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INIBIÇÃO, SINTOMA E FPS
Cristiane Elael
Sabemos que, antes dos 6 meses, o bebê ainda tem de seu corpo a idéia de uma
imagem despedaçada. Suas relações com um outro diferenciado dela mesma, ou seja,
suas relações objetais, não estão ainda estabelecidas. É entre os 6 meses e os 18
meses que a imagem do corpo se determina. O estádio do espelho, segundo Lacan,
esboça a evolução do bebê em direção à autonomia e à sua posição de sujeito, ao seu
eu, um eu, antes de tudo, corporal. O eu, portanto, é constituído pela imagem que o
outro lhe confere como corpo unificado, unidade esta que é totalmente imaginária. Essa
imagem primeira do sujeito corresponde ao eu ideal, através do qual o sujeito se
apreende como humano.
A formação do eu através da imagem do outro, do seu duplo especular, dá à sua
subjetividade sua característica bipolar: um eu nunca está só, estando sempre
acompanhado de seu duplo especular, o eu ideal.
Um investimento próprio do estádio do espelho foi chamado por Freud de
narcisismo primário.
No momento jubilatório em que o bebê se assume como totalidade através da sua
imagem especular, através desta experiência inaugural de reconhecimento no espelho,
a criança se vira para aquele que a segura, que está atrás dela no espelho, que aqui
representa o Outro, para obter sua confirmação, para lhe demandar a aprovação do
valor desta imagem - é este o índice da ligação da relação ao Outro à função da imagem
especular.
Quando Freud introduz o conceito de inibição, ele o toma pela dimensão do
movimento, ele fala de locomoção.
Para Lacan, movimento existe em toda função e na inibição se trata de uma
parada, uma freada no movimento. No eixo das coordenadas “nível de dificuldade” e
“movimento” no grafo que Lacan apresenta no seminário “A Angústia”, a inibição está no
ponto zero, ou seja, nenhuma dificuldade, nenhum movimento, nenhuma angústia.
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Nos sujeitos inibidos
há um impedimento. Estar impedido, diz Lacan, é um
sintoma, e estar inibido é um “sintoma de museu”. Estar impedido
no sentido
etimológico, é “estar preso numa armadilha”, o que implica a “relação de uma dimensão
a alguma coisa do outro que aí vem interferir” e que nos indica não mais somente a
inibição da função, termo de referência ao movimento zero, mas o sujeito.
O impedimento é conseqüência da armadilha, e esta armadilha é uma captura
narcísica, o que nos remete de volta ao estádio do espelho. Esta captura narcísica é o
limite do que se pode investir no objeto. Seu resto, o que não chega a ser investido, é o
que dará o seu suporte, seu material significante que apela à castração.
A forma de castração na estrutura imaginária é feita ao nível da fratura que se
produz em algum momento num certo drama imaginário. É isto que faz a importância da
cena chamada por isto traumática. Há aí toda espécie de variações, anomalias possíveis
nesta fratura imaginária, indicativa do material utilizável para a manutenção da função do
Outro. O impedimento que sobrevem estaria ligado ao circuito que faz com que , ao
mesmo tempo em que o sujeito avança em direção ao gozo, em direção ao que está o
mais longe dele, ele encontre um resto, uma fratura íntima bastante próxima deste
mesmo gozo que o deixa ser capturado na sua própria imagem, a imagem especular,
imagem fantasmática equivalente ao desejo do Outro.
No FPS, a hipótese é que haveria uma falha no início do estádio do espelho,
como uma espécie de armadilha. Isto levaria o sujeito a “completar” sua imagem ainda
vacilante com o revestimento de um pedaço do corpo do outro. Assim, o FPS seria a
colocação em ato de uma espécie de enxerto imaginário que tem por efeito produzir a
lesão, nó de inércia dialética, que testemunha e envia a uma zona pulsional erógena de
um outro corpo, qual suplência orgânica de uma falha surgida no campo simbólico. O
sujeito, então, traçaria sobre seu corpo, por uma escrita particular, a história singular, a
tragédia, de um outro corpo, lesão esta que teria como fonte a relação entre o Outro e a
criança nos primeiros meses de vida.
O FPS é, assim, uma escrita mais do que uma palavra. Algo está escrito, tal como
no sintoma, isto é um ponto comum entre os dois.
