UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DANIELA SANT' ANA
TRANSFORMAÇÕES EM UMA COMUNIDADE CAMPONESA DO LITORAL
SUL DO PARANÁ: TERRITORIALIDADE, ESTRATÉGIAS DE
RESISTÊNCIA, PRÁTICAS MATERIAIS E PARENTESCO
CURITIBA
2012
DANIELA SANT' ANA
TRANSFORMAÇÕES EM UMA COMUNIDADE CAMPONESA DO LITORAL
SUL DO PARANÁ: TERRITORIALIDADE, ESTRATÉGIAS DE
RESISTÊNCIA, PRÁTICAS MATERIAIS E PARENTESCO
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de mestre em
Sociologia, no Programa de Pós
Graduação em Sociologia, no Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Profº Dr. Dimas Floriani
CURITIBA
2012
Catalogação na publicação
Fernanda Emanoéla Nogueira – CRB 9/1607
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR
Sant’Ana, Daniela
Transformações em uma comunidade camponesa do litoral sul do
Paraná : territorialidade, estratégias de resistência, práticas materiais e
parentesco / Daniela Sant’Ana – Curitiba, 2012.
198 f.
Orientador: Prof. Dr. Dimas Floriani
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Setor de Ciências Humanas da
Universidade Federal do Paraná.
1. Litoral do Paraná – Mudança social. 2. Camponeses – Paraná.
3. Famílias – Costumes - Guaratuba (PR). 4. Parentesco. I.Título.
CDD 303.4
DEDICATÓRIA
À Nika, à Aninha e aos meus pais, com amor.
AGRADECIMENTOS
Eu refletia sobre a razão de se colocar a parte dos agradecimentos no começo, se de fato ela
só acaba sendo escrita ao final, depois do processo todo. Concluí que agradecer pessoas
importantes por contribuições e presenças tão fundamentais não é pouca coisa e merece abrir
os caminhos da pesquisa.
São muitas pessoas para agradecer e começo pelos meus pais, Nilton e Magdalena, por
estarem por perto nessa fase controversa de dificuldade e de aprendizado, no contexto de
uma família que vive para o trabalho. Afinal, prolongar os estudos, sabemos, é para poucos,
ainda mais na universidade pública “que não é (era) lugar pra nós”. Minha irmã Sandra e
minhas sobrinhas Nika e Anna merecem um agradecimento especial, pela alegria dos nossos
reencontros. Com eles todos aprendi a importância da família de um jeito único, só nosso.
Agradeço à minha segunda família, Bernadete, David e Vic.
Aos amigos queridos Andrey, Patrício, Rodrigo, Keka, Genevive, Renato, Margit, Tia Karla,
pela diversão e pelas trocas sobre o dizível e o indizível.
O mundo fica mais lindo na companhia de vocês!
Famílias da Baía de Guaratuba que me receberam em suas casas e dividiram suas histórias,
admiráveis por resistirem às adversidades que chegam por todos os lados...
Anael e Larissa pelas trocas de ideias sobre sociologia e sobre a vida, ao longo dos nossos
estudos.
Membros e convidados do Conselho da APA de Guaratuba pela vivência e aprendizado sobre
os desafios da democracia participativa.
Pesquisadores e comunidades vinculadas à Rede Puxirão de Povos e Comunidades
Tradicionais do Paraná e ao PNCS, em especial aos cipozeiros do MICI e aos faxinalenses
da APF, que provam que um mundo mais justo é possível.
Professores Ademar, Francisco e Edmilson do MADE e Dimas, Simone, Tarcisa, Alexandro,
Mirian e Osvaldo da Sociologia, pelas aulas e questões que tanto me inquietaram e por tantas
janelas de conhecimento que abriram.
Agradeço em especial aos Professores Edmilson e Osvaldo, que fizeram leituras atentas e
ricas contribuições nas duas bancas, e ao Professor Dimas pelo processo de orientação. Foi
com eles que eu mais aprendi a aprender nos últimos anos.
Ao Reuni/ Capes pelo apoio financeiro sem o qual não teria sido realizada essa pesquisa.
E ao meu amado Bernardo agradeço pela paciência e pela generosidade, ele que me
acompanha às montanhas mais altas, nos dias mais lindos. E naqueles nublados também.
EPÍGRAFE
Nesse momento a população foi sacudida por um apito de
ressonâncias pavorosas e uma descomunal respiração ofegante.
Nas semanas anteriores viram-se grupos de trabalhadores que
colocavam dormentes e trilhos, mas ninguém prestou atenção
porque pensaram que era um novo artifício dos ciganos, que
voltavam com a sua secular e desprestigiada teimosia de apitos e
chocalhos apregoando as excelências de sabe Deus que
miserável panaceia dos xaroposos gênios hierosolimitanos. Mas
quando se recuperaram do espanto dos assovios e bufos, todos os
habitantes correram para a rua e viram Aureliano Triste
acenando, com a mão, da locomotiva, e viram assombrados o
trem enfeitado de flores que, já da primeira vez, chegava com
oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas
incertezas e evidências, e tantos deleites e desventuras, e tantas
mudanças, calamidades e saudades haveria de trazer para
Macondo.
(Gabriel García Marques, Cem Anos de Solidão)
[...] les plus grands ont aussi les plus grandes familles tandis que
lex “parents pauvres” sont aussi les plus pauvres en parents.
(Pierre Bourdieu, Les stratégies matrimoniales
dans le système de reproduction)
RESUMO
A literatura acadêmica caracteriza o Litoral do Paraná como um lugar com fortes
paradoxos, sob transformações de ordem política, cultural, econômica e ambiental. Os
sujeitos sociais que constituem o recorte empírico dessa pesquisa são vinte e quatro
famílias que habitam um Sítio situado no entorno da baía de Guaratuba, Paraná. O
objetivo que se colocou foi analisar em que medida as famílias são capazes de reelaborar
práticas de resistência diante do quadro heterogêneo de pressões e conflitos que se
apresenta. A pesquisa apontou fatores relacionados à formação social da comunidade em
transição como os modos familistas de apropriação do território e dos recursos naturais,
como a rede de parentesco e cooperação, formas organização do trabalho, regras de
casamento e movimentos migratórios, relações de subordinação a atores externos,
diversificação produtiva, em um processo bastante diverso e, portanto, multicausal
(econômica, política, cultural) obrigando cada família a elaborar arranjos de ação
próprios, individualizados, sem que signifiquem a desagregação do Sítio. Ao contrário,
foram a condição para sua permanência.
Palavras-chave: modernização do Litoral, camponeses paranaenses, familismo, conflito,
mudança social, (des-re)territorialização.
ABSTRACT
The literature features the Coast of Parana as a region with strong contradictions, where
intense political, cultural, economic and environmental changes took place. The empirical
study focused on twenty-four peasant families that live in a Sítio located in the
surroundings of Baía de Guaratuba, Paraná. The main objective was to analyze to what
extent the families are able to reformulate practices of resistance in a context of social
pressures and conflicts produced by those changes. The research pointed out that factors
related to the social formation of the group are in movement. One can mention for
instance the kinship territoriality, ways of labor organization, types of use and
appropriation of land and of natural resources, rules for marriage and dynamics of
migration, interactions with external social actors, diversification of wage and of
production, as a part of a diverse and multi causal process. The diversification of each
families’ projects did not mean that the group is bound to disappear. On the contrary, this
tendency provides their very permanence.
Key-words: Coastal modernization, peasants from Paraná, familism, conflict, social
change, (des-re)territorialization.
RESUMÉ
La Côte du Paraná est caracterisé dans la literature académique comme une région avec
de fortes contradictions, qui a récemment traversé des changements politiques, culturels,
économiques et environnementaux. Les acteurs sociaux que consituent la partie
empirique de cette recherche sont vingt quatre familles paysannes qui habitent un Sítio
situé dans les anvirons de la Baía de Guaratuba, Paraná. L’objectif principal était
d’analyser dans quelle mesure les familles peuvent reformuler les pratiques de résistance
dans un contexte de pressions sociales et conflits produits par ces changements. La
recherche a souligné que les facteurs liés à la formation sociale du groupe sont en
mouvement. On peut citer par exemple la territorialité de la parenté, modes d'organisation
du travail, les types d'utilisation et d'appropriation des ressources naturelles et du
territoire, les règles de mariage et la dynamique de la migration, les interactions avec les
acteurs sociaux externes, la diversification des salaires et de la production, dans le cadre
d'un processus de causalité diverse et multiple. La diversification des projets de chaque
famille ne veut pas dire que le groupe est appelé à disparaître. Au contraire, cette
tendance assure leur permanence.
Môts-clés: Modernisation des zones côtières, paysans du Paraná, familialisme, conflits,
changement social, (des-re) territorialisation.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...........................................................................................................11
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................17
1.1 Construindo a pesquisa................................................................................................17
1.2 O que a literatura nos diz?...........................................................................................25
1.3 Sobre o campo..............................................................................................................34
2 CONHECENDO O SÍTIO E OS SITIANTES: “AQUI É TUDO PARENTE!”.....42
2.1 Um retrato de família...................................................................................................42
2.2 Conflito, território e bem comum para falar de resistência e familismo.....................46
2.3 Nos meandros do território dos parentes.....................................................................55
3 TECENDO O BALAIO: ENTRE A PONTA E A VIZINHANÇA............................63
3.1 Os sitiantes e o Sítio em movimento: fracionamento das posses, sucessão masculina e
migração feminina.............................................................................................................63
3.2 Os irmãos da ponta, o turismo da pesca e a privatização das posses...........................69
3.3 O vínculo familista pela terra e pelo guajú: o declínio da lavoura de arroz e o
protagonismo da lavoura de mandioca..............................................................................77
3.4 A ambiguidade de uma outra territorialidade: entre a opressão e a oportunidade em
tempos de transição............................................................................................................83
3.5 A importância do plantio da mandioca e dos terrenos desde os antigos......................98
3.6 O guajú e a sua transversalidade nas práticas de reafirmação do familismo ............100
3.7 A transformação da mandioca na farinheira compartilhada.......................................111
3.8 Os tipos de pesca e a hierarquização das identidades produtivas..............................116
3.9 O tecido do cipó como coadjuvante, mas não menos importante..............................130
3.10 Velhas práticas e novos dilemas: a farinheira comunitária e os incentivos externos ao
associativismo..................................................................................................................134
3.11 A má distribuição e a lentidão na concessão de benfeitorias: mas não eram direitos?
..........................................................................................................................................142
3.12 Assalariamento municipal, identidades produtivas híbridas e falta de acesso à
cidadania..........................................................................................................................147
3.13 Auto-consumo, as mudanças e a cidade...................................................................155
3.14 Os primeiros passos para a regularização fundiária: o que fazer diante de arranjos
híbridos?...........................................................................................................................160
3.15 O novo convite: o conflito mudou de nome?...........................................................173
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................180
REFERÊNCIAS.............................................................................................................188
11
APRESENTAÇÃO
Quando a literatura acadêmica caracteriza o Litoral do Paraná, os autores se
referem a um lugar com fortes paradoxos. Com efeito, a região passa por transformações
intensas, de ordem política, cultural, econômica e ambiental, onde uma grande cidade
portuária e balneários urbanos que se expandem coexistem com extensas áreas naturais
protegidas, com baixa densidade demográfica, e para onde convergem populações de
outras regiões do estado e de estados vizinhos (PIERRI, 2003). Em que pese a produção
crescente de estudos sobre a temática nas diversas disciplinas, ainda existe uma lacuna no
entendimento sobre a forma como as populações rurais produzem essas mudanças ao
mesmo tempo em que são afetadas por elas, sobretudo no que se refere aos sitiantes
estuarinos que vivem no litoral sul.
O presente estudo visa contribuir justamente com esse aspecto: analisar em que
medida um grupo social específico, as famílias do Sítio Pirizal 1 situado na região
estuarina de Guaratuba, é capaz de reelaborar práticas de resistência diante do quadro
heterogêneo de pressões e conflitos que se apresenta.
Primeira região do Estado do Paraná a ser colonizada, o litoral foi considerado
uma das mais pobres em diagnósticos sócio econômicos recentes. Seu fraco desempenho
na economia estadual se deve em grande parte à baixa aptidão dos solos para a
agricultura intensiva, o que levou ao abandono das terras e ao declínio de alguns núcleos
urbanos, e deixou a região historicamente à margem do processo de agroindustrialização
(IPARDES, 1989 apud DENARDIN et al, 2008; PIERRI, 2003; PIERRI et al., 2006;
SILVEIRA & OKA-FIORI, 2007).
O relativo isolamento vivido pelo litoral do Paraná, marcado pela baixa vocação
agrícola e por vastas extensões de terras devolutas, atraiu grileiros e posseiros. O
funcionamento local do mercado de terras propiciou práticas ambientalmente danosas e a
formação de latifúndios em áreas desvalorizadas, na ausência de políticas que poderiam
limitar a ação desse mercado e na presença de outras, desenvolvimentistas, que
1
Os nomes utilizados para se referir aos sujeitos sociais e a localização precisa do Sítio são fictícios, a
fim de preservar a identidade dos envolvidos na pesquisa.
12
incentivaram tais práticas desde a década de 70.
A costa e os estuários paranaenses, situados no Bioma Mata Atlântica, possuem
vastas áreas rurais de grande relevância ecológica associada a ambientes de manguezais,
ilhas, planície costeira, à Serra do Mar, sobre os quais passaram a incidir um grande
número e tipos variados de áreas naturais protegidas, em decorrência do processo de
ordenamento territorial ditado pela nova legislação ambiental contida na Constituição
Federal de 1988 e da pressão de organizações não governamentais (ONGs) ambientalistas
regionais e internacionais (TEIXEIRA, 2004; PIERRI et al., 2006; IAP, 2006).
A implantação do controle ambiental ocorreu por meio de decisões institucionais
contraditórias do ponto de vista da ação multissetorial do estado, pois, no início da
implementação, priorizaram a fiscalização e o policiamento ambiental, buscando
controlar o desmatamento da floresta nativa e da perda da biodiversidade local
desencadeados pelo estabelecimento de grandes domínios produtivos, cujas atividades
recebiam incentivos estatais visando o desenvolvimento da região (SONDA, 2002;
TEIXEIRA, 2004; IAP, 2006).
Adams (2002), Sonda (2002) e Pierri et al. (2006) analisam que os remanescentes
florestais que chamam atenção para sua conservação se encontram hoje justamente em
áreas litorâneas de menor desenvolvimento econômico e social historicamente
desprezadas por grandes investidores, como regiões acidentadas, com solos de baixa
fertilidade, marcadas por sistemas de produção familiares de subsistência ou tradicionais
– em grande parte produtores pobres sem acesso aos instrumentos de políticas públicas.
Conforme sua pesquisa de 2002 sobre os aspetos socioeconômicos do extrativismo
vegetal realizado pela população de pequenos produtores rurais em Guaratuba, Cláudia
Sonda já chamava atenção para o fato de que, nas treze coletividades analisadas por ela,
nenhum dos moradores nativos entrevistados sabia que vivia em uma Área de Proteção
Ambiental (APA), ou sequer sabia o que o termo significava.
Nesse sentido, expressão mais contundente da institucionalização e estruturação
da política ambiental dirigida para a região, é possível dizer que a multiplicação de
Unidades de Conservação da Natureza (UC) nas últimas três décadas se deu “desde o
gabinete” e por decretos, negligenciando demandas sociais e a participação de segmentos
mais pobres, distantes da lógica do associativismo voluntário que era esperado da
13
sociedade civil (PIERRI, et al., 2006; SEMA/IAP, 2006; SONDA, 2002; FERREIRA,
2010; REIS, 1995; SCOTT, 2002).
Hoje, o litoral paranaense pode ser definido como uma grande área protegida.
Como nos detalham Pierri et al. (2006), o litoral teve 82% de sua área voltada para a
conservação, incluindo unidades de conservação federais, estaduais e municipais, sendo
as maiores a APA Federal de Guaraqueçaba e a APA Estadual de Guaratuba.
Apesar das suas características próprias e singulares, “avessas” ao processo de
modernização agrícola do Paraná como um todo, o litoral sofreu uma pressão de
fenômenos de mercado e de acumulação capitalista e de políticas públicas. Ou seja, nesse
contexto, o surgimento de uma arena propriamente ambiental não é a única intervenção
ou força social modernizadora, com amplas implicações para dinâmica social, econômica
e institucional da região.
Os efeitos da modernização sobre o litoral se fazem ouvir também por processos
mais antigos, como a ampliação da malha rodoviária estadual e da rede de distribuição de
eletricidade “conectando” sedes urbanas e bairros rurais até então mais remotos, a
expansão da infraestrutura de exportação no porto de Paranaguá, bem como a
urbanização e a expansão dos serviços de turismo na orla marítima, a introdução de
culturas agropecuárias e florestais patronais altamente capitalizadas e tecnificadas, que
contaram com apoio técnico e incentivos econômicos estatais, a abertura democrática e o
advento da nova constituição “cidadã” (e consequentemente eleições locais), a chegada
de pesquisadores acadêmicos cujas pesquisas e projetos de extensão passam a ter
rebatimento nas políticas públicas (IAP, 2006; TEIXEIRA, 2004; PIERRI, 2003; PIERRI
et al., 2006). Os processos mencionados modificam a vida social e político institucional
no nível local, como condições de possibilidade para novas contradições sociais que
visivelmente se imprimem na paisagem.
A área onde vive o grupo foco da pesquisa é coberta pela APA Estadual de
Guaratuba, criada em 1992, a maior UC do litoral sul, que abriga em seu interior o
Parque Nacional Saint-Hilaire Langue, o Parque Municipal Lagoa do Parado e o Parque
Estadual do Boguaçú, que praticamente ainda não saíram do papel. A gestão da APA se
propõe participativa e paritária (poder público e sociedade civil), por meio de um
colegiado que é seu principal instrumento, o Conselho Gestor (CG) criado em 2006, cujo
14
objetivo é tornar compatíveis os diversos usos do território e dos recursos com os
objetivos da conservação da natureza, ou seja, tornar esses usos ambientalmente
“sustentáveis” via ordenamento territorial das atividades humanas cobertas pela UC (IAP,
2006; FERREIRA, 2010).
Por conta do vasto território da APA é possível verificar múltiplos modos de
ocupação e o uso dos recursos naturais, que representam um cenário de transformações
regionais. Ao norte encontra-se o polo portuário de Paranaguá, a leste a orla litorânea
com crescente desenvolvimento do turismo e do lazer, levando à intensa especulação
imobiliária, e a oeste a Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Em seu “miolo” na
parte rural do município de Guaratuba, no litoral sul paranaense, estão atores econômicos
que se dedicam à atividade de reflorestamento, à produção de banana e arroz,
atravessadores de cipó e caranguejo, bem como extensionistas técnicos e universitários,
pesquisadores e ativistas ambientais filiados a ONGs, gestores ambientais, turistas e os
próprios moradores dos bairros rurais. Esses grupos sociais possuem interesses, valores,
visões de mundo e motivações representados por institucionalidades diferentes, e
interagem direta e indiretamente não só por meio da paisagem compartilhada e disputada
para diversos fins, mas também por regras divergentes, que operam assimetricamente em
disputas pela legitimidade da ocupação.
Até o mais distraído visitante que chega aos lugarejos ao redor da Baía de
Guaratuba percebe uma “vizinhança misturada”, não importa se o longo caminho foi feito
pelos rios ou pelas estradas de terra. Ao sair das rodovias estaduais em direção ao estuário
por estradas de chão batido, a ocupação humana se dispersa entre trechos de floresta
nativa que parecem sem dono, “um mar” de pinheirais geometricamente plantados
cercados e finos córregos que atravessam a estradinha de terra e levam aos rios que
desembocam no estuário. Eventualmente um ou outro caminhão com toras de madeira ou
carros com famílias passam desviando lentamente dos buracos; mais a frente, nas
bifurcações aparecem placas indicando a direção de rios, de pousadas remotas e de
“comunidades” ou vilas rurais de povoamento antigo, chamadas localmente de Sítios2.
A partir daí, a ocupação vai se adensando à beira da estradinha de terra e nas suas
2
Trata-se de um tipo de bairro ou vila rural de povoamento antigo, definido como Sítio pelos próprios
moradores. Já quando o leitor encontrar o termo chácara, no referimos aos ranchos ou pequenas posses
das famílias que, em seu conjunto, conformam um Sítio.
15
ramificações, entre coloridas casas de veraneio muradas e desocupadas, fazendas de
búfalos com portais exuberantes cercados por palmitais e mais e mais pinheiros
monotonamente enfileirados, que logo terminarão em algum bairro ou Sítio, onde
finalmente se começa a ver pessoas circulando, conversando e trabalhando.
Nos Sítios estuarinos moram famílias nativas, pequenos produtores posseiros (sem
titularidade da terra) com baixa escolaridade, que vivem do trabalho na terra e da
exploração dos recursos naturais por meio do agro extrativismo, da pesca, do artesanato,
pequeno comércio, do turismo, mas também do assalariamento e da aposentadoria
(SONDA, 2002).
O quadro de relações sociais constituído no passado recente insere as populações
permanentes em um cenário complexo e contraditório de oportunidades, pressões e
restrições que ressignificam seu modo de vida e alteram sua organização social e lhes
exige a tomada de novas decisões e a reelaboração de seu modo de vida, não só em
situações de conflito mas também de aliança entre os diferentes segmentos sociais.
Os sujeitos sociais foco da pesquisa são as vinte e quatro famílias aparentadas
entre si que vivem por mais de quatro gerações em um Sítio formado há mais de um
século por três fundadores que ali constituíram família, que tem, portanto, a
especificidade de se tratar de uma comunidade de parentesco. Os elementos fundamentais
da sua formação social, como sua estrutura fundiária, a organização familiar do trabalho,
dinâmicas de migração e casamento, pluriatividades para obtenção de renda, sua relação
com atores externos não se encontram cristalizadas, mas estão em processo de
reinvenção.
Na origem das mudanças que interferem na organização do Sítio parecem estar
fatores de ordem econômica moderna e de mercado (empresa de reflorestamento, por
exemplo; assim como dinâmica do emprego e de renda) e política (políticas de Estado e
suas formas de controle e organização administrativa), fatores de caráter exógeno, mas
também fatores endógenos, próprios da organização interna da comunidade (estrutura
familiar e fundiária, organização do trabalho, tempo de lazer etc.) que se altera em função
de sua relação com os fatores externos à vida no Sitio.
Levando em conta a particularidade das relações sociais que se desdobram no
processo de modernização do litoral paranaense e do quadro coercitivo bastante diverso
16
que se produz, dado por alterações na forma de acesso à terra, renda, emprego,
escolaridade, sociabilidade e na relação com as instâncias de poder do estado, qual seria
então o papel de resistência desempenhado pelas famílias? Essa é a questão principal sob
a qual se debruça a presente pesquisa.
O leitor encontrará o estudo dividido em quatro capítulos. No primeiro constam a
apresentação do problema, bem como delimitação do objeto, objetivos e aspectos
metodológicos de construção da pesquisa. O primeiro capítulo apresenta ainda um breve
balanço do debate em torno das tendências históricas e dos aspectos estruturais que
ameaçam os modelos de organização comunitária. O segundo capítulo mostra uma
“fotografia” de como se estrutura atualmente o Sítio foco desta pesquisa e as pressões
sociais que se lhes impõem, e inclui uma abordagem teórica com discussões que de certa
forma
complementam
a
teoria
do
campesinato,
a
exemplo
do
tema
do
território/territorialidades e teoria dos bens comuns, conjugados com o conceito de
conflito.
O terceiro capítulo apresenta os pormenores da realidade social do Sítio, buscando
evidenciar indicadores de mudança na sua formação social, com um olhar pormenorizado
sobre alguns elementos em transformação, como as normas de casamento, emigração e
herança, a estrutura fundiária, a diversificação produtiva e de fontes de renda e auto
consumo, bem como relações de conflito e aliança com atores externos ao Sítio. Ao
mesmo tempo, faz-se um diálogo com estudos de outros autores, que ora se aproximam
do contexto da presente pesquisa, ora se distanciam.
Por fim, a conclusão traz algumas reflexões sobre o quadro empírico encontrado
bem como sobre o exercício de tensionamento entre categorias empíricas e teóricas
identificadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
17
1 INTRODUÇÃO
1.1 Construindo a pesquisa
A presente dissertação é fruto das discussões, leituras e experiências de que eu me
aproximei há pouco mais de dois anos. Meu ingresso no mestrado em Sociologia se deu
com um projeto de continuidade do tema da monografia de graduação, inicialmente
bastante diferente daquele que originou a presente dissertação. O tema foi redefinido
apenas no segundo semestre de 2010, quando eu me inseri na linha de pesquisa
Ruralidades e Meio Ambiente. Essa escolha foi influenciada pelo meu ingresso, no
mesmo ano, no Curso Multidisciplinar de Especialização em Meio Ambiente, Educação e
Desenvolvimento no Programa do MADE da UFPR, em que as leituras, as discussões em
sala de aula com professores de diversas áreas do conhecimento e as viagens de campo
me apresentaram perspectivas instigantes sobre a questão ambiental até então inéditas
para mim, e me inspiraram a tomar a difícil decisão de mudar de tema.
Uma temática em especial me interessou, inscrita na sociologia ambiental, a dos
conflitos ambientais no ambiente rural, entrelaçada com a problemática da presença
humana em áreas naturais protegidas e das lutas camponesas e indígenas por território. O
primeiro passo no sentido da delimitação do tema foi realizar um breve levantamento de
artigos científicos, dissertações e teses, produzidos em diversas regiões do país e dentro
do Paraná, que tratassem da intersecção do debate acerca de populações rurais e políticas
ambientais. Chamou minha atenção o grande número de estudos sobre as chamadas
Populações
e
Comunidades
Tradicionais
(PCT),
particularmente
aquelas
que
mencionavam os Caiçaras da Mata Atlântica, camponeses que habitam a região costeira
que vai do Rio de Janeiro até Santa Catarina, onde que pela proximidade eu poderia
acessar durante a pesquisa de campo.
Tais estudos conduziam para a discussão acerca das ameaças ao modo de vida
Caiçara e a seu conhecimento tradicional, seu modo de gerir os recursos naturais
relacionado com o ambiente marinho (CREADO ET AL, 2008; CASTRO et al, 2005;
ARRUDA, 1999; ADAMS, 2000a, 2000b, 2002; DIEGUES1995, 2001a, 2001b;
18
CUNHA, 2004; CUNHA, ALMEIDA, 2001).
Meu primeiro estranhamento em relação ao termo “Caiçara” quando li pesquisas
sobre PCT tinha a ver com a minha própria experiência pessoal quando durante a
adolescência me mudei da capital paulista onde nasci para morar com a família em Praia
Grande e Santos, municípios urbanos no litoral paulista que recebem centenas de
milhares de turistas da capital e do interior paulistas. À época, percebemos a
diferenciação e o preconceito que havia de quem estava na condição de “paulista” e quem
estava na condição de “caiçara”, este como o nativo que trabalha em função das férias
daquele e que, “ignorante sem futuro”, que só conseguia superar aquele no surfe. Os
nativos entendiam o termo como pejorativo e depreciativo, como de fato se caracteriza a
relação entre “paulistas” e nativos litorâneos, nos balneários urbanizados da Baixada. Foi
assim que conheci o termo Caiçara, traduzindo o descaso por um segmento subalterno
presente no processo de urbanização do litoral paulista, portanto, em nada associado à
luta de movimentos sociais no campo.
Cristina Adams (2002, p. 35) já havia percebido que, desde a primeira metade do
século XX, a palavra “Caiçara” evoca a figura estereotipada de um sujeito preguiçoso,
ébrio, indolente e não confiável que mora na costa sudeste brasileira entendida como
atrasada, subdesenvolvida, pobre, onde a malária era endêmica. Para ela, em grande parte
dos estudos sobre a população Caiçara, a denominação (de sujeitos que não se auto
reconheciam como tal) era inicialmente pejorativa foi ressignificada publicamente, no
bojo da luta por direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT), passando vincular
a identidade Caiçara com um modo de vida em estreita conexão com a natureza
(DIEGUES, 1995, 2001a, 2001b; ARRUDA, 1999; CUNHA, ALMEIDA, 2001;
LOBÃO, 2006; ADAMS, 2000a, 2000b).
Quando refinei a busca para a população rural do litoral paranaense, os estudos
encontrados abordavam sobretudo o litoral norte, em parte do Complexo Estuarino
Lagunar Cananeia Iguape Paranaguá, na forma de diagnósticos interdisciplinares que
subsidiavam a política de conservação da natureza em implementação desde a década de
80. Foi nesse levantamento prévio, em que se enfileirou uma exaustiva produção sobre o
litoral norte, tratando especialmente das áreas protegidas em Guaraqueçaba e na Baía de
Paranaguá, que observei a ausência ou uma lacuna na produção acadêmica que cruzasse
19
abordagens sobre as populações litorâneas e o estabelecimento de diversos tipos de UCs
no estuário sul paranaense3, a Baía de Guaratuba, para a qual finalmente dirigi a
reelaboração do projeto.
A maior parte das pesquisas que mencionam as populações rurais do litoral sul
(SONDA, 2002; VALENTE, 2009; CECCON-VALENTE, 2009; BALZON, 2006;
FERREIRA, 2010) são das ciências naturais, realizados como subsídio ao manejo dos
Produtos Florestais Não-Madeireiros (PFNM) na forma de extrativismo vegetal (cipó,
musgo, samambaia, guarnicana) no interior da APA de Guaratuba; os quais se referiam a
elas como “comunidades tradicionais”, “população local” ou “caiçaras” ou “caiçaras
rurais”. Uma das teses encontradas (FERREIRA, 2010) faz referência ao extrativismo do
cipó, aos conflitos fundiários e à importância do trabalho de extensão universitária da
UFPR Litoral em uma comunidade Caiçara rural. Por sua vez, na tese de Andriguetto
Filho (1999) sobre a pequena pesca no litoral do Paraná, as populações locais são
referidas como “ribeirinhas” ou “comunidades agro extrativistas”. A tese de Andriguetto
chega a afirmar que as vilas ribeirinhas da baía de Guaratuba, dentre elas o Pirizal,
apresentariam a tendência a desaparecerem (ANDRIGUETTO FILHO, 1999, 2003).
Outras fontes importantes foram os produtos da mobilização da Rede Puxirão de
Povos e Comunidades Tradicionais (doravante Rede Puxirão) e do Movimento
Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras (MICI) – cartografia social, filipetas, blog,
notícias –, bem como o mapa oficial do Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do
Paraná (ITCG) sobre as Comunidades Tradicionais no Paraná com o título “Terras e
Territórios Quilombolas, Indígenas, Faxinais, Ilhéus e Cipozeiras no estado do Paraná –
2010" (ITCG, 2010), subsidiado com dados fornecidos por movimentos sociais
paranaenses. Tanto o site da Rede Puxirão quanto o mapa do ITCG se referem às
comunidades rurais do estuário de Guaratuba como Cipozeiros.
De modo geral, essas designações especificam suas práticas produtivas
dependentes dos recursos naturais e reforçam a necessidade de um compromisso da
população rural do estuário com a conservação da natureza e de diálogo direto com
representantes do poder público.
3
Os estudos localizados, mais significativos nesse esforço, são Miguel e Zanoni (1998), Teixeira
(2004), Francisco (2004), Andriguetto Filho (1990) e Ferreira (2010), os quais dirigem o olhar para as
populações habitantes sob a ótica dos entraves da política ambiental e agrícola enfrentados pela
agricultura familiar e pesca, levando em conta fatores de ordem socioeconômica, política e ambiental.
20
O primeiro esboço do projeto, submetido ao grupo da linha de pesquisa, trazia a
questão dos arranjos institucionais em torno dos bens comuns, e o caso empírico do
extrativismo do cipó pela população rural no litoral paranaense, no interior da APA de
Guaratuba. Em agosto de 2010 comecei a pesquisa de campo indo pela primeira vez à
reunião ordinária do Conselho Gestor (CG) da APA de Guaratuba, onde eu esperava
encontrar representantes da população chamada, nos estudos e em publicações oficiais,
de “Cipozeiros”, Comunidades Tradicionais e Caiçaras. No entanto, não só as populações
rurais estavam ausentes dessa reunião em que grupos organizados e instituições discutem
os rumos da gestão do território e de recursos naturais na APA, como não havia nesse dia
nenhum outro morador que representasse no conselho o interesse das famílias antigas de
pequenos agroextrativistas e pescadores, que vivem nas comunidades rurais de
Guaratuba.
Na reunião seguinte do CG, no final de 2010, conheci a liderança das
comunidades rurais do estuário, pescador aposentado, e uma professora da UFPR Litoral
que coordena um projeto de extensão nessa comunidade, convidados do dia, no contexto
da pauta sobre conflitos fundiários solicitada pela professora. As falas dos dois
sublinharam o histórico de invisibilidade das comunidades de “Caiçaras rurais”, posseiros
que haviam perdido terra para a extinta madeireira Faber Castel, através de grilagem, de
ameaça de violência e compras irregulares no final da década de 70. Hoje, uma outra
madeireira, a Comfloresta, reivindicava o usucapião de áreas onde vivem moradores
nativos, basicamente lavradores e pescadores, segundo a professora havia verificado em
cartórios do município. Eles acrescentaram que a falta de terra levou ao êxodo e
restringiu as opções produtivas dos que ficaram, recorrendo ao extrativismo do cipó,
desestruturando o grupo e dificultando a permanência das famílias remanescentes. Nessa
ocasião de denúncia apresentada publicamente ao CG por eles, ainda não estava clara a
relação das comunidades que ele representava, que realizavam do extrativismo vegetal,
com o MICI e a Rede Puxirão, pois sua interlocução parecia estar mais consolidada com
o grupo de extensão da UFPR Litoral. Era mais que necessário acessar diretamente os
próprios moradores e suas lideranças para entender, a partir da perspectiva deles, os
conflitos na região.
Nessa fase ainda, o professor Osvaldo Heller, em reunião da linha de pesquisa,
21
comentou sobre a relação de um de seus orientandos do doutorado com a Rede Puxirão,
de que faz parte o MICI. Depois de entrar em contato com ele, assessor da Rede Puxirão
e até então doutorando do mesmo programa PPGSocio, eu assisti à sua banca de defesa
de doutoramento sobre o movimento social dos Povos Faxinalenses, também associado à
Rede Puxirão, e pedi mais informações sobre o cronograma de encontros públicos do
MICI, no esforço de encontrar com os extrativistas pessoalmente. Fui informada por
outros assessores do evento que haveria em dezembro de 2010, o 1° Encontro
Interestadual dos Cipozeiros e Cipozeiras em Garuva – SC, onde eu encontrei com
representantes dos moradores do Sítio Pirizal três meses depois, levados pela professora
extensionista e pela liderança local.
O objetivo anunciado do evento, promovido pela Rede Puxirão e por
pesquisadores acadêmicos da UFPR e UDESC, era “garantir a visibilidade e a troca de
experiências entre os Cipozeiros do Paraná e Santa Catarina visando o estabelecimento de
propostas que fortaleçam o reconhecimento de seus direitos”, por meio de denúncias e
demandas feitas diante de representantes do poder púbico convidados para aquele dia:
funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio),
Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e Ministério Público Estadual (MPE). Na ocasião,
aconteceram a inauguração da Feira Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras e o
lançamento oficial do Mapeamento Situacional dos Cipozeiros e Cipozeiras, este último
realizado com apoio técnico de pesquisadores da UFPR e UDESC e do Projeto Nova
Cartografia Social (PNCS) dos Povos da Amazônia.
Os representantes do MICI e os pesquisadores apoiadores apresentaram o
processo de levantamento cartográfico do extrativismo vegetal nas florestas entre Garuva
e o litoral sul do Paraná e também demonstraram a motivação de fortalecer o contato com
os extrativistas da área rural de Guaratuba que meses antes haviam sido visitados para
responder ao Mapeamento Situacional. Destes últimos, foram ao encontro cerca de
quinze moradores de três bairros rurais, entre eles o Sítio Pirizal e o Sitio onde mora a
liderança que os estava representando. No entanto, para minha surpresa depois de ter lido
as pesquisas sobre os PFNM e o mapa do ITCG (2010), eles manifestaram publicamente
que o extrativismo do cipó não era a atividade principal da região e que não se
identificavam com a mobilização política dos Cipozeiros de Garuva.
22
Naquele encontro, os Cipozeiros denunciaram diante de órgãos ambientais e do
MPE os conflitos fundiários e a opressão violenta da parte de palmiteiros, fazendeiros e
jagunços que dominam as áreas onde ocorre a extração de cipó em Garuva. Já o
representante de Guaratuba, apoiado pela professora extensionista da UFPR Litoral,
relatou novamente as denúncias apresentadas no CG, assinalando que os principais
obstáculos para a permanência das famílias da sua comunidade, bastante pauperizada e
sem alternativas para a sobrevivência, eram a fiscalização e repressão violenta da parte da
Força Verde e a tomada de terras por empresas de reflorestamento de pinus que chegaram
nos anos 70 (a extinta Faber Castel e a Comfloresta/Brascan atuante até hoje em Santa
Catarina e Paraná).
Embora o sentimento de usurpação, expresso nas narrativas dos membros do
MICI e do senhor que representava Guaratuba, fosse comum aos grupos paranaenses e
catarinenses, a adesão ao MICI não ocorreu. A liderança vive em uma comunidade que
vem sendo apoiada por extensionistas universitários, o que ajudou a delimitar a
percepção do conflito e a denunciá-lo. No diálogo com o MICI, o pescador aposentado
reivindicou a lavoura como atividade fundamental, mais importante que o cipó, e
explicou que a atividade extrativista das famílias da região acontecia de forma
complementar e secundária, justamente pela dificuldade no acesso à terra produto do
conflito fundiário com empresas madeireiras, o que para eles diferenciava os conflitos
apontados pelos Cipozeiros dos enfrentados na sua comunidade.
Desde o encontro com o MICI, quando eu escutei o testemunho da liderança e
mesmo antes, no CG da APA, ficou claro que o modo de vida atual nos Sítios de
Guaratuba não poderia ser entendido sem que eu levasse em consideração as pressões
tanto do estabelecimento do empreendimento de reflorestamento quanto a consolidação
do controle ambiental no litoral sobre o modo de vida local.
Logo depois do I Encontro do MICI, ainda no começo de 2011, a liderança e
membros do MICI e pesquisadores acadêmicos que assessoram a Rede Puxirão foram até
o Pirizal para tentar uma nova articulação com as famílias dos Sítios locais que
realizavam o extrativismo, e apresentar o argumento de que os conflitos e os antagonistas,
bem como as demandas, eram parecidas, pois estas se enquadravam nos direitos dos PCT,
caminho de luta trilhado pela Rede Puxirão. Dessa vez, entre iguais e sem a presença de
23
representantes do estado, as famílias falaram com menos receio dos desmandos e da
truculência da Força Verde na fiscalização em busca de caça e corte de palmito, para
comercialização, encontrando somente famílias que sem ter o que comer caçavam para
subsistência. Mais uma vez afirmaram, junto com uma estudante que representava o
grupo de extensão da UFPR Litoral, que o extrativismo era secundários para eles, que o
importante era a terra que havia sido reduzida em decorrência dos conflitos com as
madeireiras Faber Castel e Comfloresta, no passado e no presente. Mas recusaram
novamente o convite de integrarem a mobilização do MICI.
No começo das atividades de campo, em 2011, tive a chance de conhecer a
diversidade de movimentos sociais que fazem parte da Rede Puxirão, particularmente o
MICI e a APF (Articulação de Povos Faxinalenses), quando entrei em contato com um
grupo de extensão da Geografia da UFPR que colaboravam com a rede. Como voluntária
em oficinas promovidas com a contribuição de alunos e professores, pude acompanhar
alguns momentos da mobilização faxinalense em torno da sua luta por reconhecimento de
direitos territoriais e identitários. As reuniões promovidas junto com diversos
movimentos da Rede Puxirão (Pescadores Artesanais, Faxinalenses, Indígenas,
Quilombolas, Cipozeiros entre outros), com representantes do IAP, ICMBio e MPE
(como aquela do MICI em Garuva), em oficinas de cartografia social dos povos e
comunidades tradicionais do Paraná, mobilizações intra comunitárias dos faxinalenses,
foram definidas como foco da monografia de especialização4 defendida em 2011, em que
eu pude conhecer um pouco mais os conflitos fundiários e os antagonistas do movimento
e da rede estadual, bem como a articulação com a política ambiental do estado, no
interior do Paraná.
Essas vivências empíricas alteraram minhas perguntas feitas para teoria e mesmo
para o campo e, consequentemente, o processo de desenvolvimento de ambos os estudos,
a dissertação e a monografia de especialização. A literatura recente sobre os Caiçaras e
PCT e minha aproximação aos contextos públicos de luta e organização de movimentos
sociais paranaense constituíram as referências principais por meio das quais eu procurava
olhar o contexto das populações rurais do litoral paranaense.
4
Monografia de título “A reconstituição da identidade política faxinalense a partir da oficina de
fitoterapia animal e dos sonhos para o futuro: reflexões acerca da história e reconhecimento do
movimento” (SANT' ANA, 2011).
24
Ocorreu assim uma redefinição no foco de abordagem, pela desconstrução de uma
imagem apresentada por alguns estudos e documentos sobre o Litoral, que não
correspondiam (ou condiziam) com o que fui percebendo com as observações iniciais, os
aspectos vinculados às estratégias de reprodução social do Pirizal no contexto de uma
forte intervenção “modernizadora”, por parte de agentes externos, com repercussões
sobre a região sul do Litoral paranaense e consequentemente sobre a própria dinâmica
interna da formação social em questão. De fato, devido à minha trajetória dentro dos dois
cursos, meu contato com a literatura sobre campesinato se deu tardiamente, já ao longo
da pesquisa de campo, o que teve influência sobre o processo de construção e fechamento
do texto e sobre a forma como eu pude dialogar com os autores identificados.
Em certa medida, é possível traçar semelhanças entre as circunstâncias estruturais
das pressões enfrentados pelos Caiçaras, Faxinalenses, Cipozeiros e pela população rural
de Guaratuba, derivadas da expansão da grande propriedade e do agronegócio, da
especulação imobiliária pelo turismo e do espraiamento da regulação ambiental e do
processo de ordenamento territorial pelo estado, por exemplo, além de poderem contar
com o apoio de acadêmicos e de movimentos sociais. Porém, a despeito do que há em
comum, certas condições históricas e mecanismos sociais peculiares a cada situação
permitiram o desenvolvimento de diferentes padrões de estratégias e arranjos de ação em
seu interior. É para o entendimento da especificidade das condições sociais e políticas do
litoral sul paranaense e das formas de resistência dos sitiantes que o presente estudo
pretende contribuir.
Os estudos sobre extrativismo vegetal na APA, o mapa do ITCG (2010) e mesmo
a chamada na reunião do MICI em Garuva em dezembro de 2010 davam a entender que
havia ali um movimento organizado que denunciava conflitos e reivindicava a identidade
de pequenos extrativistas e agricultores no diálogo com órgãos ambientais em prol da
proteção da biodiversidade, quando de fato os moradores dos Sítios de Guaratuba não
aderiram ao MICI, tampouco participavam da gestão da APA. Ademais, as denúncias
feitas contra a antiga madeireira pela liderança de Guaratuba retratavam uma realidade de
esvaziamento demográfico e pauperização específica a este Sítio estuarino, e refletiam
em grande medida o apoio e a interlocução com o grupo extensionista.
Observei o silêncio dos moradores do Pirizal nas duas reuniões com o MICI e sua
25
distância do Conselho, em situações em que outros grupos falaram em nome deles em
espaços públicos buscando denunciar seus conflitos locais. Tais estratégias de luta, de
participação e de alianças que foram apresentadas aos sitiantes do Pirizal não lhes
interessaram a ponto de atrair seu engajamento e adesão; eles pareciam seguir outros
modelos de ação política possibilitadas por mecanismos sociais diferentes, longe dos
espaços públicos mais visíveis acessados pelos movimentos sociais. Isso se contrasta com
os posicionamentos políticos mais objetivos na luta pública dos Faxinalenses, dos
Cipozeiros e da comunidade apoiada pelos extensionistas da UFPR, diante de conflitos
tratados e denunciados por eles como agudos, com a identificação clara de seus objetivos,
antagonistas e de suas alianças.
A pergunta que emergiu desses dados iniciais era: quais seriam suas formas
alternativas de elaborar modos de ação particulares? Representam decisões familiares ou
do Sítio como um todo? Baseados em quais valores e interesses e possibilitada por quais
condições sociais? As pressões externas levam as famílias e o Sítio a qual situação?
1.2 O que a literatura nos diz?
A análise das metamorfoses da organização social do Sítio se inspira em autores
do conflito e da mudança social e ao mesmo tempo faz referência ao debate sociológico
sobre campesinato, populações autóctones, ou locais, e da sua territorialidade específica,
temas abordados também pelos estudos das novas ruralidades e os estudos da resistência
cotidiana que são colocados em diálogo aqui com a teoria dos comuns 5. A literatura em
torno das tendências históricas que ameaçam os modelos de organização comunitária e
das diversas estratégias de resistência acionadas frente a elas está consolidada nas
ciências sociais e, nas suas diversas abordagens, esses estudos podem ser agrupados,
grosso modo, em duas correntes. Simplificadamente, é possível dizer que, de um lado,
estão as posições que destacam a modernização inexorável que determina a
descampenização e, de outro, as posições que destacam a resiliência e autonomia de
5
Entre os autores principais que influenciaram diretamente as análises no presente estudo, cf. Simmel
(1983); Neves (1985); Wanderley (1996, 2000, 2001, 2003, 2004); Almeida (1986); Bourdieu (1972,
1998); Seyferth (1985); Moura (1978); Woortman (1990a, 1990b); Cunha e Almeida (2001); Almeida
(2009); Brandenburg (2005, 2010); Adams (2000); Creado et al. (2008); Scott (1976, 2002); Monsma
(2000); Canclíni (2008); Ostrom (1990); Cunha (2004); Campos (2011).
26
camponeses e indígenas6 e seu protagonismo como ator político na luta por direitos
(CANDIDO, 1977; QUEIROZ, 1973; BRANDENBURG, 2010; CANCLÍNI, 1990;
WANDERLEY, 2000; NEVES, 1985).
Primeiramente, a interpretação clássica inspirada no marxismo avalia como
inevitáveis as mudanças engendradas pelo avanço avassalador do mercado capitalista e
do progresso sobre as formas de produção pré-modernas que têm na agricultura
camponesa ou familiar suas bases fundamentais7. São exemplos autores clássicos como
Kautsky e Lênin que “profetizaram” o fim das formas não tipicamente capitalistas da
produção submetidas às forças macro econômicas e ao projeto modernizador.
