acima de tudo, o amor Sem Amor, tudo passa a nada Tenho à minha frente algumas páginas livres para fazer o elogio do Amor. Parece-me que vou a tentar meter a imensidão das águas do oceano numa minúscula chávena. Mil e uma páginas seriam ridiculamente insuficientes. Baste considerar o facto de que o Amor é tudo o que Deus é. Além disso, o Amor é tudo o que podemos aspirar e ser de grande, belo, verdadeiro e bom... Estou escrevendo a palavra Amor, sempre com letra maiúscula. É um pequenino sinal para o distinguir das falsas imitações do verdadeiro Amor. Há tantas «notas falsas» em circulação, prometendo fortunas de amor que nada valem. São egoísmo disfarçado de amor, mas no fundo não passam de ganância, prazer, egolatria, erotismo, vaidade, poder... Costuma-se chamar ao Amor, à Caridade, a pérola das virtudes. Mas isso é dizer pouco. O Amor é a única vitamina essencial que a tudo dá saúde. É o fermento que leveda qualquer massa, po mais pobre que seja. è a seiva que dá vitalidade a qualquer ramo seco. É a virtude que torna virtuosa todas as demais virtudes. Sem o Amor, tudo se reduz a nada, como recorda o apóstolo Paulo: «Ainda que falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade sou como o bronze que soa ou o címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até ao ponto de transportar montanhas, se não tivesse caridade não seria nada. E ainda que eu distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, nada me aproveitaria» (1 Cor 13,1-3). Em qualquer dimensão humana, em qualquer virtude, só o Amor é que dá valor a todas as coisas. Sem Amor, nada há com jeito nem valia; qualquer coisa, por melhor que pareça, não passa de uma falsificação ou degenerescência. Assim conclui Santo Agostinho: «Reuni todos os outros bens. Se falta o Amor, não vos servem de nada» 1 . Por exemplo, a alegria sem Amor, passa a ser gracejo de mau gosto; a prudência acaba por equivaler a calculismo; a generosidade degenera em exibicionismo; o bom humor corrompe-se em cinismo trocista; a justiça passa a ser impiedosa e cruel; a fidelidade vira a legalismo; o bom humor corrompe-se em cinismo trocista; a justiça passa a ser impiedosa e cruel; a fidelidade vira a legalismo; a coragem degenera em espectacularidade; a misericórdia confunde-se com permissivismo; a pureza muda-se para farisaísmo; a serenidade transforma-se em passivismo... Sem Amor, morre tudo o que há de bom sobre a face da terra. Ir deliberadamente contra o Amor é um crime tão grave que S.João o qualifica de homicídio: «Aquele que não ama permanece na morte. Todo aquele que odeia seu irmão é homicida » (1Jo 3,15). Por outro lado, o Amor é tão poderoso que até nos faz ressuscitar: «Sabemos que passámos da morte à vida porque amamos os irmãos» (1 Jo3,14). Tudo o que não vai na linha do Amor, mas do egoísmo, é anti-natural, «uma espécie de suicídio psicológico e teológico»2 que contraria a nossa mais profunda raiz em Deus-Amor, à imagem e semelhança do qual somos criados (cf. Gn 1, 27). Deixar de amar é condenar-se à morte, um atentado contra a pr´pria vida. Mas «o Amor é forte como a morte» (Ct 8,6); tão forte que até os mortos ressuscita... 1 2 Santo Agostinho, sobre a 1ª carta de S. João, VIII, 12. Alonso, Severino-María, Amistad y consagración en la vida religiosa, Publicaciones Claretianas, Madrid, 1989, p.17. Só o Amor Liberta Quem não ama fecha-se na prisão da sua frieza ou desprezo, ressentimento ou raiva, ódio ou vingança... Tudo o que não é amor nos sequestra de nós mesmos, da nossa identidade mais profunda. Não amar é desidentificar-se, ser menos do que se é, adulterar a própria fonte donde nascemos; não amar é transformar a mais revigorante das vitaminas num veneno altamente perigoso. Não é verdade que, quando deixamos entrar dentro de nós sentimentos de desamor ou ira, ficamos alterados, a ponto de nem parecermos a mesma pessoa? O ódio muda a nossa personalidade, torna-nos outros, imensamente piores... Sabem qual o campo de concentração mais terrível de toda a história da humanidade? Pior ainda que os iventados pelo nazismo ou pelo comunismo, ou por qualquer impiedosa ditadura de direita ou de esquerda, nalgum dos continentes do planeta Terra? O pior de sempre é o Campo de Concentração de Egoísmo, déspota tirano que ainda hoje aprisiona pessoas sem conta, em desumana e anti-divina escravatura, com as luvas brancas das aparências de qualquer tipo libertinagem enganosa. É, pois, necessário libertar a liberdade de tudo o que não é Amor. Como recorda o apóstolo Paulo: «Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; mas não façais desta liberdade um pretexto para viver segundo a carne, mas servi-vos uns aos outros