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Quando Freud fala da fixação, ele aponta que o corpo se deixa levar a escrever
algo da ordem do número. A fixação não se aplica especialmente ao FPS, mas, sim, ao
ternário palavra-corpo-escrito. A questão do FPS se colocaria, então, mais ao nível do
gozo, um gozo específico, diferente do gozo do sintoma, gozo fálico, gozo do
significante, formação de compromisso aonde o desejo encontra uma forma de
satisfação.
No FPS, então, algo está escrito, mas não o sabemos ler, é um escrito que é feito
para não ser lido. Isto não o define como legível ou não. O que ocorre é que o analista
não encontra aí o “sentido daquilo de que se trata” (C.Soler). Uma escrita ilegível
exigiria, então, do analista um desejo, um empenho em tornar decifrável esta “escritura
na qual a legibilidade está em processo de parto” (C.Soler). Ler aqui equivale a
encontrar o sentido, o sentido que descongelaria o UM da holófrase.
A holófrase, para Lacan, é a gelificação de algumas seqüências significantes que
não são decompostas em partículas-significantes que possam servir ao deslizamento da
cadeia propiciando a construção e surgimento de outras seqüências significantes. Este
congelamento significante se dá a nível do corpo, produzindo uma lesão compacta que
impede a queda do objeto e a perda de gozo.
Se o sintoma é dialetizável, ou seja, obedece às leis da linguagem e do
inconsciente, o FPS pode ter a dimensão de algo que se mostra. Fenômeno vem do
grego phainómenon: aquilo que aparece. O FPS é, portanto, uma mostração. Ele não é
produto da estrutura do sujeito. Ele se desenvolve apesar dela. É a posição do sujeito
em relação ao gozo do Outro que determina a eclosão do FPS.
Tanto no sintoma quanto no FPS existe uma inércia, um gozo que se opõe ao
deslizamento, que resiste à interpretação. Tanto do sintoma quanto do FPS, o sujeito
retira um gozo do qual sofre, do qual se queixa, mas do qual não deseja se abster. É
para um além do princípio do prazer, um usufruto inútil, mas difícil de ser
desestabilizado. Freud estava convencido de que o ser humano só renuncia a algo se aí
houver uma troca por outra coisa. No FPS, a invenção do inconsciente poderia
possibilitar a troca do gozo do Outro pelo gozo do sentido. O homem pensa com a ajuda
das palavras. Este é o registro do simbólico. E é no encontro do corpo com as palavras
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que surge algo referente ao sentido. O homem está capturado pela imagem de seu
corpo e constrói seu mundo à imagem e semelhança deste corpo.
Se no sintoma, a estrutura de metáfora implica o deslizamento significante, ou
seja, ele é suscetível de mudar de sentido, no FPS, a holófrase reduz o par significante
S1-S2 a UM, marcador de gozo, gozo do Outro. No FPS, então, o efeito do significante é
suportado sob a forma de escravidão. Vivido de um modo particular, o significante não é
o que permite a humanização, ele é o que reforça a servidão humana. O sujeito está
capturado, aprisionado no UM da holófrase, não havendo intervalo significante para a
sua emergência.
O Outro do sujeito portador de um FPS é um Outro desumano, que exige o que
ninguém poderia suportar. Por isso, as lesões psicossomáticas são freqüentes nas
prisões, nos tempos de guerra e bombardeios, ou em sujeitos criados em orfanatos. Isto
ocorre pela insuficiência da metáfora paterna para barrar o gozo do Outro .
Naqueles que buscam uma análise, são precisos, às vezes, muitos anos de
entrevistas para que uma verdade seja assimilada, para que o insuportável seja
admitido. Todos falam de si mesmos na terceira pessoa, fraseados impessoais que
remetem não a elas mesmas, mas, a uma situação objetiva. Assim, o sujeito parece
ausente da enunciação, efeito da falta de intervalo significante, preso num gozo
anônimo, gozo extremo e insuportável, mesmo que este gozo seja apenas uma ameaça
irrealizável.
O que se pode afirmar é que no FPS não se pode ignorar que há uma relação
crucial a um objeto que parece ter uma função importante no seu aparecimento. Este
objeto seria a mãe? Seria o pai? Como se deve atentar para a singularidade de cada
caso e como cada um acentua tanto um quanto o outro, não se trataria tanto de saber a
que personagem da história o sujeito se refere, mas, sim, a que Outro? Certamente, não
é o Outro do desejo, como já vimos. É um Outro gozador e cruel, algoz do significanteadicto.