No Brasil, cabe ressaltar os estudos de comunidades8 realizados principalmente
entre as décadas de 1940 e 1960, os quais se preocupavam com mudanças econômicas
em grande escala com o potencial de gerar alterações demográficas, migração e
pauperização nas cidades e no campo. Apoiados em noções como assimilação e
aculturação, debruçaram-se sobre os efeitos de desintegração que a modernização e
processos urbano industriais exercem sobre o modo de vida camponês, conduzindo a
novas configurações sociais, desequilibradas e em vias de desorganização.
Os estudos comunidades caracterizaram e definiram a comunidade rural em
consonância com as ideias de Mendras (1978), focadas no desenvolvimento de relações
de inter conhecimento, de formas de solidariedade social, relações de confiança,
sentimento de pertencer a um lugar sob o ponto de vista geográfico e social
(BRANDENBURG, 2010).
Duas referências emblemáticas desse momento são Maria Izaura de Queiroz e
6
7
8
Isto é destacado, por exemplo, por Chayanov, Mendras e recentemente revisitado por Ploeg. Ver,
respectivamente: CHAYANOV, Alexander V. La Organización de La Unidad Econômica Campesina.
Bueno Aires: Ediciones Nueva Vision, 1974; MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1978; PLOEG, J. D. van der. Camponeses e Impérios Alimentares: lutas por
autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2008.
Esse argumento pode ser encontrado nas obras: LÊNIN, V. I. O desenvolvimento do capitalismo na
Rússia. O processo de formação do mercado interno para a grande indústria. 2. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1985; KAUTSKY, K. A questão agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
Pesquisas de cunho antropológico influenciadas pela produção da Escola de Chicago. Para saber mais,
ver: OLIVEIRA, Lucia L. Do Caipira Picando Fumo a Chitãozinho e Xororó, ou da roça ao rodeio.
Revista da USP, São Paulo, n. 59, nov. 2003; MENDOZA, Edgar S. G. Donald Pierson e a escola
sociológica de Chicago no Brasil: os estudos urbanos na cidade de São Paulo (1935-1950).
Sociologias, Porto Alegre, n. 14, dez. 2005; GUIMARAES, Rafael E. Os estudos de comunidade e
urbanos coordenados por Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
Cadernos CERU, São Paulo, v. 22, n. 1, jun. 2011.
27
Antônio Cândido, sobre as transformações da cultura caipira e dos bairros rurais paulistas
em decorrência da expansão da cultura urbana e da grande propriedade, que redefinem a
relação entre rural e urbano (WANDERLEY, ?). Destacam a questão da busca de terras e
mobilidade, a centralidade da vida religiosa como elemento de sociabilidade, além do
impacto das relações familiares e de vizinhança sobre o sistema de reciprocidade.
Adotando uma ótica pessimista, para ambos, o progresso culminaria na desintegração do
modo de vida caipira. Devido a sua fragilidade diante das mudanças, o caipira acaba
sendo integrado a relações de troca deterioradas e à cultura urbana.
Os estudos de comunidade desenvolvidos nessa época foram fundamentais para as
análises posteriores sobre as sociedades rurais brasileiras, haja visto que impulsionaram
temáticas candentes até hoje, como dinâmicas migratórias camponesas, descrição
ecológica dos espaços rurais, relações de parentesco e vizinhança e laços de
reciprocidade. No entanto, recebem a crítica de que ao caipira não era atribuído um
potencial de inovação, capacidade de resistência e reinvenção das suas estratégias
voltadas à reprodução social. Além de se tratar do momento da institucionalização das
ciências sociais no Brasil9, que buscava superar o ensaísmo na direção do cientificismo, o
foco privilegiado dos cientistas sociais era o caráter nacional do Brasil e o
desenvolvimentismo latino-americano, engajados na condução do país à Modernidade.
Essa preocupação não era sem razão, tendo em vista uma crise estrutural da sociedade
brasileira e latino-americana que tendia a superar o agrarismo e a questão social e política
(crise do Estado), em direção às teorias da modernização e da industrialização, quando o
país passava para a segunda metade do século XX focado em um projeto de
desenvolvimento.
Não obstante, a persistência de valores e visões de mundo próprios ao
campesinato em contextos mais amplos de modernização e globalização na
contemporaneidade trouxe novas consequências para a maioria das construções teóricas
sobre o rural que sugeriam o seu fatal desaparecimento (WANDERLEY, 2000).
Como contraponto aos primeiros estudos “clássicos” que apresentavam o
campesinato (como modo de produção) em decomposição, emergem novas leituras que
deslocam suas análises para temas mais antropo sociológicos, com posições matizadas
9
Cf. OLIVEIRA, Nemuel S.; MAIO, Marcos C. Estudos de Comunidade e ciências sociais no Brasil.
Soc. estado., Brasília, v. 26, n. 3, dez. 2011.
28
baseadas diferentes premissas teóricas. Surgem enfoques que recolocam o papel do
camponês como ator social capaz de alterar e participar da construção da sua relação com
a sociedade englobante e registrando formas de resiliência camponesa bem como suas
conquistas políticas. Ganha importância a compreensão das organizações camponesas,
tais como sindicatos, ligas camponesas, movimentos sociais ou partidos populares, como
as formas mais importantes da luta social e da mudança social (SCOTT, 1985, 2002).
Trata-se de discussões sobre cultura, identidade, modo de vida, enfoques críticos
às práticas hegemônicas do mercado e, mais recentemente, abordagens sobre
conhecimento
tradicional
e
exemplos
bem
sucedidos
de
gestão
ambiental
(WOORTMAN, 1990a, NEVES, 1995, 2008; BRAMDERBURG, 2010; MALAGODI,
2009; ALMEIDA, 2008; CUNHA, ALMEIDA, 2001).
No interior da crise do processo de expansão do capitalismo e sua consequente
destruição dos recursos naturais, chama atenção o processo de expulsão camponesa e
indígena do campo. Mais recentemente, as preocupações globais em torno da degradação
ambiental e depleção de recursos naturais passaram a olhar com mais atenção para as
modalidades de acesso e apropriação dos recursos naturais em pequena escala, a escala
comunitária de gestão ambiental enraizada nas práticas de milhares de unidades sociais
camponesas ao redor do mundo, concedendo certa legitimidade aos camponeses como
atores bem sucedidos na conservação ambiental (OSTROM, 1990, 2005; FEENY et al.,
2001; AGRAWAL, 2003; BERKES et al., 1998; CUNHA, 2004; DIEGUES, 1995,
2001a, 2001b; LEFF, 2010; GUHA e MARTINEZ-ALIER, 1997; MARTINEZ-ALIER,
2007; ALMEIDA, 2009; CAMPOS, 2011). Nesse contexto, o final dos anos 80 foi
paradigmático, na confluência da constituinte, como o momento, de interlocução de
setores do ambientalismo internacional, mais atentos às questões sociais na Amazônia e
demais fronteiras agrícolas, com movimentos sociais rurais, reconhecidos juridicamente
como PCT, abrindo precedentes para sua participação política nas questões envolvendo
seu território produtivo (CUNHA, ALMEIDA, 2001; CREADO et al., 2008; LOBÃO,
2006).
No caso da Mata Atlântica em especial, a expansão da política ambiental na forma
de UCs restritivas sobre os territórios Caiçaras aqueceu o debate sobre a permanência de
PCT em Parques. O texto mais emblemático é o livro “O mito da natureza intocada”, de
29
Diegues. Nos embates públicos, parte de processos decisórios, a comunidade acadêmica
foi chamada e se dividiu politicamente ente entre dois posicionamentos, os
preservacionistas e os antropocentristas. Estes últimos defenderam a identidade Caiçara
como Povos e Comunidades Tradicionais com modo de vida “ecologicamente correto”,
para justificar a permanência das populações litorâneas em UCs de proteção integral pelo
critério da tradicionalidade como garantia da sustentabilidade dos recursos e, assim,
refutar o argumento central do modelo da “tragédia dos comuns”10, acionado pelos
preservacionistas (ADAMS, 2000b; ADAMS, 2002; CASTRO et al., 2006).
O grupo definido como antropocentristas defende que os PCT são vítimas da
degradação, no que chamaram de “tragédia dos comunitários” (DIEGUES, 1995, 2001a;
CUNHA, ALMEIDA, 2001; ADAMS, 2002). As características do pescador familiar
tradicional, dotado de um mundo simbólico marítimo (DIEGUES, 1995, 2001a) foram
enfatizadas, ao passo que as formas de gestão dos recursos da floresta e atividades
agroextrativistas que impactavam diretamente a vegetação e que caracterizavam
essencialmente como lavrador no passado foram ofuscadas para reforçar o argumento da
simbiose coma natureza e justificar seu direito de permanência (ADAMS, 2000b).
Ao avaliarem a política de conservação no Vale do Ribeira, no estado de São
Paulo, Castro e colaboradores (2006) concluíram que a concepção de PCT como atores
sociais que negociam na arena ambiental seu papel e seus direitos no interior das UCs
acabaram gerando uma contraposição entre PCT e populações não-tradicionais, em
termos de distribuição preferencial de políticas públicas e reconhecimento social.
A imagem “intocada” da cultura marítima tradicional do Caiçara teria sido
construída, portanto, em contraste com as estratégias alternativas dos não tradicionais,
através da assimilação de valores urbanos e constituição dos bairros rurais organizados
em pequenas propriedades privadas, assalariamento na agricultura modernizada e
predatória, por exemplo.
Adams procura demonstrar mostra que, historicamente, as práticas de subsistência
10
Tragédia dos comuns, segundo a qual a autogestão dos bens naturais submetida aos próprios usuários
acaba acarretando seu esgotamento. Este debate já foi bastante explorado, mas será tratado mais
adiante. Para saber mais, cf. Ostrom (1990) e HARDIN, Garret. La tragedia de los espacios colectivos.
In: DALY, Herman E (org.). Economía, Ecología, Ética: Ensayos hacia una Economía en Estado
Estacionario. México: Fondo de Cultura Económica, 1989.
30
adotadas pelas populações caiçaras variam muito, de acordo com as oportunidades e
restrições, e nem sempre estiveram diretamente voltadas à natureza, mas também aos
ciclos de desenvolvimento regional, a exemplo da participação dessas populações na
construção naval, mineração, cultivo comercial de banana, anil e fumo, pesca comercial
da baleia, trabalho em serrarias e fornos de cerâmica. Isso demonstra a habilidade
histórica do camponês para encontrar alternativas e se articular a um contexto econômico
em constante mudança, que pode ser exemplificada pela “incorporação do barco a motor
ao litoral de São Paulo, no início do século XX” (ADAMS, 2002, p. 35).
A figura do camponês que dá vida ao Sítio, nos estudos de comunidade, foi
deixada de lado na literatura sobre PCT da Mata Atlântica, frequentemente denunciado
como destruidor dos recursos naturais sem que se realize uma contextualização
sociopolítica e cultural que justifique seus comportamentos. Deste modo, Adams (2000a,
2000b, 2002) e Castro et al (2006) sugerem que características importantes que definem
as comunidades caiçaras como agrícolas, mais próximas ao caipira paulista, na definição
de Cândido (1977), não estão recebendo a consideração necessária na literatura
(CASTRO et al., 2006).
Apesar da grande proporção de grupos não-tradicionais vivendo na região da
Mata Atlântica, discussões sobre PCT e sustentabilidade dos recursos naturais têm
dominado a agenda de conservação ambiental, ao mesmo tempo em que deixa de lado os
problemas socioeconômicos e políticos relacionados aos grupos não-tradicionais, sua
importância cultural e histórica bem como seus direitos à terra e ao uso dos recursos. As
dificuldades e demandas de grupos pobres do meio rural, desprovidos do traço de
“tradicionalidade” sem acesso à cidadania ou a direitos específicos, não alcançam a
esfera pública, uma vez que não são associados formalmente. Essa leitura é similar à de
Sonda (2002) e Pierri (2003) sobre as populações rurais do litoral paranaense.
Nessa direção de argumentação, assumo a proposição do cientista político James
Scott (1976, 1985, 1990), e no Brasil de Sales et al. (1994), Telles (2001) e Elisa Reis
(1995), segundo a qual, na maior parte do tempo, para a maior parte dos sujeitos sociais,
a possibilidade de assembleia pública, a criação de organizações, ou de participação em
processos democráticos simplesmente não existe. Conforme Scott (1976, 1985, 2002), as
ciências sociais privilegiaram sobremaneira as lutas públicas das organizações
31
camponesas, movimentos sociais, sindicatos. Scott defende que a resistência da grande
maioria de camponeses e indígenas não ganhou a esfera pública, está dispersa e pouco
coordenada, e se expressa através de “formas cotidianas de resistência”. Conforme
complementam Menezes e Malagodi (2009) e Menezes (2002), tratam-se de estratégias
implementadas pelos camponeses, em condições muito adversas, para assegurar a
reprodução da família no contexto de mudanças nos padrões culturais, políticos,
econômicos e ecológicos. Essa dimensão “menos perceptível” da resistência camponesa
ganhou pouco reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia
É emblemático nesse sentido o conceito de “economia moral” desenvolvido por E.
P. Thompson (1991) que inspirou o debate sobre resistência camponesa de James Scott
(1976, 1985, 2002; MENEZES, 2002; MENEZES, MALAGODI, 2009). Thompson,
analisando a cultura política dos amotinados ingleses em torno da eclosão da fome,
mostrou como as normas sociais costumeiras e as regras de reciprocidade da multidão
desfavorecida se confrontam com contextos históricos marcados pela economia de livre
mercado, produzindo descontentamento moral bem como protestos públicos contra a
exploração e injustiças exercidas pela classe dominante (THOMPSON, 1991;
MENEZES, 2002). Do pensamento de Thompson, Scott assimilou a ideia central de que
as relações econômicas são balizadas por regras não econômicas, o que lhe possibilitou
olhar para a exploração entre elites agrárias e camponeses como uma questão moral
(MENEZES, 2002; MONSMA, 2000).
Scott se utiliza da noção de transcritos públicos (o que se manifesta
transparentemente diante de outrem) e transcritos escondidos (boicotes, fofocas, piadas
internas, saques ou manifestações secretas), entendidos como uma espécie de
conhecimento prático acerca realidade, para explicar como os camponeses logram driblar
as formas de exploração e injustiças via formas cotidianas de resistência (SCOTT, 2002;
MOSNMA, 2000). A resistência camponesa, seja como meio de conferir a si mesmo
vantagens imediatas e concretas seja como meio de negar recursos às classes
apropriadoras, é considerada por Scott uma luta defensiva permanente que interage com
as brechas que a classe dominante possibilita.
Os estudos de Scott sobre o tema viraram uma grande referência nos estudos de
campesinato e na sociologia rural. Entre estes se encontram os escritos de Monsma
32
(2000), que dialoga diretamente com esses estudos, cunhando a crítica de que o modelo
de ação humana elaborado por Scott é deveras ingênuo e voluntarista na medida em que
pressupõe que os seres humanos possuem a capacidade constante de elaborar novas
escolhas para lidar com cada situação específica do cotidiano. Ao privilegiar um olhar
sincrônico sobre a estrutura de dominação Scott teria superestimado o grau de
entendimento discursivo e fenomenológico presente no transcrito escondido e o grau de
consciência estratégica que mobilizaria a resistência. De outro lado, podemos considerar
que a conduta humana resulta de códigos morais e de valores, ou seja, da internalização
de normas e instituições, com sanções e incentivos, sugeridos de fora para dentro. A
criação e o funcionamento dessas instituições são objetos constantes de disputa
(BECKER, 2008; HALL, TAYLOR, 2005; OSTROM, 1999, 2005; ANDREWS; 2005).
As instituições que rotinizam nossas condutas são múltiplos e coexistem, e podem
resultar tanto da decisão de um ente externo (da gestão impessoal e burocrática da APA
com o Plano de Manejo, por exemplo) ou de um acordo interno entre os membros de um
grupo (como o controle criolo das áreas de roça de mandioca pelos parentes, por
exemplo).
Nesse sentido, Monsma sugere que os entendimentos parciais da interação e a
resistência de pequena escala podem resultar em pequenas melhorias na vida dos
subalternos mas ao mesmo tempo fortalecer aspectos importantes de dominação (SCOTT,
2002; MONSMA, 2000; SIGAUD, 1979a). Assim, a estrutura de dominação não seria o
único elemento que determina o que é ou não resistência; sendo necessário entender a
relação entre subalternos e elites inscritas nas suas condições de possibilidade, que
depende o balanço entre dois níveis de situação: as mudanças no nível de repressão
institucional e mudanças na organização social do Sítio.
Na mesma direção, mas dentro de uma outra discussão teórica, Nestor Canclíni,
em seus estudos sobre cultura e globalização, se refere a relações de opressão impessoais
mediadas por mercados, instituições e procedimentos burocráticos, nas quais os
subalternos lidam com várias formas de pressão ao mesmo tempo, por meio de poderes
oblíquos (CANCLINI, 2008). Por isso, segundo ele, o registro dos confrontos verticais ou
diádicos permitiria enxergar muito pouco da dominação e das relações políticas. De
acordo com Canclini, os paradigmas clássicos de explicação da dominação não levam em
33
conta os efeitos da globalização e a disseminação dos centros, da multipolaridade das
iniciativas sociais, em que as relações de poder se entrelaçam. As sociedades
contemporâneas globalizadas compreendem diversas institucionalidades, sobrepostas e
possivelmente em conflito.
Voltando ao tema do camponês e suas estratégias de resistência, a despeito do
arraigamento daquelas duas correntes principais, resumidas acima, os dados de realidade
oferecem uma gama complexa de possibilidades, evitando uma pré determinação
histórica unilinear. Neves (1985) nos lembra que no campesinato brasileiro os atores
sociais raramente se identificam com categorias genéricas de autodesignação de que é
exemplo o termo “camponeses”. A condição camponesa aparece em formas sociais
heterogêneas e pode ser identificada em uma multiplicidade de situações sociais, podendo
ser entendida mais facilmente desde sua interlocução com outros atores sociais, mediante
negociações interculturais de valores básicos, que delimitam a especificidade das
estratégias produtivas e reprodutivas da família (NEVES, 2008; MALAGODI, 2009;
MARQUES, 2008; WANDERLEY, 2000; ALMEIDA, 1986; 2007).
Para a autora, pensar o campesinato como uma unidade abstrata geral pode ser o
ponto de partida, mas o ponto de chegada vai depender da ampliação do olhar sobre a
multiplicidade de relações que esses sujeitos sociais mantêm com a sociedade englobante
(NEVES, 1985; WANDERLEY, 2000, 2003, 2004). Desta forma, Neves (1985) propõe
apreender o campesinato como uma categoria relacional, pois, por maior que seja a
envergadura do conceito, faz-se necessário olhar as particularidades das realidades
empíricas, a exemplo do recorte em questão, o sítio Pirizal, no contexto do Litoral
paranaense.
O termo “sitiante”, escolhido aqui para se referir à população permanente das
áreas rurais de Guaratuba, pode ser encarado como uma categoria rural que pertence a
esse “mosaico ou contínuo de tipos de campesinato” (ALMEIDA, 2007; NEVES, 1985,
MARQUES, 2008). Apesar de dizerem que vivem no Sítio, as famílias do Pirizal não se
reconhecem como sitiantes, da mesma forma como não se auto identificam como
Caiçaras, Cipozeiros ou PCT, tampouco se veem como atores políticos. Ao longo das
entrevistas percebi que, dependendo das circunstâncias, eles se identificam como parentes
quando se referem a situações de sociabilidade e como lavradores e pescadores quando
34
lidam com o mundo do trabalho diante da burocracia estatal, a exemplo do processo de
regulamentação da pesca profissional ou do processo de aposentadoria. Optei por
designá-los como sitiantes, uma categoria analítica síntese, de fora, mas “elástica” do
ponto de vista da teoria, que se remete ao domínio sobre a terra e sobre o território
definido por princípios de parentesco e descendência, que tem no Sítio sua disposição
espacial, como encontrado em outros estudos clássicos do campesinato (CÂNDIDO,
1977; WANDERLEY, 1996; SEYFERTH, 1985; WOORTMAN, 1990a, 1990b;
BOURDIEU, 1972).
Esses elementos da literatura contribuem para direcionar o olhar em campo, que
buscou compreender as diferentes decisões e escolhas mobilizadas pelas famílias do
Pirizal diante da heterogeneidade de pressões e oportunidades produzidas no processo de
modernização do litoral paranaense.
Mais especificamente, em que medida tais mudanças lhes impõem um novo
espaço de reprodução e lhes exigem mudanças significativas na sua formação social? E
por outro lado, de que modo as famílias, em seu processo histórico particular, percebem
esse processo e reorientam suas próprias experiências e estratégias de resistência diante
dele?
1.3 Sobre o campo
Responder às indagações que nortearam o desenvolvimento da pesquisa exigiu
duas tarefas básicas. Em um primeiro momento, recompor os mecanismos socio
históricos do processo de mudanças regionais ocorridas nas últimas cinco décadas; e,
depois, apreender aspectos fundamentais internos à formação do Sítio que se alteraram
nesse período. Esse segundo objetivo exigiu localizar, descrever e analisar um conjunto
de elementos da formação social do Sítio que chamei de indicadores de mudança:
mecanismos de acesso e apropriação da terra e de recursos naturais, formas de
organização social, a relação de poder com os agentes econômicos e políticos, a dinâmica
migratória, o trabalho e as formas de obtenção de renda e o sistema de autoconsumo e de
compra.
O recorte temporal, ou diacrônico, foi possível por meio do recurso da memória
35
dos sitiantes captada por entrevistas, mas também por meio do recurso de fontes
secundárias, em estudos realizados por outros pesquisadores, notícias de jornais regionais
e locais, atas do Conselho Gestor, documentos e mapas oficiais.
A parte empírica se utiliza também do recurso sincrônico, trazido na forma de
descrições sobre como se constituem as tramas familiares, as práticas materiais, as
relações entre os moradores e grupos de fora, bem como a observação da dinâmica das
reuniões públicas do CG da APA de Guaratuba e reuniões com o MICI.
A pesquisa de campo se desdobrou ao longo do período de agosto de 2010 até
dezembro de 2011, na combinação entre seis viagens que somaram quinze dias no Sítio, a
observação de seis reuniões do Conselho Gestor da APA de Guaratuba 11 e de duas
reuniões com o MICI.
As entrevistas e as observações foram registradas no caderno de campo. Foi
possível registrar também expressões e termos usados pelos próprios sitiantes, destacadas
em itálico ao longo do texto. Os nomes utilizados para se referir aos sujeitos sociais e a
localização precisa do Sítio são fictícios, a fim de preservar a identidade dos envolvidos
na pesquisa.
A parte de campo começou, portanto, nas reuniões do Conselho Gestor da APA de
Guaratuba, que aconteciam na sede urbana de Guaratuba, para a qual eu costumava ir
com funcionários do IAP que saíam desde o escritório em Curitiba. As reuniões eram
situações públicas em que, por meio da observação direta da dinâmica argumentativa e
procedimental, eu pude identificar redes de interação dos principais grupos e instituições
atuantes no litoral com interface direta com os gestores da APA, mas o mais importante
foi entender como o Pirizal e os Sítios vizinhos eram levados em consideração nas
discussões. Eu me interessei pelas reuniões porque lá pareciam dialogar representantes de
elites políticas e econômicas (setor produtivo, ONGs, órgãos públicos) com influência
sobre o estuário onde fica o Sítio.
O difícil acesso aos bairros rurais do entorno da baía restringiram as condições de
desenvolvimento da pesquisa. Por terra, as longas estradas de chão são acidentadas e falta
transporte público regular e, por água, o serviço é oferecido por barqueiros locais a partir
11
As atas oficiais das reuniões do Conselho Gestor da APA analisadas (simplificadas em relação à
riqueza
dos
debates
observados
diretamente)
estão
disponíveis
em
<http://conselhoapaguaratuba.blogspot.com.br/2011/10/atas.html. >. Último acesso em março 2012.
36
de acordos prévios. As oportunidades de caronas até o Pirizal, com colegas
pesquisadores, arranjos de acomodação e alimentação garantidos favoreceram o
desenvolvimento da pesquisa ali.
Comecei a ir para o Sítio Pirizal com uma pesquisadora ornitóloga bastante
conhecida na região (também conselheira da APA representando a ONG Mater Natura,
conservacionista) e sua equipe de pesquisa, que alugava a casa do casal Nilton e
Conceição como base de pesquisa e seus serviços de barco para levá-los em expedições
pela baía. A visibilidade dos pesquisadores da Biologia fez com que alguns moradores me
associassem a eles quando eu cheguei, o que os deixou curiosos com o que eu estava
estudando, para o que eu respondia que eu procurava registrar a história do Sítio, sob da
perspectiva dos moradores, como se organizavam socialmente e como dividiam o
trabalho. Na oportunidade seguinte fui ao Pirizal por conta própria, mas em outras vezes
cheguei com a colega da sociologia Larissa Mellinger 12 que também estava na região na
etapa de pesquisa de campo e de trabalho pelo Grupo Integrado de Aquicultura e Estudos
Ambientais (GIA). Com ela, realizei parte das entrevistas e compartilhei parte dos dados
coletados, como anotações em diário de campo, fotografias e vídeos. Em uma outra vez,
meus pais me levaram até o Pirizal com meu companheiro, e foram embora no dia
seguinte. Nós nos instalamos na pousada do casal Judite e Marcelo Rezende, onde eu me
instalei nos dias seguintes, como nas outras vezes. Em uma outra visita de campo na
temporada de guajú cheguei com este casal, depois de ter combinado carona por telefone.
Aluguei por alguns dias o quartinho que Dona Dulce, mãe do Marcelo, também aluga
para turistas da pesca quando a pousada de sua nora está cheia, tudo no mesmo quintal
desse núcleo dos Rezende, na ponta do Sítio.
Eu tinha a preocupação de onde ficar, por não conhecer ninguém, pois
dependendo de quem me recebesse, isso poderia significar, aos olhos dos sitiantes, uma
adesão a certo subgrupo dentro do Sítio e pressuposições a que eu estava alheia que
poderiam afetar logo de início minha posição com eles, de modo que ter almoçado no
restaurante e ficado na pousada da família dos fundos do Sítio, serviços encontrados
12
Sua pesquisa de doutorado, no âmbito do mesmo programa e sob orientação do mesmo professor, e
seu projeto de extensão relacionado à aquicultura e a gestão participativa, vinculado à APA e à UFPR
abrangem bairros rurais do estuário. A cooperação durante o campo aconteceu quando Larissa fazia as
observações e levantamento de dados em torno da baía na mesma época que eu, tanto para seu trabalho
no GIA quanto para sua pesquisa acadêmica.
37
somente ali e oferecidos regularmente para visitantes “estranhos” e turistas, tornou a
minha escolha aparentemente mais neutra. No início de uma conversa ou entrevista, o
local onde eu “estava parando” foi uma pergunta frequente, já seguida de outra que só
buscava uma confirmação: “na pousada na ponta?”, como se fosse o lugar mais óbvio pra
quem chega pela primeira vez, na minha situação de visitante; o segundo lugar possível
que surgiu, nas indagações cheias de curiosidade, era a casa da Nilda, que frequentemente
serve de “base”, alugada pelos pesquisadores biólogos que permanecem durante dias para
o lado do brejo.
Em situações de entrevista, logo quando eu batia em um portão perguntando por
alguém, já anunciavam lá para dentro da casa “Olha, vai lá, é a moça da entrevista”. Em
um local pequeno como o Pirizal, já esperavam a visita. Minha inserção em campo foi
sempre uma questão delicada. Isso porque na primeira vez que encontrei alguns dos
moradores da baía foi em um contexto de luta de movimentos sociais em que também
estavam extensionistas universitários que mantém vínculos políticos mais pragmáticos e
engajamento político direto junto às comunidades rurais, na reunião do MICI, onde eu
procurei ser neutra e apenas observar. Logo depois cheguei ao Pirizal com a
pesquisadora, que possuía uma longa relação de confiança e apoio público no CG, aonde
levava os conflitos fundiários enfrentados pelos moradores. Foi inevitável que eles me
associassem com a figura de alguém que pudesse “trazer” melhorias objetivas como eles
mesmos contaram do grupo de extensão da UFPR Litoral que oferece cursos, promove
horta comunitária e assessora juridicamente um Sítio próximo, ou outro grupo da mesma
universidade que investe na melhoria da farinheira comunitária, ou se referiam ao
“advogado do governo” que vai agilizar a regulamentação das terras, e o antigo prefeito
que foi chamado quando foram multados por fazer queimada para a roça de mandioca.
Essas parecem ser as consequências da atuação das instituições que tradicionalmente
“atendem” a região estuarina. Nem sempre, porém, a importação de “pacotes de soluções
vindas de cima” pelos extensionistas universitários e pelos distintos setores do estado, em
seus três níveis, logrou atender às demandas reais enfrentadas no cotidiano pelos
sitiantes; apesar de serem instituições mais atuantes localmente, algumas das
intervenções são negociadas.
Parecia existir essa expectativa ao longo de toda a pesquisa, de que quem chega
38
de fora está na “iminência de lhes oferecer ou propor alguma coisa”, e me sensibilizei
com ela, do ponto de vista dos meus questionamentos sobre o papel do pesquisador em
campo, e também do papel muitas vezes contraditório dos diferentes setores do estado, e
ainda mais depois de ter vivenciado brevemente um momento decisivo do processo de
mobilização estadual dos povos faxinalenses e do conteúdo que eu havia conhecido no
curso de especialização do MADE. A isso reagi mostrando a limitação do alcance de uma
pesquisa acadêmica de mestrado, como a minha.
Inicialmente, eu pretendia realizar o campo com outros Sítios vizinhos situados no
entorno da baía de Guaratuba visando a um panorama social mais completo dos conflitos
enfrentados pela população estuarina, contudo, as dificuldades práticas de acesso,
mobilidade e de permanência e estadia, o pouco contato com os moradores de outras
comunidades, e principalmente, o tempo disponível para a conclusão da pesquisa, foram
fatores que me impeliram a reduzir o recorte do estudo apenas ao Pirizal.
Em seu conjunto, os estudos que falam da população rural do litoral (baseados em
SONDA, 2002; FERREIRA, 2010; CECON-VALENTE, 2009; VALENTE, 2009;
ANDRIGUETTO FILHO, 1999), somados a minha breve passagem pelos bairros
vizinhos ao Pirizal em que conversei informalmente com poucos moradores
acompanhando minha colega Larissa, e também as menções que os próprios moradores
do Pirizal faziam da relação intercomunitária permitem afirmar que as comunidades do
entorno da baía possuem características semelhantes quanto a sua formação social
baseada no parentesco, quanto à organização do trabalho, práticas econômicas e culturais.
Por outro lado, o mesmo detalhamento e o aprofundamento da história e da dinâmica
social atual dos bairros vizinhos no presente teriam permitido sistematizar aproximações
e divergências que poderiam apontar para reflexões sobre a situação mais ampla dessa
população estuarina. Este ponto é, sem dúvida, uma fragilidade do recorte empírico, no
entanto, mesmo com essa limitação, o foco nos moradores do Pirizal é um caso ilustrativo
e ao mesmo tempo diz muito sobre as dinâmicas sociais no contexto regional. Portanto,
não deixa de ser relevante.
A tarefa que eu me coloquei foi valorizar uma perspectiva mais autorizada sobre o
universo social do Sítio e as dificuldades e formas de contorna-las, narrada pelas próprias
famílias sitiantes (inspirada pelas abordagens da Economia Moral em THOMPSON,
39
1991; SCOTT, 2002) Esse caminho teórico metodológico se faz relevante, eu sustento,
pois se trata de uma abordagem historicamente escassa nos estudos sobre o Litoral
paranaense. Faz-se ainda mais pertinente diante do processo de institucionalização dos
conflitos ambientais denunciados por segmentos do campesinato que alcançaram a esfera
pública, nos últimos anos, no Estado do Paraná e em todo o Brasil, e da tendência de
serem oferecidas respostas tecnocráticas “impostas de cima para baixo” para a resolução
desses conflitos (ACSELRAD, 2004, 2010; OSTROM, 1999).
A observação do cotidiano, as narrativas e as histórias de vida dos sujeitos,
registradas em anotações em diário, constituem portanto a maior parte da pesquisa. Eu
estive com as famílias em situações rotineiras e de trabalho como por exemplo na limpa
do peixe, na produção de farinha dentro do engenho (casa de farinha), na carpina da roça
de mandioca, na organização de uma refeição em família, de mutirões de entre ajuda para
o plantio de mandioca, o guajú. Participei também de uma grande festa em comemoração
ao aniversário de um nativo bastante notável, Seu Chico, que atraiu um grande número de
parentes e vizinhos, depois de um dia de mutirão.
Em campo, com a observação direta, de caráter etnográfico, procurei estabelecer
um contato mais direto com a realidade dos moradores, “sem qualquer intermediação a
respeito de objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas que orientam
seu comportamento” (LAKATOS, 1996, p.79 apud QUARESMA, BONI, 2005; GIL,
2008). As situações de interação de que participei, os caminhos que percorri durante a
pesquisa e os silêncios e entreolhares dos sujeitos entrevistados entre uma narrativa e
outra, de fato, revelaram detalhes que não haviam sido verbalizados na entrevista ou
então mostraram como minha presença direcionava ou censurava certos assuntos, como
no momento descontraído e exclusivo entre mulheres de se contar piadas maliciosas
durante o plantio de mandioca, o constrangimento de falar da caça que surgia no decorrer
de uma conversa e logo era interrompido, ou quando na cozinha uma família da
vizinhança fazia “fofoca” de um parente da ponta na minha presença.
As circunstâncias de interação dentro da rotina das famílias foram fundamentais,
pois agregaram confiança e abertura da parte deles com relação a minha presença como
pesquisadora nos lugares abertos e de trabalho da comunidade e mesmo dentro de suas
casas. Ainda, questões familiares, como casamentos desfeitos e o papel da mulher na casa
40
e no Sítio, e, sobretudo, a prática da caça, pareceram temas bastante sensíveis no contexto
da entrevista, por eu ser uma jovem moça de fora e ainda mais pelo fato de eu ter sido
associada com a atividade de pesquisa da bióloga, voltada para a conservação da
natureza, com quem cheguei ao Sítio e que censura a atividade de caça abertamente,
apesar de apoiar a comunidade em outros assuntos. Ademais, para evitar o desconforto
relacionado ao fato de eu ser uma mulher em campo num contexto em que o homem é a
figura de autoridade da casa e do Sítio, e à mulher cabe o papel doméstico, procurei
realizar as entrevistas com os moradores homens sempre quando eles ou eu estávamos
acompanhados.
Foram realizadas dez entrevistas semi-estruturadas com dezoito moradores, com
uma média de duração de aproximadamente duas horas cada uma. Vinte e oito pessoas do
Sítio participaram de entrevistas abertas e semi-estruturadas. Uma parte das entrevistas
foi realizada com uma entrevistada, individualmente, e outras, em conjunto, durante seus
afazeres do dia ou no momento de lazer, de modo distribuído entre as famílias, tendo
conversado com pelo menos um membro de cada. Como os temas eram comuns aos
presentes nos contextos de entrevista, os sujeitos puderam levar em conta os pontos de
vista dos outros para a formulação de suas respostas e também tecer comentários sobre
suas experiências e a dos outros (BAUER, GASKELL, 2002).
Como ponto de partida para as entrevistas, optei por procurar moradores com
idade mais avançada, que nasceram ou que passaram a sua vida toda ou grande parte dela
ali. As circunstâncias cotidianas de arrumação dos petrechos de pesca, cuidado com a
roça e de produção de farinha favoreceram a sugestão de temáticas ligadas à pesca, à terra
e a entre ajuda, o que abriu novas janelas para as conversas sobre outras temáticas do
cotidiano.
Foi portanto a abordagem inicial das próprias situações de entrevistas que tiveram
o efeito de tecer “um balaio de cipó” ou que lhes permitiu desenvolver uma variedade de
eventos significativos remontadas a partir delas, reconstruídos por eles a partir de suas
próprias experiências no âmbito da família, e a partir da memória coletiva. Depois eu fiz
o trabalho de “destrinchar as tramas do balaio” estirando-as em “textos”, focando
naqueles elementos que apareceram como fundamentais na formação social do Sítio:
estrutura fundiária (chácara e terrenos), a organização familiar do trabalho (os parentes e
41
sistema de guajú), dinâmica de migração (ir embora pra cidade), formas de obtenção de
renda (tecido, lavoura, pesca, emprego, aposentadoria), sua relação com políticos do
município, turistas, comerciantes e outros atores institucionais (as brigas e a ajuda de
quem é de fora).
As perguntas sobre a mudança mostravam as divergências nas perspectivas das
próprias famílias acerca das suas relações com políticos municipais, com a Comfloresta,
técnicos do estado, turistas, por exemplo, e mesmo das relações dos sitiantes entre si. Isso
porque as relações entre sitiantes e quem chega de fora não costumam acontecer
concertadas em bloco, com o Sítio todo simultaneamente, mas diluída no tempo, com
cada família individualmente, encabeçadas pelo pai ou sogro ou avô ou tio que detém
autoridade para falar e decidir publicamente em nome da sua família. Com isso eu quero
evitar a ideia de que os sitiantes tenham suas vidas voltadas somente para dentro da casa
da família. Ser descendente dos fundadores, Fagundes, Santos ou Rezende, é uma
definição que faz referência aos antigos, mas que tem um lugar de enunciação ancorado
no agora, nas interações de hoje e que determina um universo de interdições e permissões
no interior do Sítio.
Ao mesmo tempo em que cada parente é precedido pelos sucessores e por
costumes e normas instituídas por eles (BECKER, 2008), não são entidades sociais
engessadas no tempo, mas se reconstroem nas ações do presente reordenadas nos
movimentos constantes de vínculos e rompimentos. Por isso foi importante o esforço de
reconhecer a posição social de quem reconstitui os eventos em torno dos fatores de
mudança e em relação a quem, para mostrar que aquilo que os sitiantes elaboram como
interpretação das transformações que afetam sua organização, fundada na família, não
está flutuando de forma inerte sobre o mundo real, mas se (re)produz de modo bastante
vívido.
A presença desses elementos na fala dos entrevistados permitiu recompor como
era a vida no Sítio e de como é hoje, como se cada família me tivesse apresentado as
tramas de seu “balaio de cipó”, suas estratégias reinventadas diante do novo. Busco
entender o grupo em suas contradições, dentro de um movimento em uma escala maior, o
litoral do Paraná. Mas o que os sitiantes nos dizem?
42
2 CONHECENDO O SÍTIO E OS SITIANTES: “AQUI É TUDO PARENTE!”
2.1 Um retrato de família
Em princípio, por uma fotografia atual do Sítio é possível mostrar quantos são os
sitiantes, como são aparentados, a estrutura do lugar de vida e trabalho. No entanto, se
perde nessa imagem o movimento de (re)construção do tecido social, o que foi
possibilitado pelas primeiras visitas de campo e alimentado pelo que eu fui conhecendo
com as visitas seguintes. É a fotografia apresentada a seguir que eu pretendo colocar em
movimento nas próximas páginas.
Sobre o histórico do povoamento do estuário, não foram identificadas fontes além
dos poucos estudos feitos na região e da memória dos próprios moradores. O que se sabe
é que os bairros rurais do município de Guaratuba se formaram entre 1890 e 1903,
quando famílias do interior e do litoral do Paraná e de Santa Catarina, sem a posse da
terra, chegaram a remo à Baía de Guaratuba e povoaram o entorno (FERREIRA, 2010;
ANDRIGUETTO FILHO, 1999; PIERRI et al., 2006).
As entrevistas com sujeitos mais velhos do Pirizal puderam reconstituir a
genealogia dos moradores do Sítio de forma fragmentada, que remonta casamentos entre
descendentes de indígenas, portugueses, espanhóis e alemães. Seu Floriano Rezende de
setenta e um anos relembrou uma parte da história dos fundadores Rezende e Fagundes 13:
Francisco Fagundes, de origem portuguesa, foi o primeiro a chegar na vila, avô de Seu
Mario Fagundes, de noventa e um anos que mora no núcleo mais antigo; o fundador se
instalou na ponta do Sítio, para o lado do banhado onde ele construiu sua casa, seu
rancho, o primeiro trapiche e a casa de farinha. Mais tarde vieram, desde bairros vizinhos,
dois irmãos de sobrenome Rezende, também de origem portuguesa, que se instalaram do
lado oposto do banhado, a vizinhança, tendo feito o segundo trapiche. O bisavô de seu
Floriano é Filisbino Rezende, um deles. Os fundadores se casaram com moças de fora,
das vilas próximas à baía. O terceiro sobrenome importante no Pirizal vem da família
Santos, catarinense de origem alemã, espalhada pelos bairros de Guaratuba e de Santa
13
Os nomes e os sobrenomes utilizados ao longo do texto são fictícios, a fim de preservar a identidade
dos sujeitos sociais envolvidos na pesquisa.
43
Catarina, como contaram os primos Chico e Gilberto Santos. Os Rezende, Fagundes e
Santos “se misturaram” pelos casamentos realizados desde o início da ocupação.
Quanto à situação da documentação da terra, Seu Floriano Rezende diz que seus
bisavôs eram os “donos” legais dos terrenos, com registro oficializado, no entanto, com o
tempo a comprovação de aquisição perdeu importância na rotina e cresceu o desinteresse
em pagar por impostos. Seus bisavôs tinham o direito legal sobre a terra registrado em
documento “em algum escritório da prefeitura”, até que um acidente afundou e inundou a
sede do município, arruinando uma série de registros e documentos que testemunhavam a
história oficial de Guaratuba e a propriedade de uma parte do Sítio. O ITCG chegou a
rastrear os registros das terras e encontrou detalhes em um mapa do exército que
confirmava a propriedade, como contou Seu Floriano, embora hoje vivam na condição de
posseiros. Falando sobre os papeis que se perderam, Seu Floriano foi se dando conta de
que a interpretação que ele reconstruiu tinha a importância de rememorar a história dos
bisavós fundadores antes da criação do Pirizal, da qual pouco se falava no cotidiano e,
por isso mesmo, era difícil de se remontar com precisão. Ainda que não falem sobre seus
antepassados diariamente, como deu a entender, são aos feitos, costumes, valores e às
instituições criadas pelos fundadores que os sitiantes de hoje se voltam para reconstruir
sua vida no Sítio, no presente.
No período da pesquisa de campo, havia sessenta e oito sitiantes no Pirizal,
divididos em vinte e quatro famílias 14. Entre eles trinta e cinco são do sexo masculino,
trinta do sexo feminino e três são bebês. Deste total, apenas dez nasceram em outro lugar,
sendo que destes, sete mulheres nasceram em outros Sítios vizinhos onde viveram até que
se casaram com um nativo do Pirizal. Quanto aos três homens que nasceram fora, soube
que são do Paraná, mas não perguntei o município. Assim, quase todos os sitiantes
nasceram e cresceram no Pirizal, e daqueles que vieram de fora a maioria são mulheres.
Praticamente a metade da comunidade é de adultos em condições de trabalho,
quase todos casados, ao passo que os filhos jovens (homens e mulheres) em idade de
trabalho já se mudaram para a cidade para casar e trabalhar. Cerca de vinte são crianças,
14
Com a expressão “família” quero assinalar que mesmo membros de uma só fratria pertencerão ao
mesmo grupo doméstico inicial, mas que originam grupos distintos após seus casamentos (ALMEIDA,
1986). Uma família vive em uma casa com quintal ou chácara, quando reunidas por afinidade formam
um núcleo com sua própria farinheira e rancho. As famílias em seu conjunto são os parentes que
formam o Sitio.
44
bebês ou adolescentes de até dezessete anos (dentre os quais cinco são portadores de
alguma necessidade especial, o que chamou a atenção pela alta proporção), e doze têm
mais de sessenta anos. É comum ver os mais velhos, os de idade passada, trabalhando
seja na lavoura seja na pesca, pois estar na idade de aposentadoria oficial não significa
que a pessoa parou de trabalhar.
A organização da família, uma instituição ao redor da qual orbita a vida no Sítio,
dá sentido à responsabilidade e a autoridade do pai, herdeiro de um dos fundadores,
Santos, Rezende ou Fagundes. As famílias do Sítio se agrupam em nove subdivisões que
eu optei por designar por “núcleo”. Tradicionalmente tem-se que, quando os filhos
homens se casam, saem da casa dos pais e adquirem uma posse em seu quintal 15. A casa
própria pode ser nova, construída, o mais comum, ou pode se tratar de uma casa de
parente abandonada, disponível para ser reocupada, opção mais cada vez mais rara. Com
a morte do pai, os filhos homens o sucedem e passam, cada um com sua nova família, a
conformar novos núcleos independentes entre si. Quando a mãe se enviúva, mantém o
núcleo do falecido marido até que seu último filho se case, quando passa a se integrar ao
núcleo do filho mais velho já casado16.
Nos dias de hoje, a centralidade das condutas familistas na organização das trocas
e da socialização e a convivência rotineira entre as famílias sinalizam como são
personalizados os laços sociais no interior da coletividade e como todos acompanham e
participam da rotina de todos, intensamente.
Com autoestima e orgulho os entrevistados reivindicam sua genealogia comum e
a identidade de parentes como fatores de distinção e como explicação para a permanência
no Sítio. Mas embora o grupo reconstrua nas lembranças um passado com antepassados
em comum, de vínculos fortes, de grandes festas católicas, de grandes mutirões intra e
intercomunitário com bailes memoráveis, esse passado dinâmico também é perpassado
por momentos de dificuldades e penúria material, de idas e vindas da cidade, de brigas e
ressentimentos.
A intensa convivência cotidiana, as relações de reciprocidade e confiança, a
15
16
A não ser que o marido seja de fora, o que é mais raro; então ele e sua esposa nativa devem ir para o
quintal dos pais dela.
O casamento entre os casais mais velhos consistem em uniões consensuais, ao contrário dos
casamentos feitos entre os mais jovens, que passaram a ser formalizados em cartório. Os casamentos
parecem ser estáveis e duráveis, até a viuvez.
45
interdependência produtiva, a hierarquia familiar e o estreito parentesco, que em certa
medida dão coesão e unidade ao Sítio, não significam ausência de disputas internas. As
decisões e vontades do pai ou do sogro como autoridade masculina da casa e herdeiro dos
três fundadores parecem ser fundamentais nesse sentido (pelo menos da porta da casa
para fora – e do Sítio para dentro), pois influenciam a organização do trabalho familiar, o
sistema de transmissão patrimonial (terra) e lógicas migratórias subjacentes a essa
hierarquia. A pesquisa se desenrolou justamente a partir das narrativas familiares sobre
eventos significativos que dizem muito sobre como foi e como é viver no Sítio hoje.
