investimentos de meios e recursos, públicos e privados, ou seja, com significativos custos administrativos para a sociedade em geral, acabem da forma mais inglória, i.e. acabem por ”morrer na praia” por prescrição. Passando à vertente privada da aplicação do direito da concorrência (“private enforcement”) sobre a qual se concentrou compreensivelmente o programa deste curso de formação: Como tiveram oportunidade de discutir, foi recentemente aprovada a Diretiva da União sobre ações de indemnização por danos causados por infrações às regras de concorrência. Private vs public enforcement Um dos seus objetivos passa por justamente procurar garantir uma articulação equilibrada e sinergética entre a aplicação pública e privada do direito da concorrência, que, em Portugal, cabem, como vimos, primordialmente, à Autoridade da Concorrência e aos tribunais. Esta articulação é fundamental para nós. O private enforcement também pode ter um papel determinante na disseminação e consolidação de uma cultura de concorrência. A Autoridade da Concorrência sabe que a aplicação pública e privada das regras de concorrência – como, de resto, constatou desde há muito o Tribunal de Justiça da União, no famoso acórdão Courage c. Crehan – são necessariamente complementares na prossecução do objetivo de dissuasão ou prevenção de comportamentos anticoncorrenciais, em prol da maximização do bem-estar geral. Estamos por isso naturalmente empenhados em apoiar o desenvolvimento do “private enforcement” e a prestar assistência, dentro do âmbito legal das nossas competências, a todos os lesados, i.e. a todos os que, tendo sofrido 5 um dano em resultado de uma infração ao direito da concorrência, se dirijam ao tribunal para pedir uma compensação por esse dano. Esta assistência da Autoridade pode, por exemplo, assumir a forma de uma intervenção no processo a título de amicus curiae. Mas estamos também empenhados em garantir que do desenvolvimento da aplicação privada do direito da concorrência não resultem prejuízos para a nossa atividade sancionatória. É esse um dos objetivos da Diretiva e uma das nossas principais preocupações neste domínio. Em particular, estaremos vigilantes para que que alguns dos mais importantes instrumentos de investigação de que dispomos, como o programa de imunidade e a transação, não se tornem menos atrativos para as empresas por força do private enforcement. Ou seja, é fundamental, antes de mais, que o nosso programa de imunidade ganhe suficiente tração, que saia definitivamente do papel e vá para o terreno (como felizmente a realidade tem vindo a mostrar nos últimos tempos – pelo que é de toda a importância que esse ímpeto não seja travado). Reparem que todos temos interesse em que isto suceda, ou seja, os interesses dos “public” e “private enforcers” são necessariamente convergentes, pois um lado não vive sem o outro. O próprio “private enforcement” será prejudicado se a atuação da Autoridade da Concorrência vir a sua eficácia diminuída. Em contrapartida, quanto mais frequente e robusta for a atividade sancionatória da Autoridade da Concorrência, mais oportunidades terão os potenciais lesados para intentarem e fundamentarem as suas ações indemnizatórias. Pela parte que nos toca, a Autoridade colocará todo o empenho em continuar a assegurar uma aplicação vigorosa do direito da concorrência, sobretudo no que respeita à atividade sancionatória, certa de com isso beneficia a aplicação pública, mas também a aplicação privada da concorrência em Portugal, no interesse de todos. Papel da AdC na transposição da Diretiva A Autoridade acompanhou de resto muito de perto, ao longo dos últimos anos, o processo de aprovação da Diretiva, tendo participado ativamente nas respetivas negociações. Neste momento, tem justamente a seu cargo a 6 coordenação dos trabalhos de transposição para o ordenamento jurídico nacional. A esse respeito, queremos que o processo de transposição seja aberto, transparente e participado. Os trabalhos de transposição terão alguma complexidade, pelo que o resultado final será tanto mais rico e informado quanto mais contributos recolher, sobretudo de vários quadrantes/stakeholders. O “input”, em especial, da magistratura, será naturalmente precioso, pois são os tribunais quem melhor do que ninguém saberá identificar as eventuais dificuldades que a aplicação da Diretiva poderá suscitar no terreno, na adaptação das soluções nela previstas ao nosso sistema legal e à nossa cultura jurídica. Portanto, lanço-vos desde já esse convite e desafio, manifestando todo o nosso interesse em recolher os vossos contributos – quer da academia, quer da magistratura, judicial e do ministério público –, para a reflexão e discussão das questões que a transposição possa suscitar. Wrap up Para concluir, quero reiterar que contamos com o vosso empenho para uma aplicação cada vez mais efetiva do direito da Concorrência em Portugal. A relação que mantemos quotidianamente com os tribunais – seja no âmbito do controlo judicial das nossas decisões, seja no domínio da aplicação privada do direito da concorrência – é feita num ambiente de salutar litigância, de cooperação e, sobretudo, de aprendizagem mútua. Porque, afinal, do que se trata é de fazer chegar o mais longe possível os benefícios do processo competitivo, cientes de que ao aplicar com rigor as regras de concorrência em Portugal estaremos a proteger a economia, a sociedade, ou seja, o bem-estar de todos. Muito obrigada pela Vossa atenção. 7