O que o FPS incrustra, pois, é um traço do gozo do Outro, gozo imposto
(P.Valas), gozo específico (Lacan). Daí que, se o sintoma é uma insígnia do sujeito, o
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FPS é “um estigma do Outro, no corpo como Outro, no corpo que o sujeito diz que é o
seu”.(C.Soler )
O corpo é uma tela sobre a qual se projetam lembranças. Uma dor antiga,
“esquecida”, pode reaparecer no presente sob diferentes formas, dentre as quais um
FPS.
Se o sintoma faz viver, o FPS tem uma evolução desconhecida: sua irrupção ou
agravamento pode colocar em risco a vida do sujeito. Diferente do sintoma, que provoca
o deslizamento significante, o FPS produz uma paralisação que pode nos sugerir uma
articulação com a pulsão de morte. Segundo um dos destinos da pulsão: o retorno sobre
a própria pessoa. Neste retorno, o eu experimenta a dor e goza ao sofrê-la. O que se
observa é que ele pode ser induzido por uma palavra: uma palavra pode fazê-lo
desaparecer, ou pode agravá-lo, o que leva a crer que as lesões sejam sensíveis à
linguagem, por isso permeáveis à psicanálise.
No texto “Uma Introdução ao Narcisismo”, Freud trata da influência da doença
orgânica sobre a distribuição da libido. Ele aí diz que ocorre uma retirada do
investimento libidinal dos objetos, uma espécie de represamento da libido de volta ao eu,
ocasionando uma modificação na economia pulsional. Uma doença orgânica poderia
produzir o abandono da neurose e serviria para a manutenção de certa dose de
sofrimento, tendo como finalidade o masoquismo.
O FPS, porém, não se caracteriza somente por ser uma lesão ou uma doença
orgânica. Ele se diferencia de uma lesão puramente orgânica porque apresenta
surgimento,
mobilizações,
desaparecimento
e
agravamento
em
função
de
acontecimentos determinados ou datas específicas, tendo, pois, uma causalidade
significante. Assim, seu aparecimento-desaparecimento pode, por exemplo, ocorrer em
função da proximidade ou afastamento físico ou mental de um objeto preciso. C. Soler
nos propõe que é como se o intervalo de irrupção ou remissão do FPS respondesse a
uma espécie de fort-da do objeto.
No FPS, há uma lesão corporal que não permite uma associação com nada e
nem elaboração com coisa alguma. O sujeito sofre uma lesão que não só vem de fora,
como faz daquele setor do corpo algo que pertence ao Outro. É bem radical, é uma
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espécie de fracasso na configuração narcísica : existe algum setor no corpo que não faz
parte da superfície corporal em que Freud define o eu. Isto quer dizer que justamente
esta alteridade nos parece que somente poderia ser tratada analiticamente se passasse
por uma interpretação que o sujeito faz da suposta fantasia do Outro . O órgão lesado
deixaria de ser o órgão lesado do Outro e passaria a ser o desejo do Outro pelo meu
órgão lesado.
O FPS corresponde , então, a um órgão do Outro no corpo do sujeito. O que
afeta o sujeito é a total ignorância que este tem em relação a este corpo Outro que está
ferido e que é seu corpo.
Enquanto o órgão “doente é do Outro, é evidente que o sujeito não tenha nada a
dizer a respeito disso, podendo até morrer, ,porém, calado . Se o órgão “doente”, porém,
implica no desejo do Outro, o sujeito pode questioná-lo, não tendo necessariamente que
sofrer passivamente.
Lacan fala de fenômeno “epistemossomático”, ou seja, a incidência no soma do
saber inconsciente. Ele desmitifica a culpabilização
do sujeito e descarta a
psicologização. O estudo da psicossomática, então, nos remete às relações entre a
linguagem, entre o “ inconsciente estruturado como uma linguagem”, e as funções
biológicas do corpo. É este o desafio!
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Bibliografia:
•Freud,S. 1914 “Uma Introdução ao Narcisismo” In: Obras completas, Imago Ed.
RJ, 1976
•Lacan, J. 1962/63. Sem. X, “A Angústia”. Jorge Zahar Ed. RJ
•Soler, C. - “Retorno sobre la cuestión del sintoma y del FPS” In: Estúdios de
psicosomática ,vol2. Buenos Aires, Atuel-Cap, 1978, p. 53-60.
•Guir, J. - A psicossomática na Clínica Lacaniana - RJ, Jorge Zahar Editor, 1988.
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