Na entrevista com Cleiton, ele definiu bem os laços a partir dos quais eles
mesmos “se localizam” entre si: “No Sitio tudo é parente, a maioria é primo e irmão”. Os
cinco homens descendentes mais velhos das três famílias fundadoras, Mario Fagundes, os
primos Marco e Floriano Rezende e os primos Gilberto e Chico Santos, junto com suas
esposas, formam até hoje os cinco principais núcleos ao redor do quais orbitam as casas
das famílias de seus filhos, que também formarão novos núcleos depois do casamento e
quando seus pais morrerem. Seguindo a lógica de afinidade, de casamentos e partilhas, os
herdeiros dos Santos se reuniram para o lado da entrada do Sítio, designado por eles de
vizinhança, mais perto dos terrenos e da plantação de pinus, ao passo que os herdeiros
dos Fagundes e dos Rezende, na ponta perto pelo banhado.
Na vizinhança se concentram o maior número de casas, dezesseis, distribuídas
entre os núcleos dos primos Seu Gilberto Santos, Seu Chico Santos, das viúvas Dona
Santina Carvalho Santos, Dona Inês Tomazino Rezende, e membros da família Carvalho
e Seu Júlio Ferraz, núcleos que não estão ligados aos fundadores, são de fora. Já na
ponta, estão os núcleos de Seu Mario Rezende Fagundes, Seu Marco Rezende e Seu
Floriano Rezende. Cada “lado” dispõe de um porto e são sete casas de farinha ou
farinheiras para produção exclusiva das famílias de cada um dos sete núcleos de parentes.
O espaço social do Sítio implica a construção de fronteiras e enraizamentos
materiais e simbólicos que os sitiantes evocavam ao se referirem aos de fora e aos
parentes, mas também ao lidarem com aquela que está na posição de outro na entrevista,
a estudante da cidade. Designar quem é parente e quem é de fora demonstra que os
sitiantes exercem o movimento de inter reconhecimento de que fala Woortman (1990a) e
também que reafirmam os delineamentos de seu lugar de vida e trabalho, a
46
territorialidade de que falam Haesbaert (2004, 2007) e Little (2002). O controle sobre
seus domínios fica perceptível quando tais limites são anunciados naturalmente, nas falas.
Basicamente, os de fora são representados em relação aos parentes, a exemplo do
que se passou com as famílias Carvalho, Tomazino e Vasconcelos vindas de fora que
casaram suas filhas com sucessores, como me explicava a viúva Dona Inês na
reconstituição do vínculo pelo casamento que a tornava uma Rezende. A diferenciação
também aparece na figura do sitiante e do colono, este descrito como o grande
proprietário de hoje que possui maquinário agrícola, funcionário, apoio do governo e
vastas terras férteis no outro lado da baía, por Seu Marco, e, como relembrado por Seu
Gilberto, o colono também se refere à figura do arrendatário dos antigos arrozais dos
lados de Cubatão, de que seu pai foi funcionário nos tempos áureos da lavoura de arroz.
Seu Marco explicou que o Sítio aparece com o nome de Colônia Pirizal na conta de luz,
conforme uma determinação da Companhia Paranaense de Energia (Copel), quando
começou o fornecimento público de energia elétrica, um engano, pois ali é o Sitio, o Sítio
Pirizal. Refletindo sobre o que mudou, Seu Cacá diz que os novos não conheceram os
tempos de abundância de madeira que os antigos podiam usar para construir as
farinheiras. As fronteiras são percebidas também quando Seu Floriano explica a decisão
de seu filho de voltar, de Caiobá para o Pirizal, e fala da dificuldade e da falta de trabalho
na cidade definida em relação à segurança familiar e patrimonial garantida no Sítio. Seu
Chico também estava falando de distâncias e raízes ao reclamar do “sumiço” de peixe e
caranguejo na baía associado aos turistas e as pescadores guaratubanos “que não sabem
pescar como os pescadores crioulos daqui”.
2.2 Conflito, território e bem comum para falar de resistência e familismo
Aqui é importante chamar a atenção do leitor para alguns conceitos da literatura
que se espraiarão pelo texto – conflito, territorialização, bem comum – relevantes para
pensar as diferentes maneiras pelas quais os sitiantes “tecem” seus arranjos de ação,
dentro de um sistema estruturado sobre o pilar da família representada na vontade do paisucessor, sistema que busca permanecer a partir da construção contínua de vínculos e
fronteiras por seus sujeitos. O Sítio se constitui como um território de parentesco,
47
organizado pela classificação gradiente de quem é mais ou menos próximo aos
fundadores Rezende, Fagundes e Santos.
Georg Simmel (1983), considerado um autor clássico nas ciências sociais, não foi
um sociólogo dedicado ao campesinato ou ao mundo rural, contudo, sua teorização mais
geral sobre conflito como um conceito fundante para entender a mudança nas sociedades
humanas contribui para o entendimento da forma como as famílias têm se reestruturado e
reformulado suas práticas sociais e materiais no interior do Sítio.
Isso porque, na perspectiva da sociologia simmeliana do conflito, a sociedade tal
como a conhecemos é resultado dinâmico de duas categorias básicas de interação (ou
sociação): de um lado, a subordinação, dominação, competição, hostilidade, e, de outro,
harmonia, convergência, atração, cooperação e aliança. É assim que sociólogo alemão
concebe toda e qualquer forma de interação entre seres humanos, uma sociação, inclusive
o antagonismo e o conflito entre sujeitos assimétricos que se influenciam mutuamente,
um tipo de interação que obviamente não faria sentido se pensado a partir de um único
indivíduo.
Ambas as formas de relação, a antagonista e a convergente, se distinguem da mera
indiferença que possa haver entre dois ou mais indivíduos ou grupos, pois mostram um
momento de unidade e de síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra o
outro, quanto um para o outro (SIMMEL, 1983, p. 123-124). Se a indiferença resultar na
rejeição e, depois, na supressão da liberdade e na aniquilação do outro, terá um efeito
destrutivo e negativo puro, levando ao fim da sociação.
O conflito tem a função reforçar a interdependência no interior da unidade e de
resolver a tensão entre contrastes. Deste modo, o conflito não possui só uma face
destrutiva e deve ser visto de forma dialética. Isso porque, para Simmel, as sociedades
definidas e verdadeiras não resultam apenas das forças sociais direcionadas para a
integração: um grupo absolutamente centrípeto e harmonioso numa união “pura” não só é
empiricamente irreal como não poderia traduzir um processo de vida concreto.
Sua preferência pelo termo sociação, em vez do termo sociedade, confere ao seu
pensamento flexibilidade e sensibilidade em relação às questões de mudança social,
enfatiza sua concepção de vida social como um processo (COHN, 1979). Essa é a
contribuição mais importante da concepção de conflito como sociação para se reter aqui,
48
a designação do seu papel positivo como propulsor de mudança social.
A dialética entre conflito e consenso, ao reforçar a consciência dos sujeitos e a
percepção da diferença que eles possuem em relação a outros grupos, estabelece
continuamente interdições e permeabilidades, ou condutas de territorialidade, como
sugerem Little, Haesbaert e Almeida. A definição de territorialidades parece se
complementar com o conceito de sociação, de Simmel, nesses termos.
A territorialidade junto com a territorialização e território são conceitos centrais
que merecem uma breve sistematização. O geógrafo Santos (1997, p. 26 apud ALBAGLI,
2004, p. 38) oferece uma definição ampla de território, assim resumida: “um conjunto
indissociável de que participam, de um lado, um certo arranjo de objetos geográficos,
objetos naturais e objetos sociais e, de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a
sociedade em movimento”.
O geógrafo Haesbaert complementa essa primeira definição assinalando que cada
território se constrói por uma configuração singular de múltiplas relações de poder, que
mesclam escolhas materiais e simbólicas. Assim, “o território, enquanto relação de
dominação e apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que
vai da dominação político-econômica mais “concreta” e “funcional” à apropriação mais
subjetiva, cultural, simbólica” (HAESBAERT 2004, p. 95).
Existem diversas concepções de território de acordo com sua maior ou menor
permeabilidade, que vão desde territórios mais excludentes e “puros”, até territórios
totalmente híbridos, que admitem a existência concomitante de várias territorialidades
(HAESBAERT, 207, p. 44).
A territorialidade por sua vez seria a expressão de um sentimento de vínculo e
enraizamento e um modo de agir no âmbito do território vivido, sendo acionada como um
meio de regular as sociações (SIMMEL, 1983) espacializadas e reforçar a identidade do
grupo que lhe imprime suas marcas interventivas diante de outros grupos. Nesses termos,
a territorialidade implica interações sociais, uma vez que é promovida ora pela coesão
social e relações recíprocas ora por relações de exclusão e disputa em torno de recursos
com significados específicos. Resulta então do processo dialético de territorialização, o
que lhe atribui historicidade, e maior ou menor provisoriedade (ABALGLI, 2004, p. 2829).
49
Logo, os territórios não são estáveis e contíguos, ao contrário encontram-se
superposições e instabilidades dentro de seus próprios limites, ou seja, processos de
territorialização, deserritorialização e reterritorialização (HAESBAERT, 2007). O
território possui dois vetores, a desterritorialização e a reterritorialização. Do mesmo
modo que a territorialização pode ocorrer no movimento de controle e identificação com
o território, a desterritorialização pode ser construída por meio de novos limites impostos
ao território, não necessariamente, mas traçados desde dentro ou pelo controle de outros
(HAESBAERT, 2004 p. 236). Ainda que o campo de maior tradição nos debates sobre
território seja a economia, o autor observa que a desterritorialização pode ser descrita em
outras dimensões, como a política e cultural/simbólica, debate acesso pelos temas da pósmodernidade e da globalização17, associado a noções como flexibilidade, incerteza,
hibridez, diversidade. Por sua vez, a reterritorialização consiste no movimento de
(re)construção do território: não é possível afirmar a existência de um processo de
desterritorialização sem pensar no movimento sucessivo, pois ambas são partes de
processos incessantes e generalizados de territorialização (HAESBAERT, 2004).
Little (2002), partindo da perspectiva antropológica, está de acordo com a
afirmação de Haesbaert de que a conduta de territorialidade é um componente
fundamental de todos os grupos humanos, cuja manifestação explícita depende de
contingências históricas. Little define a territorialidade como o esforço coletivo de um
grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de
seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território”. O fato de que um
território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica
que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. De
maneira semelhante, Almeida (2008) define que as condutas de territorialidade
camponesas e indígenas funcionam como fator de identificação, defesa e força, e se
baseiam normas em instituídas e seguidas internamente (BECKER, 2008; HALL,
TAYLOR, 2005).
Eu pude perceber mais nitidamente a importância que a terra tinha para as
famílias nas visitas de campo ao longo do segundo semestre de 2011, que coincidiu com
17
Haesbaert escreve que na história há referências indiretas ao fenômeno da des-territorialização desde
antes da chamada modernidade ocidental, mas é no tempo moderno que o fenômeno da globalização se
intensificou.
50
a temporada de mutirões. Os guajus, como são chamados, ocorrem há décadas em roças
mantidas em uma área reservada para o uso comum e envolvem quase todo o Sítio no
plantio da mandioca, regido por um sistema que tem se mostrado fundamental para a
organização da territorialidade do Sítio (ALMEIDA, 2009).
Quando eu falo em bens comuns me refiro aqui à terra em especial, mas também
aos ecossistemas e aos recursos manejados (tais como a rios, morros, floresta, mangues,
cipó, terra, pesqueiros) dos quais as gerações atuais e futuras de sitiantes dependem e
dependerão como meio de tornar sua reprodução social possível. Alguns desses bens há
décadas têm sido geridos e regulados coletivamente, de modo que não podem ser
considerados propriedade particular com o qual uma família pode fazer o que quer, ainda
que essa obstrução de base moral exista “para seu próprio bem” ou para sua
sustentabilidade social. Sendo assim, trata-se de qualquer bem compartilhado,
considerado entre eles como “nosso” (FLÓREZ, 2008, p.109).
Nesse ponto do texto, convido o leitor a mais um parênteses, pois qualquer
discussão sobre o conceito de bem comum, por mais breve que seja, não pode prescindir
das questões levantadas por Elinor Ostorm (1990, 2005), em uma abordagem já
considerada clássica. É no livro “Governing the Commons” (1990) que Elinor Ostrom,
prêmio Nobel de economia de 2009, reflete sobre a auto gestão que grupos fazem dos
recursos de uso comum, no calor das preocupações globais com a degradação ambiental e
da discussão de soluções políticas para o enfrentamento da crise ambiental. O livro
apresenta dados e análises institucionais de situações de dilemas da ação coletiva em
torno da gestão de recursos naturais de uso comum espalhados por todo o planeta. Seu
notável conjunto de dados sustenta o argumento de que a gestão comunitária dos comuns,
baseadas em instituições criadas pelos próprios usuários em pequena escala, é uma opção
mais eficiente que a gestão pública ou privada.
Os conceitos utilizados por Ostrom vêm dos paradigmas clássicos das ciências
econômicas e políticas (institucionalismo e teoria da escolha racional), com os quais no
entanto ela dialoga criticamente: bem, ator racional e instituição (OSTROM, 199; 2005;
ANDREWS, 2005; HALL, TAYLOR, 2005; BECKER, 2008). O bem comum se
contrasta com o bem que pertence a uma única pessoa excluindo todas as outras (um bem
de acesso privado), ou com o bem que não tem dono (acesso aberto) ou que se contrasta
51
com um bem que pertence ao Estado ou é por ele gerido (bem público). O conceito do
sujeito da escolha racional supõe que os cálculos para se fazer uma escolha estão
orientadas para a maximizar vantagens e, portanto, os sujeitos balançam custos e
benefícios antes de uma decisão. Instituição são regras e normas criadas para rotinizar a
ação dos sujeitos visando um resultado.
Segundo ela, a visão estreita dos sujeitos, dos bens e da situação nos primeiros
estudos sobre os comuns levou ao pessimismo de que largados aos interesses dos usuários
diretos, sujeitos egoístas, os recursos estariam predestinados à sobre exploração e ao
esgotamento, a “tragédia dos comuns”, efeito indesejado do ponto de vista da relevância
do recurso. Essa conclusão defendia a necessidade de um agente regulador externo.
Ostrom não abriu mão dos mesmos conceitos para a produção e análise dos seus
dados, mas chegou a conclusões diferentes, de que é sim possível a cooperação para
sustentar os recursos. Novos resultados foram encontrados porque Ostrom acrescentou
variáveis aos modelos testados em laboratório, confrontando-os com situações empíricas.
A partir disso, formulou críticas às limitações explicativas e as ambições universalizantes
dos modelos, por desconsiderarem a diversidade das realidades empíricas.
Em vez de pensar que os sujeitos envolvidos em um dilema estão isolados e que
necessariamente orientam sua ação pelo egoísmo, seu framework considera que os
sujeitos se comunicam e acumulam aprendizados, constroem confiança mútua,
reconhecem a reputação, e assim são capazes cooperar para modificar e criar novas
instituições, como uma alternativa à necessidade de regulação pelo estado ou pelo
mercado (OSTROM, 1990, 2005; ANDREWS, 2005).
Sua crítica à abordagem do uso dos bens comuns foi feita do interior da teoria
dominante, mas sua leitura dos resultados a levou a uma crítica de fora dela (ANDREWS,
2005). A questão central que Ostrom busca responder é o que faz com que pessoas
comuns, na posição de usuários, consigam criar instituições robustas para a manutenção
dos bens comuns. Ostrom (1990; 2005) chegou a intuir que quando quaisquer políticas
públicas pressupõem que os usuários dos comuns não sejam capazes da auto gestão e por
isso precisam de regras exógenas impostas, a construção deliberativa da legitimidade e o
aprendizado institucional acumulados ao longo de muito tempo em interações face a face
se perde. Reconhece assim a dimensão interativa da construção de normas de
52
reciprocidade e cooperação, ainda que os conceitos dos cânones da economia e da ciência
política não tenham lhe fornecido meios interpretativos para entender o processo de
origem e legitimação dessas normas, que variam enormemente no mundo real. As
instituições que persistem dependem de mecanismos sociais que as legitimam as
mantendo aceitáveis, e não só de coerção ou incentivos, o que pode ser explicado com a
adoção de uma concepção de ação social, segunda a qual os sujeitos fazem escolhas não
só orientados pela maximização das vantagens mas também por valores e códigos morais
(ANDREWS, 2005; HALL, TAYLOR, 2005; IMMERGUT, 1992; BECKER, 2008).
De fato, por serem modelos teóricos puros, o framework de analise institucional
da Ostrom (2005) ajuda a entender determinadas lógicas dos processos históricos, mas
não dão conta de explicar completamente casos concretos, como o do Pirizal. A
manutenção do sistema de uso comum pensado segundo a teoria dos bens comuns
dependeria de um conjunto de variáveis que são vulneráveis no contexto de mudanças
intensas observadas no Pirizal, pela combinação de múltiplos fatores.
O olhar sobre a dimensão das relações sociais envolvidas no uso comum de um
bem em certa medida converge com a posição de Helfrich e Haas (2008), para quem o
termo “bem comum” é tomado como o um conceito político. Os comuns não existem em
si, são uma convenção social, um direito que pode ser formal ou informal, ou em síntese
uma relação social; se estruturam da relação de sujeitos com o recursos e entre os sujeitos
com os recursos.
Como defendem ambos autores (HELFRICH, HAAS, 2008), a mera a definição
de direitos coletivos de propriedade obedece ao intuito de garantir que os recursos
comuns sigam disponíveis sucessivamente, se renovando. Mas se a definição de um bem
comum está vinculada à questão da propriedade, é importante lembrar que vai além dela.
Tratam-se de “estratégias que se opõem às tendências dominantes da privatização, da
desregulação, da comodificação e a valorização monetária dos processos sociais e
naturais” (HELFRICH, HAAS, 2008, p. 306).
Assim, eles trazem a reflexão mais geral de que um bem comum pode ser
entendido como práticas sociais e culturais e normas de consumo diferentes do trato que a
sociedade, o mercado e o estado vêm dando à natureza, à cultura e aos conhecimentos
(SCOTT, 2002; GUHA, MARTINZ-ALIER, 1997; ALMEIDA, 2009; CAMPOS, 2011;
53
ACSELRAD, 2004; JATOBÁ et al, 2009).
Quando olhamos o Pirizal com as lentes desse debate, vemos que o principal bem
compartilhado entre as famílias é a terra. A centralidade da terra para a família
camponesa é amplamente destacado pelos autores que discutem autonomia e resistência
camponesa. Os estudos clássicos sobre o campesinato tradicional “fazem sempre
referência ao profundo enraizamento das comunidades camponesas a um lugar, visto
como a terra ancestral, conquistada pelos seus antepassados e depositária do trabalho e do
afeto de seus membros” (MALAGODI et al., 2009, p. 37). Os autores indicam que a terra
constitui o principal patrimônio e meio de produção de famílias camponesas, parte
constituinte de sua territorialidade (ALMEIDA, 1986; BOURDIEU, 1972; ALMEIDA,
2009; GALIZONI, 2002; PLOEG, 1994, 2008, 2009; SEYFERTH, 1985; WANDERLEY,
2001, 2004; WOORTMANN, 1990a, 1990b; ACSELRAD, 2004).
As terras de uso comum estruturam a organização familiar, as relações de
vizinhança e amizade, mas são acionadas também em face de conflitos internos e
externos, de modo que não pode ser reduzida analiticamente a uma mera resposta
econômica. A centralidade da terra no campesinato vai além de seu valor no mercado,
dela depende a reprodução e produção da família no território (ALMEIDA, 2009;
BOURDIEU, 1972; SEYFERTH, 1985).
No Sítio a manutenção do sistema de uso comum que rege os terrenos pode ser
considerado uma prática de resistência, uma vez que se materializa na interdição do
acesso a quem é de fora representado pela figura do fazendeiro, do empresário, do turista,
do estado e portanto àqueles com outros interesses sobre a terra, mercantis, que não
compartilham dos seus interesses e valores familistas (SEYFERTH, 1985; REIS, 1995;
WOORTMAN, 1990a; GALIZONI, 2002; BOURDIEU, 1972; ALMEIDA, 1986;
ALMEIDA, 2009).
Por outro lado, realizar uma análise sincrônica sobre as regras de uso, posse e
sucessão da terra, enfocando-a como o único bem importante às famílias do Sítio, é
ignorar a heterogeneidade de estratégias acionadas no interior de uma mesma família e
por todas elas. Para além da agricultura, estão as diferentes modalidades de expoloração e
recursos pelos quais as famílias concorrem ou cooperam – a produção de farinha se
articula com a exploração de outros recursos materiais (pesqueiro, cipó, salário). Mas
54
também os sitiantes dependem de outras modalidades de recursos como status,
conhecimentos, alianças sociais, compondo uma variedade de práticas de resistência,
definidas e mobilizadas no âmbito da família, por meio das quais interagem com a
sociedade englobante.
Até algumas décadas atrás, as formas de uso e apropriação dos recursos naturais e
da terra eram decididas entre as populações locais, com pouca interferência institucional
externa, seja do estado seja do mercado. Com efeito, as decisões são tomadas em sua
maioria na instância doméstica, no âmbito da família. Grande parte das regras e
instituições sociais em torno dos casamentos, da migração, da organização do trabalho, da
gestão dos recursos e do território explorados emergem de uma organização familiar em
seu duplo aspecto. Se por um lado diz respeito aos ancestrais e às decisões,
conhecimentos e costumes aprendidos de gerações anteriores, são, ao mesmo tempo,
reformuladas nos projetos de cada família, cada uma com suas preocupações particulares,
no presente.
Os moradores se depararam com novas mudanças promovidas pela chegada dos
empreendimentos florestais e, em seguida, a valorização imobiliária que atrai
principalmente turistas da pesca e veranistas “neo-rurais”, e as restrições ambientais
resultantes da implementação da APA de Guaratuba. Além de grupos reflorestadores,
começaram a chegar fazendeiros que reforçaram práticas agropecuárias não
recomendadas pela legislação ambiental vigente, o uso de agrotóxicos proibidos, e a
extração clandestina de recursos florestais, incluindo fábricas improvisadas de palmito
(IAP, 2006). A incidência de políticas públicas e de novos segmentos capitalistas nas
localidades rurais se deu de várias formas, implicando em disputas entre
institucionalidades servindo a diferentes interesses.
Uma das primeiras empresas reflorestadoras a chegar ao litoral foi a Faber Castell,
seguida pela Comfloresta. Ambas haviam sido objeto de denúncia nas reuniões da APA e
com o MICI, pelo grupo da UFPR Litoral e por uma liderança local entre 2010 e 2011. A
Comfloresta também se faz ativamente presente nas reuniões do Conselho Gestor da
APA, justamente por possuir extensas terras dentro dessa UC, e é presente de forma
contundente também nos limites dos terrenos. Assim, a relação entre a Comfloresta, as
formas de apropriação e uso das terras e o sistema do guajú não podiam deixar de ser um
55
assunto explorado nas entrevistas e objeto das observações em campo, que apontaram
para a importância central do cultivo da mandioca para os sitiantes, no contexto da falta
de vocação da terra para a diversificação da agricultura.
O propósito não será explorar cada um dos casos que se apresentaram, conflitos e
as alianças entre cada família e cada ator externo, em determinado momento ou evento
reconstituído nas entrevistas, mas sim buscar nos relatos como essas sociações, em seu
conjunto, representam pressões que exigem novas estratégias dos nativos, e por isso são
importantes para os objetivos aqui colocados
2.3 Nos meandros do território dos parentes
O primeiro morador que entrevistei foi Seu Mario Fagundes, viúvo, o morador
mais velho com noventa e um anos de idade. Ele vive sozinho numa casa cercada pelas
casas de seus filhos homens que permaneceram na comunidade. Sua única filha mulher,
Dona Dulce se casou com Marco Rezende e hoje forma o núcleo do marido. Os filhos de
Dona Dulce, Marcelo e Ronaldo, casados, já possuem suas próprias casas, mas antes
disso moravam com seus pais. As casas dos jovens casais Marcelo e Judite e Ronaldo e
Renata foram construídas perto da casa de Dona Dulce e Seu Marco Rezende, formando
um núcleo de famílias que pode compartilhar a farinheira familiar e o rancho ou um
“puxadinho” que funciona de garagem para os automóveis recém comprados por seus
filhos pescadores, convivem e trocam apadrinhamentos, trabalho e festas.
Outro exemplo é a viúva Dona Santina que nasceu numa casa na entrada do
Pirizal, na vizinhança, onde morou com seus pais e irmãs (os Tomazino, de fora) até seu
casamento. Ao casar com o irmão de seu Chico Santos (bisneto e herdeiro de um
fundador), mudou-se para perto de seu sogro; quando este faleceu, formou com seu
marido seu próprio núcleo. Seus filhos que permaneceram na comunidade já são adultos,
mas o solteiro ainda mora com ela na casa da família (provavelmente até que case). Seu
outro filho, Cleiton, casado com Marcia, levantou uma casa de madeira onde mora com
sua esposa e filha na frente da casa da mãe viúva.
Por sua vez, o cunhado de Dona Santina, Seu Chico Santos, herdeiro
politicamente importante, casou-se e teve filhos com sua esposa Dona Suzana, nascida
56
em um Sítio vizinho. Os filhos que permaneceram na comunidade também se casaram e
construíram suas casas ao redor da casa dos pais, formando um outro núcleo.
Estes exemplos ilustram a lógica dos núcleos familiares e podem ser observados
de forma mais completa no Quadro 1. O quadro apresenta a configuração social da ponta
e da vizinhança, dos núcleos familiares, bem como das casas em que moram pais e seus
filhos solteiros, e também apresenta suas respectivas atividades produtivas (por cada
casa), as quais serão descritas e analisadas mais adiante.
Quadro 1 – Configuração dos núcleos familiares e suas respectivas atividades
econômicas.
NÚCLEO
CASAS
Nº
AUTOCONSUMO
FONTES DE RENDA
cipó, mandioca
pesca, mandioca,
aposentadoria
PESSOAS
PONTA
Seu Mario
1
Seu Brasílio
4
Seu Cacá
5
Seu Mario
Fagundes
(viúvo)
Zeca
Seu Marco
Seu Marco e
Dona Dulce
Marcelo
3
5
4
farinha, horta
mandioca, farinha,
pesca
pesca, mandioca,
farinha, cipó, horta
Seu Floriano e Seu Floriano
Dona Luzia
3
3
func. municipal, farinha
pesca (com. e tur.),
farinha, cipó, func.
pesca, mandioca,
municipal
aposentadoria, pesca
farinha, criação animal,
(com. e tur.). serv.
horta, pomar
turísticos, farinha
pesca (com. e tur.), serv.
pesca, criação animal,
horta, pomar, farinha
Rezende
Ronaldo
func. municipal, farinha
pesca
mandioca, farinha
turísticos, peq. com.,
caseiro eventual, farinha
pesca (com. e tur.), serv.
turísticos, caseiro
eventual, func.
municipal
aposentadoria, farinha
57
Rezende
VIZINHANÇA
Seu Gilberto e
Seu Gilberto
3
Paulo
4
Jailson
2
Dona Helena
Santos
pesca, mandioca,
farinha
mandioca, farinha,
pesca
pesca, criação animal,
mandioca, farinha,
aposentadoria, farinha
farinha
func. municipal, farinha
horta, pomar
Fausto
4
mandioca, farinha, cipó
criação animal,
Seu Chico
2
Seu Chico e
Dona Suzana
Dona Santina
(viúva)
Dona Inês
Felício
2
Nilton
3
Dona Santina
2
Cleiton
4
Dona Inês
1
Lorenço
3
Patrício
2
Wiliam
1
Moisés
Lucia
1
5
Júlio
Júlio
1
9 núcleos
24 casas
---
mandioca, farinha, cipó,
func. municipal, farinha,
cipó
aposentadoria, farinha,
cipó, peq. com.
horta
pesca, cipó, mandioca,
func. municipal, cipó,
farinha
pesca, mandioca,
farinha
pesca (com. e tur.),
farinha, cipó
cipó, mandioca, farinha,
farinha, cipó
cipó, farinha, pesca
pesca
com.
pesca, cipó, mandioca, func. municipal, pesca
farinha
pesca, mandioca,
com., cipó, farinha
pesca com., farinha,
farinha, cipó
cipó
pesca (com. e tur.), cipó,
pesca, mandioca, cipó
pesca, mandioca,
func. municipal
caseiro assalariado,
farinha
pesca, mandioca,
pesca com., farinha
func. municipal, farinha,
farinha
mandioca, farinha
--pesca, mandioca,
pesca com.
func. municipal, farinha
pedreiro
aposentadoria, serviços
farinha
gerais
68
moradores
Legenda: pesca com. = pesca comercial; pesca tur. = pesca turística; mandioca = cultivo de
58
mandioca; farinha = uso doméstico e/ou venda de farinha; cipó = coleta, beneficiamento e
artesanato em cipó; func. municipal = funcionário(a) municipal (professor, trabalho na
estrada, zelador etc.); serv. turísticos = serviços turísticos (restaurante, pousada, limpeza de
peixes); peq. com. = pequeno comércio local; criação animal = criação de aves (galinhas,
galos, patos) e vacas; caseiro eventual = trabalho como caseiro(a) de turistas em algumas
épocas do ano; caseiro assalariado = trabalho como caseiro(a) fixo de turista (mora na
propriedade).
Com o Quadro 1 fica mais fácil visualizar que as famílias ligadas a Seu Mario
Fagundes se concentram em um núcleo, e da mesma forma acontece com Seu Floriano
Rezende e Seu Marco Rezende, todas na ponta. Na vizinhança, encontram-se os núcleos
da viúva Inês Tomazino Rezende, de Seu Chico Santos, de Seu Gilberto Santos e a viúva
Dona Santina Carvalho Santos, cunhada de seu Chico. E existem os que não são
vinculados com os fundadores, como Moisés Carvalho (mora sozinho na casa herdada
dos pais), sua sobrinha Lúcia e Gabriel e seus três filhos (que moram em uma casa da
família) e seu ex-cunhado Wiliam (que mora na casa de sua ex-mulher no terreno dos
Carvalho)18; o nono núcleo seria de Júlio Ferraz, solteiro, filho do finado professor Ferraz
que veio de fora e se instalou com a família para dar aula nos primeiros anos de
existência da escola da Sítio.
O conjunto de relações de interdependência e obrigações mutuas entre os parentes
do Sítio e as famílias dos outros bairros vizinhos representa um padrão de organização
social do sitiante do estuário, mas a interferência de outros grupos com sistemas de
normas, práticas socais e de autoridade e condutas de territorialidade próprios, altera essa
lógica.
No que se refere a benfeitorias, na ponta, as casas são quase todas construídas em
alvenaria e pintadas recentemente. O porto da ponta é mais estruturado do que o porto da
vizinhança, em parte devido aos investimentos dos irmãos da ponta na pesca turística,
que atende a intensa saída e chegada de embarcações, mais concentrada na ponta. O porto
possui dois grandes e bem estruturados ranchos de alvenaria, onde ficam também dois
18
Para fins de organização dos dados, estes últimos foram agrupados em um mesmo núcleo por serem
vinculados à família Carvalho.
59
trapiches, um de madeira e outro recente de cimento.
Na vizinhança fica o “centrinho” do Sítio, onde se concentram as casas de
madeira do Pirizal, além do campo de futebol, o orelhão, a igreja evangélica, a igreja
católica, o salão paroquial usado em festas, a farinheira comunitária, e o cemitério.
Existem sete ranchos no porto da vizinhança, bastante semelhantes entre si, erguidos em
madeiras e cobertos por “eternit”, enfileirados um ao lado do outro, de frente para o
banhado. Não há trapiche nesse porto, os barcos encostam no pirizal. A estrutura de certa
maneira rústica do porto da vizinhança reflete a finalidade principal de seu uso: atender
às demandas da pesca pro gasto e da pequena pesca comercial.
Das sete casas de farinha caseiras, uma por núcleo, a mais antiga que fica na ponta
está praticamente desativada - a farinheira de Seu Mario. As outras da ponta pertencem a
Seu Marco e Seu Floriano; a as da vizinhança, a Seu Chico, a viúva Dona Santina, Seu
Gilberto e Dona Inês. As famílias que compõem um mesmo núcleo familiar
compartilham a mesma casa de farinha onde o trabalho se dá conjuntamente e o produto
final é apropriado pela família, lógica que permeia a entre ajuda nas outras atividades.
Os engenhos de farinha, também chamados de casa de farinha ou farinheira, são
barracões antigos, construídos com diversos tipos de madeira nativa (guanandi, canela,
por exemplo) ou bambu e as mais recentes com cimento e tijolo, para abrigar os
aparelhos utilizados na transformação da mandioca em farinha. A farinheira mais antiga,
a de Seu Mario, parada, chama atenção pelos equipamentos rústicos e peças feitas
artesanalmente, e também pelas madeiras de lei, tendo passado por pelo menos duas
gerações. Há duas farinheiras construídas recentemente de alvenaria, com a demanda de
novas famílias que foram se formando: a farinheira do núcleo de Seu Floriano,
compartilhada com a família do Zeca; e a farinheira da família de Dona Inês
compartilhada com seu irmão Patrício e sua cunhada Dona Rita. Existe também a
farinheira comunitária. Como será tratado posteriormente com mais detalhes, as famílias
em sua maioria têm preferido produzir farinha nos engenhos caseiros geridos pelas
famílias de um mesmo núcleo, em vez de usar a farinheira comunitária.
As exceções dos núcleos familiares que não possuem uma casa de farinha são o
núcleo de Seu Júlio e o núcleo de Lucia e Gabriel e Wiliam 19. Destes, apenas Wiliam que
19
Seu Júlio não constituiu família e não possui roça tampouco produz farinha. Já Lucia nasceu na
comunidade mas desde de sua juventude morou na área urbana, onde casou e teve filhos. Há menos de
60
se casou e separou de uma nativa possui roça e eventualmente produz na farinheira de
outras famílias. Lucia é nativa, mas ficou fora por muitos anos e não participa tão
ativamente da vida comunitária; por sua vez Júlio e Wiliam não possuem nenhum grau de
consanguinidade com os moradores.
As áreas contiguas às casas reservadas à roça de mandioca são chamadas de
terrenos; assim como os pesqueiros tradicionais, eles são exemplos de espaços comuns
apropriados rotativamente de acordo com um sistema de troca de trabalho entre as
famílias aparentadas, em uma prática de reciprocidade que se extrapola a outras
atividades produtivas de que são exemplo o tecido de cipó e a produção de farinha e a
pegação de caranguejo (que será explicado mais adiante).
Essa “fotografia” sócio espacial do Pirizal se baseou inicialmente na descrição da
Conceição, filha de Seu Chico Santos, logo quando comecei a pesquisa de campo. O
mapa esboçado (Fig. 2.1) serviu para situar os pontos de referência para as casas dos
moradores mais velhos, de idade passada, para as primeiras entrevistas, e foi sobreposto a
um mapa com informações físicas e detalhes mais completos sobre as instituições do
Sítio.
Depois de ter feito essa primeira imagem do Sítio hoje, as próximas páginas
procuram mostrar a dinâmica dos principais elementos da vida social das famílias que
vão se reorganizando, e que nos permitem reconhecer o que mudou, a partir das formas
de uso e apropriação da terra, da pluralização das atividades econômicas, da dinâmica de
migração, da organização do trabalho familiar, enfim, fatores que são difíceis de serem
apresentados em tópicos na exposição, porque de fato se influenciam e são mutuamente
referenciados na constituição dos “balaios tecidos”. Não há, por exemplo, como se pensar
a migração de um filho antes do casamento sem entender o sistema de transmissão de
herança e o estresse fundiário, da mesma maneira como a organização do trabalho
familiar está estreitamente associada à pluralização das atividades econômicas e a
agregação dos núcleos com os casamentos. Nas narrativas apareceram uma variedade de
2 anos resolveu voltar com a família para a comunidade. Seu marido Gabriel trabalha como pedreiro e
realiza pequenas obras, como a reforma da “Reserva do Bicudinho” administrada pelos ornitólogos
próximo à lagoa do parado e a construção da pousada da Judite e do Marcelo em alvenaria (antes era
um casebre de madeira, que foi demolido). Wiliam passou a fazer parte da comunidade ao se casar com
a irmã de Lucia, que com o divórcio se mudou para a cidade; Wiliam ficou com a casa no terreno dos
pais dela e participa do sistema de uso comum da terra; ele produz farinha em casas de farinha de
vizinhos.
61
elementos da formação do Sítio que vão se alterando ao longo do tempo, conjugados com
as mudanças sociais do Litoral. As entrevistas relacionam muitos eventos, sujeitos,
lugares e tempos, elementos que convergem e se distanciam conforme a família,
dificultando uma exposição linear, por isso como opção de escrita as entrevistas foram
apresentadas de uma forma que mais lembra uma espiral.
62
Figura 2.1 – mapa do Sítio esboçado com a ajuda de Conceição no primeiro dia de
campo.
63
3 TECENDO O BALAIO: ENTRE A PONTA E A VIZINHANÇA
3.1 Os sitiantes e o Sítio em movimento: fracionamento das posses, sucessão masculina e
migração feminina
Desde a ocupação e criação do Sítio Pirizal, os homens tendem a se fixar e se
enraizar no território, ao passo que as mulheres podem ser as nativas que se casam com
nativos e saem da casa dos pais para a do marido ou as que emigram e se casam fora;
podem ser também as que chegam de outra localidade, casam com nativo e permanecem.
Afinal, é o casamento com o homem “enraizado” que situa a mulher em algum lugar
entre os parentes, na sua nova família.
Os casamentos endogâmicos são os mais comuns entre os mais velhos e geraram
os casais de primos, diretos e indiretos, como Dona Dulce Fagundes e Seu Marco
Rezende, Seu Gilberto Santos e Dona Helena Santos, Conceição Santos e Nilton
Fagundes. Porém, desde o início do povoamento, acontecem os casamentos de nativos
com mulheres de famílias que se mudaram para o Sítio ou mulheres nascidas em
comunidades da região, que “foram buscadas”, se casaram e se mudaram sem a família
de origem.
Desde o casamento com um nativo, a moça passa a assumir as obrigações e os
direitos que lhe cabem, conforme diz a família que a acolheu, diante dos vizinhos e da
comunidade. A família do marido passa a ser a nova família da esposa e seu nome passa a
ser seguido do nome dele, como se escutou frequentemente. Este é o caso de Dona
Suzana do Chico, Melina do Zeca e Flor do Jailson, Judite do Marcelo, Geraldina do
Cleiton, como podemos observar na seguinte passagem da entrevista com a viúva Dona
Inês, moradora da vizinhança:
INÊS: Aqui é Rezende, Santos e Fagundes. Meu nome sobrenome de
solteira é Tomazino, mas agora é Rezende, porque o irmão dela
(apontando para cunhada Rita) era Rezende. Mas só o que encontra no
Pirizal é Rezende, Santos e Fagundes. Só que não casa parente com
parente. Mas não sei, vem outros, namora, casa, mas mora aqui, e é
Rezende, é Santos. Eles ali, a Conceição e o Nilton são parente.
64
Há duas gerações, as famílias dos Carvalho e dos Tomazino se mudaram para o
Pirizal, cujos filhos eram em sua maioria moças. Os casamentos de suas filhas Acácia,
Inês, Lucélia, da família Tomazino, e Luzia e Santina, da família Carvalho, com herdeiros
nativos integraram-nas ao Sítio, ou seja, as então moças de fora passaram a pertencer ao
lugar, pelo casamento (suas outras irmãs saíram e se casaram com homens de fora). Já
entre os dois filhos homens, Moisés Carvalho e Antonio Tomazino, este se casou com
Rita Rezende com quem se mudou para a cidade, mas recentemente voltaram para a baía,
onde compraram uma casa. Voltaram sem herança justamente por ela ser mulher, que
emigrou e ele ser de fora. Apesar de trabalharem no guajú junto com os moradores, de
fazerem farinha no engenho próprio e de participarem da vida comunitária, e terem sua
casa no Sítio, esta está fechada, pois decidiram morar num Sítio próximo voltado ao
turismo da pesca, onde trabalham como zeladores para um proprietário. Por sua vez,
Moisés Carvalho é solteiro e vive sozinho na casa que fora de seus pais, ao lado da casa
do cunhado Wiliam, formando, cada um, um núcleo individual, na vizinhança.
A mulher vinda de fora, quando casa com um nativo, é mais aceita e passa menos
dificuldades do que o homem na mesma situação. Isso porque um novo membro da
família quando é um homem de fora pode trazer implicações importantes para a regra de
sociabilidade e para os arranjos de sucessão e herança. Para os homens não-nativos fica
mais difícil acumular confiança e construir raízes na comunidade, pois esse direito cabe
apenas aos homens que descendem ou dos Fagundes, ou dos Rezende ou dos Santos.
Existe somente um caso de casamento entre uma descendente dos fundadores e
um homem de fora em que o marido logo se mudou para o núcleo do sogro: Joana, filha
de Seu Gilberto e Dona Adelina Santos, e Fausto. Outras duas situações de mulheres que
nasceram no Pirizal e casaram com homens de fora são Linda e Lúcia Carvalho (irmãs de
Dona Santina, viúva, e Dona Luzia casada com Seu Floriano) que se casaram e se
mudaram para a cidade, mas retornaram com seus maridos de fora. Lúcia se casou na
cidade, mas recentemente, por dificuldades com oportunidades de trabalho, voltou para a
comunidade com seu marido Gabriel, que trabalha como pedreiro, e seus dois filhos préadolescentes.
No caso de Linda, ela casou fora com Wiliam, levou-o para o Sítio e depois se
separaram. Foi quando ela se mudou para a cidade e ele decidiu permanecer na chácara
65
da família Rezende, seus cunhados. A chácara implica um terreno de uso rotativo para a
roça que é compartilhado com os outros moradores. Wiliam foi descrito como uma figura
bastante controversa, por diversas famílias. Há anos adquiriu o direito de plantar no
terreno dos cunhados, sucessores, mas no meio de 2011 cercou o terreno e decidiu
oferece-lo a um comerciante local como pagamento de uma dívida que tinha com ele.
Quando a intenção de “venda” do terreno foi descoberta, depois que Wiliam tinha
levantado uma cerca, chegaram a realizar uma reunião para esclarecer a situação do
terreno, mas Willian não quis participar.
Após a tentativa de conversa, sem solução, o cunhado Seu Floriano Rezende
aproveitou o momento de seu guajú em que já estavam mobilizados homens e mulheres
para derrubar a cerca levantada por Wiliam, e, assim, impedir a venda. A situação virou
um impasse porque que o terreno de uso da sua ex-esposa Linda “pertencia à
comunidade”, onde famílias da ponta e vizinhança iam participar de um guajú20 já
programado para breve, e agravado pelo fato de Wiliam não ser herdeiro, ele é de fora. A
retaliação, expressa no ritual do mutirão de homens com a enxada em punho, impediu
Wiliam de usar a venda para pagar sua dívida, interditou seu acesso à roça por uma
temporada e simbolicamente reforçou a regra de apropriação comum (BECKER, 2008;
OSTROM, 1990), a que tem acesso quem é parente.
Para o homem de fora casado com uma nativa a integração fica limitada e
diferenciada em relação a quem é nativo, ainda mais na situação de moças que já não
eram parentes, como é o caso das irmãs da família Carvalho e de Linda que casou com
um homem de fora. Os indivíduos “agregados” vindos de outras comunidades (na
maioria mulheres) se acomodaram aos núcleos pré-existentes através dos casamentos
com os parentes, o que lhes exige uma espécie de conversão moral (BECKER, 2008).
Devem incorporar moralmente as regras de convívio social e os costumes próprios aos
sitiantes, como por exemplo o direito de fazer roça nas terras de uso comum (terrenos),
participar do culto religioso, participar da cultura do guajú, respeitar a hierarquia de seu
núcleo familiar, ou seja, compartilhar instituições criadas e legitimadas pelo grupo, que
explicitamente levam em conta o nascimento e o casamento.
20
O guajú ou o mutirão compensa a ausência da força de trabalho dos filhos emigrados e também reforça
os laços de troca de trabalho, um traço bastante recorrente do campesinato brasileiro (WOORTMAN,
1990a, 1990b).
66
Isso porque a retirada de terras do circuito dos parentes ameaça as normas de
casamento e nascimento que asseguram o familismo. As regras excludentes de herança e
sucessão masculina foram instituídas no contexto de escassez de terras e de condições
ruins de reprodução social para todos os filhos, que acabam emigrando. Quando algum
parente morre e deixa uma posse para filhos que estão na cidade, ou quando uma família
toda se muda para longe, a herança pode ser vendida para um parente por um valor
simbólico ou fica disponível para algum casal recém-formado, ou seja, não sai do circuito
de parentes. Essa lógica se parece com as regras de ocupação das capouras apropriadas
para o plantio rotativo da mandioca (bolas), para o lado dos terrenos (áreas de uso
comum), em que quando a bola deixou de ser útil para outrem depois do corte, é
abandonada até a capoura crescer, pronta para ser escolhida e receber uma nova roça. O
que acontece é que existem muitos nativos para pouco espaço, cada vez mais
fragmentado. E, além disso, o novo mercado imobiliário se aqueceu com a valorização
que a região adquiriu depois da construção de estradas e instalação de luz, atraindo
sobretudo turistas da pesca e veranistas (turistas de segunda residência).
A permanência preferencial dos filhos homens mais velhos, que quando se casam
constroem ou ocupam uma posse ao lado do pai, fracionando o lote familiar, tem a
contrapartida da pressão para o êxodo das filhas mulheres. Nos últimos tempos os filhos
homens jovens também têm saído. Mas mesmo assim a situação tem sido
convencionalmente mais perversa para as mulheres, para quem a interdição ao direito a
uma posse no núcleo dos pais impõe o êxodo ou à sujeição à espera pelo abandono ou
venda de uma posse. Em tempos de sitiantes disputando um espaço para morar, “se
espremendo” nas posses, é cada vez mais rara a existência de imóveis abandonados.
Logo, o casamento com um nativo (um primo ou parente) se torna uma condição para a
permanência com acesso garantido à terra, para as mulheres que desejarem permanecer.
O número total de filhos por família em média é cinco, sendo que mais da metade
dos filhos de cada família emigrou para as cidades mais próximas, como Guaratuba,
Matinhos e Caiobá, no Paraná, e Garuva e Joinville em Santa Catarina.