pela caridade, porque toda a Lei se encerra num só preceito: Amarás o teu o próximo como a ti mesmo» (Gl, 13-14). Só quem ama é verdadeiramente livre. O Amor é o único caminho para chegar à liberdade plena. Os outros caminhos não passam de becos sem saída. Por vezes, dão a aparência de ser auto-estradas de luxo, mas não nos conduzem para a meta da verdadeira felicidade. Santo Agostinho, que conheceu tanto a ilusória como a genuína liberdade, assim se exprime magistralmente: «Uma vez por todas, te é dado este breve preceito: Ama e faz o que quiseres. Se te calas, cala-te por amor. Se falas, fala por amor; se corriges, corrige por amor; se perdoas, perdoa por amor. Tem no fundo do teu coração a raiz do amor: desta raiz não pode sair senão o bem»3 . Um modo certo de verificar se uma nossa amizade é como Deus manda, é examinar se nessa relação se respira o oxigénio da liberdade. Ora, «Amar é querer eficazmente o 3 Santo Agostinho, sobre a 1ªcarta de S. João, VII,8. bem para alguém»4, segundo recorda o Santo Doutor Tomás de Aquino. Faz parte fundamental deste querer eficazmente o bem a um amigo, o dar-lhe toda a liberdade possível, pois só na liberdade se pode amar. Um robot perfeitíssimo, fruto da mais avançada tecnologia, nunca poderá amar, porque desconhece o que é a liberdade. Po alguém justamente observou que «o amigo nunca é, propriamente falando, um campo de aterragem e, muito menos ainda, campo de concentração, mas rampa de lançamento, pista de voo e impulso vital de ascensão» 5 . Dar vivas à liberdade é festejar o Amor. É que «o amor é o cerne da nossa liberdade»6. Em amorosa anarquia, exclamemos: - O Amor ao poder! Ama e faz tudo quanto queiras! O Amor diviniza-nos O mais excelente e sublime dos elogios que se podem fazer ao Amor é que o próprio Deus infinito, o Absoluto omnipotente, é o Amor total. Quando o apóstolo e evangelista S. João afirma repetidamente: «Deus é Amor» (1 Jo 4,8.16), está a canonizar o Amor humano, elevando a nossa capacidade de amar às alturas do próprio Deus. Amar é o exercício da nossa divinização. Ao sublinharmos que «Deus é Amor», poderá parecer que se trata de um dos muitos atributos de Deus, de mais uma nota positiva do Ser absoluto. Mas não. É que a sabedoria, o poder, a glória, a magnificência, a providência de Deus seriam não divinas se não fossem amorosas. O Amor é que dá qualidade divina a todas as coisas, também nas nossas vidas. Por isso afirma um autor contemporâneo: «Deus não é senão amor» 7. Tudo o que Deus é, tudo o que Deus sabe e quer, tudo o que Deus faz e pode é Amor. Quem é que podemos considerar mais especialista no conhecimento de Deus? Qual o teólogo mais profundo? Quem alcançará o recorde olímpico na ciência de Deus? Exactamente aquele homem ou mulher que mais e melhor sabe amar. «Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque 4 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 20.2; I-II, 26,4... Alonso, Severino-María, Amistad y consagración en la vida religiosa, p. 50. 6 Varillon, François, Alegria de Crer e de Viver, Editorial A. O, Braga, 1996,p.273. 7 Varillon, François, Alegria de Crer e de Viver, p. 38. 5 Deus é Amor» (1 Jo 4, 8). Deus conhece-nos, amando-nos. È este profundíssimo conhecimento que é o horizonte do nosso progresso: exercitar a mais sublime das ciências, que é a do Amor para com Deus e para com os nossos irmãos. O cristianismo resume-se num único preceito, o mandamento do amor, a Deus e ao próximo, numa dinâmica de plenitude, ou seja, com todo o coração, entendimento e forças, empenhando todas as nossas capacidades para amar /cf. Lc 10,27). O próprio Filho de Deus, na plenitude dos tempos, «Jesus amou com um coração de homem» 8. Quer dizer que, no mistério da sua encarnação, Deus divinizou o nosso amor humano. Tendo que pôr ponto final, constato que consegui dizer tão pouco e que ficou imenso por expressar. Sinto o dever de pedir perdão ao Amor, a virtude das virtudes, por a deixar tão mal parada Sinto que apenas consegui retratar a sua sombra, tão longe fiquei da realidade. Parece que somente pus a chave na entrada de um prédio imenso, o maior dos arranha-céus. Fiquei nos átrios do rés-do-chão de um elevador que nos conduz à profundidade da altura do coração do próprio Deus. Se a sombra do Amor é já uma maravilhosa obra de arte, o que não será o próprio Amor? Caríssimo leitor, se este texto despertou o desejo de ir mais longe no caminho que leva ao sentido … à vida… ao amor… à felicidade… ao encontro do Rosto do Deus de Jesus Cristo convidamo-lo a ler a obra da qual o trecho foi retirado: Viver com qualidade Manuel Marujão 8 Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, n. 22.a