Preferencialmente, as filhas mulheres se mudam e se casam para os lados da cidade. Os
jovens param de estudar cedo e quando entram na idade de trabalho almejam obter um
emprego assalariado na cidade, como forma de não seguir a vida de lavoura dos pais. Os
67
jovens emigrados, com baixa escolaridade e sem experiência e qualificação profissional
adequadas às demandas do mercado de trabalho propriamente urbano, muitas vezes
aceitam subempregos, informais, ou em empregos temporários, de pedreiro, operário,
garçom/garçonete e ocupações relacionadas ao turismo, como os filhos de Dona Flor e
Jailson Santos, Dona Rita e Seu Patrício, Seu Chico e Dona Suzana, Seu Gilberto e Dona
Helena, Fausto e Joana, da vizinhança. Outros conseguem trabalhos como funcionários
públicos municipais, como auxiliar administrativo ou professor, a exemplo das duas
filhas de Dona Dulce, da ponta.
A incerteza das oportunidades econômicas, a insegurança e a falta de
reconhecimento do mundo do assalariamento e da subordinação encontrados na cidade
são contrastadas com a vida em família, os laços sociais, relativa autonomia em relação a
patrões e a mínima garantia de morada que a transmissão patrimonial no Sítio pode
oferecer. Esse foi um argumento típico dos entrevistados que têm filhos a cidade.
Os caminhos dos sitiantes que emigraram para os centros urbanos ao redor do
Pirizal em busca de melhores oportunidades de emprego são definitivos, pois eles não
costumam retornar, só para visitas 21. Nas últimas quatro décadas, a emigração para os
centros urbanos de famílias inteiras ou dos mais jovens em idade de trabalho não tem
sido uma novidade, o que não significa um rompimento com a família e outros parentes.
Filhos e netos frequentemente retornam para o Sítio em finais de semana, feriados e datas
e festejos importantes para a vida familiar e comunitária, como pôde ser observado,
enquanto eu estava em campo, pelo número de parentes reunidos na festa de aniversário
de Seu Chico Santos e nos almoços de domingos na casa de Dona Dulce, por exemplo.
Para os parentes que porventura retornaram à comunidade, que são muito poucos,
não existe a possibilidade de reocupação do núcleo a que pertenceram. Entre os que
decidiram retornar ao Sítio estão Seu Floriano Rezende, que se aposentou como
funcionário da Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), Dona Rita Rezende que
por conta da idade disse que não encontrava mais emprego, Dona Dulce, esposa de Seu
Marco Rezende, que dava aula num bairro vizinho até o fechamento da escola, e Catarina
que não encontrou emprego com seu marido na cidade.
Cada um enfrentou situações diferentes ao voltar. Na condição de mulheres, Dona
21
Deste modo, a experiência da migração se constitui como parte integrante das próprias práticas de
reprodução do campesinato (WOORTMANN, 1990b; GALIZONI, 2002).
68
Rita Rezende ficou sem o terreno de sua falecida mãe, ocupado pela família de Seu
Marco Rezende e Dona Dulce e teve que comprar uma casa na entrada da comunidade,
perto de sua cunhada Inês22. Seu Floriano e sua esposa Dona Luzia Carvalho Rezende se
mudaram pra cidade mas continuaram cuidando do terreno e da posse herdados, fazendo
manutenção e reformas, marcando e garantindo sua ocupação para onde retornaram e
moram até hoje.
Sobre a geração de filhos e netos que estão na cidade, Seu Floriano contou que
sua filha decidiu ficar com a família em Matinhos, pois está bem empregada, mas seu
filho, depois de ter enfrentado dificuldades econômicas e o alcoolismo, resolveu voltar
para o Sítio. A professora Paulina comentou que os jovens da cidade não acham emprego
e “se envolvem com drogas”, mas ainda sim a maioria dos jovens em idade de estudo
prefere mudar de vida e não seguir a vida dos pais sitiantes. Seu Chico Santos também
mencionou o receio pelo futuro das filhas e netos e as incertezas de se morar na cidade, a
falta de emprego e a violência propriamente urbana.
Não foi possível entrevistar parentes que ainda vivem na cidade, apenas seus pais
e diretamente aqueles que saíram e decidiram retornar ao Sítio. Os pais com filhos na
cidade demonstraram que gostaria que os filhos permanecessem. No conjunto das
entrevistas, a saída de mulheres e filhos homens mais novos foi interpretada de três
maneiras diferentes, às vezes por um mesmo entrevistado na mesma conversa. A saída foi
vista como uma escolha pessoal na busca por melhores oportunidades em empregos
urbanos, ou como recusa da trajetória dos pais na lavoura e na pesca, e nesses dois modos
de olhar a questão a decisão é do sitiante que vai embora. Uma outra forma de interpretar
a emigração, menos mencionada, se refere às condições desfavoráveis pra se viver no
Sítio, como motivos alheios à vontade da família, a exemplo da redução da terra para o
plantio e as poucas alternativas econômicas.
A emigração é um aspecto contraditório da vida no Sítio, pois uma vez que alivia
o fracionamento patrimonial e possibilita a reprodução dos papeis sociais para os que
ficam, a vida difícil e incerta na cidade vai contra as aspirações dos pais daqueles que se
22
Recentemente se mudou para um Sítio próximo, voltado para o turismo da pesca, para acompanhar seu
marido que cuida de uma propriedade lá temporariamente, mas mantém sua casa no Sítio e trabalha
regularmente na roça, com sua cunhada no Pirizal. Para os efeitos da pesquisa, Dona Rita e seu marido
foram considerados moradores, pois além de terem nascido na comunidade, participam ativamente da
vida comunitária.
69
vão. Se a partilha fosse feita para todos os filhos o patrimônio se fragmentaria
demasiadamente, inviabilizando o Sítio. Além disso, há o imperativo do êxodo das filhas
mulheres. O fracionamento é uma questão tão delicada que as novas famílias feitas de
casamento de algum herdeiro homem têm cada vez menos espaço par construir perto dos
pais, de modo que os filhos homens também têm sido pressionados para sair.
Praticamente não há chácaras ociosas e desocupadas, a não ser as casas de veraneio dos
turistas, vazias na maior parte do ano.
3.2 Os irmãos da ponta, o turismo da pesca e a privatização das posses
Já foi mencionado que as famílias tiveram em média cinco filhos, dos quais mais
da metade saiu da comunidade. E entre os emigrados a maioria era de mulheres e mais
recentemente os filhos homens mais novos também têm saído com mais frequência para a
cidade, preferindo buscar um emprego e uma vida melhor. Esse é o quadro geral do
Pirizal, mas, se olharmos para a ponta, uma outra dinâmica acontece, particularmente no
núcleo de Seu Marco Rezende casado com Dona Dulce.
No caso do núcleo de Seu Mario, com noventa e um anos, dos cinco filhos, apenas
um emigrou para a cidade, os outros quatro (três homens e uma mulher) moram na ponta
hoje em dia. No entanto, os três homens não formaram seus próprios núcleos, uma vez
que seus filhos (netos de Seu Mario, a maioria de mulheres que casaram com homens de
fora) se mudaram para a cidade. Assim, as casas dos filhos de seu Mario se localizam
dentro de seu núcleo.
Dona Dulce e seu Marco Rezende formaram seu próprio núcleo familiar, onde
estão até hoje rodeados das chácaras de seus filhos homens, casados. Dos sete filhos do
casal, suas duas únicas filhas mulheres se casaram com pessoas de fora e foram morar na
área urbana. Todos os filhos homens ficaram, sendo três filhos solteiros que moram na
casa dos pais e outros dois que casaram-se com moças de fora, fragmentando o lote dos
pais em duas outras chácaras, de Marcelo e de Ronaldo.
Este núcleo é o que mais parece se preocupar a erguer um patrimônio comum e
buscar a prosperidade como garantia do patrimônio dos filhos e netos. Com pouca terra
de herança, insuficiente para a lavoura de tantos filhos homens (dois casados e três
70
solteiros que moram na casa dos pais, mas “passados” da idade de se casarem), o turismo
de pesca logo se tornou a melhor opção como uma atividade econômica fundamental para
o núcleo. Essa dedicação e afinco ao trabalho, comum ao núcleo, pode ser notada na fala
de Marquinho, de quinze anos. O único pescador jovem do Pirizal, neto do pescador Seu
Marco Rezende e Dona Dulce Fagundes e filho de Judite e Marcelo, quando perguntado
se, jovem como é, ele pensa em sair da comunidade avalia que:
MARQUINHO: o trabalho da gente tá tudo aqui. [Os jovens] vadios,
não querem trabalhar, não têm nada pra fazer, eles querem sair daqui.
Ele acha que lá [na cidade] vai ser melhor pra ele. E não acha o
caminho certo. Se não querem procurar um serviço... só ficam de folia.
A gente já tem um serviço, mas [outros jovens] não querem seguir o
mesmo caminho, não tem o interesse, não faz o esforço também. Aí vai
às vezes acha algum serviço, às vez não acha nada. Às vez não tem com
quem morar, aí vai trabalhar, ganha quinhentão e paga seiscentos numa
casa pra alugar.
Seu Marco, seus cinco filhos e seu neto (todos homens) trabalham juntos no ramo
da pesca. Com certa autonomia por serem proprietários dos meios de produção (nenhum
deles é funcionário da prefeitura, ainda que dependam da demanda turística e do fluxo
comercial regional e de atravessadores), capitalizaram-se rapidamente sem se
assalariarem e investem crescentemente nos serviços que gerenciam associados à pesca e
ao turismo local. O acesso à terra se desdobrou de forma pouco convencional, já que se
deu pelo movimento de êxodo-retorno, depois que os projetos de vida e trabalho num
bairro vizinho foram modificados com a instalação do monocultivo de pinus pela
Comfloresta nos anos 80, que desmantelou a comunidade e obrigou o fechamento da
escola onde Dona Dulce dava aula. A retomada do espaço de morada com seus filhos
aconteceu no contexto do drama de se ter perdido a casa, a lavoura e os laços que
construíram nesse outro bairro (que será detalhado em outro capítulo).
Em outras palavras, no núcleo de Seu Marco a proporção de irmãos que
permaneceram na comunidade é maior em relação aos que emigraram. Essa situação
difere do que acontece no resto do Sítio, onde o número de irmãos homens e mulheres
que emigrou é maior do que a que permaneceu.
Como veremos na seção sobre as atividades econômicas dos moradores, a
tendência para o empreendedorismo e a capitalização propiciados pelas janelas de
71
oportunidade na pesca esportiva é notada especialmente entre os irmãos, solteiros e
casados, da ponta, que trabalham em conjunto. O acesso conturbado à terra, a falta de
acesso aos cargos da prefeitura e a permanência e coesão entre os irmãos homens de certa
forma favoreceram o trabalho no negócio coletivo voltado ao turismo de pesca, no âmbito
do núcleo familiar. Por outro lado, o desenvolvimento dessa disposição para os negócios
ligados ao turismo pesqueiro, realizado em família, não foi observada na vizinhança.
Com efeito, Seu Marco Rezende, sua esposa Dona Dulce e sua nora Judite, da
ponta, afirmaram em diferentes ocasiões sua disposição ao trabalho, o quanto são
caprichosos e esforçados e, em contraponto, e em referência aos habitantes da vizinhança,
afirmaram que estes não são propensas ao trabalho árduo e que são preguiçosos. Esse
seria também o motivo de a família de Marcelo e a de seu pai Seu Marco não trocarem
tempo de trabalho com as famílias da vizinhança, pois teriam que refazer o que tivesse
sido mal feito por estes. Em outras palavras, sua disposição para o trabalho e para o
capricho é como eles explicam sua prosperidade, e não a partir das pressões e
oportunidades.
Aos poucos, a diferenciação pôde ser percebida visualmente tanto na aparência
dos terrenos, ranchos e casas de alvenaria bem pintadas da ponta, como também na
dinâmica cooperativa do guajú, mais fechada na ponta e com a comunidade engajada na
vizinhança, e também a partir da especialização na pesca turística na ponta e a
combinação mais equilibrada entre o assalariamento, pesca comercial, venda da farinha
na vizinhança e pelos conflitos entre escolhas familiares e desentendimentos entre os
moradores.
Na ponta moram os chefes de família mais velhos das famílias Fagundes e
Rezende, Seu Mario e Seu Marco. Os núcleos familiares são bastante coesos e procuram
cooperar entre si, de maneira introvertida, e são vistos pelos moradores da vizinhança
como um aglomerado unificado e homogêneo, tamanha a imagem de coesão interna
construída a partir das relações de conflito com outros núcleos.
O processo de intensificação da pesca esportiva atrai turistas à procura de casas de
veraneio para comprar. O comércio de terrenos e casas vazios já trouxe rendimentos para
o filho mais velho de Seu Maro Rezende e Dona Dulce: Marcelo, já imaginando uma
futura proposta dos clientes assíduos, fez uma proposta para Seu Chico para comprar um
72
terreno. Como um dos terrenos ficava perto do banhado, não era útil nem para se
construir benfeitorias tampouco para a lavoura, Marcelo comprou por um valor
considerado abaixo do mercado. Depois da compra do terreno de Seu Chico, Marcelo
dividiu em três lotes e revendeu, para veranistas, por um valor mais elevado.
Os turistas que conseguiram comprar terrenos diretamente com nativos
construíram casas de veraneio, que permanecem fechadas na maior parte do ano, pois são
frequentadas com mais regularidade no inverno, época de intensa pescaria ou nos dias
mais quentes no verão. Ao lado e na frente de sua pousada, Ronaldo, irmão de Marcelo,
tomou a mesma medida e revendeu os lotes que havia comprado, para turistas que já
eram seus clientes. Não ficou claro, no entanto, qual iniciativa foi a primeira, mas sabe-se
que se deram na mesma época e foram semelhantes. O fato é que tem crescido a procura
por terrenos para construção de casas, e as primeiras já foram negociadas pelos
pescadores que atendem diretamente aos turistas interessados na pesca esportiva e em
passar o verão.
A oferta de chácaras e terrenos vazios para turistas é nova e se concentra para o
lado do banhado, que cerca uma grande porção da ponta, portanto no lado menos
procurado pelos nativos para ocupação (ao contrário do “tempo áureo” dos arrozais). Os
terrenos são alagados e estão fora das situações de espólio e disputas entre famílias,
oportunidade que favorece a compra por pessoas de fora. Nos dias de hoje, o banhado é
como uma terra de que não se pode desfrutar nem produtivamente nem para se construir,
logo adquiriu valor de troca.
O interesse comercial nos terrenos dentro da comunidade contraria Seu Cacá
Fagundes. Seu irmão que não mora mais no Sítio queria vender sua chácara para um
estranho, ao que Seu Cacá reagiu comprando-a do irmão, para manter tudo em família.
Seu Cacá comenta seu incômodo com a presença crescente de estranhos à comunidade,
tendência que leva a fragmentação das chácaras entre quem é nativo e quem não é.
Mesmo que ocupado de forma duradoura, por um casal até a viuvez, quando
desocupado, a posse costuma a ser disponibilizada para uma nova família, seja para um
herdeiro do núcleo seja para um parente que queira comprar, pagando menos que no
mercado oficial ou que ainda se trate de uma transação não oficial ente sitiantes
posseiros. A lógica oficial de propriedade privada que se iniciou na ponta rompe esse
73
circuito ao tirar das mãos dos nativos o monopólio de ocupação do terreno por seus
filhos. Colocado em outras palavras, se por um lado a ocupação das chácaras já se dá pela
privatização por uma família que era sucedida, quando porventura “sobravam” posses,
outro parente podia morar ali. Novos padrões de uso e apropriação das chácaras e de
frações do banhado se estabelecem a partir do processo de privatização.
Os casamentos, juntamente com as regras de transmissão de herança entre
parentes, têm sido um dos principais meios de reger a circulação e ocupação das famílias
nas chácaras e nos terrenos que constituem o Sítio, conformando de geração em geração
o território coletivo, interditando o acesso para não parentes. Porém, lentamente, a
configuração da área das posses (o terreno é preservado para o sistema rotativo e está
fora da comercialização), intimamente vinculada à instituição local do espólio, sofre os
efeitos do processo de individualização do núcleo de Seu Marco Rezende da ponta que se
especializou no turismo, da chegada de veranistas à procura de casas para compra e da
consequente valorização da região.
Seu Gilberto Santos, da vizinhança, detalhou a história do conflito dos herdeiros
dos Vasconcelos com a família de sua filha. Os Vasconcelos não eram nativos tampouco
parentes de nenhum nativo da comunidade. O chefe da família, o comerciante Antonio
Vasconcelos veio da Prainha, localidade rural de Guaratuba, e trabalhava com a extração
de madeira nativa em pequena escala, para construção de casas de madeira. Comprou
pequenos quintais na ponta e na vizinhança23, e se mudou com sua família, ao lado de
onde hoje mora a família de Fausto, genro de Seu Gilberto.
Os Vasconcelos não ficaram muito tempo no Pirizal e casaram Fátima, uma de
suas filhas, com o falecido irmão de seu Gilberto, Sezefredo. Este, já falecido, foi
descrito pelo primo Chico Santos como um bom comerciante como o sogro: trabalhava
com gado, tinha um bar no porto, e deixou uma roça de arroz no banhado quando faleceu
na baía. Com a morte de Seu Sezefredo, a viúva voltou com os filhos para a Prainha. Foi
Seu Chico que ajudou a viúva a levar a casa de madeira desmontada 24 em seu barco25,
23
24
25
Na entrevista com Seu Cacá e sua esposa Dona Acácia, da ponta, Dona Acácia explicou que foi a
falecida mãe de Dona Rita Rezende que vendeu o terreno para os Vasconcelos, depois que deixou a
casa e precisou ser cuidada e foi morar com a filha na cidade, já bastante adoecida.
Era comum as famílias venderem apenas a casa e não o terreno, a qual era levada para o novo destino
desmontada, por barco.
Era um barco grande usado também para transportar pessoas que não tinham um, como um serviço de
barqueiro.
74
para a Prainha onde moravam os parentes da moça, os Vasconcelos. Seu Chico fez um
acordo e, como parte do acordo, ficou com o terreno do primo no banhado perto do porto
de baixo na ponta. Um tempo depois Seu Chico vendeu o terreno para um advogado que
construiu um tanque de pesca; o terreno permanece lá, mas o turista não aparece com
muita frequência.
Os Vasconcelos saíram do Pirizal após venderem as chácaras que possuíam, com
casas erguidas em madeira, para um parente deles que voltou para Prainha, que então o
revendeu26 para Seu Gervásio Gonçalves e Dona Geni, já finados, nativos de um bairro
vizinho. Seu Gervásio levou a casa de madeira desmontada no seu retorno e permitiu que
os nativos do Pirizal ocupassem o quintal. Foi quando Catarina, neta de Gilberto, se
mudou para lá com seu marido e ocuparam o terreno, limpando-o e se instalando nele.
Os herdeiros dos Vasconcelos de hoje, atentos à valorização imobiliária do Sítio,
recentemente reclamaram na justiça o direito sobre as chácaras onde seus avôs moraram.
Distantes, morando na cidade, fizeram a documentação das terras, e alegaram que
continuaram pagando impostos. O que eles pediram foi o direito a duas parcelas de terra.
Uma delas na ponta, fração vendida pela mãe de Rita Rezende e onde hoje fica a roça da
Judite do Marcelo, e a outra na vizinhança, onde morava a família da Catarina, exigindo a
desocupação das famílias que passaram a ocupá-las.
Joana (a mãe de Catarina e filha de seu Gilberto Santos e Dona Helena Santos)
não saiu do núcleo paterno quando se casou para morar com a família do marido, foi
Fausto que veio morar no núcleo do sogro. Catarina, filha do casal, é nativa e, repetindo a
trajetória dos pais, ao contrário de ter emigrado para morar com a família de seu marido,
foi ele quem se mudou para o núcleo. Como a ela não havia terra de herança garantida,
como acontece com os filhos homens, ela estava sujeita à disposição contingente de
algum abandono de chácara. Foi quando ocupou a chácara que fora da viúva de Seu
Gilberto Santos, Fátima Vasconcelos, o qual já havia passado pelas mãos de outros donos
em compras não oficiais. Esse quadro se desdobrou na contenda judicial que a forçou a
sair para a cidade, contrariando sua vontade de permanecer e o sistema de regras sobre
ocupação para parentes.
Catarina (filha de Fausto de fora e neta do herdeiro Seu Gilberto Santos) foi
26
A compra e venda de casas e terrenos se deram não oficialmente, por meio de recibos, prática bastante
comum na região até hoje entre os posseiros.
75
diretamente afetada pelo processo judicial: perdeu a causa e teve que desocupar a posse.
Fausto conta que a família Vasconcelos alegou usucapião, sendo que há anos não visitava
a comunidade e enviava advogados que fotografavam a casa ocupada por sua filha e o
pomar e horta, alegando que a movimentação na casa era na verdade do herdeiro dos
Vasconcelos, mostrando como prova um abacateiro que seus ancestrais haviam plantado.
Como desfecho desse dilema, a família da filha do Fausto recebeu uma quantia,
considerada por eles bastante baixa, pela casa feita, além de ter perdido as melhorias que
haviam construído no quintal, e teve que se mudar novamente com o marido e filhas
pequenas para a cidade, lugar considerado muito inferior do ponto de vista da segurança e
do custo de vida, além do fato de ser longe de sua família. Fausto explicou que seu
advogado de defesa era da prefeitura, não acompanhou o caso e perdeu a data das
audiências, o que deu causa ganha para o herdeiro dos Vasconcelos.
Seu Gilberto explicou que de fato o terreno era mesmo dos Vasconcelos
anteriormente, mas ele e sua esposa Dona Acácia defendem que o terreno passou a ser da
família de sua neta justamente quando “Eles entraram ali, né, daí foram limpando,
arrumaram, só que não tinha nada documentado […]. É, antes, plantaram umas
palmeiras, só que não tinham documento. Até hoje nós não temos documento”.
Seu Gilberto demonstra aqui a importância de se ocupar o espaço para dar sentido
de uso e legitimar a posse, que, na falta de atividade pode ser facilmente ocupada por
outrem. Assim, a compra (informal) de uma chácara só tem legitimidade se o novo
parente ocupá-la. Essa é a mesma regra vigente para a capoura nos terrenos e para os
demais sistemas produtivos de uso comum como o mangue e o pesqueiro, uma
institucionalidade não oficial bastante comum na região que rotiniza o sistema de uso e
apropriação de terras a partir do critério de uso, sistema reforçado diante do
fracionamento progressivo do patrimônio.
A outra família de quem os Vasconcelos poderiam cobrar as terras reagiu diferente
diante às ameaças de retomada. A família de Marcelo, da ponta, foi alertada pelas
“fofocas” criadas por Wiliam, de que os Vasconcelos logo brigariam para recuperar a
chácara onde moravam hoje, que havia sido comprado da falecida mãe de Dona Rita
Rezende e também ficou atenta ao desfecho desfavorável à família da filha Fausto, para o
que se adiantou e contratou um advogado e um agrimensor. Na minha primeira visita ao
76
Sítio, almocei no pequeno restaurante desse casal que funciona também como venda e
pousada para turistas da pesca.
Depois do almoço, Judite me levou toda orgulhosa para conhecer sua pequena
agrofloresta dentro do seu quintal e suas roças de mandioca nos terrenos do núcleo
familiar do seu sogro, atrás das chácaras. Ainda que os homens de seu núcleo familiar se
dediquem mais ao turismo da pesca, a lavoura não deixou de estar presente. Quando lhe
perguntei sobre a propriedade das terras e o sistema de plantio, Judite explicou que teve
problemas com divisões naturais de terra e que precisou definir na justiça o seu pedaço.
Chegou a cavar uma vala que se encheu de água do banhado para servir de divisa para as
chácaras e contou que, diante de problemas com demarcações, preferiu chamar um
advogado particular para medir sua chácara e seu terreno (ou terra de planta) e “resolver
na justiça”, em vez de tentar resolver pessoalmente divergências. Sua reclamação era de
que os parentes de seu marido acabam sempre repetindo e roçando por cima da divisa de
seu terreno, o que a levou a querer individualizar e fixar roças em espaços que antes eram
de uso coletivo e espacialmente rotativas. Além disso, a rumores de que os Vasconcelos
iam pedir o terreno de volta aumentou seu receio de perder sua chácara e o terreno.
A decisão de contratar um advogado particular e um agrimensor para formalizar
também a posse da área dos terrenos, individualmente, foi isolada, não foi aberta para
discussão entre outros núcleos. A atitude gerou hostilidade principalmente da parte dos
núcleos da vizinhança, que não cercam seus terrenos e trabalham de forma
interdependente.
De fato, o núcleo de Seu Marco Rezende tem se fortalecido internamente,
restringindo a organização de suas atividades produtivas quase totalmente entre si e não
participando do sistema de entre ajuda corrente entre os núcleos da vizinhança, além de
terem privatizado as roças, sobre áreas que deveriam ficar disponíveis para a vizinhança.
A falta de regulamentação da posse (são posseiros, não possuem o documento da
terra) acaba gerando uma insegurança às famílias, ainda mais depois do precedente de
desocupação da família da filha de Fausto por meios judiciais, pelos Vasconcelos que
garantiram a propriedade. No caso da Judite do Marcelo, o receio da falta de terras e de
perder o terreno de sua casa a levou à decisão ela documentação e privatização
permanente da propriedade familiar. Lentamente, o direito rotativo de ocupação, de
77
acordo com o uso, mais flexível e fechado aos nativos, cede espaço para a fixação oficial
da apropriação privada, de que as situações de cobrança judicial da parte dos Vasconcelos
e da venda dos terrenos aos turistas foram os primeiros exemplos.
Como vimos, a conjugação de migração feminina, casamento e sucessão
masculina faz parte de um sistema complexo de direitos criado internamente e regulado
pelos homens, frente à saturação das posses, que exige um processo contínuo de
territorialização que opera a partir do critério do familismo (SIMMEL, 1985;
HAESBAERT, LIMONAD, 2007). A territorialidade da família vai sendo construída
relacionalmente na distinção de seu grupo em relação aos os outros, em um gradiente que
varia desde quem é da família, do núcleo, do Sitio e, a partir dessa referência básicas,
quem é “mais ou menos” de fora.
3.3 O vínculo familista pela terra e pelo guajú: o declínio da lavoura de arroz e o
protagonismo da lavoura de mandioca
“Meu deus, antigamente, antes de vim a luz,
esse guajú aí, esse é de tradição” (Seu Cacá,
morador da ponta).
Foi lugar comum para os mais velhos quando se referem à época de seus avós
como um tempo de acesso irrestrito a terras extensas e à mata bruta para a lavoura e o
extrativismo, abundância de peixe nos rios e na baía, madeira, caça, práticas que
conformavam um território vasto e disponível, “sem dono”.
Durante a infância dos entrevistados mais velhos, os problemas enfrentados por
seus pais e avós incluíam a dificuldade de comunicação e de circulação. Foram
mencionadas as mortes de pelo menos três nativos navegando nas águas da baía sem que
fosse possível lhes dar assistência emergencial deixando esposa e filhos. Era complicado
acessar bens e serviços da cidade, como saúde, emprego, educação, lazer, consumo de
combustível, alimentos e roupas. O relativo isolamento geográfico e comunicacional,
permitido pelo cruzamento da baía apenas de barco a remo, não impediu, porém, o
contato e interações com povoados vizinhos, que incluíam a procura por parteiras, troca
de ajutório na lavoura, união nas festividades religiosas, relações econômicas tipicamente
78
mercantis com atravessadores urbanos, pequenos comerciantes diretos e consumidores.
Mencionaram também a restrição das relações econômicas a determinados
gêneros, mercados e atravessadores. Dona Inês e Seu Chico justificaram que como “a
terra é fraca”, culturas de subsistência como milho e feijão eram inviáveis. O processo de
produção de mandioca e sua transformação era inteiramente manual cansativo e levava
dias, exigindo o trabalho dos filhos e dos parentes.
Quanto à sua finalidade agrícola, em algumas passagens significativas das
entrevistas é contundente a percepção da baixa fertilidade do solo. Apareceu em
diferentes momentos a comparação com o solo da comunidade do Cubatão e Pai Paulo,
ao norte da baía, segundo a qual o Sítio não possuía condições naturais que pudessem
fornecer meios de alcançar a prosperidade econômica encontrada em outras comunidades
com terras mais ricas. A condição de “areião” em um lado da rua principal e de banhado
noutro é um atributo que limitou o leque de cultivos agrícolas possíveis e que impediu o
interesse de investidores e compradores nos produtos que as mãos dos nativos poderiam
cultivar. A diversidade de atividades produtivas e localização geográfica, próximo a
concentrações florestais e cercado de rios e da baía, de certo modo complementa essa
falta de vocação agrícola (DENARDIN et al., 2008).
O cultivo do arroz pelos nativos do Pirizal teve seu período de predominância na
primeira
metade
do
século
passado,
fortemente
marcado
pela
organização
coletiva/familiar do trabalho. Mesmo que essa cultura tenha desaparecido do território (o
banhado era um lugar privilegiado para o arroz), ainda está presente na memória coletiva,
sendo mencionado frequentemente quando se fala de guajú, da lavoura e do banhado.
Nesse sentido, julguei importante registrar uma fração dessa história que pode ajudar a
compreender a atual situação produtiva e fundiária dos sitiantes e as disputas entre ponta
e vizinhança.
Seu Gilberto calcula que a comunidade parou totalmente de plantar arroz há 20
anos (seu cálculo é baseado na idade atual de seu filho, com 33 anos, que ajudava na
lavoura na época) e explica que a concorrência com as arrozeiras do lado de Cubatão, a
falta de terras e o fim do interesse dos compradores do arroz influenciaram o declínio do
cultivo.
Para Seu Floriano, que parece complementar o relato de Seu Gilberto, os mais
79
velhos foram morrendo e alguns mais novos foram para a cidade, abandonando a
atividade. Outro obstáculo para a lavoura foi o “embargo do banhado” pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA), que tem fiscalizado a
área há aproximadamente quarenta anos, segundo ele. A intenção era fazer uma “terra de
estudo” que ele chamou de reserva. Seu Floriano relatou que naquele tempo, queimar
roça pra trabalhar na várzea não dava problema nem multa como hoje. Quanto à presença
do Estado restringindo a atividade dos nativos sobre o banhado, existe um ponto positivo:
SEU FLORIANO: Trinta metros dali é da Marinha, mas é bom, sabe
por quê? Porque esses homens, os primeiros que roçou aqui, o primeiro
dono que comprou do Chico aí, queria tomar até o porto. Aí chamaram
a Marinha e a Marinha veio e multou ele. Só que não pode vender. Se
quiser vender, a marinha não deixa.
Seu Floriano se refere ao fato de que essa mesma presença restritiva do IBAMA,
associada à figura genérica do Estado que os impede de tirar madeira ou queimar e roçar
no banhado, impediu também um turista de instalar um tanque de pesca ali (que queria
inclusive comercializar o porto), que foi multado. No entanto, sua percepção é que, de
maneira geral, as famílias pobres sofrem maior penalização, quanto às restrições
ambientais.
Seu Floriano, ao se referir ao desrespeito da uma empresa mineradora à regra de
dragagem a uma certa distância do costão quando operam de noite e fora de área para
tirar areia para vender, diz que “a pessoa que trabalha aqui e vive disso aí” fica
“aborrecida” porque a empresa trabalha irregularmente, mas não é censurada. Ele
compara a sutuação da dragagem clandestina da empresa com a situação de uma amiga
de um Sítio vizinho, Dona Madalena “que vai fazer farinha e ela tem que fazer a
queimada à noite pra ninguém pegar. Olha a diferença, do porquê que ela precisa da
farinha e do porquê eles precisam da areia. É bem complicado, ali é uma empresa e a
Dona Madalena é uma pessoa, tem uma família pra manter”.
Com efeito, Seu Floriano se mostrou bastante sensível para a diferença de
tratamento que o estado dá para diferentes situações envolvendo nativos, turistas,
empresários na exploração do espaço e dos recursos naturais e as pressões que acabam
colocando sitiantes em situações humilhantes de clandestinidade, para poderem continuar
80
produzindo. Ele associa as atividades dos nativos mencionadas, como caça, pesca,
queimada (pra lavoura e produção de farinha) à subsistência e a condições materiais
básicas de vida, bastante diferenciada em relação à mineração e à caça e pesca esportivas
por gente de fora. Para ele, a restrição ambiental censurou as atividades no banhado.
Nos dias atuais, por conta da desvalorização e do desinteresse sobre o banhado é
possível encontrar capouras altas, mas ninguém planta, como nos contaram Rita e Inês,
pois “não se pode derrubar um pé de árvore, porque é proibido”, uma percepção
semelhante à de Seu Floriano.
O banhado já tinha perdido a utilidade produtiva desde o declínio da lavoura de
arroz, e até chegou a ser usado em um período de procura dos atravessadores pelas
esteiras feitas da palha trançada do piri pelas mulheres da vizinhança, demanda que não
existe mais. Atualmente se alguém quiser fazer uso de um capourão no banhado está
sujeito às restrições ambientais, bastante frequentes por conta da fiscalização reforçada
sobre a derrubada de árvore e a queimada para o roçado, segundo Dona Inês e Seu
Floriano. Por outro lado, como já observado acima, a marginalidade da área para o uso
agrícola e sua concentração na ponta, fizeram o banhado adquirir valor de mercado,
principalmente frente à valorização imobiliária que atrai turistas da pesca.
Aqueles com idade mais avançada e seus filhos mais velhos, seu Chico, Seu
Mario, Seu Marco Rezende, Seu Floriano, Seu Brasílio, entre outros, quando jovens
chegaram a trabalhar na lavoura de arroz, cujo processo de produção era inteiramente
braçal, sem a ajuda de nenhum maquinário. Seu Brasílio explica que era feito o guajú
para desmatar. Já o plantio, ou a planta, como eles chamam, era mais simples e
dispensava o guajú: pegava-se uma lata e germinava. Para colher também se fazia guajú.
Os moradores realizavam todas as etapas de produção, desde o cultivo até o embalamento
do arroz27.
O acesso e apropriação da área da lavoura de arroz pelo conjunto de moradores se
davam de forma diferenciada entre a ponta e a vizinhança. A proximidade com o
27
Seu Gilberto conta que em abril, maio e junho acontecia a colheita do arroz, que era recolhido em
cachinhos e depois socado. A fase da colheita variava de seis meses a um ano, e dependia do tipo de
solo, se em terra seca ou em terra baixa, de forma que o próximo plantio deveria ser em outro lugar,
para o descanso da terra. Depois de colhido, era descascado, batido e ensacado; nessa fase final de
preparo os atravessadores eram avisados e mandavam o buscador a remo para pagar os moradores e
buscar as sacas no Pirizal pra revenda; outra possibilidade era o próprio morador levar de barco e
vender para os engenhos de arroz na cidade.
81
banhado favoreceu as famílias da ponta que podiam plantar arroz perto de suas casas, nas
áreas úmidas que cercam aquela área. Seu Brasílio relembra que seu pai Mario Fagundes
plantou uma roça de arroz no banhado do fundo de sua casa. A ponta tinha o privilégio de
reservar suas bolas restringindo o acesso aos núcleos afins, no mesmo sistema o roçado
da mandioca.
Mas, para as famílias da vizinhança que não dispunham do banhado para a
lavoura do arroz, não foi possível recolher dados suficientes com mais entrevistas para
precisar se os arrozais se localizavam em área de uso comum, se dependiam do sistema
de pousio e rodízio, ou se cada família possuía restritamente uma área de banhado, se esta
era cercada, se o arrendamento era uma prática corriqueira ou se a lavoura de arroz
ocorria em terras longínquas de acesso aberto e aparentemente sem donos.
O que Seu Gilberto Santos, da vizinhança, relembrou foi que, à procura de espaço
e solo apropriado, era necessário à sua família atravessar os rios afluentes da Baía de
Guaratuba e cultivar em terras arrendadas. Este foi o caso de sua família, que plantava em
um terreno arrendado que antes fora cuidado por seu pai e que pertencia ao Joaquim
Gabriel Miranda.
As famílias que trabalhavam na lavoura do arroz foram largando a atividade
conforme os arrozais de colonos foram monopolizando o atendimento da demanda dos
compradores, por terem maior competitividade, e quando o ciclo regional entrou em
declínio.
Um dos motivos do abandono desse cultivo, além da aquisição das áreas onde
plantavam arrendados por terceiros (próximas à comunidade do Cubatão) e a consequente
proibição do uso das mesmas, foi também a pouca condição técnica e produtiva de
concorrência com os arrozeiros dos produtores patronais mais capitalizadas do norte da
baía. O declínio da lavoura do arroz criou uma maior dependência dos moradores em
relação ao cultivo da mandioca e da produção da farinha. Aqui fica clara sua autopercepção como “pequenos” produtores em relação às condições produtivas tecnicamente
superiores das comunidades do norte da baía:
SEU GILBERTO SANTOS: [meu pai] Parou de plantar arroz porque
pararam de comprar. Acabou, porque só tinha arrozeira, pro lado lá de
Cubatão. Eles trabalhavam no terreno arrendado, mas o dono morreu.
Tinha que pagar a terra, era arrendado: colhia o arroz e pelo tanto
82
pagava. O dono do terreno era o falecido Joaquim Gabriel Miranda, do
Cubatão.
Seu Floriano lembrou que as famílias comerciantes da região28 além de negociar
arroz, farinha, e posteriormente o cipó, com os moradores do Pirizal também negociavam
milho, banana, peixe, madeira e cipó com o Sítio e outros produtores locais, o que levou
ao seu enriquecimento com as fábricas e armazéns de transformação, onde faziam o
beneficiamento e a revenda. O comércio dos produtos agrícolas e do extrativismo animal
e vegetal era dominado por negociantes e artesãos articulados que se estabeleciam nas
pequenas vilas e nas cedes urbanas controlando os preços, o beneficiamento e o
transporte dos produtos, conformando no plano local uma relação política tradicional de
dependência e dominação, desdobrada do vínculo comercial. Atualmente se tornaram
políticos profissionais, empresários industriais ou atravessadores dos produtos regionais,
com forte influência sobre as localidades ainda hoje.
Essa passagem de certa forma ilustra as assimetrias que marcam até hoje o acesso
e as formas de uso da terra entre os pequenos produtores e os grandes proprietários
chamados localmente de colonos, como os produtores de Cubatão. As fazendas dos
grandes produtores foram mencionadas pro Seu Gilberto e Seu Marco como mais
capitalizadas e tecnificadas, com meios de empregar funcionários e adquirir maquinário,
além do apoio técnico e financeiro do governo.
Por exemplo, Seu Marco e Seu Chico comentaram que a região do Cubatão ao
norte da baía possuía “terra boa pra planta de qualquer coisa” e conseguia se destacar na
venda de banana e arroz (como até hoje), valendo-se de maquinários, de empregados; e
observaram também a capacidade organizativa pra apresentar suas demandas direto ao
Estado. Acrescente-se ainda que outros diferenciais dos produtores de Cubatão que
favorecem a produtividade é que eles dispõem de maior atenção política,
acompanhamento e assistência técnica (do governo e particular) e também crédito, sem
falar nos insumos químicos aplicados (SEMA/IAP, 2006; Atas Reuniões do Conselho
Gestor, 2010-2011).
Nos relatos, o arrendamento nos arrozais é o mais próximo da imagem de
28
Foram citadas especificamente as famílias Miranda, Mafra e Jamur, cujos herdeiros têm ainda hoje
presença marcante na vida política do município (basta ver a lista de ex-prefeitos e ex-vereadores da
região – do município de Guaratuba e outros municípios do litoral paranaense e de Garuva).
83
agricultura patronal pelo grande proprietário de terras, em que o camponês é diretamente
explorado pelo trabalho (MALAGODI, 2010; SIGAUD, 1979a). Para a maioria dos
sitiantes que permaneceram, não existia um chefe a quem se subordinavam, pois tinham a
posse da terra e eram os donos dos meios de trabalho. Já a relação patrão-empregado se
expressava naquele tempo, e até hoje se expressa, no comércio desigual com o
atravessador, o comprador dos produtos do Sítio, como a farinha e o pescado; um deles é
chamado de patrão do camarão, cuja demanda criou uma dependência da parte dos
produtores.
A alternativa ao trabalho na agricultura implicava na sujeição aos poucos
empregos disponíveis na cidade, em grande parte informais. Nesse sentido, a lógica
ritualística do guajú consiste em um contraponto importante, como sistema de troca de
trabalho aplicado para várias atividades produtivas, uma prática considerada socialmente
equilibrada entre famílias em posições simétricas, que persiste até hoje, mesmo que o
ajutório seja permeado por rupturas, intrigas e desentendimentos.
Ademais, a eletricidade não tinha chegado e as famílias não eram capitalizadas
para investir em maquinário e aumentar a produtividade e assim poder competir com as
comunidades próximas que conseguiam responder às demandas dos mercados regionais.
A princípio não havia demanda de compradores por cipó, caranguejo e camarão como são
procurados no presente devido ao aumento do turismo sazonal e do comércio. Foi
justamente numa época de pouca opção de renda para as comunidades que se instalaram
em torno da baía os empreendimentos de monocultivos florestais (primeiramente a antiga
Faber Castell e logo em seguida a Comfloresta).
Quando perguntados sobre o que mudou no Pirizal nas últimas décadas, era
recorrente o tema da abertura da estrada pela Comfloresta e a chegada da eletricidade, o
que não é difícil de entender se atentarmos para alguns eventos que foram reconstituídos
sob a perspectiva de famílias diferentes.
3.4 A ambiguidade de uma outra territorialidade: entre a opressão e a oportunidade em
tempos de transição
Com o que eles deixaram, nós ficamos
84
sufocados, porque todos trabalham na roça e
é pouca terra pra todo mundo (Dona Inês, 54
anos).
A virada entre as décadas de 70 e 80 pode ser considerada um período
emblemático das transformações por que passa o Sítio, marcado sobretudo pela chegada
da eletricidade como barganha clientelista de políticos municipais e a criação da rede de
estradas de chão como meio de estruturar a instalação de monocultivos florestais pela
empresa Comfloresta.
Não é à toa que o pinus continua sendo a escolha preferencial para a implantação
de monocultivos, se observarmos que a atividade madeireira é uma das principais
matrizes produtivas da indústria paranaense, que adquiriu uma dimensão estratégica
desde os anos 70. A essa época a UFPR abriu seu curso de engenharia florestal e surgiu a
Sociedade Brasileira de Engenheiros Florestais, além de ter sido o momento quando
incidiram importantes políticas e incentivos através do Fundo de Investimentos Setoriais
(FISET) sobre o setor florestal (FANZERES, 2005; BRANDANBURG, SOUZA, 2009).
Como nos contam Brandenburg e Souza (2009, p. 104), esta atividade integrava o Plano
Nacional de Desenvolvimento executado pelo governo militar. Desde a década de 70, os
madeireiros e grileiros que chegaram ao litoral, impulsionados por medidas fiscais, o
fizeram em grande medida por meio da apropriação dos espaços sem domínio explícito
ou legal, inclusive onde já havia o domínio frágil das populações permanentes. A ideia
era abrir novas fronteiras para o progresso, mesmo que sobre florestas nativas, e assim
gerar empregos e renda à população rural, onde reinava o “atraso”.
A partir de 1972, o governo federal começou passou a atrair empresas
estrangeiras, investindo nelas. Em 1975 a Brascan, uma empresa canadense especializada
em reflorestamento com monoculturas, chegou a Santa Catarina. A empresa, mais tarde
rebatizada de Comfloresta (mantendo-se uma das empresas do Grupo Brascan de multiinvestidores), adquiriu vastas áreas de Floresta Atlântica no norte catarinense e também
sudeste paranaense, ocupadas por agricultores que, em seguida, migravam para a cidade.
A inserção do pinus – árvore nativa do Canadá – transformou ecologicamente a região
contribuindo para o desenvolvimento econômico dos projetos de reflorestamento, sob o
apoio do extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) (FANZERES,
85
2005; BRANDANBURG, SOUZA, 2009).
Conforme consta no relatório de Fanzeres (2005), no Paraná já se encontra a
maior área plantada com pinus do Brasil. Seu documento afirma também que a expansão
das plantações de pinus e de eucalipto favoreceu o aumento regional da concentração de
terras, que sobrepôs territórios sobre os quais já incidiam modalidades tradicionais e não
oficiais de apropriação e ocupação, em regimes combinados de uso, comum e privado,
marcado pelo desinteresse do mercado e pelo baixo controle estatal (ALMEIDA, 2008;
CAMPOS, 2011; PIERRI et al. 2006; SONDA, 2002). O relatório de Fanzeres (2005)
enumera diversos conflitos de natureza econômica, social e ambiental, alguns levados a
juízo pelos afetados, envolvendo a Comfloresta. As denúncias identificadas por seu
relatório apontam para um padrão característico de ocupação, que incluem grilagens,
expropriação de agricultores, devastação de floresta nativa, descumprimento de acordos
não oficiais com pequenos produtores. O relatório resultou da reação do Ministério do
Meio Ambiente a denúncias de conflitos, que contratou a consultora para inventariá-los;
porém, o documento não fornece informações sobre a presença de monocultivos
florestais (eucalipto e pinus) especificamente no litoral do Paraná, argumentando que não
foram encontradas bases de dados confiáveis, devido à alta disparidade entre dados
fornecidos pelas instituições públicas e privadas consultadas pela pesquisadora (no caso,
SEMA e ARACIP).
O único artigo29 que eu encontrei sobre os impactos do estabelecimento de
empresas de reflorestamento com pinus e eucalipto, de Corona e Silva (2010), na RMC,
apontava “a perversidade da relação entre as políticas assistencialistas, a atuação
econômica da Comfloresta e a vulnerabilidade social da comunidade do Postinho em
Tijucas do Sul”.
Em outro artigo localizado, sobre as pressões sofridas pelos Caiçaras da Mata
Atlântica, Adams (2002) nota o mesmo padrão em outro segmento produtivo. Além do
interesse da indústria de madeira e celulose, especuladores atraídos pela valorização
imobiliária do litoral iniciaram um processo violento de “aquisição” de terras da
população permanente, que devido à inexistência de propriedade legal muitas vezes é
29
“O gobal e o local: as empresas reflorestadoras e a comunidade de Postinho na RMC”, cf.
<http://www.anppas.org.br/encontro4/cd/ARQUIVOS/GT1-759-437-20080505203921.pdf>. Acessado
em fev. 2011.
86
expulsa. E completa:
Um caso exemplar é o de Trindade (RJ), onde as populações locais
foram ameaçadas, na década de 1970, pela mesma multinacional
Brascan-Adela, que adquirira uma extensa área próximo à comunidade
para implementar um empreendimento imobiliário. Desejando aumentar
sua área, a Brascan-Adela utilizou advogados, autoridades locais e
homens armados para intimidar os moradores e forçá-los a abandonar
suas casas (Campos 1980 apud ADAMS, 2002, p. 33).
Na busca em bases de dados online nada mais foi encontrado de estudos sobre o
impacto social da atividade sobre a região (mas sim pesquisas acadêmicas como subsídio
para o processo produtivo), além desses poucos documentos, dois artigos e do que foi
acompanhado pessoalmente nas reuniões do Conselho da APA e nas entrevistas com os
sitiantes, ao longo da pesquisa de campo. O que se sabe, portanto, é que os
empreendimentos da empresa receberam incentivos estatais no passado, tendo
expropriado pequenos produtores posseiros entre final de 1970 e meados de 1980, ao que
parece, com um certo padrão de instauração baseado na intimidação, negociação e
persuasão, resultando na tomada de terras. Hoje estão espalhados por mais de uma dezena
de municípios no nordeste de Santa Catarina e sudeste do Paraná, e a Comfloresta em
especial participa ativamente como conselheira da APA.
No âmbito do Sítio, o contexto da observação participante durante o guajú
facilitou a situação para a abordagem do conflito pela demarcação ao final da década de
70 nessas terras, mesmo porque a plantação de pinus contorna os terrenos que estavam
sendo roçados para o plantio.
Diferente do que eu esperava, Seu Floriano, Dona Inês, Seu Gilberto, Seu Cacá,
por exemplo, não deixam de reconhecer a importância da Comfloresta como a primeira
empresa empregadora e as mudanças positivas que a abertura da estrada trouxe, a
despeito do contexto opressivo de ter sido contribuído diretamente para o estresse
fundiário e ainda ter explorado a mão de obra local em uma fase de vulnerabilidade
social. A surpresa diminui quando as narrativas dos próprios sujeitos chamavam atenção
para um cenário de ausência de políticas públicas que pudessem fornecer bens e serviços
mínimos em um contexto de penúria e crise econômica no Sítio como um todo, que
forçou uma dependência da lavoura de mandioca como fonte principal de sustento. Esse
87
período foi seguido pela abertura das estradas, o que mudou a dinâmica local favorecendo
novas possibilidades. Como os sitiantes detalham, de certa maneira, reconheciam
interesses nesse sistema de dominação (SCOTT, 2002; THOMPSON, 1991; MONSMA,
2000).
Ora, as estradas de chão batido interligaram os acessos entre os Sítios estuarinos
(antes o acesso era por meio de picadas ou passagens estreitas em meio ao mato ou pelos
rios da baía) e com as principais rodovias estaduais que ligam os municípios mais
próximos, em Santa Catarina e Paraná. As novas vias se tornaram uma opção para se
chegar à cidade e ter acesso mais regular à cultura e a bens e serviços urbanos, ao passo
que lhes permitiu a abertura para novos mercados e a diversificação produtiva, em
tempos de crise da lavoura arroz e de mandioca. O período aumentou o fluxo de novos
compradores em busca de produtos nativos, como as esteiras de piri, as cestarias de cipó,
peixe, agora não somente em barcos, mas em carros e caminhões, e foi seguido de
empregos temporários gerados com a instalação do empreendimento de pinus.
O emprego formal é um fenômeno recente, se considerarmos a área de estudo
como um ambiente rural de estuário e costa, com floresta nativa e solo fraco ou “areião”,
com baixo desenvolvimento econômico e social e baixa institucionalidade, onde a
pequena agricultura e a pesca artesanal prevaleciam como fontes de renda. Na verdade, o
trabalho “registrado em carteira” se iniciou com a primeira professora sitiante, esposa de
Seu Mario Fagundes (seguida de seus filhos e neta) em escolas rurais, e Seu Floriano, que
começou a trabalhar desde jovem para a Sanepar. Mas o assalariamento se formalizou de
maneira mais ampla, primeiramente, com os cargos temporários oferecidos pelas recémchegadas empresas de monocultivos florestais, principalmente para a criação da
infraestrutura com a rede de estradas de chão e para o plantio, entre o fim dos anos 70 e o
começo dos anos 80.
A primeira empresa de monocultivos florestais que ofereceu emprego aos
moradores foi a Iguaçu (atual Faber Castell), no ano de 77. Seu Cacá, da ponta, contou
que foi contratado, mas sem carteira assinada, por ele não ter 18 anos completos; ele
trabalhou na empresa por 4 anos, tempo que não contará para sua aposentadoria, lamenta
ele. Logo depois da Iguaçu, chegou a Comfloresta, ambas oferecendo empregos
temporários, em alguns casos o acordo consistia no pagamento por tarefa, como explica a
88
esposa de Seu Cacá, Dona Acácia.
Seu Gilberto, da vizinhança, avalia que a Comfloresta se inseriu na região em
tempos de poucas opções de trabalho, em que mantinham somente a roça e a pesca e, em
menor escala, o tecido com o cipó. A empresa estava na região havia pouco tempo, mas:
SEU GILBERTO SANTOS: Nesse tempo acabou-se tudo e era só roça.
Daí a Comfloresta entrou. Tinha um companheiro chamado Manuel
Galdino [de um bairro vizinho], que veio procurar pra trabalhar.
Naquele tempo pouca gente trabalhava na Comfloresta. Nós éramos em
quinze homens, daqui e de lá [apontando para outro Sítio]. Aí depois foi
entrando gente, quando foi depois tinha umas mil pessoas. Pra passar o
veneno, naquele tempo ganhava um adicional por tá usando o veneno.
Devido ao contexto de introdução do monocultivo de pinus, a infra estrutura ainda
precisava ser criada: a derrubada das árvores, a abertura da estrada, a limpeza da área, o
roçado, o plantio e o levantamento de cercas, a instalação de manilhas. Os homens foram
os primeiros a serem contratados pela Comfloresta, primeiramente para abrir a estrada.
Depois no preparo para o plantio do pinus, etapa em que as mulheres e adolescentes
também foram contratadas. O emprego foi devidamente registrado em carteira e
acertaram todos os pagamentos corretamente, como contaram Seu Gilberto e Fausto. Os
que aplicavam veneno, Seu Gilberto conta que recebiam adicional, que foi importante
para comprar leite na época em que seus primos tinham filhos pequenos.
Dona Inês conta que as mulheres também eram contratadas, para tarefas
específicas contribuindo diretamente para o plantio, colocando as sementes, separadas em
pacotinhos, em canteiros, como foi o caso dela e de suas irmãs. Os moradores contratados
trabalhavam na implementação do projeto de monocultivos florestais nos bairros por todo
o entorno da baía, inclusive no Pirizal. Dona Inês conta que seu falecido marido chegou a
plantar o pinus perto do Sítio. Depois do estabelecimento da empresa com o plantio, as
fases seguintes prescindiram da mão de obra local, mas esse primeiro momento foi
apontado como uma fase de inflexão fundamental no cotidiano dos sitiantes.
No entanto, Seu Chico Santos, da vizinhança, atribui um significado diferente às
implicações da instalação da firma (como designam a empresa de monocultivo de pinus),
ao mostrar sua perspectiva. Quase todos do Pirizal trabalharam para a Comfloresta nessa
época, o único que não trabalhou na firma foi ele, Seu Chico, dedicado ao comércio, um
homem conhecido e respeitado localmente e, por isso, comumente o mais procurado por
89
políticos locais e comerciantes da cidade.
Hoje as opções de mobilidade30 podem parecer óbvias, mas quatro décadas atrás
sair da comunidade para a sede do município era possível apenas de barco, em viagens
que levavam mais de cinco horas. Mas para Seu Chico, as novas vias terrestres foram
sinônimo de adormecimento de seu comércio local, por meio do qual revendia grande
parte dos mantimentos consumidos pelos moradores e gerava laços de dependência
(muitas vezes retribuídos como favores e não necessariamente em dinheiro) com aqueles
que não podiam pagar no ato da compra.
Ele comenta que, com a dificuldade de transporte, até então a remo, e com a falta
de emprego, os moradores frequentavam sua venda e, não raro, seus parentes sem
dinheiro nem comida faziam compra fiado. Sobre o prestígio adquirido com a falta de
alternativas no passado de isolamento das vilas estuarinas, ele avalia que “A estrada numa
parte ajudou muito”, mas por outro lado prejudicou quem tem comércio, pois
“antigamente o pessoal que morava aqui era obrigado a morrer no comércio daqui
mesmo, não tinha como sair pra fora, porque se ia de canoa era mais difícil”.
Antes só existia sua pequena venda, que perdeu a centralidade em face à
possibilidade de se acessar os mercados de alimentos da cidade pelas novas
“estradinhas”. Seu Chico também foi o dono do maior barco das redondezas e seus
serviços persistiram até pouco depois da ampliação das vias de terra, principalmente para
as famílias que não tinham condições de comprar barcos a motor, motocicletas ou carros
ou que não enfrentavam o remo. Usava seu barco grande mais como transporte para os
sitiantes que iam comercializar farinha de mandioca, seus produtos do extrativismo
vegetal, como cipó, musgo e piri, para vender arroz e aipim nas fábricas em Guaratuba e
para trazer alimentos que abasteciam sua venda.
Seu monopólio como intermediário na comercialização de alimentos dentro do
Sítio e fornecedor de transporte coletivo por água lhe colocava na posição de poder
econômico e político. Ficou conhecido como comerciante na região, ao mesmo tempo
30
Nos dias atuais, as famílias que conseguiram comprar um automóvel ou um barco motorizado têm
pelo menos algum membro assalariado ou têm renda vinculada com a pesca comercial ou turística.
Quem não tem meio de transporte pode se arriscar a pegar carona com o ônibus escolar pago pela
prefeitura quando o motorista permite, pois é exclusivo para os alunos, ou com outros moradores, ou
ainda pegar o ônibus que semanalmente faz o trecho da estrada de chão à rodovia estadual.
90
então descendente importante dos fundadores, padrinho, “credor”, com autoridade de
liderança para quem chegasse ao Sítio buscando serviços, produtos para a revenda, na
intermediação, ou procurando mão de obra nativa. Seu avô, que o criou, além de pescador
conhecido, foi um importante negociante local e sustentador do fandango e construtor dos
instrumentos musicais; não é à toa que a chácara herdada esteja situada no centro do
Sítio, onde estão a igreja católica, o salão paroquial, o barracão da festas, seu bar e venda,
o orelhão e o campo de futebol, que reúne os moradores da vizinhança para a
sociabilidade e lazer. Seu Chico é o “festeiro” da comunidade. Católico, ele e sua família
foram quem usualmente organizava as grandes festas. Decerto, seu papel político
articulador foi desfavorecido com a abertura para novos mercados, além de novas
famílias da ponta terem ganhado autonomia política e produtiva, o que não apagou sua
poder e reconhecimento entre os parentes e outros Sítios.
Um outro aspecto da instalação da firma foi mencionado por poucos
entrevistados, não menos importante para as questões da pesquisa. A penetração do pinus
em terras em “fronteiras frágeis”, devido à situação fundiária e a documentação da terra
irregular ou inexistente, e outras em áreas de acesso aberto, se tornou mais fácil, por
meios mais ou menos violentos. Em comunidades vizinhas, conforme a liderança dos
moradores de um Sítio próximo relataram em reuniões públicas com o MICI e mesmo em
uma reunião pública do Conselho Gestor da APA de Guaratuba, a invasão ocorreu de
maneira truculenta, por meio da ação ameaçadora de jagunços e por meio de grilagem
cartorial. No entanto, as iniciativas de invasão ou expropriação não foram um ato isolado,
presente só nesse outro Sítio. As empresas encontraram situações variadas de organização
social, para as quais utilizavam distintas abordagens, mais ou menos impositivas.
Conforme contaram Dona Dulce e Seu Marco, que passaram seis anos no em
outro Sítio, logo da instauração dos monocultivos florestais industriais ao sudoeste
paranaense, aos moradores não restavam muitas opções diante das oferta de indenização,
em troca das desapropriações, e da pressão exercida pela adesão dos vizinhos,
simultaneamente à progressiva derrubada da floresta nativa. Ou seja, a situação de quem
permanecia ia piorando com o cerco e, para quem decidia vender, pagava-se muito pouco.
Não havia solução otimista, relembram Dona Dulce e Seu Marco, como se as alternativas
fossem ruins: ou se perde, ou se perde. Comentam também que a situação adquirira mais
91
insegurança à medida que um sitiante local agia como intermediário em meio à
oportunidade de comprar e revender para a Comfloresta.
Em seu relato, Dona Dulce resume que o êxodo foi tamanho, generalizado, a
ponto de não restar um único aluno na escola onde ela trabalhava, razão pela qual ela
retornou ao Pirizal. Ademais, explica com detalhes como as áreas iam sendo desbravadas,
com tratores segurando correntes de ponta a ponta, derrubando as árvores mais altas.
Depois o local era limpo e roçado, na preparação para o plantio. Nesse momento da
memória de Dona Dulce eu me lembrei que Dona Inês, em uma outra situação de
entrevista, detalhou que os operários, nativos contratados, eram encarregados de demolir
os sambaquis das novas áreas ocupadas com monocultivos.
O tempo passou, o empreendimento se alastrou, até o pinheiral chegar ao Pirizal.
Se em vilas mais próximas a inserção da monocultura florestal se deu de maneira
coercitiva, com o Pirizal algumas etapas aconteceram de forma um pouco diferente.
O Sítio Pirizal é um dos poucos que mantém um território significativo, que
persiste com a ocupação ativa dos terrenos, por múltiplas famílias. No entanto, é geral a
percepção de que o cultivo tem avançado cada vez mais. Na Fig. 3.1 (esquerda), é
possível observar a parte da terra tradicionalmente reservada para o rodízio do terreno,
que a empresa ocupou, no limite com uma bola onde aconteceu um dos guajus que
acompanhei (participei do plantio também); ao lado (direita), a estrada que leva aos
Sítios.
Figura 3.1 – À esquerda, homens fazendo as covas e mulheres enterrando as ramas para o
plantio de mandioca no Guajú de Seu Wiliam, no limite do Sítio com o terreno da
Comfloresta. À direita, estrada de chão margeada por pinus de um lado e por roça de
mandioca de outro, em trecho que leva às comunidades vizinhas.
92
Sua presença marcante desde a estrada de acesso às comunidades pode ser vista
na Fig. 3.1 (direita) e Fig. 3.2:
Figura 3.2 – À esquerda, estrada de chão, margeada em grande extensão por plantios de
pinus, sob a propriedade da Comfloresta. À direita, placa da Comfloresta na frente do
terreno com pinus.
Desde a entrada da rodovia estadual até o estuário pelas estradas de chão, o
monocultivo é quase onipresente e se faz contundente não só pela monotonia da
paisagem, mas também pelo significado objetivo de seu impacto desterritorializante, que
pesou principalmente sobre as populações marginalizadas política, cultural e
economicamente, provocando mudanças significativas na distribuição e no acesso à terra.
Logo nos primeiros anos, a instalação da empresa implicou na reterritorialização
da lavoura, tradicionalmente realizada de forma rotativa por meio do sistema de guajú em
vastas áreas de acesso aberto, hoje ocupadas com pinus. A extensão da área destinada
para a lavoura de mandioca hoje não corresponde ao tamanho que teve no começo dos
anos 80. No passado, quando os terrenos de planta eram abundantes, a produção de
mandioca ocorria de forma itinerante por toda a área circundante que antes não estava
delimitada oficialmente como privada por grandes proprietários, processo de ocupação
ilustrado no zoneamento do Plano de Manejo da APA (IAP, 2006).
A visão crítica das consequências da instauração da firma apareceu muito pouco
no conjunto de comentários dos sitiantes entrevistados. Mesmo assim, um desdobramento
visível e descrito nas entrevistas, e reconhecido pelo próprio técnico do ITCG em reunião
do CG, é que o espaço agrícola foi progressivamente reduzido à uma área comum
93
reservada para o roçado da mandioca, restrito ou a áreas contíguas às casas (em sua
maioria); quem fica fora da rotatividade, chega a escolher bolas clandestinas na margem
da estrada ou mesmo entre os pinus; em últimos casos chega a pedir pelos quintais de
vizinhos dentro das chácaras, ou, contraditoriamente, negociar o arrendamento
temporário com a firma, em uma área que outrora compunha os domínios do Sítio.
Os terrenos (cerca de vinte e nove hectares, segundo seu Floriano) tem especial
importância analítica nesse sentido, pelo fato de o cultivo da mandioca e da
transformação em farinha serem permeados pela lógica do guajú que historicamente
mobiliza os parentes, como ocasião de se reafirmar laços sociais, mas que vai adquirindo
novos sentidos para cada núcleo familiar.
O que chama a atenção é que, em conjunto, as entrevistas mostram a percepção de
que o território diminuiu e, junto com ele, o guajú, ainda que as perspectivas sobre o
assunto sejam variadas, quase sempre como uma constatação de um problema inexorável
com que tinham que saber lidar, e apenas em alguns casos associando com a firma.
Seu Cacá relembrou na entrevista feita em sua casa, desde a perspectiva de um
morador da ponta e filho do nativo mais velho do Sítio, como foi a abordagem da
empresa. Esta solicitou aos moradores que demonstrassem a parte de onde queriam tirar
terreno (recortar). Isso porque a outra porção, todo o resto do território, independente se
utilizado pelas famílias ou não, supostamente constituía o total de terra já “comprada”
pela firma. Seu Cacá entende que a “proposta” da firma se justificou a época, uma vez
que, antes, havia pouco morador para muita terra, como defendeu Seu pai Seu Mario
durante o impasse marcante na história do Pirizal, chamado por eles de “briga”.
Seu Cacá recorda que o terreno do Sítio era extenso na época em que não exitia a
firma, quando também havia “poucos moradores”: “Os filhos hoje tudo usam a terra, e na
época era bem pouco. Daí veio uma pessoa aí na época da firma, aí liberou pro pessoal
por onde que queria tirar terreno. [...] Ia tirar o tanto que quisesse da parte que queria pra
plantar e usar assim”. No entano, Seu Cacá reconhece que “[...] hoje se tornou bem
pequeno pra todos pra morar. Aí o pessoal foi aumentando os filhos, netos e tudo”. O
terreno tirado, ou seja, a parte das terras em uso que os moradores foram convencidos a
subtrair da cartografia dominante da firma, hoje é pouco tanto para a lavoura quanto para
a partilha dos filhos que não moram no Sítio.
94
Situar as narrativas sobre esse evento em posicionamentos de famílias e de núleos
permitiu perceber que o processo de extensão do empreendimento florestal sobre o
território do Pirizal, há mais de 20 anos, consistiu em um dilema que gerou
ressentimentos, pois não se deu em bases consensuais entre os homens dos núcleos da
ponta e os homens dos núcleos da vizinhança, uma “briga”marcante que, como eles
próprios remontam, reforçou a distância entre famílias. Dona Inês, Dona Rita, Seu
Floriano, Seu Chico, Dona Helena e seu Gilberto, de núcleos diferentes da vizinhança,
relembram o mesmo evento de outra perspectiva.
Por exemplo, Seu Chico remontou em sua narrativa um momento anterior à
delimitação pela Confloresta, quando havia sido orientado por uma amiga da cidade, que
era também sua comadre, que chegariam umas pessoas comprando e tomando terra,
alertando que era para não cederem. Os representantes da empresa o procuraram em seu
armazém, onde estava com seus compadres, e disseram que as terras eram deles e que os
moradores precisariam passar para um lado só, a porção “tirada do total da empresa”. Seu
Chico contou que perguntou de forma desafiadora e irônica de quem compraram, pois
“nunca tinha visto alguém com duzentos anos” para ter comprado a terra há mais tempo
do que o Pirizal existe. Foi quando, educadamente, o levaram para debaixo de uma árvore
para propor um negócio, “depois que eles viram que nós tínhamos o direito de terra, né?”.
A proposta teria sido para que Seu Chico “fizesse um agrado com o armazém” para
convencer as famílias a criarem uma “vilinha nova”, para ele seria garantido um pedaço
de terra demarcada, da mesma forma que havia se beneficiado um outro nativo de um
bairro vizinho, com quatro alqueires, ao que seu Chico contou que reagiu, dizendo que
eram todos família que se ajudavam e sem terra ninguém mais se ajudaria. Assim, lhe
ofereceram um acordo de que voltariam com um engenheiro e as famílias demarcariam o
terreno com a extensão de que precisassem para a lavoura.
A história que vem depois, resumida, parece coincidir com a que contou Seu
Cacá, de que a Comfloresta se apresentou como dona de tudo e que os moradores
precisavam tirar o que queria para plantar. Porém, conforme contou Dona Helena, esposa
de Seu Gilberto, na entrevista em sua casa, o detalhe era que quem falou em nome de
todos foi Seu Mario, na ausência dos primos Santos da vizinhança:
DONA HELENA: Quando entrou a Comfloresta, era pra ter mais terra,
95
mas quando foram demarcar, o tio Mario achava que não precisava de
tanta terra. Enquanto Seu Mario, o mais velho já nessa época,
conversava com representantes da empresa, os outros homens estavam
trabalhando. Nessa época tinha umas dezenove casas.
Na entrevista coletiva, Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto afirmaram que não foi
consensual a delimitação. Seu Mario Fagundes da ponta foi quem negociou diretamente
com os representantes da firma o repasse de terras que de fato eram usadas por famílias
do lado oposto, da vizinhança. Os homens dos núcleos da vizinhança, afetados
diretamente pela decisão de seu Mario estavam ausentes, trabalhando longe dali, quando
o advogado e o técnico agrimensor da empresa chegaram ao Pirizal. Sem apresentar
nenhuma documentação, com base na autoridade e na convicção sobre o que falavam,
afirmaram que as terras já haviam sido compradas há muito tempo pela firma, logo, os
moradores deveriam desocupar em breve ou então delimitar apenas o que fosse
necessário para as famílias.
Na entrevista conjunta com Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto, assim que eu
perguntei quem havia ido junto com o engenheiro da empresa mostrar o quanto de terra
que eles queriam, Fausto prontamente respondeu que foi Seu Mario, cuja decisão
“judiou” porque “muita terra no fim não era nada”. Seu Chico completou que foi por
conta de seu Tio Mario que ficou apenas “um pedacinho”; as reclamações e contestações
dos Santos chegaram tarde demais no dia da “briga”, para as quais Seu Mario teria
respondido energicamente que não tinha por quê ficar tanta terra se ninguém trabalhava
nela. Seu Chico concluiu que seu Tio Mario acreditava que “aquilo dava pra todo mundo,
mas não pensou nos filhos dele. Então ficou essa bola aí pra nós, essa bola que hoje ficou
pequeno pra todo mundo. Meus filhos cresceram, os filhos dele cresceram”. Seu Gilberto
completou explicando que o pedaço que foi poupado é um grande brejo e o problema é
que “terra alagada não faz roça, metade é terra que chegamos aí e é tudo terra baixa”.
Nessa perspectiva, era Seu Mario, da ponta, quem estava presente na tarde da
demarcação e acompanhou os representantes da empresa, sugerindo os novos limites em
nome do Sítio, e, segundo os primos Santos, ele argumentou que havia “terra demais”,
mas “pouca vontade” de trabalhar nela.
SEU GILBERTO: Isso aqui foi cortado. […] ele não pensou na família
dele e não pensou na família dos outros. Se não cortasse ia parar lá
96
entrada de baixo, sabe a estrada de lá? Então cortava e marcava com o
terreno lá do lado. Mas ele disse por que que tinha... então ele cortou
ali. Então eles falaram que ficou 50 alqueires de terra, mas a metade é
só pra arroz. Com tudo, com tudo, pode até chegar a uns 25 alqueires de
terra. O máximo que vai ter num chute é isso aí, mas com tudo.
Os primos Santos disseram que aquilo que Seu Mario sugeriu como delimitação
para os representantes da empresa não correspondeu ao que as famílias da vizinhança
precisavam de fato. Seu Cacá e Dona Acácia, com quem falei da chegada da Comfloresta
na ponta, contaram da mesma forma que os engenheiros, técnicos e advogados
abordavam com certa pressão, mas não mencionaram o fato de Seu Mario ter sido a
pessoa que colaborou com os técnicos na nova demarcação.
O que os primos Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto descrevem sobre esse evento é,
junto com a maneira como se deu a abordagem autoritária e persistente da Comfloresta, a
evidência da tensão perene entre os sucessores dos dois lados do Sítio. O evento
definitivamente marcou as desavenças entre as famílias de Seu Mario Fagundes e os
primos Santos, ao passo que a empresa acabou beneficiada pelo impasse, afinal, a decisão
e o acordo já estavam fechados.
Assim, a postura defensiva de Seu Chico em favor do território de parentes no
primeiro dia em que a empresa o abordou parece ter sido o grande diferencial que
garantiu uma área residual no Pirizal, mantida exclusivamente para a lavoura, mesmo que
no dia da visita Seu Mario tenha permitido uma extensão maior para ser cedida, sem os
diretamente interessados.
O contrário se passou em outros Sítios vizinhos frente à pressão fundiária das
empresas de monocultivos que se instalaram na região, que também recorreram a
grilagem, mas seguida de ameaça de violência, na presença de advogados e jagunços, e
com o mesmo discurso de que os nativos eram intrusos ou invasores em terras compradas
pelas empresas. Mesmo tendo sido mais “branda” em relação ao uso da persuasão, mais
cordial (REIS, 1995; TELLES, 2001; SIGAUD, 1979a; 1979b), em vez de ameaça física,
não constituiu uma relação de compra e venda, e por isso não deixou de ser impositivo.
Afinal, os sitiantes não receberam nada pelas terras “cedidas”.
Os investidores interferiram na estrutura fundiária da região adquirindo terras de
diversas maneiras, por meio da compra no mercado informal (pagando valores irrisórios),
97
por meio de grilagem e jagunçagem, e por meio de acordos assimétricos, legitimados. Os
Sítios do entorno da baía
têm em comum o fato de todas as famílias serem posseiras, não
havendo, ainda, a titulação definitiva das terras. Além disso, todas
relataram que perderam grande parte de suas terras para a empresa
florestal Comfloresta, que implantou extensas áreas com Pinus sp. O
curioso é que na totalidade das terras em que se localizam as
comunidades e também os plantios florestais, não foi concluída a
regularização fundiária, o que, em tese, seria um impedimento para
implantação de qualquer empreendimento (SONDA, 2002, p. 67).
Atualmente, o pinheiral não parou de avançar sobre o território coletivo; o
predomínio do pinus na paisagem chama atenção até mesmo de um visitante desatento,
mas despertou poucas reações de confronto. A empresa Comfloresta parece buscar hoje
meios formais para consolidar sua presença na região, como abertura de processos em
que pede o usucapião de terrenos adquiridos de forma controversa no passado, visando a
legalização de sua ocupação no presente, no contexto do processo de regularização
fundiária dentro dessa UC e de outros municípios em Santa Catarina e Paraná.
Assim, o estabelecimento e a expansão das atividades industriais da Comfloresta
desterritorializou os Sítios. Todavia, a firma é representada de maneira ambivalente nos
relatos: se por um lado a chegada do empreendimento na região trouxe empregos, e o
primeiro registro na carteira assinada, para centenas de produtores rurais historicamente
pauperizados do estuário, e resultou na abertura da estrada, diminuindo o isolamento das
comunidades (acesso a bens materiais e culturais da cidade e abertura para mercados
diversos), por outro lado, sua chegada significou o estabelecimento de uma atividade
“predatória” sobre grandes áreas de floresta nativa e sobre áreas agrícolas constituintes do
território camponês, devastadas em poucos anos, além do seu perfil de inserção que foi
impositivo e levou ao êxodo em massa de famílias que tinham suas terras vendidas ou
invadidas, além de ter reduzido o território das populações nativas que permaneceram
(FANZERES, 2005; CORONA, SILVA, 2010; FERREIRA, 2010). Enfim, os
mecanismos sociais que garantiram a implementação dos reflorestamentos sobre
domínios tradicionais são heterogêneos, porém, em geral encontraram pouca resistência
nas localidades até hoje e levaram a situações diferentes. O Sítio como um todo diminuiu,
mas a área de planta persiste, ocupada e produzindo.
98
3.5 A importância do plantio da mandioca e dos terrenos desde os antigos
A percepção geral é a de que os terrenos aos quais se resumiu a lavoura se
tornaram pequenos para tantas pessoas e não suprem a demanda por lavoura. O problema
da redução dos terrenos faz com que esporadicamente os moradores busquem
alternativas, não descartando a clandestinidade e explorando locais isolados, externos ao
circuito tradicional. Seu Chico ainda consegue manter bolas longe da sua casa e da
farinheira do seu núcleo, em terrenos onde havia capouras que antes faziam parte do
território do Pirizal. Outra saída é “emprestar” terrenos particulares, no fundo dos
quintais de famílias inutilizados, como o fizeram Dona Rita e Dona Inês por meio de
acordo firmado anteriormente atrás da casa na chácara da Conceição e do Nilton, na
ocasião de capina em que eu as entrevistei. Nesse caso, após elas arrancarem a mandioca
e a capoura subir, ninguém poderia vir roçar o terreno, pois é propriedade particular do
casal, e não faz parte do sistema de uso comum.
A pressão gera a opção pela clandestinidade de se plantar em clareiras em meio à
floresta de pinus, ou na beira da estrada, por exemplo. As alternativas traduzem decisões
que podem ser consideradas “armas dos fracos” em pequenos atos de resistência bem
sucedidos, mas limitados a uma pequena vantagem diante da relação com seu opressor
(SCOTT, 1985), que no entanto pouco muda na relação além de pequenos ganhos.
No que diz respeito às restrições ambientais sobre o terreno, a fiscalização recai
mais sobre o período de queimadas. Agricultura está proibida ou fortemente restringida
na APA, mas acordos informais permitem a abertura de clareiras em capouras em
estágios iniciais (vegetação de até um metro e meio de altura). Prevenindo-se da
fiscalização e de eventuais multas, os moradores que fazem sua roça perto do banhado,
da estrada e no interior de plantações de pinus optam por realizar a queimada para o
preparo do terreno durante a noite, clandestinamente (BECKER, 2008).
Em alguns relatos sobre o cultivo do arroz no passado, e hoje da mandioca, surgiu
o assunto das multas ambientais. Três moradores explicam os desdobramentos de
algumas situações em que foram expedidas multas pela queimada. A morosidade para se
fornecer a licença para a queimada e os obstáculos da burocracia, no Instituto Paranaense
99
de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), foram mencionados como obstáculos
para se fazer o processo conforme a lei exige. Mesmo com o pagamento da devida taxa, a
vistoria demanda um tempo que o cultivo não pode esperar, segundo Zeca. Há oito anos,
Seu Floriano detalha que na época de planta ele queimou sua roça normalmente, como
outros vizinhos. Contudo, houve uma denúncia e alguns moradores foram multados, e
recorreram ao prefeito que os apadrinhava. O então prefeito ficou sabendo da restrição e
disponibilizou um advogado que logrou reduzir o valor da multa a uma cesta básica, para
cada morador, que foram pagas pelo próprio prefeito de então. O sistema de fiscalização e
penalização abrandou, não obstante, não freou a prática persistente, pois não é
reconhecido ou legitimado localmente, por confrontar práticas de manejo tradicionais,
anteriores à instauração do controle ambiental pelo estado. Dona Inês questionou o
propósito da proibição de se queimar a mata. Ela argumenta que na terra de guajú não há
mais mata bruta para se preservar e que a capoura é tão baixa que quase não pega fogo e
acaba-se fazendo a maior parte do trabalho na enxada.
As falas evidenciam a falta de diálogo entre os órgãos ambientais de controle e os
sitiantes. Principalmente, as penalizações não impedem a continuidade das queimadas. O
contexto descrito, que parece não ser apenas local, mostra a inexistência de diálogo e de
busca de soluções articuladas para o impasse. O cultivo dentro e fora dos domínios do
Sítio vai se tornando clandestino para se manter, o que ilustra a falta de reconhecimento e
de valorização da cultura da mandioca e da institucionalidade nela embutida, por parte
dos agentes ambientais. Assim aqueles que “chegaram antes” vão se tornando
“desviantes” em relação à normas ambientais recentemente vigentes e que não
legitimaram (HALL, TAYLOR, 2005; BECKER, 2008).
Não a contento, uma outra solução é plantar por meio de contratos temporários
cedidos pela empresa. Ironicamente, os moradores precisam de autorização da empresa se
quiserem plantar em áreas contíguas, que já foram domínios nativos. Dona Inês e Dona
Rita explicam que as famílias que ficam sem espaço nos terrenos buscam começar bolas
mesmo nos terrenos tomados, em meio ao pinheiral, o que é possível na estação de corte
onde o pinus já foi retirado. Quando visita as localidades de plantio e toma ciência da
intenção dos sitiantes, a empresa chega a permitir a lavoura, com a condição de que não
cerquem o terreno e de que assinem um contrato temporário. Seu Floriano e Dona Inês
100
com Dona Rita demonstraram nas suas entrevistas que os sitiantes entendem que a
Comfloresta não está legalizada, mas age com força por ser “poderosa” e bem
relacionada na cidade.
Dona Inês comenta que “O fiscal da firma vem [...] tem que assinar contrato todo
ano, de medo que a gente não tome, decerto. Porque sabe deus se é documentado isso aí.
[…] Se eles têm medo que tome o terreno então na verdade não é documentado”. Em
seguida, sua cunhada Rita completou “E como onde tem cerca o outro não pode invadir,
então eles não deixam cercar”.
Ambas expressam a percepção de que mesmo o terreno que a Comfloresta tomou
não deve ser documentado, e reconhecem a efetividade dos meios persuasivos utilizados
pela empresa que negocia com os sitiantes condições que não chegam a afetar seus
objetivos. A fragilidade dos territórios locais está em que são posses definidas pelo
próprio sitiante inserido em lógicas de ocupação baseados no valor de uso, sistema que
favoreceu a investida da companhia reflorestadora, pois o que já tem dono não pode ser
ocupado, só se ocupa o que está inativo. Tendo entrado na lógica do domínio tradicional,
a empresa permite a roça depois do corte, mas mediante contrato e com garantia de que o
sitiante não vai cercar a roça.
A restrição territorial força a situação de clandestinidade diante e de submissão,
seja diante do órgão ambiental, seja diante da empresa, o que dificulta a atividade
agrícola, mas sua importância permanece.
3.6 O guajú e a sua transversalidade nas práticas de reafirmação do familismo
A lavoura de mandioca consiste em uma atividade produtiva significativa desde a
época dos pais e avós dos entrevistados, quando a mandioca transformada em farinha era
transportada de barco até Guaratuba para venda. Com o declínio da lavoura de arroz,
houve uma certa paralisia econômica local que simplificou a produtividade, em que a
lavoura de mandioca e a farinha produzida para comercialização passaram a consumir
mais tempo de trabalho dos habitantes do Sítio e chegaram a constituir a mais importante
fonte de renda monetária – quando não a única para certas famílias – junto com a pesca e
o artesanato feito a partir do extrativismo vegetal. Seus produtos e habilidades já não
101
eram procurados como outrora.
Em uma análise propriamente economicista, que pensa a família camponesa
funcionalmente em termos de maximização dos lucros, como uma empresa familiar à
serviço dos mercados e das famílias urbanos, alguém poderia se perguntar “então, por que
não se mudaram de lá?”. Ora, exatamente porque lá no Sítio estavam sua família e seus
parentes, sua história. As entrevistas me mostraram uma ordem inversa de pensamento,
baseada em escolhas morais e não puramente econômcias (SCOTT, 2002; TOMPSON,
1991; ALMEIDA, 1986; REIS, 1995; SIGAUD, 1979a).
Seu Chico observa que no seu tempo de criança “a produção das plantas dava
melhor; lavoura, peixe dava a vontade”, mas não era o suficiente para garantir boa
condição alimentar e financeira. Seu Gilberto conta que até a chegada da empresa
Comfloresta, vivia-se num tempo de crise em que poucos recursos eram explorados
comercialmente, além da farinha, mas como produto principal para a venda não era capaz
de lhes render, por si só, proventos para sustentar a família. Assim, a lavoura e a
produção de farinha nos engenhos familiares costumam ser complementados com outras
atividades produtivas.
As entrevistas sugerem que na época dos antigos os terrenos não eram como hoje,
restritos e delimitados ao uso comum, mas mais dispersos e ultrapassavam o brejo e o
pinheiral para várias direções. As capouras eram mais altas e podiam escolher onde
derrubar para roçar em áreas distantes das casas, de modo que a preocupação com a
escassez de terra para o plantio era menor.
O sistema de uso comum dos terrenos obedece a regras patrimoniais e decisões
familiares que reflete a organização social do Sítio. Nos últimos anos, por conta da
escassez de terra, as parcelas (ou bolas) para o cultivo de mandioca têm sido distribuídas
por oportunidades disputadas de ocupação rotativa entre aquelas famílias que acessam a
área de uso comum. Nos últimos anos, aos terrenos têm sido exploradas por meio da
rotação das bolas apropriadas por cada família. A forma de apropriação particular de cada
parcela por cada família se dá temporariamente, no ciclo que dura até que se arranque a
mandioca pronta para colher. Quando crescer a capoura e a terra se recuperar, outra
família pode se apropriar da bola. Por conta da pressão demográfica, de escassez de terra
e da consequente piora da sua qualidade por sobreuso, o plantio dessa raiz passa por um
102
ciclo que soma quatro anos, começando com a escolha da capoura, o preparo do solo e
plantio, capinas e colheita, e novo crescimento da capoura, em resumo.
O rodízio acontece em um espaço cada vez menor, o tamanho das bolas tem
diminuído. O pousio tem se tornado mais impraticável. Em alguns casos a falta de
capouras para a bola, que por vezes chegam a ser disputadas, aumenta o desmatamento,
o que Dona Dulce resumiu dizendo: “Era tudo matão. É mato ainda, mas é tudo mato
cultivado”. Como consequência, a fiscalização é reforçada no intuito de restringir as
queimadas e desmatamentos.
As famílias costumam ter em média três ou quatro roças simultaneamente, cada
uma em um estágio, mas em todas os moradores procuram capinar31. As mais antigas,
com dois anos para mais, são aquelas das quais gradativamente foi se arrancando a
mandioca para o engenho de farinha. Aquelas em estágio intermediário servem para o
fornecimento das ramas que serão plantadas na temporada de guajú (troca de trabalho
entre famílias) e em breve deve brotar e, por sua vez, servir para a produção de farinha.
Corta-se a rama com um facão em aproximadamente seis pedaços, que ficam empilhados
para serem plantados de novo. Depois os brotos vão crescendo e no ano seguinte vai se
fazendo a capina todo mês, agachado tirando as pragas.
Ao longo do segundo e do terceiro anos, a mandioca é arrancada à medida que
vão se deparando com a necessidade de se produzir farinha pra ser comercializada. Ao
fim da roça, a bola é abandonada para que a terra se recupere. Passados dois ou três anos,
qualquer outra pessoa pode derrubar o mato novamente pra iniciar sua roça nos terrenos.
31
As etapas de produção são realizadas observando-se, entre outros elementos, o clima, o tempo, as fases
da lua, um pragmatismo que é parte do saber dos antepassados, que vai sendo atualizado. O período de
chuva só permite a manutenção da roça com a capina das pragas, geralmente em um período do dia, e
nessa época os moradores estão livres para se dedicarem a outras atividades. A queimada e a
preparação do solo só acontece quando a chuva cessa e se pode então escolher a capoura a ser
derrubada. Os que trabalham no cultivo da mandioca contaram que o período de planta, em que a
comunidade toda se dedica com intensidade à roça, costuma acontecer até o mês de outubro ou
novembro, quando “o sol muito quente” pode queimar as raminhas recém-plantadas. Dona Inês
destacou a influência da fase da lua sobre o desenvolvimento da rama. Ela explicou que se o plantio
não acontecer na lua certa – no caso a lua nova – “não dá” nenhuma rama de mandioca, por isso é
preciso escolher “a lua boa”, para que tão logo tenha sido plantada já brotem novas raminhas. Depois
do plantio de uma roça, resta a manutenção desta e das outras plantadas por uma mesma família. A
capina, como é chamada, se faz necessária, segundo eles, pois no período de chuva cresce muito mato
que concorre com o crescimento da rama. Foi observado em algumas situações que para a capina eles
utilizavam um facão improvisado em que a lâmina estava amarrada por uma fibra vegetal a um cabo de
madeira curto. Antigamente, conta-se que a capina era feita pelas mulheres enquanto os homens iam
pescar. Seu Cacá conta que era feito guajú também para a capina, um guajú só de mulheres, agora se
tronou uma tarefa da família dona da roça.
103
Antigamente uma capoura na terra adequada para o plantio da mandioca chegava a ter
sete ou oito anos, chamada comumente de capourão, como as que existem no banhado.
Hoje, o ciclo completo da raiz leva cerca de quatro anos: até dois anos de
descanso da mata crescente até sua derrubada e mais dois anos desde o plantio até
arrancar toda a mandioca. Apesar de eles reconhecerem que esses tempo de pousio é
curto para a terra fraca se recuperar, eles explicam que não há como esperar mais para
derrubar a mata devido à demanda do cultivo para poder sobreviver no pequeno espaço
disponível. Como resume Dona Inês, “aqui é muita gente que planta e pouco terreno”.
A possibilidade de cada família possuir três ou quatro roças simultâneas em vários
estágios, permite que se tenha sempre uma roça na fase de se arrancar a mandioca para o
consumo ou para a produção mensal de farinha, de acordo com a necessidade, se for para
se obter renda monetária ou mesmo pro gasto. Isso reforça a ideia de que a área comum,
ou o terreno que agregam as roças familiares e a capoura, operam como um sistema
contínuo e interconectado social e espacialmente, de modo que não só o ciclo de roças e
capouras vai se organizando repetidamente, mas também o ciclo do guajú para a
realização das roças.
Essa trajetória de gestão de três ou mais roças ao mesmo tempo em estágios
diferentes é percorrida por uma mesma família e acontece simultaneamente com outras
famílias distribuídas em bolas num mesmo terreno. Assim o terreno agrega roças e
capouras, em diversos estágios. Essa espécie de síntese ilustra uma dinâmica que
sintoniza lógicas espaciais, naturais e sociais.
Seu Chico comentou a interferência do pinus sobre a roça e sobre a mata.
Atualmente, espalhado por toda a região, Seu Chico e Seu Gilberto reclamam do trabalho
para conter a dispersão sobre as roças. Aqui eles evidenciaram o problema atual de
dispersão espontânea, para além dos limites da lavoura impostos pelo cerco de pinus
enfileirados, cultivados no passado.
Seu Brasílio, Seu Gilberto, Seu Chico e Dona Inês acreditam que atualmente a
planta tá mais difícil, não só por conta do areião, mas porque a terra enfraqueceu ainda
mais devido ao cerco de pinus: “Diz que esse marvado pinus aí puxa 10 litros de água por
dia. Diz que puxa muita água. Acabou com tudo. Essas terras que eles deixam plantar no
meio do pinus, a primeira planta dá boa, a segunda...” (Seu Chico).
104
Eu lhes perguntei se aplicavam alguma espécie de maquinário, equipamentos e/ou
insumos agrícolas, na lavoura. Os moradores disseram que alguns poucos usam o veneno
granulado de formiga; fora esse, disseram que no processo todo não se utiliza de nenhum
veneno ou adubo químico, mas sim “na unha”, manualmente apenas com foice, enxada e
facão, desde a “limpeza” do terreno até a colheita. Seu Chico mencionou com orgulho
que a produção ser toda artesanal e “sem veneno” seria o motivo pelo qual a farinha do
Sítio é considerada a melhor da região.
Um ponto curioso sobre o assunto do uso dos insumos agrícolas e maquinários foi
que, ao explicarem o processo produtivo da comunidade, era recorrente a comparação
entre as condições produtivas locais com a dos empresários de Cubatão, produtores
patronais capitalizados que possuem empregados e maquinários modernos, onde a terra é
mais fértil, o uso de insumos é maior e, por consequência a produtividade é superior: em
8 meses na terra de barro já se pode arrancar a mandioca. Ali a terra é fraca, chamada de
areião (em oposição à terra de barro encontrada em Cubatão, onde dá a mandioca boa),
em que só dá a mandioca brava e o aipim, além disso não usam adubo (só granulado
contra formiga que não consideram “veneno”).
A comunidade dispõe de duas tobatas, vindas com o Programa Paraná 12 Meses,
no entanto, esses equipamentos são raramente utilizados como carreta para transportar a
colheita para as farinheiras das famílias. Sobre a tobata, ficou claro que é um privilégio
adquirido pelo Pirizal, o único Sítio da redondeza que recebeu equipamentos como esse
do governo. No entanto, percebeu-se que eles não usam a tobata, justificando que para
seu manuseio é necessário chamar duas ou três pessoas, além da exigência de
manutenção contínua e cara.
Sobre a dinâmica de escolha e ocupação dos terrenos, Paulina explica que quando
uma pessoa roça a frente de uma mata bruta, já quer dizer que aquela área demarcada, ou
bola, vai pertencer a ela e a sua família32. Nos dias atuais, o roçado tem sido realizado por
homens de cada família ou núcleo de famílias, não mais com a participação de homens de
32
É com o fim das chuvas sazonais que a mata bruta está em melhores condições de ser queimada e
roçada, para finalmente se começar o ajutório de planta. Se a família tivesse filhos suficientes em
idade para ajudar, o trabalho na etapa do roçado ficava dividido entre os membros da casa, ou em
alguns casos se precisaram de ajuda chamavam apenas alguns vizinhos do mesmo núcleo familiar.
Outra possibilidade era se pagar alguém de fora para ajudar a preparar o terreno. Contudo, o mais
comum era fazer guajú de roçado, em que os homens se juntavam pra trabalhar na roça de um morador,
depois na do outro e do outro, até que todos tivessem pago o ajutório recebido.
105
toda a comunidade. As famílias da ponta tem se isolado em relação ao conjunto da
comunidade.
Da mesma forma, a preparação da bola para a futura roça cabe tipicamente aos
homens, pois no guajú a divisão de trabalho por gênero ainda permaneça com bastante
força. As cunhadas Dona Rita e Dona Inês são exceção nesse sentido, pois o marido
daquela trabalha como chacareiro em outra localidade e esta é viúva. O plantio de
mandioca é realizado cooperativamente, da mesma forma que ocorre a coleta do
caranguejo, a coleta do cipó e também sobre a produção de farinha; a lógica da ajuda
mútua se faz presente com suas várias facetas.
A troca de tempo entre pais de família de um núcleo, relacionadas entre si por
parentesco e afinidade, exige a liderança e a presença do chefe da família a quem
pertence a lavoura. Primeiro a família dona da bola define o dia em que vai acontecer o
plantio e chamam de porta em porta vizinhos, homens e mulheres, para ajudá-los na roça
deles na data combinada. Logo a notícia se espalha, pois um vizinho conta para o outro e
aparecem aqueles que precisarão de ajuda. Essa dinâmica no entanto não é generalizada,
pois há o elemento afinidade e seletividade na cooperação, como veremos em relação à
família de Dona Dulce e Seu Marco.
Uma vez que a bola está delimitada e pronta para o plantio, esperando os parentes
para o ajutório, as ferramentas (foices, facões, enxadas, balaios) e os feixes de rama
decepada de uma outra roça da família são transportados, em balaios sobre os ombros ou
com a tobata, até o barracão de bambú improvisado próximo à nova roça para poder se
iniciar o corte da rama em piques para o plantio. O guajú do dia de plantio se divide em
duas etapas: de manhã as mulheres cortam a rama sob o barracão e os homens preparam a
terra; e de tarde acontece o plantio coletivo na roça de fato.
Na manhã do dia de guajú, aparecem portanto, apenas aqueles que pretendem ser
ajudados para as mesmas etapas de preparação da rama e da terra. As mulheres trazem
seus facões, balaios e sacos para picarem a rama concentradas sob o barracão, enquanto
os homens colaboram cortando pragas e raízes e revirando a terra. As família que
comparecem nessa fase são geralmente do mesmo núcleo, ao passo que de tarde
costumam comparecer mais pessoas, representando outros núcleos de famílias.
106
O guajú de planta33 acontece no período da tarde, depois do almoço, geralmente
às quatorze horas. No horário de verão redefine-se o horário de início para as quinze
horas. Os moradores vão chegando aos poucos, com suas enxadas e balaios, antes do
horário combinado. Nos guajús observados havia cerca de trinta e cinco pessoas
trabalhando no total, mais homens do que mulheres. Mas Seu Floriano explica que o ideal
do guajú é que haja um balanço entre o número de homens cavando as covas em fileiras
com a enxada e o número de mulheres seguindo atrás, enterrando as ramas, de modo que
se espera de um dia de guaju que todas as ramas decepadas de uma outra roça sejam
plantadas na mesma tarde, na nova roça da família que promoveu o guajú.
Sob o barracão, além das crianças – que não participam –, ficam abrigados do sol
forte bebidas (garrafas pet com água gelada, refrigerante e vinho 34) que serão consumidas
durante o ajutório e os sacos e balaios feitos de cipó para carregar as ramas. Geralmente
são os adultos jovens e velhos que participam, enquanto crianças e adolescentes
colaboram minimamente, apenas na preparação das bebidas ou no cuidado das crianças
menores.
Ritualmente, o plantio começa com uma fileira de homens revirando a terra e
preparando a cova com a enxada, depois de um pedaço, descansam e então logo atrás
vêm as mulheres que, agachadas com o balaio em punho, vão enterrando as ramas nas
covas e depois de um trecho param para o descanso, quando os homens recomeçam. Para
que exista um compasso, o ideal é que o número de homens seja equivalente ao número
de mulheres. Descansam primeiro os homens e depois as mulheres, e na pausa os donos
da roça servem as bebidas. O tempo de trabalho depende da relação entre o número de
pessoas e o tamanho da roça, com o objetivo de se plantar todas as ramas decepadas. O
trabalho da tarde não costuma passar de três horas e meia. Há dois tipos de raízes 35
cultivados por eles: o aipim, mais macio e apropriado tanto para consumo direto quanto
para a produção de farinha, e a mandioca brava, que é mais endurecida, mesmo depois do
33
34
35
Com vimos, o guajú é realizado no processo de plantio da mandioca, enquanto que na etapa de se
arrancar as raízes cada família trabalha na sua roça sem ajuda. Hoje o guaju acontece numa temporada
determinada, uma vez por ano de agosto a outubro. Durante a pesquisa de campo, os guajús para o
plantio da mandioca se concentraram nos meses de setembro, outubro e os últimos, em novembro, nos
dias de lua nova.
Comentaram que antigamente bebiam uma mistura de licor, cachaça e canela. O refrigerante tem sido
uma opção para quem, por restrições da Igreja Evangélica, não pode ingerir álcool.
Para a finalidade do presente texto, utilizamos o termo mandioca se referindo ao cultivo de ambos os
tipos indistintamente, sem entrar nos pormenores das diferenças taxonômicas dessas raízes.
107
cozimento, adequado somente para se fazer farinha.
Ao fim do ajutório, o morador que recebeu ajuda costuma oferecer um café da
tarde, com pão de forma e margarina, café e leite, seguido por uma conversa com todos
reunidos, que se encerra no início da noite36. Os ajutórios acontecem diariamente nas
semanas em que a fase da lua é favorável para o desenvolvimento das folhas e da rama.
Assim o calendário de guajú continua até que todos tenham sua roça plantada, no fim da
temporada anual. Vale lembrar que no caso da ajuda mútua o produto de uma tarde de
trabalho coletivo pertence ao dono da roça, de maneira que o ajutório para quem recebe
deve gerar a obrigatoriedade do ajutório para aquele que ajudou.
Chamou a atenção o monitoramento explícito e generalizado do trabalho, com a
finalidade de se verificar a frequência, pontualidade, capricho, ou ausência dos moradores
no ajutório, para que quem recebe o ajutório possa controlar a quem deve pagar a tarde
de trabalho em que foi ajudado; e para que seja possível pagar na mesma medida de
pontualidade37, esforço e capricho.
Essa medida tem como consequência a distribuição relativamente equilibrada da
força produtiva e do produto final. Ficou evidente que a pontualidade era uma forma de
se mostrar engajamento e compromisso, sinais de honra tão importantes quanto a
presença em si no ajutório. A tensa atmosfera de cobrança entre as mulheres, onde eu
estava, era suavizada com as piadas e comentários sobre a intimidade, sobre os trejeitos
corporais ou mesmo comparando a eficiência ou desleixo no plantio, com humor. O
empenho das mulheres ao meu lado enterrando a rama parecia sinônimo do dever de
trabalhar na roça do outro como trabalharia na sua própria.
36
37
Aqui cabe diferenciar o guajú do mutirão (ou puxirão ou ainda pixirão). O primeiro implica, da parte
de quem recebeu o ajutório, na oferta de bebida e café durante a tarde de trabalho e a obrigatoriedade
de pagá-lo, na mesma condição e ainda no mesmo calendário de plantio do ano, de roça em roça. O
segundo implica na obrigatoriedade de se oferecer uma grande festa, farta de comida, bebida e música,
para todos os que ajudaram, na mesma noite que sucede a tarde de trabalho. As festas comunitárias no
Pirizal têm sido cada vez mais esporádicas e são realizadas geralmente em comemoração de aniversário
ou em celebrações religiosas. Nos dias de hoje, esse sistema de ajuda mútua é o mais comum e têm
sido aplicado principalmente no plantio de aipim, mas a influência e de sua lógica aparece em outros
processos produtivos baseado da ajuda recíproca.
Ao longo da pesquisa de campo, aconteceu uma situação que pode ilustrar melhor. Durante o segundo
guajú de que eu participei, de Seu Wiliam, perceberam que eu tinha chegado meia hora atrasada,
mesmo não tendo uma roça onde os nativos presentes poderiam ter que pagar o ajutório que eu estava
oferecendo. Minha presença, pontualidade e meu esforço e capricho eram explicitamente cobrados, ao
mesmo tempo que quanto mais eu me esforçava para copiar os movimentos e a enterrar corretamente a
rama na cova, mais era elogiada e incentivada em voz alta.
108
Essa exigência se traduz na preocupação com o rendimento do trabalho, bastante
árduo para uma família corrigir depois. É durante o próprio guajú que se determina o
tamanho e a produtividade da roça de mandioca38 da família, que só a partir do primeiro
ano poderá ser gradativamente cortada para a produção mensal de farinha, que por sua
vez poderá ser vendida. Assim, aquele que chama o vizinho estabelece a obrigação de
pagar, àquele que foi chamado, o ajutório com esforço e dedicação semelhantes, ainda na
mesma temporada de planta (não se deixa para pagar ajutório no ano seguinte), num
sistema em que a contribuição na economia doméstica não é unilateral, mas cruzada, nas
palavras de seu Chico, “um ajuda o outro, o outro ajuda e tem o guajú”, e apesar do
trabalho ser pesado, ou justamente por isso, o ajutório consiste em um encontro ritual,
que não se afasta do clima de conversas, fofocas, piadas e cantoria próprios a uma festa
em família.
O princípio mais óbvio da troca de trabalho é que quando a força familiar é
insuficiente, recorre-se à ajuda mútua entre outras famílias ou mesmo em escala
comunitária. Seu Floriano conta que, quando havia mais pessoas trabalhando na lavoura
no Sítio, compareciam cerca de cem pessoas em cada guajú, cinquenta homens cavando e
cinquenta mulheres plantando. Nesse tempo, o ajutório intercomunitário era mais
comum. Hoje, ainda participam duas ou três famílias de Sítios vizinhos, onde quase não
há mais lavoura e os poucos produtores de mandioca acabam trabalhando sozinhos,
combinando pequenos guajus entre vizinhos de casa, mais independentes, inclusive nas
mesmas datas do Pirizal. Mas, como afirmam os moradores com um certo orgulho, a
comunidade do Pirizal é a única onde a reunião de plantação persiste, onde a família e os
parentes permaneceram em maior número.
Se comparado à força de trabalho de duas ou três pessoas de uma mesma família
no plantio de uma roça, a força de trabalho organizada no guajú propicia ganhos coletivos
consideráveis, em termos de rendimento de tempo e de produtividade. O calendário de
guajú vai sendo então preenchido com o ajutório e o mesmo ocorre com o terreno em
capouras derrubadas em uma temporada, que vão cedendo espaço à lavoura,
sucessivamente no sistema de pousio em rodízio.
38
Nos trabalhos de Balzon (2006) e Ferreira (2010), eles afirmam que no Pirizal as roças possuem em
média 0,9 ha, mas ambos autores não mencionam a fonte da informação e não se conhecem o rigor e o
critério com que foi coletada, portanto esse valor não será considerado.
109
Nesse sentido, o ato inicial de chamar para o ajutório e o ato de se comparecer
ativamente no plantio, em conjunto, selam um compromisso reciprocamente assumido
que ganha significado econômico e social não só para a família dona da roça, mas
também para a comunidade como um todo, tendo em vista a rede de interações que os
dois atos implicam.
Além desses aspectos que dizem respeito ao vínculo de afinidade e confiança
interpessoal, reafirma-se, da mesma maneira, a territorialidade, ou seja, o inter
reconhecimento da apropriação familiar dos terrenos. Vale lembrar que as roças
familiares não são células isoladas, não constituem nenhum outro território senão o
terreno ou a área de planta do Sítio, onde o trabalho molda a terra e expressa e atualiza a
presença da família.
Esse detalhe foi enfatizado nas entrevistas. Só comparecem ao guajú do outro
aqueles que cultivam mandioca para si, ou seja, “ajuda quem quer ser ajudado” em sua
própria roça. Dona Rita explica quando e como ocorre o guajú “[...] só quando tá na
época de fazer mutirão pra plantar, eles fazem um ajuntamento de gente numa tarde aí vai
quem quer ganhar ajutório, nós dizemos. No caso, eu vou lá ajudo eles e daí quando eu
fizer a minha, eles vêm”. A cadeia de ajuda mútua se inicia e vai deste modo constituindo
um calendário de lavoura que dura aproximadamente três meses em cada ano.
Não participa do ajutório portanto aqueles que não querem ajuda para tal trabalho
e aqueles que de certo modo estão se relacionando com o território disponível de outra
maneira. Um olhar mais individualizado sobre os núcleos de família mostrará que as
famílias de pescadores profissionais da ponta cuja renda advém principalmente do
turismo, ao se especializarem na pesca, dedicam menos esforços à lavoura e produção de
farinha, entre quatro chácaras do núcleo, o que torna a colaboração fora dele
prescindível. Já os assalariados que possuem emprego público não deixaram de
participar, continuam no sistema de entre ajuda que envolve outros núcleos em âmbito
comunitário, apesar da redução da disponibilidade de tempo e da garantia da renda
individualizada.
Além disso, as famílias dos irmãos Seu Brasílio, Seu Cacá, Zeca, e Dona Dulce,
da ponta, lidam com a questão do uso comum da roça a partir da limitação de espaço que
eles enfrentam em relação à predominância do banhado. Como todas as outras, as
110
famílias da ponta mantêm na medida do possível suas roças rotativas na direção de suas
casas. No entanto, desfavorecidos pela localização de suas roças, todas bem próximas ao
banhado, inclusive com olhos d'água embrenhados nas capouras mantidas, o pedaço de
terra favorável para a lavoura mais próximo das famílias é o que se estende em direção da
vizinhança, que acaba sendo usado exclusivamente pelas famílias da ponta,
monopolizando o acesso e a apropriação, mais um aspecto do desentendimento entre as
famílias.
Um argumento bastante contundente que surgiu nas falas de Dona Dulce e Seu
Marco, na entrevista com os dois juntos, e na conversa com Marquinho e sua mãe Judite
do Marcelo, foi o capricho de quando se está trabalhando para si mesmo, o que segundo
eles não aconteceria quando ocorre ajutório. Costumam organizar o trabalho na lavoura
entre si, de forma que se por um lado não recebem ajuda de muitas pessoas, também não
precisam pagar.
No caso do casal de aposentados Seu Marco e Dona Dulce, ambos idosos, eles
buscam colaborar sobretudo nas roças da nora, do primo, do cunhado, irmão, enfim,
daqueles parentes-vizinhos dos núcleos da ponta. No último guajú do primo Seu Floriano
apenas Seu Marco compareceu e eles chegaram a pagar Seu Júlio Ferraz 39, de 64 anos, e
duas moças de outro bairro para que estes trabalhassem no pagamento do guajú em seu
lugar. Dona Dulce e Seu Marco não conseguem reunir força braçal suficiente para pagar
o guajú, já que seus filhos trabalham apenas em suas próprias roças ou nas dos pais e não
na de Seu Floriano. Como Seu Marco e Dona Dulce querem poder contar com o ajutório
de Seu Floriano compareceram em seu guajú.
Uma outra dimensão sócio cultural que tem tido influência sobre o guajú é o
aspecto religioso. O número de evangélicos, ou “crentes” como eles mesmo chamam vem
reduzindo a mobilização e a participação dos moradores em festas da comunidade,
39
Seu Júlio Ferraz é filho do finado Professor Ferraz que se mudou com a família para o Sítio ainda na
juventude, deixando ali dois filhos e uma casa. Seu irmão Donizete mora “no meio do mato” e Júlio
mora na casa herdada dos pais; não tem família nem roça e costuma prestar serviços braçais em troca
de pagamentos, sob fortes dores nas costas e pernas, como meio de sobreviver; ele não conseguiu se
aposentar pela lavoura por empecilhos burocráticos, ainda que tenha problemas acentuados na coluna e
nas juntas. Além do assalariamento dos funcionários da prefeitura, o filho e a cunhada de Dona Inês
que trabalham para o turismo de forma assalariada, a situação de Seu Júlio mostra mais um caso de
venda de mão de obra entre os nativos residentes. Há também o caso de Gabriel, genro de Seu
Floriano. Gabriel não nasceu do Sítio, mas mudou para o lá quando sua esposa decidiu sair de
Guaratuba; ele trabalha como pedreiro e presta serviços na construção para turistas, nativos e
pesquisadores.
111
censurando a ingestão de bebidas alcoólicas comuns em mutirões e padronizando a
vestimenta, inclusive para os dias de trabalho na lavoura. Quando acontece um baile ou
festa que vai até tarde da noite, somente os jovens e adultos das famílias que não são
crentes participam. Esse fato pode ser exemplificado pela festa de aniversário de seu
Chico, em setembro de 2011, que foi comentada e esperada por grande parte dos sitiantes
da vizinhança. Para a festa foram contratados músicos que cantaram música caipira e
sertaneja com instrumentos elétricos. Houve um jantar com churrasco com carne
comprada na cidade e bebida que deu conta de servir todos os presentes, cerca de sessenta
pessoas; o baile foi até “tarde da noite”. A festa coroou a semana intensa de guajú. Apesar
de terem participado do mutirão, as pessoas que frequentam o culto na igreja evangélica
não participaram da festa. Os membros protestantes são poucos; Seu Floriano e Dona
Luzia, Dona Santina, Geraldo, Seu Brasílio e Lucélia. Seu Brasílio explicou que a Igreja
Evangélica existe no Sitio faz três anos, construída pelos próprios membros, por meio da
arrecadação do dízimo. O pastor mora em outra localidade e vem fazer os cultos de moto.
O processo de cultivo da mandioca nesse espaço ocorre mediante acordos e regras
firmadas de maneira informal atualizada pela relação entre as famílias e seus núcleos. A
gestão da terra lida com o fato de sua escassez e ao mesmo tempo com sua distribuição
hierárquica e desigual. Joana do Fausto, da vizinhança, comentou que existe um
predomínio da ponta sobre as capouras da ponta, como um cerco que não permite que as
famílias da vizinhança rocem por lá. O que ficou claro foi que as famílias da ponta
contam com uma área de banhado que não é propícia para o cultivo da mandioca, por isso
“reservam” por meio do monopólio (ocupação seguida das mesmas capouras que deveria
ser rotativa) áreas que correspondem à direção das casas das famílias na vizinhança. Por
sua vez, as famílias da vizinhança, entre esse monopólio das famílias da ponta e o limite
com outro Sítio e com plantios extensos de pinus, tem seu terreno para o roçado limitado.
Tal monopólio que quebra as regras de uso rotativo das roças reforça as diferenças e
impasses entre as famílias.
3.7 A transformação da mandioca na farinheira compartilhada
A lavoura de mandioca encontra sua razão de ser na transformação artesanal ou
112
semi mecanizada da mandioca em farinha, no interior de engenhos caseiros construídos
pelas gerações anteriores.
A produção de farinha não é um traço cultural exclusivo do Pirizal, faz parte da
história das populações litorâneas do Paraná. Para efeitos de contextualização desses
aspectos culturais e históricos acerca dos engenhos de transformação da mandioca na
região, merece destaque um estudo multidisciplinar realizado por extensionistas da UFPR
Litoral, baseado no levantamento das “Farinheiras do Litoral do Paraná” 40. O projeto de
extensão “Reestruturação Produtiva de Farinheiras no Litoral Paranaense” nasce da
demanda identificada no projeto de pesquisa “Estudo da Cadeia Produtiva da Mandioca
como Estratégia para o Desenvolvimento da Agroindústria do Litoral do Paraná”, pelo
qual visitaram, entrevistaram e mapearam centro e trinta e três farinheiras em todo o
litoral. Entre as farinheiras visitadas 41, constatou-se que nenhuma possuia autorização da
Vigilância Sanitária, seja municipal ou estadual, para operar, encontravam-se em
situações precárias, seja em termos de infra-estrutura, seja em termos da adoção de boas
práticas de higiene, organização e gestão.
A pesquisa identificou, além de gargalos na cadeia produtiva, vantagens
competitivas das farinheiras do litoral. A exemplo, o fato de a matéria-prima ser
produzida, em sua grande maioria, sem a adição de insumos químicos; o produto ser
proveniente da agricultura familiar e ser artesanal, o que mantém as pessoas no campo, as
quais são responsáveis por grande parte da produção de alimentos do país. Além de
garantir a soberania alimentar local e contribuir para a redução do êxodo rural.
A farinha do litoral paranaense é associada pelos consumidores como uma
identidade cultural das famílias da região e esta identidade cultural faz com que seja
conhecida popularmente como “Farinha da Boa” ou “Farinha da Terra”, mostrando desta
forma o valor que este produto possui e as potencialidades que podem ser trabalhadas
para o fortalecimento do mesmo perante o mercado consumidor (KOMARCHESKI,
40
41
Cf. DENARDIN, Valdir F. et al. Casas de farinha no litoral do Paraná: realidades e desafios. In: XIII
Congresso Brasileiro da Mandioca, 2009, Batucatú. Anais... Botucatú: CERAT/UNESP, 2009.
Disponível em: <http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/53990_6253.PDF>. Acesso em: 20
ago. 2010.
Conforme consta no site: “Foram escolhidas as farinheiras comunitárias com melhores condições
estruturais para comercialização da produção, em Guaraqueçaba e Guaratuba As informações sobre o
projeto Farinheiras do litoral podem ser encontradas pelo endereço eletrônico
<http://farinheirasdolitoral.blogspot.com/p/o-projeto.html>.
113
DENARDIN, 2010).
Com o diagnóstico levantado pelo grupo constatou-se que as principais
dificuldades encontradas pelos pequenos produtores são a concorrência desleal com as
farinhas vindas de outras regiões; a dificuldade de ampliar a área de cultivo de mandioca,
pois municípios do litoral possuem grandes áreas de proteção ambiental, e a falta de
infra-estrutura para escoar a produção para o mercado local/regional devido à distância
até o mercado consumidor, agravado pelas más condições das estradas.
A “arte de fazer farinha” produziu no litoral do Paraná um conjunto de artefatos
artesanais representantes da identidade cultural local, que resistiram ao tempo e à
modernização da produção. Cada etapa do processo inclui manejo e artefatos específicos,
os quais são repassados de geração para geração. Além disso, a construção destes
artefatos é imbuída de uma memória mais restrita que perdura até hoje com os mais
velhos, mas que vem se perdendo e está ameaçada de desaparecer (KOMARCHESKI,
DENARDIN, 2010).
Durante as visitas a campo, surgiram depoimentos sobre o processo artesanal de
produção da farinha e sua história. Presenciei etapas do processo de transformação da
mandioca em contextos distintos, o que sinalizou a complexidade e as particularidades
culturais e técnicas dessa prática: foram visitados engenhos caseiros semi-manuais e a
agroindústria comunitária, e presenciadas situações em que uma única família trabalhava
ou em que várias famílias cooperavam.
Figura 3.3 – À esquerda, forno de metal da farinheira comunitária. À direita, prensa de
madeira talhada artesanalmente, na Farinheira do núcleo de Seu Marco Rezende.
114
No Sítio, existem pelo menos seis farinheiras caseiras ativas e uma estacionada,
distribuídas pelos núcleos familiares. A maioria é antiga, feita com ripas de madeira pelos
pais ou avós dos entrevistados, mas uma delas é possível notar que foi reformada em
alvenaria; outra foi recentemente construída por famílias de um mesmo núcleo, com
tijolos e cimento (Fig. 3.3, direita).
Geralmente a casa de farinha fica no quintal da chácara dos pais ou dos sogros e
pode ser utilizadas coletivamente, pelas famílias de seus filhos. Os engenhos de farinha
apresentam frequências de uso e finalidades variadas. A farinheira fechada que foi
visitada, segundo seu herdeiro, produz farinha apenas para o autoconsumo, enquanto
outras funcionam ativamente uma vez por mês produzindo farinha pro gasto e sobretudo
para venda.
Não foi explorado, mas é possível que haja mais que uma farinheira antiga
inativa. Foram visitadas casas de farinha (duas no Sítio, mas também em comunidades
vizinhas) feitas de madeiras de lei nativas que produziram intensamente farinha no
passado, e portanto possuem grande valor histórico. Estão fechadas sucateando sem
funcionar e abrigam equipamentos artesanais antigos e às vezes petrechos de pesca
entulhados. Algumas farinheiras dessas antigas têm sido desmontadas e suas peças (como
prensa e canoa) procuradas para a compra.
A produção da farinha passa por algumas etapas básicas: começa com o longo
processo de plantio descrito acima e depois com a colheita da raiz de mandioca, seguida
pelo descascamento, ralação, prensagem, esfarelamento, torração e é finalizada com o
embalamento do produto (KOMARSHESKI, DENARDIN, 2010).
Os engenhos possuem características singulares, funcionando em diferentes
condições de infra estrutura e de tecnologia que variam entre a rusticidade e a
mecanização, com consequências importantes para o rendimento, produtividade e
organização do trabalho. Depois da instauração da luz elétrica, grande parte dos engenhos
passaram a contar com motores elétricos42.
42
Os motores elétricos estão presentes principalmente nas etapas de ralação e torração. Melina contou
que a farinha levava quase uma semana para ser feita, trabalhando-se o dia todo, no processo
inteiramente manual, inclusive a etapa de fornear (torração), com pás de madeira. Por causa do calor do
forno dentro da casa de farinha, começavam de madrugada. O advento das pás mecânicas, que
funcionam continuamente, a produção é otimizada, porém o forneamento com pás manuais, segundo os
moradores, deixa a mandioca mais grosa e saborosa. As prensas mais antigas são feitas com fusos
talhados a partir de uma peça inteiriça de madeira de lei nativa, por artesãos locais e seu manuseio é
115
Apesar das pequenas mudanças, o processo de transformação da raiz da mandioca
é predominantemente artesanal, realizado por meio de instrumentos e técnicas próprios da
cultura e do ambiente local. Sobretudo, ele continua sendo organizado cooperativamente,
tendo em vista que as etapas são quase todas manuais.
Como eu pude observar no processo produtivo do núcleo de seu Floriano e na
farinheira de Seu Marco, depois que a mandioca é trazida para a farinheira, ela é lavada e
em seguida raspada (descascada). Essa etapa é realizada pelas mulheres, que costumam
fazer guajú entre si para raspar, não no âmbito da comunidade, mas entre as mulheres de
seu núcleo. Aparecem aquelas que pretendem ser ajudadas na mesma tarefa, mas em sua
própria farinheira. As outras etapas, em que a mandioca é seca e torrada, são feitas com
ajuda dos membros da família (pai, mãe, filhos mais velhos) ou, no caso de se reunir as
colheitas de famílias do mesmo núcleo, todos ajudam até a fase de embalamento. A
divisão das sacas de farinha é feita de acordo com o investimento em quilos de mandioca
por família. No caso do casal Geraldina e Cleiton, como ela não tem emprego formal, a
maior parte da produção fica sob responsabilidade dela; ele afirmou que para ele é só um
complemento.
As famílias costumam trabalhar na produção da farinha uma vez por mês, na
última semana. Para tal, vão gradativamente arrancando a mandioca da roça. Melina
mencionou que seu núcleo tira em média cinco ou seis sacos de mandioca, que equivale a
aproximadamente de 200 kg de mandioca, que por sua vez resultam em
aproximadamente em uns 120 kg de farinha.
Com finalidade comercial, uma vez por mês, cada núcleo parte para bairros
vizinhos e para as cidades, para escoar a produção, e procura seus compradores
individualmente. Do mesmo modo que a apropriação do produto final é familiar,
independente da ajuda prestada (uma vez que “ajuda prestada é ajuda paga e dívida
zerada”), não há coletivização nem colaboração para a venda da farinha: os
intermediários (atravessadores, mercados e aviários) e consumidores finais são diferentes.
Cleiton afirmou que a farinha é vendida a R$ 3,50 o quilo e mostrou sua insatisfação com
a relação desigual entre os dois anos de investimento e o valor baixo que conseguem com
pesado, exigindo a força de duas pessoas ou mais. Recentemente, algumas prensas de madeira têm
dado lugar a uma prensa hidráulica de ferro, facilmente operada por uma só pessoa adulta, enxugando
uma quantidade de massa de mandioca maior em menos tempo, em relação a peça de madeira.
116
a venda. Com cada embalagem de farinha é possível ganhar R$ 3,50 e o atravessador
revende por R$ 5,00 e até R$ 5,50. Essa foi a mesma queixa de Dona Inês, quanto aos
intermediários da venda da farinha, e de Geraldo e Marquinho quanto aos intermediários
da pesca e do caranguejo, a exploração e a dependência de quem repassa o produto para o
consumidor final.
Cleiton contou uma prática considerada desleal e que está se tornando bastante
comum de adicionar uma farinha de qualidade inferior à farinha produzida no Sítio,
vendida como tal. Começou com um dono de mercearia na cidade, que misturava as
qualidades e vendiam como se fosse do Sítio. Hoje em dia, a prática é copiada por um
fabricante de outro bairro próximo, que compra a farinha pronta e embalada nos
engenhos do Sítio, e, visando uma margem de lucro maior, acrescenta a esta uma farinha
de qualidade inferior produzida em outra região e a reembala para venda. Desta forma,
faz render, o que lhe permite vender o pacote por um preço inferior ao normalmente pago
aos produtores locais. Assim os compradores preferem sua farinha, vendida abaixo do
preço, em detrimento da farinha pura oriunda dos engenhos do Sítio. Cleiton avalia que a
farinha, cuja qualidade é reconhecida pela autenticidade e pelo processo artesanal de
transformação, pode perder a credibilidade no mercado. Além desse fator, os moradores
têm perdido com a concorrência do preço menor da farinha “alterada”. Por isso Cleiton,
que utiliza a farinheira comunitária, tem interesse na proposta dos extensionistas das
Farinheiras do Litoral em conseguir o selo da Anvisa atestando as condições sanitárias
adequadas da transformação da mandioca, como será colocado mais adiante.
3.8 Os tipos de pesca e a hierarquização das identidades produtivas
No Sítio, há aqueles como Seu Marco Rezende, Dona Inês, Dona Flor, Geraldo,
Nilton, Marcelo, por exemplo, que continuam pescando regularmente, para os quais a
pesca pro gasto se mantém como uma atividade importante para subsistência. Mas se
tradicionalmente a pesca pro gasto era regular e importante para subsistência da maior
parte dos moradores, ultimamente mostrou-se uma atividade esporádica e flutuante,
sobretudo para os assalariados como funcionários da prefeitura. Existe, portanto, uma
divisão social do trabalho da pesca.
117
A pesca no Sítio se enquadra como de pequena escala, e seus sistema técnico pode
ser caracterizado como rudimentar, pouco tecnificado e de baixa produção
(ANDRIGUETTO FILHO, 1999). Há três variações básicas da atividade pesqueira: a
pesca para o auto consumo ou pro gasto; a pesca para se obter renda ou comercial; e o
serviço turístico relacionado com a pesca esportiva43, práticas que podem ser encontradas
combinadas dentro de um núcleo.
O fácil acesso aos rios próximos e à baía fez da pesca uma atividade comum aos
habitantes. Mais do que uma fonte de subsistência importante, a atividade de pesca
materializava um conjunto de conhecimentos44 e práticas rústicas, repassado entre
gerações que foi se ressignificando ao longo do tempo.
Mesmo sem ter sido um pescador de tempo cheio como seu avô, Seu Chico se
remete a um tempo de abundância e variedade de peixes, quando a pesca era praticada
sobretudo por nativos, em pequena escala. Os petrechos de pesca rudimentares, muitas
vezes trabalhados por artesãos locais ou feitos pelos próprios pescadores, junto com as
técnicas variavam de acordo com a finalidade e com o que se encontrava disponível na
beira do rio e na mata45.
Há poucas décadas, a prática da pesca era conjugada à rotina da agricultura, mais
especificamente à roça de arroz e de aipim. Sobre a integração das atividades, Melina
detalha a conjugação das práticas cotidianas, como aconteciam na sua casa: seu pai e seu
43
44
45
A pesca corriqueiramente chamada de esportiva se refere à prática do “pesque e solte”, no entanto,
ocorre também a pesca pro consumo. Há os serviços informais relacionados ao turismo e comércio da
pesca como limpa e descarna do que foi pescado pelos turistas para seu consumo, geralmente realizado
pelo filho adolescente do pescador nativo ou por sua esposa. Em duas ocasiões de limpa, notou-se que
alguns peixes continham ovas, consideradas uma especiaria. Foi mencionado que nessa modalidade e
pro gasto procuram usualmente entre quinze e dez peixes, entre robalo, bagre, pescada, betara, corvina,
linguado, caratinga, parati, tainha, tainhota, oveva.
Os detalhes sobre o cotidiano da pesca enriqueceram alguns depoimentos e foram registrados alguns
detalhes interessantes. Dona Inês, por exemplo, conta que era possível improvisar um copo dentro da
taquara, de forma que quando a maré secasse o peixe ficava no copo. Ouviu-se também que os
camarões eram pegos em balaios, tecidos do cipó. Na pesca de rede, esta era levada por um grupo de
homens para lancear; uma outra variedade de uso da rede era o cerco, em que quatro ou cinco redes,
em pontos próximos, cercavam os cardumes.
Alguns materiais locais que estão presentes na pesca foram citados, como bambú usado como vara, a
linha de pesca feita com fiação de tucum, a cortiça feita de ariticum tirado da beira do rio, espinhel
extraído da imbaúva, o cabo da rede de cipó. Havia artesãos que faziam os petrechos, e quem não sabia
fazer, comprava. Ainda se pesca com linha e anzol, na vara de bambu, com rede e tarrafa para maiores
quantidades, mas acredita-se que atualmente os petrechos, industrializados, sejam comprados em lojas
especializadas, na cidade.
118
tio saíam para pescar e voltavam com três balaios repletos de peixes, que eram limpos e
secos pelas mulheres e preparados ao longo da semana; da mesma forma, arrancavam a
mandioca da roça para estocá-la para poderem trabalhar em outra tarefa, de forma
intercalada.
As mulheres pescavam menos, no tempo em que predominava o transporte a
remo. Mais tarde, com a possibilidade mais segura e menos árdua do barco a motor,
chegam a ir para a água sozinhas, mas ainda são minoria dentro do conjunto de mulheres
do Sítio. Quando elas vão para água, o mais comum é sair em dupla com uma
companheira na mesma situação, ou ir com o marido ou o filho, como o fazem Dona
Lucélia, Dona Inês, Dona Rita e Geraldina, por exemplo.
Embora o autoconsumo prevalecesse sobre a comercialização uma vez que não
havia tantos compradores, as duas atividades se complementavam. Antigamente as
demandas de localidades vizinhas surgiam muito esporadicamente, de sorte que pescar
poucas vezes vez por semana era o suficiente para o consumo e para compor a renda. O
pequeno comércio com os moradores dos Sítios vizinhos ainda se mantém46. A pesca em
maiores quantidades, visando a comercialização do pescado em mercados mais distantes
era dificultado por conta da falta de estrutura de acondicionamento e refrigeração,
situação que não mudou significativamente nos dias de hoje. Para a comercialização,
dependendo da demanda, ainda fazem a tradicional salga (chamada de cambira que
consiste no peixe seco e salgado) e ainda limpam o peixe.
As canoas de madeira geralmente são compradas prontas, feitas por artesãos
locais; esse padrão de embarcação é bastante comum entre aqueles que pescam pro gasto
(Fig. 3.4). Com a abertura da estrada desde a década de 80, essas embarcações foram
progressivamente perdendo sua centralidade como único meio de transporte, à medida
que parcela significativa dos moradores se assalaria e se capitaliza, podendo adquirir
automóveis, motos e até mesmo caminhonetes esportivas, como é o caso do Marcelo, da
ponta.
Hoje, em determinadas épocas do ano, motivados pela demanda de
atravessadores, turistas e mesmo de consumidores locais, os moradores exploram os
caminhos dos diversos afluentes da baía e os mangues que a margeiam, à procura de
46
Para os moradores não vale a pena levar o pescado até Guaratuba para venda, pois os pescadores de
Sítios mais próximos já abastecem os mercados por lá.
119
peixes (como bagre, a tainhota, a tainha de fora), camarão (camarão branco e o camarão
perereca) e caranguejo. Em pesqueiros próximos à comunidade a embarcação pode ser a
remo ou com um motor de baixa potência; pesqueiros que exigem cruzar a baía ou ir até
rios mais distantes costumam ser acessados por quem possui barco a motor.
Para os pescadores da ponta, mais capitalizados, que trabalham com a pesca
comercial e turística as embarcações de madeira têm dado lugar aos barcos de alumínio
que além de maiores e mais duráveis possuem motores mais potentes e com maior
autonomia (voadeira ou lancha, embarcações rápidas com casco leve, geralmente de
alumínio ou fibra de vidro, e motor de popa).
Para as famílias que não entraram no ramo do turismo, a pesca ainda possui um
caráter de auto consumo e ao mesmo tempo se volta para o comércio nos bairros
próximos do Sítio ou chegam a vender iscas para os turistas. Geraldo, da vizinhança,
filho de Dona Santina e sobrinho de Seu Chico, por trabalhar como pescador profissional,
teve que investir na regulamentação para poder comercializar o pescado. Os turistas
compram direto com ele, ou então ele leva até a comunidade Cubatão (em torno de 30
minutos se chega lá a remo). Sua embarcação a remo, chamada por ele de batera, possui
documentação mas, por conta do tipo de sua embarcação, ele não pode ir muito longe e
acaba vendendo para interessados do entorno do estuário. Pelo mesmo motivo, ele só
trabalha com a pesca comercial, já que não possui equipamentos tampouco embarcação
adequada para atender a pesca de caráter mais turístico.
Os pescadores da ponta, dentre os quais estão Zeca, Seu Marco Rezende e seus
filhos homens e também seu neto adolescente Marquinho, se dedicam profissionalmente 47
à atividade, não possuem um emprego na prefeitura e não são subordinados, e a posse dos
meios de trabalho lhes provê autonomia nessa profissão, assim como Geraldo. A
diferença é que são os que mais se dedicam integralmente à pesca comercial e à turística.
Nilton, pescador profissional como seus primos que moram na ponta, é neto de
Seu Mario Fagundes e filho de Seu Brasílio, mas ao casar com Conceição, filha de Seu
Chico Santos da vizinhança, se mudou para o lado do sogro, em uma casa que
47
Adotamos aqui uma definição semelhante à de Andriguetto Filho (1999), segundo a qual se considera
pescador profissional aquele que se dedica regularmente à pesca, seja pro gasto ou comercial, como
atividade principal com a qual obtém renda monetária e, por complemento, aquele que possui a
carteirinha de pescador (licença) e a documentação de sua embarcação expedida por órgão competente,
sendo assim sua atividade regulamentada e reconhecida pelos órgãos do governo.
120
construíram. Nilton e sua esposa prestam serviços para os pesquisadores de Curitiba,
oferecendo a própria casa para locação, ele como barqueiro e Conceição com comida e
limpeza.
A peculiaridade do turismo de pesca é que está se especializando e se
concentrando em um determinado núcleo familiar, entre irmãos que juntos e predominam
na atividade, em relação aos outros pescadores profissionais da comunidade. A
capitalização das famílias da ponta que trabalham com o turismo da pesca pode ser
notada se olharmos para os últimos investimentos em automóveis, na ampliação de uma
das pousadas ali situadas e nos dois grandes ranchos da ponta.
A diferença entre os ranchos da ponta e os ranchos da vizinhança pode ser
observadas nas fotos que seguem.
121
Figura 3.4 – Rancho da ponta, com barcos de madeira inutilizados na
beira do trapiche no primeiro plano, barcos novos em uso no segundo
plano.
Figura 3.5 – Ranchos da vizinhança, ranchos com os barcos e
petrechos recolhidos, um barco motorizado na beira d'água e pinus no
centro ao fundo da imagem.
122
Figura 3.6 – Pescador Geraldo, filho de dona Santina, no rancho de
sua família no momento da entrevista.
A diferença entre os ranchos da ponta e da vizinhança tanto na estrutura da
construção quanto nos barcos e nos equipamentos e petrechos reflete a vitalidade, o
investimento e o nível de rentabilidade da pesca na ponta (Fig. 3.4). Existem dois grandes
ranchos centrais, erguidos com vigas de madeira e de cimento com pé direito alto e amplo
para abrigar até vinte barcos cada um e também as caminhonetes altas e carros esportivos
de turistas e de moradores da ponta. Um deles possui telhado de “eternit” e o outro com
telha de cerâmica.
Na vizinhança há quatro ranchos menores, construídos com paus de madeira,
cobertos por telhas de cerâmica e um trapiche (Figs. 3.5 e 3.6), para atender uma
atividade que não é central a não ser para dois pescadores profissionais, Geraldo e Nilton,
dedicados ao comércio local de pescado, seja com pequenas vendas ou direto com os
consumidores. Na vizinhança, os ranchos são individualizados para cada núcleo.
Quanto ao acesso aos portos, são considerados de uso público, no entanto, tanto
na ponta quanto na vizinhança, só podem “chegar” embarcações autorizadas pelos
123
respectivos moradores. Em ambos os portos, foi observado que existem bateras e canoas
de madeiras aparentemente sem uso há muito tempo, desabrigadas, presas às margens do
banhado, aquelas usadas pelos pescadores para regulamentar a atividade. Os barcos mais
novos, de alumínio, ficam abrigados nos ranchos de seus respectivos donos.
Os ranchos ainda são familiares ou compartilhados por famílias do mesmo núcleo.
Essa configuração espacial-familiar contraria a tendência de outras comunidades vizinhas
onde terrenos e ranchos no porto foram comprados por turistas ou onde se instalaram
pousadas que atendem esses turistas da pesca.
Nos três Sitios mais procurados por turistas e veranistas, nas redondezas, um
grande número de ranchos, erguidos em alvenaria, pertencem a pessoas de fora. Embora
os moradores destas comunidades trabalhem em grande parte como pescadores e no
atendimento ao turista (quase não há mais roça), optaram por vender tanto seus ranchos
nos portos locais quanto chácaras, onde cada vez mais se erguem casas de veraneio48.
O tipo de turismo voltado para a pesca envolve os serviços de barco (pagam pelo
dia), fornecimento de diesel, da isca, dos petrechos; ademais, a chegada até os pesqueiros
é possibilitada pelo nativo que conduz o barco.
Os turistas da pesca esportiva procuram sobretudo o robalo. Os nativos conhecem
intimamente os melhores pesqueiros de robalo das redondezas e seletivamente levam os
turistas até alguns mais conhecidos, ordenando os pesqueiros. Para essa atividade,
paralelamente acontece o comércio de iscas-vivas de camarão (principalmente o camarão
preto de água doce chamado, o pitu, e o camarão branco de água salgada). O período
mais rentável é o inverno, entre junho e julho.
A ceva49 e vara é uma modalidade recentemente usada na pesa da tainha, trazida
48
49
Em pesquisa pelo site de busca Google no dia 17/07/2012, foi encontrada uma variedade de imóveis
para venda, como pequenos ranchos e fazendas produtivas, com valores variando entre cem e
oitocentos mil reais, como pode ser observado no site da imobiliária consultado. Disponível em
<http://www.muraski.com/imovel-detalhes-16981-chacara-guaratuba-venda>.
No caso da pesca com ceva, comum em bairros vizinhos, os nativos armam uma estrutura com estacas
de madeira sob a água, com uma embarcação com uma isca (vísceras frescas de animais) e dois sacos
com que vão se alimentar; uma vez que os peixes se aglutinam em tono das bolsas de comida, esta
compõe uma armadilha bastante usada na pesca esportiva. Nesta modalidade amadora, com finalidade
recreativa, os turistas conduzidos até as cevas montadas pelos nativos, buscam o prazer da captura do
peixe usando a vara. A pesca da tainha com ceva foi recentemente difundida entre os nativos da região
da baía por uns praticantes de pesca esportiva de Santa Catarina. Essa técnica não parece tem muitos
adeptos no Sítio. Tem sido mais usada quando não se vai comer a carne do peixe, como no caso da
pesca esportiva (pesque-e-solte), já que os apreciadores da carne da tainha reclamam o gosto forte de
ração, quando a tainha é pescada com ceva (ZANLORENZI, 2011).
124
por pescadores de Santa Catarina, mas a modalidade técnica mais comum no Sítio é com
rede ou tarrafa.
Um elemento que se faz bastante presente nas rotinas ligadas à pesca é o conjunto
de implicações práticas que a regulamentação da atividade pesqueira envolve. Os
moradores que trabalham com pesca conhecem e estão cientes das restrições de modo
geral, mas sem deixar de apontar as dificuldades que elas criam. Geraldo descreveu
determinadas temporadas quando um peixe poderia ou não ser capturado e demonstrou
conhecer petrechos utilizados na pesca que eram controlados e fiscalizados. Da mesma
forma, Seu Marco e seu filho Marcelo. Gerado observou que a fiscalização costuma ser
rígida e se faz mais presente na temporada de verão, por meios aquático, terrestre e aéreo
(utilizando barcos, automóveis e até mesmo aeronaves).
O ciclo de trabalho de um pescador no Sítio compreende a combinação de várias
espécies, na temporada de captura e no defeso de cada uma, sob fiscalização dos órgãos
ambientais. Essas atividades são combinadas e intercaladas com outras, permanentes ou
temporárias, que ao longo do ano também provém renda para as famílias, compondo um
ciclo anual de exploração de recursos naturais e da terra.
A captura do caranguejo nos manguezais é intensa em dezembro. Na época de
pegar caranguejo, ocorre uma mobilização generalizada dos habitantes, profissionais ou
não, assalariados ou não; todo o Sítio cata caranguejo na temporada para complementar a
renda, justamente quando superlotam os mangues da região. Na alta temporada de
captura os mangues ficam cheios de catadores, a despeito do fato de a exploração do
mangue ser proibida por lei em todo o território nacional. Quanto ao acesso livre ao
caranguejo, Geraldina explicou que a regra é a ordem de chegada: “A gente vai lá do
outro lado, Palmeira, dos Mero. Só que daí é quem chegar primeiro. Também não pode
ficar muita gente no mesmo ponto, né. Mas nesse mangue da baía de Guaratuba, cabe
todo mundo”. O comprador é garantido, pois o caranguejo na época da andada é
encontrados em abundância50.
Para catar caranguejo, se organizam, de forma semelhante ao guajú para o cipó,
em pequenos grupos formados a partir do núcleo, saindo para o mangue em dois, três ou
50
Os moradores se baseiam na fase da lua para saber a melhor época de ir ao mangue, para não ter que
procurar muito pelo caranguejo. A fase da lua, Dona Inês e Cleiton explicaram, interfere na maré, que
por sua vez interfere na “andada” do caranguejo que é mais frequente com o mangue seco. Na época da
“andada”, eles ficam no mangue até pouco antes da maré encher (na lua enche das 15h em diante).
125
no máximo quatro pessoas em cada batera, e não mais, pois catam muitos quilos de
caranguejo que ocupam espaço no barco. No mangue, há um rodízio entre o que fica no
barco, o canoeiro, e os que entram no mangue: um fica mais dentro da canoa batendo
num galão de plástico para sinalizar para aqueles que entram no mangue pra catar o
caranguejo não se perderem. Na entrevista com o casal Cleiton e Márcia, ele disse que é
divertido sair com o grupo, e que só é mais desagradável pra quem fica no barco, por
conta da temporada das butucas. Os outros sabem onde está o barco por causa da batida;
as funções se revezam entre os homens51. Dona Inês comentou a dificuldade de ir para o
mangue, pois as butucas são comuns no verão, o que dificulta a permanência no mangue,
além do calor. Em geralmente é uma atividade masculina, mas as esposas costumam ir e
ficam mais na função de canoeiras. E da mesma forma que tem o lado divertido do guajú
para a roça, com cantoria, lembrança de histórias e contação de piadas e também na
partilha da cachaça durante o árduo processo de plantio sob o sol escaldante, e da
retribuição do ajutório com um café no cair do sol, sair para catar caranguejo é mais uma
faceta do guajú que se torna divertido, como um momento de encontro e de trabalho, nos
mangues pela baía.
A venda dos caranguejos, em grandes quantidades, é feita integralmente para o
mesmo comprador, o “patrão do caranguejo”, o atravessador que vem de São Francisco
do Sul, onde mantém um mercado. Raramente os caranguejos são vendidos diretamente
para consumidores de fora da comunidade. O caranguejo é vendido também em pequenas
quantidades, geralmente para consumidores finais. Eles vendem por oito reais a dúzia a
esse atravessador, mas o valor da venda varia entre oito e doze reais a dúzia, conforme o
comprador.
Cleiton e Marquinho relataram que há uma pressão da parte do atravessador sobre
os nativos para estes procurarem os caranguejos mais graúdos, preferidos pelos
consumidores. O comprador sugere que se ponha uma corda, que eles chamam de
“lacinho” (uma técnica de captura que prende o bicho com uma laço em sua garra maior,
já na sua saída da toca), praticamente dentro das tocas maiores, o que permite pegar só os
mais graúdos.
51
Quanto à divisão do que foi capturado entre o grupo, depende do esforço empregado, o que determina
se vai ser dividido igualmente entre todos, ou que cada um leva o que pegou ou mesmo que, no caso do
caranguejo, o que fica batendo no barco, sem entrar no mangue, só leva para o gasto.
126
Sobre as exigências e desmandos dos atravessadores, Cleiton explicou que, à
época de abundância, muitas pessoas vão pegar, em grandes quantidades, e acabam
trazendo caranguejos miúdos. Porém, no mercado onde o atravessador trabalha existe a
demanda dos turistas que se interessam pelos mais graúdos. A abundância e a distância da
fiscalização favorecem as condições de exigência do atravessador, que por sua vez
incitam a clandestinidade (BECKER, 2008) com a demanda e estimulam a sobreexploração (OSTROM, 199). O perigo e a pressão da clandestinidade são repassados para
quem está no mangue, o sitiante, assim como acontece na coleta do cipó no meio da mata
em área particular.
Gilberto, Dona Inês, Cleiton e Marquinho disseram que eles procuram pegar os
maiores e também os machos, evitando a fêmea, mais difícil de se encontrar. Mostraram
ter o conhecimento de que, de acordo com o defeso 52, não se pode pegar a fêmea nem os
menores do que oito centímetros de corpo (carapaça). Além disso, também mostraram
saber que em janeiro é permitida a captura manual e a venda desse crustáceo, sendo
inadequado o uso de armadilhas, como a chamada de “lacinho”.
Uma situação interessante foi quando Dona Inês explicou que prefere vender ao
atravessador, pois dessa forma não precisa se preocupar com o armazenamento nem com
a fiscalização. A fiscalização do caranguejo é intensa na temporada, no entanto, como
lembra Cleiton, na baía “tem mangue para todo mundo”, o que permite pegar caranguejo
escondido.
Marquinho, que trabalha ativamente com o pai Marcelo na pesca esportiva da
ponta, contou que em um episódio o patrão do caranguejo ficou muito exigente e passou
a escolher os melhores, os catadores começaram a reclamar, porque além de ele escolher
ele determinava um preço muito baixo. Marquinho contou que, nessa situação, os
catadores reagiram e foi decidido um preço fixo e o atravessador teve que parar de
escolher os maiores, na compra da barcada.
Andriguetto Filho (1999) lançou um olhar bastante amplo sobre a pesca na região
52
O defeso (ANDRIGUETTO FILHO, 1999) é o período em que a pesca de um dado recurso é
interditada, usualmente em momentos de especial vulnerabilidade ou críticos para a reprodução do
estoque pesqueiro. Nesta época os pescadores artesanais podem recorrer ao seguro desemprego para
garantir uma renda durante o defeso. O benefício do seguro Bolsa Pesca é pago pelo governo mediante
comprovação de vínculo com a colônia de pesca e do exercício do ofício, enfim, exigências
burocráticas que nem todos os moradores conseguem cumprir.
127
e escreveu que a perecibilidade do pescado e a inexistência de estrutura para sua
refrigeração e conservação – além da cambira, somados muitas vezes a falta de
embarcações adequadas para transportes até mercados mais distantes reforçam o domínio
dos atravessadores, que tentam apresentar unilateralmente suas demandas aos moradores.
Com efeito, como descreveram Cleiton e Dona Inês sobre a temporada do caranguejo, a
relação com os intermediários que comercializam os recursos pesqueiros é desigual, na
qual os sitiantes acabam cedendo às exigências do atravessador, como por caranguejos
graúdos.
Com o turismo da pesca, entre os irmãos da ponta, uma outra situação de trabalho
emerge. Não parece ser ousado dizer que a possibilidade de trabalhar em família, o
controle sobre a embarcação, os petrechos, o produto do trabalho e, principalmente o
domínio cultural sobre as decisões e os conhecimentos inerentes à prática, são elementos
que lhes conferem certa autonomia, como também observou Diegues (1995), sobre a
pesca Caiçara em outros litorais. Essa autonomia parece ser o que atrai os irmãos da
ponta e o que lhes confere prestígio em relação aos que dependem do assalariamento e da
roça para a produção de farinha de mandioca. Do núcleo de seu Marco, nenhum deles é
assalariado, não trabalham para a prefeitura, sua atividade principal é a pesca, de onde
tiram além do sustento, o capital que têm investido ampliação da infra estrutura local pare
receber um número crescente de turistas.
Além do aspecto da autonomia, seja para quem trabalha na pesca em geral, seja no
comércio ou no turismo, o regime de uso dos recursos pesqueiros combina uso comum e
livre acesso (OSTROM, 1990; ALMEIDA, 2009; CREADO et al, 2008). As atividades
comerciais e turísticas ligadas à pesca não deixam de estar atreladas a questões de
territorialidade, e nesse sentido, os pescadores da ponta e os da vizinhança, e da mesma
forma os pescadores das outras comunidades, respeitam os pesqueiros frequentados por
cada grupo. Como exemplo, podemos citar que existem os melhores pesqueiros para a
tainha, ou então que durante a andada do caranguejo o mangue fica concorrido e a coleta
se dá entre as famílias de um mesmo núcleo; ou ainda que os moradores que trabalham
com a pesca, na ponta, são quem conduz os turistas para os pontos de pesca esportiva, de
modo que o conhecimento do acesso aos pesqueiro é controlado pelo nativo.
No Pirizal, o sitiante que lida com a pesca está, proporcionalmente, menos
128
representando no ramo do que nas vilas vizinhas onde predominam proprietários
veranistas/pescadores ou naquelas especializadas em pousadas e infra estrutura quase
completamente voltadas para o atendimento do pescador esportivo, a exemplo de onde
trabalham o filho de Dona Inês, pescador e funcionário, e o casal Rita e Antonio, caseiros
e funcionários de uma pousada. O turismo rural é uma ramo em franca expansão em
Guaratuba, e a pesca turística é seu representante principal.
Quando perguntado sobre o que mudou na pesca, Seu Chico, por exemplo,
mencionou a abundância de peixes do passado, que a geração que hoje tem entre seus 30
e 40 anos chegou a conhecer, e a progressiva diminuição de peixes hoje na baía
relacionada tanto à abundância quanto à variedade. Seu Chico lamenta que antes a pesca
era uma atividade mais comum entre os nativos da baía: “Os guaratubanos de lá não
pescavam e “ninguém era dono de nada, cada um pescava onde queria e um respeitava o
outro, se eu lanceava aqui o outro ia lancear ali na frente”. Seu Chico avalia que os
pescadores de fora chegaram em Guaratuba há poucos anos, intensificando a atividade.
Para ele, a diminuição dos peixes é associada diretamente com a chegada e o aumento de
novos interessados pela atividade pesqueira. Como ele observa, a pesca para fora da baía
é tão intensa que impede a entrada de espécies que antes se conhecia. Criticamente ele
observou também que a presença dos pescadores de fora, com seus barcos barulhentos e
potentes, assustam e afugentam os peixes e além disso a pressão do aumento da pesca
afeta a cadeia alimentar. Esse argumento é muito semelhante ao que eu escutei pescadora
bióloga que aluga a casa de sua filha Conceição.
Em outros bairros, há opções de hospedagem e também cresce o número de casas
de veraneio, onde o turismo está bastante desenvolvido e por isso demanda mão de obra
local. Três moradores da vizinhança, do núcleo de Dona Inês, trabalham para empresários
do turismo ao redor da baía: Dona Rita e seu Marido Patrício e Lorenço. Dona Rita se
mudou com seu marido que, empregado como caseiro, cuida de uma propriedade em
outro bairro, mas mantém sua casa no Pirizal e trabalha regularmente na roça, com sua
cunhada Inês. Lorenço, filho de Inês, trabalha para o dono de uma pousada também nas
redondezas, com o irmão que mora lá; ambos trabalham com o turismo de pesca, como
empregados. Esses são os dois únicos casos de nativos do Sítio em que há o
assalariamento e subordinação ligados ao turismo.
129
As diferentes procedências dos turistas que chegam à comunidade – há turistas da
RMC, da capital, do interior do estado, de Santa Catarina e até mesmo de São Paulo –
ilustram o potencial de expansão da atividade, cujos serviços adjacentes são oferecidos
apenas pelo núcleo de Seu Marco, que investiram nos negócios da família sem nenhum
incentivo do governo local. Este tipo de turismo tem gerado a demanda por outros
serviços complementares, como alimentação e hospedagem, além de aquecer o mercado
imobiliário.
Para os que possuem casa no Sítio, turistas que compraram uma propriedade ainda
pagam para o morador vizinho do terreno fazer a manutenção como um zelador ou
caseiro, cortando a grama e cuidando da casa. A manutenção de portões, roçado da grama
e cuidado do terreno dos turistas é remunerada e costuma ser feita pelo morador com
mais contato, no caso aquele que lhe presta serviço no turismo da pesca. Dentre essa
freguesia, há os turistas mais antigos que já pescam com os mesmo barqueiros há quase
uma década e que inclusive compraram terrenos onde construíram casas de veraneio,
como vimos em parágrafos anteriores.
Esses são alguns reflexos dos processos impulsionados pelo advento da estrada,
que facilitou o acesso de turistas e novos atravessadores, e também reforçou hábitos
alimentares urbanos em que o peixe deixa de ser o alimento principal, pelo menos entre
famílias com renda maior. No entanto, a pesca pro gasto se faz presente na vida dos
moradores, embora com menor frequência. A presença reguladora do Estado também foi
mencionada e de fato notou-se que os pescadores que obtêm parte significativa da renda
com o comércio de peixe e camarão buscaram se regulamentar e profissionalizar.
A tendência de especialização na pesca turística e sua estruturação, sobretudo com
os pescadores profissionais da ponta, gera a diferenciação entre as identidades
profissionais das famílias. Os pescadores da ponta se colocam como esforçados e
prósperos pela via do trabalho caprichoso, que só se alcança quando se trabalha
dedicadamente para sua própria família. Na visão delas, “é melhor fazer você mesmo” do
que chamar um ajutório e ainda ficar mal feito; e precisar ser refeito depois.
Para o núcleo de Seu Marco, a lógica do guajú tem perdido a sustentabilidade.
Eles mesmos se declaram na posição oposta dos primos da vizinhança, que são
considerados preguiçosos e “não trabalham porque não querem trabalhar”, uma vez que
130
oportunidades de trabalho existem, como cunhou categoricamente o adolescente
Marquinho, neto de Seu Marco. O controle moral exercido a partir da distinção de quem
é preguiçoso e de quem é próspero justifica o fechamento ou delimitação do trabalho
cooperativo apenas para dentro dos núcleos da ponta. Talvez o que Judite e seu filho
Marquinho talvez não tenham notado é que na vizinhança, quem se dedica à lavoura e à
pesca, e não é assalariado, a maioria está em idade passada, ou seja, na ponta os irmãos e
suas famílias são ainda novos, jovens para o trabalho.
E quem vive na vizinhança condena a atitude de quando avançam e fixam os
monopólios sobre as bolas para o lado dos terrenos na direção da vizinhança, ao que é
atribuída a sua prosperidade, afinal, a lógica do guajú ampliada para todo o Sítio é
rompida.
Para além das questões econômicas, a especialização no turismo rural voltado à
pesca é um elemento que permite entender a diferenciação interna dos projetos
familiares. A realização dessa atividade em suas diversas modalidades parece ser
motivada principalmente pela necessidade de permanecer no Sítio, de se sustentar a
família no caso de muitos filhos herdeiros e pouca terra, e de se obter renda monetária
para garantir esse sustento.
3.9 O tecido do cipó como coadjuvante, mas não menos importante
O cipó é um recurso tradicionalmente presente no repertório de práticas materiais
dos nativos. Utilizado na confecção de balaios, esses ainda são utilizados para carregar
ramas no plantio da mandioca (Fig. 3.7) ou pegar camarão, como contou Seu Mario
Fagundes. Ele explicou que primeiramente se fazia balaio de taquara e depois passou a
ser feito com cipó mambú usado. Seu Mario conta que costumava tirar cipó da mata que
havia por nas redondezas, mas hoje o cipó está acabando.
Dona Suzana explicou que a demanda comercial pelo cipó e outras espécies
vegetais comuns na região, como o veludo (musgo) e o piri, data de cerca de vinte anos
pra cá. Na entrevista com Seu Gilberto e Dona Helena, ela conta que sua família
trabalhou intensamente com o cipó para a venda. Seu irmão, Seu Chico, comprava
grandes quantidades de cipó do Sítio mais ao norte, que vinha em um bote cheio. Como
131
explicou Dona Helena, algumas etapas do beneficiamento costumavam ser realizadas
pela família e outras eram feitas cooperativamente na troca de trabalho, como hoje eles
fazem o guajú para plantar mandioca (antes a capina também era feita com troca de
trabalho; hoje cada família se dedica à sua). O cipó era de seu irmão que distribuía para
os familiares.
Figura 3.7 – Balaio tecido de cipó sobre o areião, sendo usado para transportar ramas de
mandioca durante o guajú de Seu Floriano.
O sistema de beneficiamento ainda é rústico e inteiramente manual, em etapas
realizadas com a mesma lógica do ajutório:
DONA HELENA: Eu com as minhas filhas, era como agora nós
fazemos hoje com o mutirão de plantar rama! Vinham quatro ou cinco
pessoas ajudar a gente; a gente descascava e eles vinham pra rapar o
cipó. Quando era a tardinha saía um cafezinho com biscoito, uma
bolacha e aquele monte de cipó. E depois entregado pro meu irmão
[Seu Chico].
Nessa passagem, Dona Helena detalha as etapas realizadas em grupo quando
ainda era solteira (depois que se casou com Seu Gilberto, ela não trabalhou mais com
cipó). O cipó não chegava a ser tecido, só era raspado e pesado. No dia seguinte a família
ajudada ia ajudar o outro em sua casa, e no outro dia o outro, e assim por diante. Como na
roça de mandioca e na coleta do caranguejo, havia a divisão do trabalho entre as mulheres
e homens e também entre a família e o Sítio como um todo, e ao fim um lanche ou café
era oferecido. Da mesma forma, ajudava quem precisava ser ajudado com a mesma tarefa
132
em um outro dia. Hoje, a tarefa está mais restrita a cada família ou entre duas, em um
mesmo núcleo.
Seu irmão Chico guardava o cipó e “quando dava a barcada”, acumulando o cipó
numa etapa inicial de beneficiamento, ele levava o cipó para Guaratuba pra vender em
fábricas e armazéns, que hoje não existem mais.
Outra espécie vegetal que tinha valor comercial era o piri, um tipo de palha que dá
no banhado, que fica parcialmente submersa pela maré. No momento de reunião de
mulheres no barracão antes do guajú de Seu Floriano, Dona Suzana e Dona Lucélia me
explicaram que iam pegar piri para fazer esteira de praia, e vender aos atravessadores que
também buscavam o cipó. Acrescentaram também que até então não havia estrada, mas
os atravessadores já vinham buscar o cipó beneficiado e as esteiras de barco. Depois da
abertura da estrada pela Comfloresta o cipó, o piri e o musgo continuaram a ser
explorados e procurados pelos atravessadores que passaram a vir de caminhão e a
demanda belo beneficiamento primário e pelo artesanato aumentou.
No Pirizal, não são os mesmos da geração delas que trabalham atualmente com o
cipó, mas seus filhos e genros/noras. A prática acontece de maneira regular/permanente
ou esporádica, de acordo com a necessidade, por aproximadamente quinze famílias. Estas
comercializam o tecido para complementar a renda, sendo que nenhuma delas vive
exclusivamente da atividade.
Os compradores de que eles falaram são de São Paulo e Garuva, e são os mesmos
que negociam nos Sítios vizinhos, onde existem mais extrativistas que dependem mais da
renda oriunda do tecido (SONDA, 2002; FERREIRA, 2010). Os atravessadores vêm na
data marcada para buscar a cestaria pronta, pagam muito pouco pelo artesanato que será
revendido mais caro em outra cidade. Cada família chega a tecer 80 unidades ou peças
por dia, pelas quais recebem menos de dez centavos cada.
A quantidade cortada e trazida da mata para casa, em uma tarde no mato, fica
entre quarenta e cinquenta quilos em cada feixe de cipó. Essa etapa cabe mais aos
homens, devido ao grau de dificuldade em termos de acesso e exigência de força física
que a atividade demanda. Os coletores saem em dupla ou trio; às vezes os maridos levam
as esposas junto, mas a participação delas é mais comum na parte de raspar e tecer o
artesanato (caracterizado pela produção em série e em trançados padronizados, menos
133
complexos em relação ao que teciam no passado pro gasto), enquanto aos homens fica a
parte mais árdua e “perigosa” de coleta e beneficiamento. Os equipamentos utilizados no
beneficiamento (facão, raspadeira e passadeira) do cipó são dos próprios moradores,
feitas artesanalmente e com peças compradas. Os moradores aguardam o atravessador
trazer o fundo da cestaria a partir do qual irão tecer; a quantidade de fundos, com
formatos variados de acordo com a data comemorativa do ano que está mais próxima
(coração perto do dia dos namorados, estrela no natal etc.), já indica a quantidade de
unidades que ele quer comprar.
O cipó já não é encontrado nas proximidades, pois no entorno só há áreas
desmatadas ou cultivadas, e os moradores saem de canoa por percursos cada vez mais
longos, à procura desse recurso natural em várias regiões da baía, em matas à beira de
estradas, em pés de morros, em fazendas, e a coleta acontece em propriedades privadas.
Dona Helena conta que seu genro sai a qualquer dia da semana pelo mato, “arriscando a
vida”.
O perigo foi atribuído à possibilidade de serem confundidos com os palmiteiros,
no interior de propriedades privadas cujas florestas estão sendo exploradas. Além disso, o
extrativismo vegetal possui comprador garantido, por conta da demanda de
atravessadores, mas ainda não é regulamentado (CECCON-VALENTE, 2009), o que
aumenta a clandestinidade (BECKER, 2008) da prática. O extrativismo vegetal constitui
uma fonte significativa do sustento do sitiante na região, que de fato exerce diversas
atividades complementares, o que vim tentando mostrar ao leitor até aqui. A
criminalização do extrativismo vegetal se confronta, portanto, com a falta de
reconhecimento das instituições locais e com a importância cultural e econômica da
pluriatividade camponesa, da parte da gestão ambiental dos órgãos oficiais.
No Pirizal, há tempos o cipó é cortado pro gasto e se faz historicamente presente
no cotidiano, seja no guajú carregando as ramas a serem plantadas (Fig. 3.7), seja na
pesca, para captura de camarão e peixe, e mesmo em chapéus, em utensílios como no
cabo de machados e facões, cercas, remendos. Os utensílios feitos a partir do cipó ainda
estão presentes no cotidiano. Mas, apesar de perdurar por muitas décadas, ter um
significado cultural bastante forte e reforçar o guajú, a habilidade de coletar e tecer
aparece como coadjuvante na economia da casa e mesmo uma escolha produtiva de um
134
número cada vez menor de famílias; assim, está longe de ser a principal fonte de renda de
cada casa. Vale ressaltar então que a arte de tecer com o cipó tem sido transformada por
uma constelação de fatores em mais uma opção importante de compor renda.
Cunha e Rougeulle (1989, citadas por ANDRIGUETTO FILHO, 1999)
perceberam uma tendência generalizada de desintegração dessa atividade artesanal, em
função do maior contato entre a economia litorânea e a produção mercantil atrelada à
progressiva dependência de bens industriais. Por outro lado, o que se verificou na região
da baía, de acordo com Valente (2009) e Ceccon-Valente (2009), é que a produção de
artesanato com finalidade comercial tende a crescer e, no interior das famílias, pela sua
fácil rotinização, tornou-se uma atividade exercida por todos os membros com tarefas
distribuídas por gênero e idade, sendo que ao pai cabe a tarefa mais penosa e arriscada, de
ir buscar o cipó na mata, em clandestinidade 53. Ou seja, a atividade acompanha as
mudanças na vida no Sítio e ganhou um novo papel.
3.10 Velhas práticas e novos dilemas: a farinheira comunitária e os incentivos externos ao
associativismo
Além das farinheiras familiares, existe na comunidade a farinheira comunitária
(Fig. 3.3, esquerda), que foi construída em 2000 pelo programa Paraná 12 Meses criado
em colaboração entre os níveis municipal e estadual, mas executado pela Emater. No
entanto, não houve engajamento dos sitiantes para a produção na farinheira comunitária e
a mesma ficou fechada por alguns anos. Ao todo, o projeto construiu oito farinheiras
comunitárias; contudo, como afirmam Komarcheski e Denardin (2010), na concepção e
execução do projeto, não houve a consulta à comunidade local ou assessoria na gestão e
organização da farinheira, o que gerou uma série de problemas como a inadequação dos
equipamentos ao modo de produzir tradicional da comunidade e a monopolização da
estrutura por um pequeno grupo.
Recentemente, a manutenção do sistema de produção de farinha tem sido
estimulada por instituições públicas que dialogam. Em duas situações diferentes de visita
53
A etapa do tecido em si não exige força física tampouco habilidades que uma criança não tenha. Num
Sítio vizinho, por exemplo, a filha mais velha dos nativos que me receberam por dois dias em sua casa
tece junto com os pais ao verem televisão, ou no quintal fora do horário da escola.
135
de campo participei da reunião do técnico da Emater com os sitiantes, na temporada de
guajú em que eu estava presente e na vez seguinte, em que pude comparecer em uma
reunião que esta equipe de extensionistas da UFPR Litoral do Projeto Farinheiras.
As observações de campo, das duas reuniões e as entrevistas com os sitiantes,
apontam que a despeito da atenção dada à proposta de adequação do processo de
produção da farinha aos padrões sanitários, o que exigiria a criação de uma associação,
poucas iniciativas práticas foram tomadas no sentido de formalizar as propostas, pelo
menos da parte das famílias.
Numa das noites da temporada de guajú, em que eu estava presente, houve uma
reunião na escola convocada por dois técnicos da Emater, um deles que acompanha a
comunidade há anos. O assunto era a lavoura de mandioca e a gestão da farinheira
comunitária e estavam presentes vinte e três homens e mulheres no total (a maioria deles
havia participado no guajú do dia), representando suas famílias, do Pirizal e de uma
comunidade vizinha.
No começo da reunião, o técnico do estado comentou conhecia bem as
comunidades e que o Pirizal era a que mais tinha recebido assistência pública, como o
Paraná 12 Meses e a reforma nas casas que colocou o banheiro interno, por exemplo.
Ressaltou que os professores extensionistas da UFPR Litoral eram parceiros e não
concorrentes. Na abertura da reunião, lançou a pergunta sobre como eles achavam que
será o Pirizal no futuro, para o que os presentes foram somando respostas parecidas que
se resumiram na ideia de que se tornará uma cidade, com muitas pessoas de fora, aspecto
que eles mencionaram como ruim. Quando perguntados sobre o passado, surgiram
elogios à Comfloresta e mencionaram também os benefícios da estrada e da luz elétrica.
O técnico lembrou, sem entrar em detalhes, que existe um lado ruim, como já havia
escutado dos nativos em forma de reclamação o fato de famílias terem perdido terras para
a empresa. Rapidamente, o técnico falou da sua disposição em dar assistência técnica
para agroecologia e mencionou técnicas de compostagem, a solução do adubo natural
com folhagens, novos tipos de mandiocas mais resistentes para terra fraca, análise do solo
para investigar o que tem no solo para se produzir mais mandioca no pouco terreno que
se tem. Comentou que o pousio está acabando, por falta de terra.
Essa foi sua introdução para o tema da necessidade de mais associativismo. Sua
136
fala buscou evidenciar a importância do compromisso dos comunitários com a proposta
que seria criada. A reunião acabou sem nenhum encaminhamento prático. Segundo ele,
projetos como o da farinheira comunitária, não dão certo porque “falta união”. Em
seguida, reforçou sua sugestão de que a comunidade fizesse uma associação, mas
informal, antes de regularizar no cartório, para não criar problemas burocráticos depois,
caso as famílias desistam e abandonem a associação depois e assim evitar dívidas com
taxas. Dona Madalena do Sítio vizinho lembrou que a outra professora extensionista que
acompanha seu bairro já havia encaminhado a papelada e já havia registro da associação
em cartório. O técnico completou que na região só havia uma associação formal, diante
do estado, a dos bananicultores.
Quando os presentes começaram a debater, Dona Inês e Cleiton criticaram a
atitude de Seu Marco Rezende da ponta. Com sua farinheira doméstica a todo vapor, ele
se animou com a ideia de obter o selo, para assim poder vender para novos compradores,
mas não quer utilizar a farinheira comunitária para a produção, sendo que a sua está
funcionando perfeitamente, com ajuda da esposa e da família de seus filhos. Dona Inês e
Cleiton também comentaram que a farinheira comunitária não funciona de fato porque
não há confiança e falta união. A oposição foi quase unânime e a proposta acabou
inflando ainda mais o dilema em torno da cooperação, e nada tinha sido decidido até
então.
Dona Madalena completou que algumas pessoas de seu Sítio participavam
daquela reunião no Pirizal, mas não farão parte da associação, uma vez que não tem nem
mandioca tampouco farinheira para começarem (a associação criada lá com apoio de um
grupo extensionista, mencionada anteriormente, era pra outra finalidade, para solucionar
os conflitos e a regularização fundiária). Ela reclamou diante do técnico que não
construíram farinheira no seu Sitio, ao que o técnico disse que mesmo se houvesse uma
eles se paralisariam no mesmo problema de associação do Pirizal. Começou então um
momento geral de descontração e piadas, em que no meio do burburinho que tomou o
ambiente, com risadas por todos os lados, algum sitiante do Pirizal disse alto que, já que
no bairro vizinho eles não tem nem roça nem mandioca, poderiam lhes vender a farinha.
A reunião se encerrou e o mal estar com seu Marco, da ponta, era visível e foi sentido no
guajú do dia seguinte, quando não se falava de outra coisa senão no dilema de se criar ou
137
não a associação. Eles teriam tempo para discutir isso, seja em âmbito familiar, de cada
núcleo ou entre a maioria durante os guajus, pelo menos até as próximas reuniões com os
extensionistas da farinheira.
Em uma tarde de entrevistas, houve uma reunião que eu presenciei por acaso no
mês seguinte, promovida por alunos de graduação e um professor, extensionistas do
projeto da Farinheira. A equipe lhes explicava as possibilidades de mercado e benefícios
coletivos de se obter o selo de qualidade e promoveram a indicação de nomes para a
associação.
Os extensionistas realizam o projeto “Reestruturação Produtiva de Farinheiras
Comunitárias no Litoral do Paraná”, que tem como principal objetivo auxiliar as
comunidades a reestruturar e a se organizar em torno de suas farinheiras comunitárias,
que segundo os extensionistas estavam inativas por simples falta de gestão e coordenação
entre os agricultores, para poderem gerir sua produção. De acordo com Komarcheski e
Denardin (2010), no início do projeto, nenhuma das farinheiras ativas no Litoral do
Paraná estava em condições de comercializar a farinha produzida no mercado formal,
muita das estruturas são centenárias e em grande estado de precariedade, não atendendo
as normas da vigilância sanitária; assim, o projeto visa 54 capacitar os agricultores e
reestruturar três das oito farinheiras comunitárias do litoral que estão desativadas desde
sua construção, colocando-as em funcionamento de acordo com as exigências
burocráticas.
A concessão do selo da ANVISA, certificando as condições sanitárias de produção
da farinha, exige que a farinha vestida do selo tenha sido produzida na farinheira
comunitária, obviamente. Tendo isso em vista, o suporte do projeto não foi apenas de
assessoria jurídica e oficinas de capacitação organizativa. A farinheira foi reformada e
novos equipamentos foram comprados, com o intuito de garantir as condições materiais
de higiene e produtividade com vista à competitividade e acesso a mercados maiores.
Além da competitividade vislumbrada, a iminência da intensificação da fiscalização
54
Nesse sentido, as ações de extensão foram propostas e organizadas em forma de metas: i) priorização
de ações e busca de ações coletivas; ii) capacitar os agricultores sobre boas práticas de higiene, gestão e
organização na farinheira; iii) identificar e implementar estratégias de comercialização para o produto;
iv) processos agroecológicos nas propriedades e gestão de resíduos; e v) segurança e saúde no trabalho
na agricultura. A metodologia utilizada pelo projeto é “participativa”, compreendendo: visitas às
propriedades rurais; reuniões com as comunidades; oficinas de capacitação e mutirões para reformas
nas casas de farinha.
138
sobre as farinheiras familiares e o risco de interdição do engenho devido às condições
rústicas e higienicamente não padronizadas, é um fator relevante apresentado pelos
extensionistas aos moradores, mostrando a necessidade de se adequarem às condições
sanitárias impostas pelas agências do governo. Foi quando os sitiantes apresentaram as
diferenças percebidas entre a produção nas farinheiras caseiras e na comunitária. Em
resumo, mencionaram que, nesta última, além de ser mais nova, mais fácil de limpar e
mais duradoura, economiza-se em tempo e em força de trabalho, e por conseguinte a
produtividade aumenta a renda.
Houve um debate em que foi problematizado que a formação do quadro da
associação implica a acumulação de tarefas da parte dos que se dedicarem às funções
organizacionais. Em outras palavras, não houve voluntarismo, pois os sitiantes
argumentaram que as responsabilidades assumidas exigirão de quem aceita o cargo um
esforço de dedicação à coletividade, enquanto os que não fizerem parte do quadro não
terão que deixar suas tarefas profissionais, familiares e produtivas para servir ao grupo.
Os presentes eram todos da vizinhança e a constituição do quadro da associação
foi formado com resistência da parte dos sitiantes. A hesitação frente ao modelo de
produção coletiva na farinheira comunitária era perceptível.
A despeito do engajamento nas reuniões e dos esforços dos extensionistas, a
maioria continua produzindo farinha nas farinheiras familiares. O processo de plantio de
mandioca não cessa, as farinheiras caseiras estão em plena atividade, inclusive
respondendo a uma determinada organização social que agrega a força de trabalho das
famílias dos núcleos, em conjunto, que se dedicam ao trabalho na mesma fase de cada
mês: na última semana. Todas as famílias produzem farinha, em um ritmo mais ou menos
frequente, seja para o gasto seja para a venda.
Os argumentos apresentados eram diversos e exprimiam posições críticas em
relação aos custos individuais daqueles que assumissem cargos na gestão da farinheira
comunitária. A partir da observação dessa reunião e também dos depoimentos, notou-se
uma heterogeneidade de situações. Alguns não usam a farinheira comunitária porque não
acreditam que será bem administrada por tanta gente. Outros porque fazem farinha só pro
gasto e não dependem tanto da renda da farinha. Outros porque a farinheira familiar de
que depende já rende uma quantidade produzida suficiente. Há também aqueles que
139
acreditam possuir uma boa freguesia nos mercados e aviários, mesmo sem o selo. Enfim,
a adesão à farinheira comunitária não é unanimidade. Ao contrário, é bem controversa e
suas implicações têm sido exaustivamente debatida entre os habitantes.
Seu Cacá disse que vinte e dois sitiantes que produzem farinha demonstraram
interesse na proposta de se produzir na farinheira coletiva, porém, na prática, apenas duas
famílias dela se utilizam: a família do casal Fausto e Joana e do jovem casal Cleiton e
Geraldina, em que os homens são funcionários da prefeitura. Estes, aliás, foram
entrevistados duas vezes no mesmo dia no interior da farinheira comunitária, durante o
processo intenso de produção, que acontece mensalmente. O casal afirmou que os
equipamentos da farinheira comunitária propiciam uma melhora na produtividade, se
comparada à farinheira da família. Além disso, como já mencionado, Cleiton comentou
que existe um produtor de farinha de um Sítio vizinho que a adultera, adicionando uma
farinha de qualidade inferior para ganhar um pouco mais, e vende aos mesmos
compradores, mas oferecendo um preço mais barato, gerando uma concorrência desleal
que inclusive ameaça o reconhecimento da boa farinha do litoral. Esse é o principal
motivo pelo qual Cleiton se posiciona a favor da legalização da produção na farinheira
comunitária: “Por que que isso aqui é bom legalizar? Porque a gente conhece esse cara
que faz, daí ele não vai ter condições de ter uma fábrica assim legalizada. A gente tá
legalizado e com o dinheiro de vender a farinha”.
Essas duas famílias, de Cleiton e de Fausto, se não utilizarem a farinheira
comunitária, podem utilizar as farinheiras de seu núcleo, que são respectivamente a de
Dona Santina, mãe de Cleiton, e de Seu Gilberto Santos, sogro de Fausto, mas por conta
da condição em que estão preferem a comunitária, disponível para eles durante o impasse
acerca da associação.
Apesar de a farinha comunitária estar em funcionamento, sendo utilizada por duas
famílias pelo menos ao fim de cada mês, o processo burocrático para conseguir o selo até
a última visita a campo estava parado. No contexto de falta de engajamento, Cleiton
comentou que os moradores chegaram a essa etapa devido ao empurrão dado pela
universidade e não se mostrou confiante na iniciativa dos sitiantes em levar o projeto da
farinheira adiante.
Seu Marco, pai dos pescadores profissionais da ponta, havia demonstrado querer
140
fazer parte da associação na reunião com a Emater e nas conversas que tivemos, mas suas
condicionantes não agradaram às famílias da vizinhança. A oposição à proposta de Seu
Marco, de produzir em seu engenho que é mais “rustico” e mesmo assim poder adquirir o
rótulo coletivo indicando que a farinha foi realizada dentro de determinados padrões de
qualidade, representa, além da autonomia dos núcleos, onde o pai da família é o elemento
organizador, a importância da farinheira caseira para reafirmar essa autonomia. Os
interesses na farinheira comunitária são diferenciados, pois a capacidade e a condição
física da farinheira de cada núcleo e a dependência da venda da farinha como obtenção de
renda também o são. A tensão que existe entre ponta e vizinhança também foi reforçada
com a proposta de Seu Marco para aderir à farinheira comunitária, afinal, como organizar
e negociar entre famílias com diferenças produtivas e projetos familiares delimitados a
“fila” gerada com a centralização da produção na farinheira comunitária?
Por mais eficiente que o projeto seja e ainda o valor comercial que o selo pode
agregar, acumular as demandas de cada núcleo em um único espaço criaria um gargalo
para se fazer o que cada família já faz com autonomia, distribuída e organizada em cada
uma das seis farinheiras caseiras voltada a seus núcleos. A questão parece ser cada
família submeter o seu calendário de produção, dentro de cada núcleo, às necessidades
produtivas de todas as famílias centralizadas em um só engenho, o que exigiria uma
reorganização do trabalho como ele já é feito. Isso mostra o quão forte é a lógica da
hierarquia familiar e a afirmação da autonomia entre as famílias, que reforça a distinção
intragrupal. Dona Inês foi clara na sua perspectiva, quando disse que “faz anos que faltam
confiança e união”. O que justamente o projeto de extensão veio estimular era uma
iniciativa coletivista capaz de superar a diferenciação interna, em nome do benefício
coletivo que o selo da ANVISA poderia trazer aos sitiantes.
As controvérsias e o posicionamento de cada família do Pirizal diante da criação
de uma associação, necessária para se obter um selo de qualidade anexado ao produto,
parece esbarrar em conflitos familiares e lógicas de organização produtiva que
historicamente traduz a cultura local.
Seu Chico não participou das reuniões, mas em sua entrevista comentou que
embora não pretenda participar da associação (utiliza sua própria farinheira), existem
pontos positivos. Para ele, a associação pode ser um potencial para a expansão da
141
comercialização, mas pode proporcionar principalmente o estabelecimento de uma
organização que os represente diante do poder público municipal, como já fazem os
produtores associados de Cubatão, de quem Seu Chico e Seu Marco falaram com
admiração.
Seu Chico comparam que no Cubatão as pessoas se organizam em grupo para
levar suas demandas para o prefeito, de modo que a imagem que têm é de “um lugar
forte, que tem futuro, um lugar de mais cosias. Agora lugar assim que nem o nosso, eles
acham que é pequeno, eles acham que o povo não precisa, eles acham que o povo é bobo,
e... pintam e bordam por causa disso, né? Mas no Cubatão não”. Acrescenta ainda que o
Cubatão, especializado em banana, tem maquinário, outro diferencial, além da terra boa:
“[...] primeiro eles trabalhavam com arroz, trabalhavam com aipim, também igual a nós
por aqui. Só que lá a terra é o suficiente pra essas coisas, uma terra melhor. Agora aqui
nem a banana dá".
A condição de areião e baixa vocação agrícola do solo, aliada à pouca
mobilização social e à assistência técnica inadequada ou insuficiente torna o Pirizal
inferior em relação a Cubatão. Atento às transições institucionais e os novos espaços de
negociação com o poder público, ele avalia que, individualmente, os moradores não têm
força e que com a associação do Sítio podem conseguir apresentar suas demandas e
serem atendidos, como já fazem os colonos do Cubatão.
Cabe ressaltar que, de maneira geral, a presença da universidade foi associada à
revitalização da farinheira, ou seja, os moradores reconheceram mudanças objetivas a
partir do projeto de extensão. Já as agências técnicas do governo, como a Emater e os
projetos e programas realizados junto à comunidade, não são mencionados quando se fala
de lavoura ou da terra. As benfeitorias concretizadas no Sítio são lembradas através da
figura pessoal que falava em nome da instituição que realizou alguma coisa em favor da
comunidade, por meio de agências fomentadoras de projetos de extensão, ao longo do
tempo. Apenas Seu Marco e Dona Dulce comentaram, de certo modo “avaliando” a
assistência da Emater, contando que no passado a agência era mais presente,
acompanhando de perto as atividades de pesca e lavoura e ajudando com materiais, e
também como o órgão que assinava a aposentadoria na lavoura, tão difícil de conseguir.
Hoje, o casal acredita que a atuação do órgão esteja desacreditada localmente por não
142
apresentar projetos contínuos.
A Emater tem uma presença de longa data no Sítio, porém, a comparação da
condição dos sitiantes com a grandeza da produção dos produtores de arroz do passado e
de banana no presente associa um favorecimento da assistência do estado para os
colonos. Além do aspecto da assistência técnica, os debates acompanhados nas reuniões e
as entrevistas mostram que a associação parece ser uma exigência externa, uma solução
de fora, que lhes é apresentada como meio necessário de se comunicar com determinados
setores do estado. No entanto, os impasses e a diversificação dos projetos das famílias,
inclusive as escolhas produtivas na pesca e no assalariamento que reduzem sua
participação no circuito de entre ajuda, dificultam o associativismo.
3.11 A má distribuição e a lentidão na concessão de benfeitorias: mas não eram direitos?
A velha política tradicional baseada na troca assimétrica de obrigações pessoais,
na ausência de políticas de bem estar social e desenvolvimento, e onde lentamente se
reconhecessem direitos sociais universais, é uma situação de dominação historicamente
comum no meio rural como elemento básico da nossa formação social (SALES et al.,
1994; REIS, 1995; SIGAUD, 1979a, 1979b). De modo semelhante, não é difícil de se
imaginar a rotinização da prática de clientelismo no estuário, com promessas de
melhorias comunitárias, considerando que mesmo no município da Guaratuba não é
necessário um grande número de votos para se eleger um vereador 55, tendo a maioria sido
eleita com cerca de 500 votos, como consta no site da própria câmara municipal de
vereadores.
O advento das eleições municipais para prefeito e vereador, no fluxo da abertura
democrática, possibilitou de certo modo uma mudança da “roupagem” da dominação
política e da relação de mando tradicional de muitos dos compadres, parentes mais
poderosos, comerciantes e proprietários nativos do litoral, ou de seus filhos, que viraram
políticos tradicionais, como é possível observar na lista de legislaturas e mandatos no site
das câmaras ou da prefeituras dos municípios da região.
55
Cf. <http://www.camaraguaratuba.pr.gov.br/index.php/camara/os-vereadores>. Nesse sentido, a
concorrência pelo voto dos eleitores de uma comunidade no porte do Pirizal, supondo que na sua
totalidade votasse para um mesmo candidato, significaria quase 10% do eleitorado.
143
As entrevistas indicaram que a presença dos políticos profissionais é comum nas
vilas rurais, lugares onde muitos deles nasceram e onde têm propriedades e fazendas, e
mesmo onde mantêm roças de mandioca e outras lavouras até hoje. As elites econômicas
e políticas locais cultivam a patronagem, a lealdade e a dependência de cada família e seu
“apoio” ocupou o lugar de direitos inexistentes, na ausência de políticas universais de
proteção e bem estar social e na falta de opções de mercado (REIS, 1995; SIGAUD,
1979a; 1979b).
Uma das ocasiões em que o tema de eleições surgiu foi quando Seu Cacá
mencionou as intrigas recentes com Wiliam, no Sítio e também no trabalho na estrada,
quando a atual prefeita fez uma visita à região do estuário (“nem entrou no Sítio”,
disseram) havia um mês, e conversou com os operários e seu supervisor. Wiliam, figura
controversa e “encrenqueiro” do Sítio, teria constrangido quem dos operários que,
segundo ele, não era eleitor da prefeita, o que gerou um desconforto e o receio de toda a
família Fagundes passar a receber tratamento diferenciado e de ser prejudicado, por conta
dos boatos acerca de sua preferência política.
Como bem relatado por Teixeira (2004), Sonda (2002), Andriguetto (999) e
Ferreira (2010), os governos consecutivos, sejam municipais sejam estaduais, não
distribuíram os serviços às populações rurais em situações igualmente difíceis, o que se
somou à chegada de medidas de controle ambiental restritivas, de modo que os
obstáculos comuns ao meio rural paranaense se acumulam. Eu acrescentaria que tais
obstáculos são sentidos e enfrentados de diferentes maneiras por cada grupo.
Por exemplo, os sitiantes, nas entrevistas, veem sua própria constituição sócio
espacial como um lugar da família, onde o guajú permanece, onde há ainda terra para o
plantio. Na oportunidade de conversar com os sitiantes das outras vilas, com o técnico da
Emater em reunião na escola, e nas teses de Andriguetto (1999) e Ferreira (2010), era
lugar comum a afirmação de que as vilas vizinhas passam pelo processo de
desmantelamento e êxodo, onde o guajú se enfraqueceu justamente porque as famílias
perderam as terras e não conseguem se manter, onde as políticas públicas não chegam, as
restrições ambientais são opressivas, à medida que aumenta a ocupação massiva por
turistas e investidores de fora.
A chegada das duas empresas madeireiras diferentes, incentivadas pelo estado, é
144
um dos fatores mais significaivos que reorganizou a estrutura fundiária da região e
pressionou os Sítios e as famílias de forma diferenciada. Na entrevista coletiva com Seu
Chico, Seu Gilberto e Fausto, no bar do primeiro, em um final de semana, perguntados
sobre o funcionamento do guajú, os três comentam a falta de terrenos para roça nas
outras comunidades e explicam que a área de uso comum ainda resiste no Pirizal como
resultado dos laços familiares de reciprocidade atualizados pelo guajú.
Quando perguntado se os moradores das vilas vizinhas participam do mutirão, Seu
Chico respondeu que, no passado, até mesmo o roçado da terra que ocorre antes do
plantio era realizado em conjunto entre famílias, o guajú de roçado, ao que Seu Gilberto
completou que “É o único lugar que existe de fazer reunião de plantação, é aqui na
comunidade. De resto, até ali, nós íamos lá ajudar eles lá e eles vem de lá ajudar nós aqui.
Mas pra lá daquele lado cada qual faz por si”. Em seguida, perguntei se nos bairros
imediatamente vizinhos têm roça para plantar mandioca e Seu Chico e Fausto
responderam que existem muito poucas. Seu Gilberto completou dizendo que uma
comunidade perdeu as terras porque, lá, as madeireiras haviam lhes tomado, além de que
alguns posseiros as teriam vendido, a mesma história relatada pela liderança no Encontro
do MICI e na APA.
Seu Chico acrescentou com orgulho que “O único lugar que ficou com terra foi
aqui, mas ainda por causa de briga”. O Sítio é apresentado por eles, mesmo que em outras
palavras, como o lugar par excellence da permanência, persistência e resistência dos
parentes, um grande diferencial entre os Sítios do estuário expresso pelo sentimento de
familismo.
Nesse sentido, por ser um dos menos remotos e dos mais coesos familiar e
socialmente, o Pirizal foi retratado como privilegiado e assistido do ponto de vista de
benfeitorias e apoios públicos continuados, em relação a seus vizinhos (menos, porém,
em relação aos colonos, grandes proprietários e produtores, com funcionários e
maquinário, ativos no CG e beneficiários de assistência técnica rural). Em seu conjunto
as políticas, programas e projetos dirigidos parecem ter sido de fato diluídos “em conta
gotas” ao longo de mais de duas décadas, mas foram vistos como um “favorecimento” na
medida em que os recursos não foram distribuídos entre os Sítios, mas concentrados em
poucos. A perversidade dessa visão é que os bens e serviços públicos mais fundamentais
145
deixaram de ser “direitos sociais” e passaram a significar “favores” concedidos pelas
elites, seletivamente (REIS, 1995; SALES et al, 1994; TELLES, 2001).
Dentre as benfeitorias existentes no Pirizal, realizadas pelos governos municipal e
estadual, é possível citar num primeiro momento a chegada de geradores para
fornecimento de energia elétrica e de motores para se puxar a água dos poços artesianos
caseiros e bombeá-la até as caixas d'água, para algumas famílias. Mais tarde, depois dos
anos 80, a rede se estendeu de maneira menos precária e generalizada. A eletricidade
proporcionou a energia para a refrigeração de alimentos para quem tinha geladeira,
iluminação da rua e a chegada da TV, presente hoje em praticamente todas as casas. Além
disso, facilitou o árduo trabalho no engenho de farinha. Melina, que produz farinha junto
com Seu Floriano, na farinheira compartilhada pelas famílias do núcleo, avalia a
importância da eletricidade:
MELINA: Só que antes era muito difícil, né. Pra fornear, pra ralar era
no braço... Uma semana! Né, Seu Floriano?
SEU FLORIANO: Essa farinha que eu fiz ontem de tarde, hoje e ontem
depois pra fornear tudo, antes era três dias!
Posteriormente, sucederam a instalação de um orelhão público, a perfuração do
poço artesiano municipal56, bem como a melhoria da estrada criada pela firma e das
moradias (reformas que as transformavam de madeira para alvenaria e construíam o
banheiro para dentro da casa), sendo que algumas iniciativas estavam enquadradas em
programas e projetos de parceria entre os governos municipal e estadual. Foram citados
pelos moradores o Programa Paraná 12 Meses (PARANÁ, 2003) e os Projetos Baía
56
A comunidade dispõe dos serviços de luz elétrica, um telefone público e transporte escolar municipal
diário, mas essa linha é exclusiva para estudantes e não leva moradores. Não há transporte público
coletivo. O transporte particular de ônibus é oferecido por um morador da região duas vezes por
semana (segunda e sexta, por R$10,00) até a rodovia estadual. O fornecimento de água até hoje se dá a
partir de poços artesianos e não há abastecimento público de água. A prefeitura fez um poço grande que
passa pela rua, mas existem poços artesianos em toda casas. Seu Cacá alertou que não se deve utilizar
mais a água de poço devido a sua coloração amarela, o cheiro e o gosto fortes . Em conversa com o
técnico extensionista da Emater que atua na região, em novembro na reunião da APA, foi informado
que amostras da água do poço foram analisadas indicando que excesso de ferro e outras substâncias
que em altas quantidades são nocivas à saúde. O extensionista acrescentou que, segundo orçamento, a
aquisição de filtros para o poço sai cerca de cinco mil reais, mas o órgão não possui recurso e não
existe previsão para a execução da obra. O esgoto é depositado em poço morto atrás de cada casa ou
nas casas próximas ao banhado é lançado no rio por encanamento da fossa. Já o atendimento público de
saúde acontece no posto de um bairro vizinho, mas para emergências os moradores têm que ir ou até
Matinhos ou Paranaguá, tendo em vista que o município está sem hospital funcionando para
emergências (como parto, infarto, trauma). A coleta de lixo é feita por um caminhão que passa uma vez
por semana.
146
Limpa57 e Plantando Palmito, realizadas entre meados dos anos 80 e 2000. Portanto, as
obras de infraestrutura e programas socioambientais foram implementados nas últimas
três décadas.
Já a escola rural é mais antiga, fundada há pelo menos três décadas (Dona Anadir,
esposa de Seu Mario, já dava aula quando sua filha Dulce, hoje idosa, ainda era jovem).
Cabe aqui abrir um pequeno parênteses sobre o quadro social de acesso à educação na
comunidade. A escola oferece ensino fundamental multisseriado, onde estudam em torno
de dez crianças, da própria comunidade e de outras vizinhas, e trabalham dois
professores, uma zeladora e uma merendeira, todos moradores da ponta. Com referência
ao grau de instrução formal, mesmo os mais velhos tiveram aula na escola da
comunidade, que existe há mais de quatro décadas. Pela escola passaram todos os
moradores, sendo que somente alguns concluíram os estudos.
Há menos de cinco anos, o município disponibilizou gratuitamente ônibus escolar
que atende às comunidades da região. A escolaridade dos moradores mais velhos não
passa do ensino fundamental e apenas os mais jovens têm acessado o ensino médio, mas
para isso precisam se deslocar até a sede do município, sendo necessário utilizar o ônibus
escolar até o centro urbano de Guaratuba.
A baixa escolaridade e qualificação profissional refletiu nas opções de empregos
urbanos encontradas pelos nativos que se mudaram para a cidade que, como vimos, se
restringem a trabalhos braçais, mesmo no funcionalismo público, ou são trabalhos
temporários no verão relacionados aos serviços de apoio ao turismo. Talvez esses sujeitos
estejam caminhando para caminhos semelhantes àqueles “Caiçaras” dos balneários
urbanos paulistas a que me referi no início do estudo, em condições sociais precárias ou
em situação de favelização.
57
“Baía Limpa” é o nome de um programa do Estado do Paraná que remunerava o pescador para exercer
trabalho de coleta de lixo, em meio expediente durante três dias por semana, período em que não
deveria pescar. A remuneração variava entre meio e um salário mínimo por mês, acrescido ou alternado
com uma cesta básica (ANDRIGUETTO FILHO, 1999).
147
3.12 Assalariamento municipal, identidades produtivas híbridas e falta de acesso à
cidadania
O assalariamento é uma outra fonte de renda representativa entre os sitiantes e se
apresentou como uma possibilidade de trabalho, há menos de duas décadas, apenas
depois da abertra da estrada. O funcionalismo municipal faz parte da condição econômica
de treze sitiantes, que ainda fazem as atividades tradicionais, e está distribuído por
ocupações entre ponta e vizinhança. O assalariamento foi identificado como uma
alternativa importante de se manter a família e incrementar a baixa renda possibilitada
pelo agroextrativismo nas atividades tradicionais. Dona Acácia explica que os moradores
das outras vilas, esvaziadas pelo êxodo e pouco esforçados, não ficavam sabendo ou não
se interessavam em prestar concurso público para a prefeitura e os cargos para atividades
pesadas e lugares remotos sobravam.
Os funcionários da escola do Pirizal são todos nativos da ponta. Isso está
relacionado com o fato de a administração da escola ter passado para o município. No
passado, a escola do Pirizal era estadual e seu primeiro professor era um senhor de fora
que se mudou para um terreno ao lado de seu local de trabalho com a família. Diante do
isolamento dos bairros rurais do estuário, acessíveis somente de barco pelos rios, era
comum que o professor se mudasse para a comunidade onde ia trabalhar, morando em
uma casa ao lado da escola, na falta de sitiantes qualificados. Com a morte desse
professor, dois de seus filhos permaneceram na comunidade, Donizete e Júlio Ferraz.
O ofício passou então para a falecida esposa de Seu Mario Fagundes, professora
pela rede estadual de ensino. Com a sua aposentadoria, foi substituída por sua única filha
mulher, Dona Dulce Fagundes Rezende, também professora. Antes de dar aula no Pirizal,
Dona Dulce deu aulas em outra comunidade (cujo acesso só se dava a remo por rio, até a
abertura estradas), para onde se mudou com sua família em busca de emprego como
professora.
Como já visto em páginas anteriores, Dona Dulce explicou em sua entrevista que
no final da década de 70, com o avanço da Comfloresta sobre a região, derrubando
árvores, fazendo estradas e adquirindo áreas para o plantio de pinus, a pressão para que
148
os habitantes da região vendessem seus terrenos foi grande. O fluxo rumo às cidades
próximas também. Esse cenário de ocupação não foi diferente no Sítio próximo para onde
se mudaram Dona Dulce e sua família, onde moraram durante seis anos. O rápido
processo de venda e desocupação esvaziou a comunidade e quando restou apenas uma
família e a escola ficou com apenas um aluno, a escola foi fechada e Dona Dulce ficou
sem emprego. Venderam a casa e o terreno com a roça que Seu Marco levantou e
voltaram ao Pirizal, ocupando o terreno que era a herança deixada para Dona Rita.
Já de volta, no começo dos anos 80, Dona Dulce trabalhou na escola com sua
cunhada, esposa de seu irmão Pedro Fagundes, que atualmente mora em Guaratuba. Na
mesma época em que assumiu as aulas na escola do Pirizal, agentes sanitários em
combate à malária contrataram temporariamente seu marido Seu Marco Rezende como
agente local de saúde, que foi treinado para aplicar o bombeamento de veneno contar o
mosquito transmissor nas casas e acompanhar as datas de aplicação. O casal não deixou
de pescar pro gasto ou trabalhar na lavoura da família, já que o salário era baixo.
Atualmente, as aulas da escola do Pirizal estão sendo distribuídas entre outro filho
de Dona Anadir, Seu Brasílio, e sua neta Paulina, ambos professores do ensino
fundamental pela prefeitura. Outros moradores do Sítio trabalham na escola, na sua
manutenção. Apesar de os empregos nas escolas se concentrarem na ponta, o maior
número de moradores que são funcionários municipais moram na vizinhança; a maioria
como operário ou peão.
Na maior parte dos casos existe apenas um indivíduo da mesma família que
trabalha na prefeitura. Existem apenas dois casais em que os dois são funcionários
públicos: Lucélia e Brasílio, Cacá e Acácia. Geralmente, o outro cônjuge que não é
assalariado reforça a renda familiar se dedicando mais intensamente às outras atividades
que podem gerar renda. Melina e sua filha trabalham no único posto de saúde do interior
da baía. Melina é enfermeira e sua filha trabalha no atendimento.
Apenas sete moradores se aposentaram, num universo de doze moradores que têm
mais de sessenta anos de idade. Os moradores adultos da comunidade, com maior ou
menor intensidade e duração, trabalharam nas atividades de pesca, lavoura, extrativismo,
no entanto, a aposentadoria se refere à apenas uma das atividades, ou seja, o tempo de
trabalho nas outras atividades não conta oficialmente.
149
Os primos Seu Gilberto e Seu Chico da vizinhança se aposentaram em serviços
gerais para obras da prefeitura. Seu Chico entrou na justiça para mudar o cargo em que se
aposentou, pois ele explicou que trabalhou por muitos anos empregado como encarregado
dos operários da estrada, no entanto, se aposentou com um valor bastante inferior para o
cargo que exerceu.
Na ponta, Seu Floriano se aposentou da Sanepar e Seu Dona Dulce se aposentou
como professora, e seu filho caçula, portador de deficiência auditiva, Cláudio, que ajuda
seu Marco Rezende na roça e é pensionista do governo e recebe um salário mínimo por
mês. Seu Mario e seu genro Seu Marco Rezende também se aposentaram como
lavradores.
Seu Marco Rezende pretendia se aposentar como pescador, sua atividade
principal, tendo pago inclusive os encargos da colônia de pesca, a regulamentação da
situação como pescador profissional e de sua embarcação, entretanto, seu pedido foi
negado em uma das instâncias e decidiu tentar se aposentar como lavrador, devido a
empecilhos burocráticos. Sua esposa Dona Dulce conta que para Seu Marco poder se
aposentar, houve uma burocracia bastante difícil e humilhante. Ele precisou de uma
assinatura do INSS que às vezes exige perícia, e assinatura do técnico agrícola da Emater,
que acompanha a comunidade há anos, e também muitas vezes é exigida a filiação ao
Sindicato dos trabalhadores rurais de Guaratuba.
Há outras pessoas que toda vida trabalharam na lavoura, seja do arroz seja de
mandioca, que já passaram da idade de se aposentar (aos 55 anos é possível se aposentar
como lavrador), contudo, devido a dificuldades no processo burocrático ou reprovação no
exame de perícia, precisaram aguardar o andamento do pedido junto aos órgãos a que
compete a entrada dos papéis ou mesmo desistiram do pedido de aposentadoria, vivendo
da comercialização dos produtos em que trabalham no cultivo, coleta ou beneficiamento.
Entre estes, estão pelo menos Júlio Ferraz, Dona Inês e sua cunhada Dona Rita, e Dona
Helena esposa de Seu Gilberto Santos. Foi visível o descontentamento e o sentimento de
impotência dos moradores diante da dificuldade de se conseguir o direito de
aposentadoria. Alguns casos dramáticos foram relatados e chamaram atenção.
Em especial, Dona Inês de cinquenta e sete anos, viúva, demonstrou grande
frustração com o processo de aposentadoria, principalmente depois de ter contribuído
150
com o sindicato rural por quinze anos, e tem pagado o ITR (Imposto sobre a Propriedade
Territorial Rural) da propriedade, na condição jurídica de posseira58, sem escritura.
Um outro caso marcante é o da Joana do Fausto, de cinquenta e dois anos, que
trabalha na lavoura de mandioca, além de tecer com cipó e pescar para o gasto e
eventualmente coletar caranguejo com o marido, e cuidar de duas filhas menores. Antes
de atingir a idade de aposentadoria como lavradora, já desanimou de comprovar sua
experiência e passou a pagar a colônia de pesca, pela qual lhe disseram que conseguiria
se aposentar com a mesma idade, mas ainda não se aposentou.
Os habitantes acima de seus 60 anos não deixam de trabalhar na lavoura na
produção do aipim, preferindo no entanto as etapas que exigem menos esforço físico. O
envelhecimento da força de trabalho é inclusive um fator que reforça a entre ajuda no
plantio.
A roça ainda é a principal fonte de renda e de sobrevivência de Dona Rita e Dona
Inês. Embora seja uma atividade penosa, permite que os moradores trabalhem de forma
autônoma. Dona Rita expressou sua preferência pelo trabalho na lavoura, em que ela “faz
para si”, ao contrário do tempo em que ela era empregada na cidade. Por outro lado, a
lavoura depende de fatores climáticos, do trabalho árduo, enquanto aqueles que têm
emprego conseguem assegurar um salário regularmente, como ela afirma com
ressentimento em relação aos jovens irmãos autônomos da pesca, da ponta. Na entrevista
conjunta entre as cunhadas duas vezes elas demonstraram que percebem a dureza e a
intensidade do trabalho na lavoura e na capina, que exige que o corpo fique “torto e
encurvado“, obrigando-as a lidar com as dores no fim do dia, sem que possam contar com
os filhos (os de Dona Inês são empregados em outro Sítio e o de Dona Rita vive na
cidade). O desprestígio desse trabalho é visto também em relação ao que se ganha em
troca, em comparação com os irmãos da pesca e os assalariados da prefeitura. Quem se
nega a trabalhar na roça ou reclama é considerado “preguiçoso”, traço que Dona Dulce e
sua nora Judite reconhecem como diferenciadores do trabalho do seu núcleo e o trabalho
dos demais. Desta maneira, o assalariamento e o trabalho autônomo no turismo
58
Lei nº 10.406/2002 do código civil Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou
urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não
superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua
moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. As entrevistas indicaram que a maioria dos moradores do Pirizal
é posseira, não possuindo o título de propriedade da terra.
151
classificam para elas as famílias mais esforçadas em relação àquelas mais preguiçosas,
em uma distinção que reflete a relação da identidade do mundo do trabalho com a
identidade do mundo do parentesco.
Quanto à atividade pesqueira, os moradores da ponta procuram se manter
regulamentados dentro do marco legal, possuem documentação profissional individual e
de sua embarcação, pagam o RGP59 e pela filiação à colônia dos pescadores artesanais,
que fornece documento que certifica o exercício da atividade. O cumprimento dessas
exigências traz o benefício de se exercer a profissão de pescador profissional, sem ter
problemas com a fiscalização. Além disso, em época de defeso, o pescador profissional
pode recorrer ao seguro desemprego.
Os jovens pescadores da ponta, filhos de Dona Dulce e Seu Marco Rezende, por
trabalharem com a pesca esportiva, decidiram se regulamentar desde jovens. Dona Dulce
contou que, para o cadastro e fiscalização, seus filhos precisam provar que pescam em
dupla e ainda levam a batera de madeira que nem é mais utilizada. Ela deu exemplo de
casos em que, para conseguir a licença, alguns nativos levam a batera em cima do barco a
motor, mesmo sem funcionar, para comprovar que é pescador. Alguns chegam ainda a
pagar cerca de R$ 200 para outro pescador, para conseguir demonstrar que pescam em
dupla e assim cumprir uma exigência, quando na prática trabalham com o turismo de
pesca de fato e pescam pro gasto como prática tradicional, como se a regulamentação da
atividade não acompanhasse sua variedade e congelasse as possibilidades do prescador.
Assim, a batera de madeira é mantida muitas vezes como forma de garantir o RGP
e o seguro da pesca. No entanto, poucos de fato ainda vão para a água com embarcações
de madeira, simples e sem motor. A maior parte das embarcações em uso é de alumínio,
barcos/botes com motores de popa e centrais, pelos irmãos da ponta.
Em meio aos depoimentos em tom de reclamação com relação aos empecilhos da
burocracia para aquele que pretende se aposentar, foi possível perceber certa falta de
legitimidade da Colônia de Pescadores entre os sitiantes que pescam. A dificuldade de se
aposentar pela pesca inclui por obstáculos ao mesmo tempo políticos, relacionados a
lideranças e a setores dos governos municipal e estadual, e excessivamente burocráticos,
59
RGP – Registro geral da pesca: o registro, que funciona como uma carteira profissional, é dado aos
pescadores que não têm vínculo empregatício formal e não recebem nenhum tipo de benefício da
Previdência.
152
ainda mais se levarmos em conta a distância dos escritórios locais e regionais onde se
procede com a regulamentação e a exigência de documentos para a comprovação a
atividade.
Outra fonte de renda, cuja ocorrência não foi averiguada entre os moradores, foi o
benefício de bolsas assistencialistas a exemplo do Bolsa Família. Dona Dulce mencionou
que algumas famílias se utilizam do benefício, porém, essa informação não foi explorada
nas entrevistas.
A forma como o estado classifica e legitima algumas profissões do ponto de vista
de direitos trabalhistas (e mais especificamente aqueles dirigidos ao trabalhador rural),
seja na regulamentação das atividades seja na efetivação da aposentadoria, possui um
efeito prático sobre os limites e as possibilidades do exercício dessas atividades pelos
nativos, de modo que a validade dessas categorias no mundo jurídico formal parece
influenciar em grande medida a forma como eles reconhecem entre eles mesmos as
profissões, que se dividem em: pescador, lavrador, funcionário da prefeitura, professor e
aposentado, uma forma de distribuir reconhecimento e autoridade entre eles.
O fato de se possuir ou não um emprego formal parece ter importantes
consequências sobre aspectos econômicos e culturais. Os funcionários da prefeitura não
precisam viver ao gosto das oportunidades produtivas que aparecem, pois podem contar
com uma renda garantida no fim do mês e, assim, o trabalho na lavoura, na produção de
farinha, a coleta, o tecido e artesanato com cipó, a captura de camarão, tainha e a coleta
do caranguejo, acabam se tornando atividades coadjuvantes que vão se intercalando com
o trabalho externo60.
Além disso, o trabalho como funcionário da prefeitura e a renda que ele
proporciona possui um caráter marcadamente individualizado, no sentido de que não é
organizado e realizado nos marcos das relações inter familiares de reciprocidade, não
constitui tarefas exercidas no interior de um núcleo ou entre eles, tampouco o produto do
60
Foi possível notar que o cumprimento do tempo de trabalho como funcionários municipais, atendendo
num posto de saúde local, dando aula ou trabalhando como zeladoras e merendeiras nas escolas ou
como peões na estrada de chão, impede que estes moradores participem da continuidade de guajús,
principalmente daqueles realizados durante os dias de semana. Seus respectivos cônjuges que não são
funcionários públicos comparecem representando a família, nas situações em que não é possível
comparecer. Tem se tornado comum que as reuniões de ajutório sejam marcadas no fim de semana,
dias de descanso, pois são os dias que sobram disponíveis para aqueles que trabalham de segunda a
sexta na estrada, na escola ou no postinho de saúde.
153
trabalho é revertido ou compartilhado para seus parentes na comunidade, esse
“desencaixe” da esfera do trabalho formal em relação às outras muda os laços
cooperativos e de sociabilidade. A disposição para se realizar o guajú, e se produzir
farinha com os sogros, pais ou irmãos, ou mesmo sair para pescar pro gasto, se submete à
rotina formal de um funcionário da prefeitura.
Por outro lado, a longo prazo é possível dizer que o trabalho na prefeitura não
exclui completamente o morador do trabalho na pesca e lavoura, pois de certa forma o
trabalho externo garante a sustentabilidade do núcleo familiar em momentos críticos,
como aqueles desfavoráveis para o plantio, pesca e comercialização.
Uma questão interessante que não foi explorada nas entrevistas está relacionada
com o assalariamento das mulheres, que pode ter implicações para o seu papel na
hierarquia da família e no controle tradicional masculino.
Há ainda o caso do trabalho informal com o tecido com cipó, que é realizado
intensa e regularmente, com compradores certos para uma produção pré-agendada, por
dezesseis pessoas da vizinhança e apenas por duas, na ponta: são, em sua maioria, casais.
O casal da casa costuma trabalhar por meio da divisão da tarefa entre coleta e o tecido, e
pelo menos um do casal recebe todo mês um provento como funcionário da prefeitura. A
atividade não foi regulamentada no contexto da APA e acaba caindo na clandestinidade e,
desta maneira, obviamente não contam para aposentadoria por ser uma prática informal.
A racionalização que caracteriza a coleta e a fase de confecção com vistas ao
mercado e a distância entre o processo de extração e transformação realizado pelos
nativos e o mercado explorado pelo atravessador tiram qualquer possibilidade de
prestígio do artesão responsável pelo tecido. Sua comercialização com os atravessadores
que o revendem não traz ganhos significativos para a família, fazendo com que essa
prática aparecesse sempre como coadjuvante.
Por sua vez, a lavoura é considerada uma atividade transversal, comum a todos,
que persiste no terreno, encarada como um complemento mais significativo do que o
cipó.
Os casos apresentados, de moradores que se dedicam tanto à pesca quanto à
lavoura, e mesmo ao tecido, mas não conseguem o reconhecimento de nenhuma ou
apenas de uma das atividades, demonstram o descaso por que passam frente às
154
instituições responsáveis, demasiadamente especializadas e setorializadas de maneira que
sua estrutura jurídica não está adequada para alocar o quadro de diversificação de
atividades materiais que permeia a realidade produtiva dos moradores do Pirizal. Sem
emprego ou fonte de renda formal, buscam o direito à aposentadoria, depois de décadas
se dedicando simultaneamente a múltiplas funções, com maior ou menor intensidade,
como artesãos, pescadores, lavradores, produtores de farinha, em muitos casos lidando
com atravessadores que exploram seu trabalho pagando-lhes muito abaixo do valor do
mercado pelo produto do trabalho familiar.
Os mecanismos de políticas públicas se mostram insuficientes e em alguns casos
“cegos” às demandas fundamentais, como o não reconhecimento do direito à
aposentadoria para atividades como a pequena agricultura e a pesca. A aposentadoria não
é um direito facilmente acessível. Ao contrário, o tempo de trabalho dedicado a diversas
atividades simultâneas, como a pesca e a lavoura ao longo da vida produtiva não garantiu
a aposentadoria mesmo para aqueles que pagavam o sindicato de trabalhadores rurais ou
a colônia de pesca. A burocracia envolvida no processo de pedido de aposentadoria foi
relatado como desgastante e complicado, a ponto de terem acabado na desistência do
processo.
Mesmo ao abordá-los para as situações de entrevista enquanto estavam tecendo,
fazendo farinha, carpindo, prevalecia na fala dos funcionários da prefeitura que essa
última era sua atividade, sua identidade produtiva fundamental, uma vez que o tempo
para as outras práticas tinha se reduzido e estas passaram a ser complementares.
O fato de a identidade como funcionário da prefeitura aparecer com força, e ser
considerada como a principal, senão a única que os conectava com a esfera pública e com
a sociedade local, está intimamente relacionado com a marginalização social e econômica
da pesca comercial, da lavoura e extrativismo pela sociedade envolvente; ao mesmo
tempo parece ser produto da falta de reconhecimento do poder público e de remuneração
mais justa dessas atividades, além da perda de importância e má remuneração do trabalho
braçal entre as gerações mais novas.
De maneira geral, trata-se do acesso precário à cidadania que resulta da falta de
políticas de desenvolvimento social e de assistência técnica, de restrições ambientais,
baixa competitividade dos produtos do trabalho no próprio território e a desvalorização
155
dos ofícios tradicionais (que lhes proporcionam autonomia nos processos produtivos,
além de se referirem ao um saber fazer e a tecnologias de manejo com grande
importância cultural). Esses fatores acabam favorecendo a preferência pela segurança do
trabalho assalariado como principal fonte de renda.
A distinção laboral entre as famílias está colocada e hierarquiza as identidades do
trabalho identificadas, que parecem traduzir a maneira pela qual eles veem a si próprios,
imbricada com a classificação de quem são os parentes, hierarquizados por exemplo entre
tios, primos, irmãos e família, espacialmente organizados nos núcleos e ponta e
vizinhança. Assim, se definem, a um só tempo e de forma complementar, pela identidade
do parentesco e pela identidade do trabalho, que se entrecruzam.
3.13 Auto-consumo, as mudanças e a cidade
O quadro atual de consumo de bens e consumo da cidade implica o declínio do
auto consumo, progressivamente influenciado pelo turismo, pela cultura urbano industrial
das cidades mais próximas, pelo aumento de renda e poder de compra, mas também de
alguma forma atrelados ao pequeno comércio local.
Esse quadro de mudanças culturais e econômicas não nega o fato de que os
moradores sempre estiveram inseridos no sistema de mercado, participando do mercado
de terras, do mercado de produtos, do mercado de trabalho e de bens culturais e
simbólicos (ADAMS, 2000b; NEVES, 1985). Os relatos dos mais velhos mostraram que
seus pais e avôs praticaram sistematicamente venda e compra de mercadorias, contudo as
condições ecológicas, de infra estrutura, de mercado, e de sociabilidade eram diferentes.
Até a chegada da energia elétrica e a abertura da estrada em meados dos anos 80,
a vida no Pirizal era muito distinta do que é hoje. No passado, para se adquirir bateria,
gás, alimento e vender farinha, a economia local orbitava em torno do centro de
Guaratuba, acessado exclusivamente por barco. A “terra de areião é fraca” e não produz
variedade pra subsistência, como culturas de milho e feijão, apesar de sempre ter havido
muitos pés de banana, de laranja, de abacate e pequenas hortas.
Os moradores iam a remo até Guaratuba pela baía, para vender a farinha, o arroz e
comprar alimentos. Outra opção, além de ir às vendas da cidade de barco, era comprar
156
alimentos da venda, que hoje é um bar. Seu Chico, o dono dessa pequena venda, vendia
as sacas de farinha produzida por sua família e comprava alimentos para repor sua
mercearia, os quais revendia mais caros. Como foi mencionado antes, em momentos de
crise econômica, os moradores não tinham dinheiro para lhe pagar, então ele lhes “vendia
fiado” os mantimentos.
O peixe foi um importante alimento na dieta dos habitantes, além de ser
abundante e de fácil acesso. O pescado rendia o que comer por uma semana e até por um
mês, dependendo da necessidade. Como não havia geladeira (não havia fornecimento de
luz elétrica), as famílias armazenavam o peixe limpando, salgando e defumando-o pra
guardar ou esperando ele murchar e secar e guardavam-no seco em um balaio. Os mais
velhos contam que na sua infância não adiantava pescar mais do que a necessidade de
consumo, pois não havia procura pra comercialização nem meios de armazenamento. A
venda era esporádica e direta com o consumidor final, e o peixe era levado a remo até
comunidades vizinhas ou na cidade. Outra fonte de alimento farta foi a caça de pequenos
mamíferos como quati, tatu, capivara, veado, macaco. Comia-se muito, como ainda se faz
hoje, o bijú, feito a partir do polvilho extraído na produção da farinha. A farofa de
mandioca nunca lhes faltou à mesa. A água do arroz servia para fazer o pirão. O costume
era de se preparar o peixe assado, e não frito.
O sistema de auto consumo se diferenciava do sistema de venda no quesito
quantidade: enquanto para autoconsumo não é necessário se acumular, pois se pega o
necessário para do momento, no mercado passaram a armazenar grandes quantidades
para atender às demandas dos consumidores dos produtos da pesca e da lavoura.
Atualmente, poucos ainda pescam pro gasto e o peixe não está mais tão presente
na dieta dos habitantes como permanecem a farinha e o bijú, derivados da mandioca.
Ostras, mariscos e caranguejo também são consumidos, ainda que esporadicamente. A
caça é constrangida pelos agentes ambientais, apesar de tradicionalmente apreciada.
É possível árvores frutíferas ao redor de algumas casas. No serviço de refeições
que Judite do Marcelo oferece aos visitantes, com exceção do peixe, arroz e feijão, os
itens dos pratos como mandioca frita, legumes e verduras variados na salada, incluindo o
palmito (existem muitos pés remanescentes, principalmente na ponta onde foi
implantando o projeto dos viveiros, pelo governo), o suco de maracujá, são colhidos de
157
seu terreno.
Mas a fonte principal de alimento progressivamente passa a ser os mercados e
vendas da cidade, onde às sextas-feiras cada família vai fazer compras para abastecer a
geladeira. Semanalmente o caminhão entrega de casa em casa as respectivas compras. Há
também duas vendas pequenas onde é possível encontrar desde materiais de limpeza,
biscoitos, bebidas alcoólicas, até artigos de perfumaria, além do botequim, que antes era a
única venda da comunidade.
Portanto, a cultura de auto consumir o pouco que se produzia, coletava, pescava,
caçava vai paulatinamente cedendo lugar à preferência pelos produtos industrializados,
principalmente no interior daquelas famílias assalariadas ou do ramo da pesca, que estão
transformando seu padrão de consumo e tendo maior acesso ao comércio de bens e
serviços e cultura urbana, induzidas pelos valores de consumo fomentados na televisão. O
padrão de consumo de alimentos, automóvel, roupa, no entanto, passa a exigir novas
despesas que por sua vez exigem mais trabalho. Mesmo morando na área rural de
Guaratuba, seu modelo de consumo pode ser considerado parte da cultura urbana.
Alguns moradores ainda insistem no pomar61, como Seu Brasílio e Seu Marco,
Judite do Marcelo, Joana do Fausto, seu Chico, seu Floriano, que têm pés de maracujá,
café, limão, abacate, abacaxi, palmito, e até uva em pequenas parreiras, entre outras.
Alguns moradores com cafezais na propriedade inclusive fazem a torra do café para
beber em casa.
De alguns quintais, tiram as verduras e os legumes das hortas adubadas com restos
de comida ou raspa da mandioca. A horta fica sob o cuidado da mulher: Lucélia, Suzana,
Melina, Judite do Marcelo e Geraldina, mantém uma pequena horta no quintal da casa,
perto da porta da cozinha, com variedades de couve e de alface, chuchu, abobrinha, com
temperos e ervas medicinais. Mesmo assim, passou-se a comprar legumes e verduras dos
supermercados de Guaratuba.
A criação de animais como galinha, galo, ganso e peru é comum nos quintais das
chácaras (Jailson, Marco Rezende, Cleiton, Floriano, Seu Chico, Brasílio),
61
Seu Chico e seu Gilberto, nativos mais velhos, percebem que o fim da banana e da laranja e da
variedade arbórea que existia antigamente pode estar associado a problemas na terra, em especial à
chegada do pinus, por tirar os nutrientes e a água do solo. Os moradores mostraram conhecer algumas
consequências da presença massiva do pinus e de sua expansão desenfreada sobre o ambiente
ecológico, que tende para a homogeneização da paisagem e redução da variedade biológica da região.
158
principalmente para se comer os ovos e eventualmente a carne da galinha e do perú.
Brasílio, da ponta, ainda possui vacas, de onde tira somente o leite, pois não aprecia a
carne; ele e seu irmão já tiveram cerca de uma dezena de cabeças de boi cada um e alguns
porcos, mas os animais acabaram morrendo ou sendo abatidos em comemorações. Os
responsáveis pela criação geralmente são os homens. As pequenas granjas de galinhas
compradas por criadores de comunidades vizinhas e aviários e mantidas com milho e
rações compradas, fornecem ovos e carne. Perus e patos também são criados.
A extração de algumas madeiras62 foi mencionada, quando ainda havia mais áreas
de floresta nativa. Havia uma família de fora, os Vasconcelos da Prainha (em Guaratuba),
que cortava madeira usada para construir casas para a venda, prática comum em todo o
litoral do estado. Outra aplicação da madeira derrubada era a construção da casa de
abrigo (caxeta, canela, guanandi, urucurana etc.) do engenho manual de farinha e também
estes eram feitos com peças inteiras de madeira, por artesãos locais que recebiam
encomendas no passado.
Nos dias de hoje, o corte da madeira passa por restrições ambientais. Como
comentou Dona Dulce e Seu Chico, o Pirizal está desmatado e o mato que tem é mato
cultivado, de modo que só se encontra madeira onde há capourão (capoeira alta com
mais de uma década sem ser manejada), geralmente na área de banhado ou brejo, hoje
sob fiscalização e proteção ambiental do Estado e abandonada por ser pouco interesse
produtivamente depois do fim da lavoura do arroz. A manutenção das farinheiras com
peças de madeira é complicada, já que por restrições ambientais não se pode derrubar
árvores nem serrar madeiras tipicamente usadas, e nem mesmo serrarias aceitam
encomendas, como contou Zeca, genro de um ex artesão local, já falecido.
No que diz respeito à caça, ouviu-se muito pouco 63, por se tratar de uma atividade
proibida por lei e sob forte fiscalização e penalização. Dois nativos mais velhos disseram
que pararam de caçar há cinco ou seis anos. A atividade de caça, feita com arpão,
62
63
Seu Floriano mencionou sem mais detalhes que barcos de fora atracavam no porto para buscar
dormente, madeira-de-lei e madeira para estrada de ferro.
A pesquisadora que atua na região disse em comunicação pessoal que acredita que há uma demanda
externa, de turistas de Santa Catarina, por carne de caça, o que tem fomentado essa prática com a
finalidade comercial. De um lado, a proibição total da caça com a fiscalização e risco de denúncia e
penalização desencorajou o manejo, mas não impediu o comércio clandestino e conflitos com a polícia
ambiental, como foi observado na segunda reunião do MICI no Pirizal, em que uma moradora de um
Sítio vizinho reclamou da truculência na abordagem da política ambiental que impedia mesmo aqueles
que caçavam para subsistência.
159
armadilhas e cachorros, era revezada com a pesca pro auto consumo animal e só se
voltava a caçar e a pescar quando acabava a carne em casa. Eles diferenciam a caça por
quem é de fora e por quem mora “no Sítio”. Os últimos seriam os que deveriam poder
caçar, já que caçam pro gasto, para comer em casa, e cuidam para não acabar o recurso,
diferente dos turistas que, segundo eles, caçam clandestinamente à noite.
Os depoimentos levam a crer que são conhecidas as normas que regulamentam a
caça, principalmente as que dispõem acerca da proibição de se impedir a procriação, de
se caçar à noite e de se caçar para fins comerciais. Entre os poucos que se permitiram
desenvolver o assunto, notou-se uma posição clara em favor da modalidade que visa a
subsistência daquele que caça. Duas mulheres, entrevistadas com seus maridos, quando
perguntadas se achavam que havia ainda gente que precisava caçar, elas disseram que
sim, pois há famílias nativas que não tem como plantar nem comprar, em bairros
considerados mais empobrecidos. Disseram ser contra a caça praticada por pessoas de
fora, que tem um caráter mais predatório.
Ao mesmo tempo, os que se permitiam falar do assunto com mais naturalidade
apresentavam o discurso de que a caça é uma atividade própria do local, e não se deve
caçar a menos que a finalidade seja o consumo.
O que foi possível perceber é que a caça faz parte da cultura chamada de Caiçara
(ADAMS, 2002), mas sofre a pressão da censura ambiental e da queda na
disponibilidade. A carne de animais silvestres, bastante apreciada, não parece ser mais
um alimento central dieta no Pirizal como outrora, ainda mais com acesso aos mercados
urbanos como alternativa alimentar, mas sim um costume e uma prática
predominantemente masculina e coletiva (entre os chefes de família que saem juntos) que
diminuiu drasticamente.
Quanto ao palmito64, não realizei nenhuma pergunta direta. Somente Cleiton
mencionou a extração do palmito e o assunto passou pela amizade entre seu tio Seu
Chico Santos e o ex-prefeito Ananias. A amizade entre os dois há mais de duas décadas
64
Seu Cacá explica que no Pirizal o plantio de sementes do palmito foi incentivado em viveiros onde
hoje fica uma das pousadas, na ponta. Há alguns anos os governos estadual e municipal apresentaram
um projeto chamado por eles de poupança verde, cuja contrapartida da dedicação aos viveiros por um
dia por semana, era uma cesta básica. Por conta da inaptidão do solo, eram trazidas sacas de terra preta
e distribuíam-se sementes em pacotinhos. Com a mudança de governo, a proposta foi interrompida e as
cestas básicas foram cortadas.
160
rendeu troca de oferta de trabalho para seus sobrinhos em sua antiga fábrica de palmito já
desativada. Na época, a chegada da luz, do orelhão, da tobata foi favorecida por esse
contato. Quanto às fábricas de beneficiamento do palmito aos dias de hoje, nada foi
mencionado e naquele momento não parecia pertinente.
3.14 Os primeiros passos para a regularização fundiária: o que fazer diante de arranjos
híbridos?
Evidenciada no conjunto de narrativas, a disputa interfamiliar pelas áreas dos
terrenos e das chácaras no Sítio, decorrente da sua diminuição, caminha junto com a
necessidade de pluralização das atividades econômicas e com a restrição ao espólio, o
que espelha o processo de reelaboração dos projetos familiares. Como já afirmado
anteriormente, a situação fundiária geral dos sitiantes do Pirizal, e de grande parte dos
moradores do entorno do estuário, é de posseiros que combinam arranjos coletivos e
privados, e coexiste com outras formas de apropriação e uso da terra, formando assim um
mosaico de regimes que vai se reajustando.
Os conflitos fundiários nas áreas rurais no interior da APA foram problematizados
como tema público apenas recentemente no CG, impulsionado principalmente pela
atitude do grupo extensionista da UFPR Litoral de denunciar a abordagem violenta e
ilícita da antiga Florestal Iguaçu na sua instalação nos arredores. A iniciativa contribuiu
com o processo, ainda lento, de aproximação entre a gestão da UC e os moradores das
áreas rurais, de que eu pude acompanhar alguns momentos importantes.
Na penúltima reunião de 2010 e primeira de que eu participei, dois professores
antigos da UFPR Litoral que pesquisam há anos a região e lideram grupos de pesquisa ali
atuantes haviam sido convidados para contribuir com a discussão sobre a criação do
Parque da Guarnicana. Os professores chamaram a atenção para as dificuldades de
inserção e de participação das populações rurais e foi consenso que era necessário
levantar mais informações (acadêmicas e, portanto, indiretas) sobre a área de uso da
população agroextrativista do interior e entorno, para definir os contornos do novo
parque. Mais tarde, no momento em que estavam sendo discutidos os encaminhamentos e
projetos da Câmara Técnica (CT) de Agricultura com os empresários familiares da
161
associação de bananicultores, os gestores da APA lembraram que a “comunidade” (se
referindo aos pequenos produtores do estuário) não se interessa e não procura participar
dessa CT, apesar de reuniões e convites diretos terem sido feitos lá mesmo nas sedes das
comunidades e mesmo depois que o almoço durante as reuniões, bem como a gasolina
para o deslocamento de barco, passou a ser oferecido e garantido gratuitamente para os
conselheiros de “comunidade”. Contra argumentando, os professores buscaram
evidenciar a necessidade de haver uma comunicação mais eficaz entre a gestão e as
comunidades e de se incentivar a partir o conselho a participação das comunidades, por
meio do fortalecimento da organização comunitária e do associativismo, e justificaram
que nas comunidades opera uma outra dinâmica de organização social, pessoalizada e
familiar, e portanto estranha aos procedimentos do CG. Em seguida, uma representante
dos bananicultores completou a fala dos professores argumentando que as comunidades
“têm medo de se envolver”, desde que a APA foi apresentada “de forma errada”, como
ela descreveu, para os moradores. O que a conselheira, agricultora da associação, se
referiu como “forma errada” se tratava da ação fiscalizadora da Polícia Ambiental
iniciada, segundo ela, uma década atrás, um braço importante da política de conservação
e aquele que a maior parte da população rural não escolarizada, mais “isolada” e
politicamente vulnerável, conheceu primeiro.
Oficialmente, o representante comunitário a quem se reservava a cadeira de
comunidades na cota da sociedade civil já com pouca assiduidade acabou desistindo da
posição no conselho, em parte por conta da concorrência do evento com suas atividades
produtivas, mas também por não ter encontrado interlocução e não acreditar na
possibilidade de resolver suas demandas familiares e coletivas, ou seja, por ter perdido o
interesse. Nesse dia, a ausência dos “representantes das comunidades” (como são
chamadas as lideranças das vilas rurais, no conselho) e o posicionamento dos professores
falando em nome do conjunto deles foram o primeiro indício de que a participação
popular nas decisões referentes à gestão dessa UC, criada em 1992, é incipiente e frágil,
em processo lento de construção.
Como já comentado no início, na última reunião de 2010, em dezembro, a pauta
incluía o “conflito fundiário nas comunidades do interior da APA”, e a liderança local dos
sítios foi levado à reunião com seu irmão e uma vizinha, por uma professora
162
extensionista da UFPR Litoral que solicitou esta pauta junto à gestão da UC. A professora
afirmou que eles querem se manter como lavradores, que somente “estão cipozeiros” no
extrativismo vegetal, pois perderam acesso à terra devido ao cerco de pinus feito dentro
da APA. Sua exposição em nome das famílias expropriadas dirigida ao conselho e
convidados sublinhou o histórico de invisibilidade das comunidades rurais de posseiros,
sem nenhuma documentação da terra, o lado mais vulnerável da disputa fundiária.
A liderança fez um testemunho emocionado sobre o conflito e contou que hoje “a
comunidade mora em cima da terra do doutor”, referindo-se a João Gava, atual dono das
terras compradas da reflorestadora (antigamente pertencentes a Iguaçu/Faber Castel), que
não quer que as famílias remanescentes fiquem lá. Por causa da ausência de título de
propriedade, na condição de posseiros com baixa escolaridade, eles não têm pra onde ir
para poder viver e trabalhar, já que eles dependem da terra. Recordando de como era o
Sítio antes, quando “o trabalho era no braço e na enxada”, ele conta que era vendedor de
farinha de mandioca, mas hoje não tem onde plantar, a ponto de ser necessário comprar
alimentos no mercado; a dificuldade está em que justamente “só compra quem tem
dinheiro”.
A professora extensionista levou a público, por um ofício enviado de antemão ao
conselho por e-mail, o fato de que as famílias descobriram que a Comfloresta tinha
iniciado processos de pedido de usucapião há mais de dez anos no Fórum do município.
O motivo que causou a reação da professora foi que a documentação apresentada pela
empresa não é compatível com a área ambicionada por ela judicialmente, é conflituosa,
uma vez que ameaça a ocupação tradicional dos sitiantes que vivem ali há gerações. No
caso das áreas sob processo de usucapião, o protocolo jurídico diz que os sitiantes devem
ser consultados; isso se dá por meio de publicação oficial, para que os interessados se
manifestem, o que só acontece se tiverem acesso a jornais ou editais. Definitivamente
este não é o caso dos sitiantes expropriados ou que ainda têm posses dentro dos domínios
da empresa, em grande parte iletrados e apartados do universo dos direitos sociais.
Diante do que foi denunciado, o técnico do ITCG esclareceu nessa mesma reunião
que tanto as terras documentadas quanto as terras de posseiros “adquiridas” pela
Comfloresta têm origem de sesmarias, hoje a maioria, terras devolutas, e que a matrícula
da firma foi registrada em áreas três vezes maior: compraram mil alqueires, mas
163
mandaram medir resultando em um cálculo de três mil alqueires, o que torna a origem
dos documentos da Comfloresta e da Iguaçu irregular, segundo ele. O técnico reconheceu
assim que em decorrência de a empresa ter anunciado domínios maiores do que as áreas
de fato compradas, a regularização se complica, e apontou a necessidade de se solicitar
uma ação judicial para anular as matrículas com excesso de área, ressaltando a
importância de continuar o processo de regularização. No entanto, ele comentou a
dificuldade do papel do ITCG nessa questão fundiária, atrelado à mudança de governo, e
sugeriu que os moradores se organizassem e pedissem para a empresa abrir mão da terra.
Ele salientou também a dificuldade técnica de se obter um diagnóstico preciso da
situação fundiária na região, devido à defasagem dos dados disponíveis que permitiriam
identificar a quem pertence uma área e devido à falta de recursos econômicos e humanos
para se completar o processo no Litoral, afinal ele é o único técnico disponível para todas
as demandas regionais.
A liderança comunitária tomou novamente a palavra e afirmou que no final da
década de 70, além da presença ostensiva de jagunços, os advogados da madeireira
enganavam os moradores, iletrados e “seduzidos” por uma quantia, ínfima, paga à vista, e
pediam para eles assinarem papéis, mentindo sobre o conteúdo, de modo que hoje o
usucapião esbarra nas assinaturas de contrato. Após essa reunião, sua comunidade
assumiu a cadeira para a representação comunitária entre os conselheiros paritários da
sociedade civil, com forte apoio do grupo de extensão. Nas reuniões seguintes, a cadeira
das comunidades do estuário foi ocupada por Madalena, sua vizinha, e ele foi definido
como seu suplente. A participação dos novos conselheiros nas reuniões seguintes foi
flutuante. De fato, a composição de “cadeiras” e da paridade no conselho estava em
constante reformulação e frequentemente ocupava a pauta das reuniões e discussões, pois
muitos grupos faltavam e outros desistiam, como o primeiro representante comunitário, e
novos setores demandam novas “cadeiras” de representação de setores específicos.
Nessa ocasião, a proposta que surgiu para o ano seguinte seria de que os
conselheiros e o técnico do ITCG assinassem um documento com pedido de urgência
para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para iniciar o
processo de regularização fundiária e, além disso, uma comissão para a regularização
fundiária das comunidades do interior da baía foi criada para acompanhar o processo de
164
regularização fundiária, aprovada pelo conselho e constituída, entre outros, pela
pesquisadora que frequenta o Pirizal (conselheira da APA por uma ONG
conservacionista), pela professora extensionista e pelo representante do ITCG.
A primeira reunião de 2011 aconteceu em abril e os interlocutores dos sitiantes, a
pesquisadora e a liderança comunitária, não puderam comparecer, mas a professora
extensionista acompanhou a reunião. O grande tema do dia foi a onda de chuvas fortes e
os estragos, deslizamentos e desastres decorrentes, na área rural da APA. Outro tema
discutido foi a aplicação do ICMS ecológico, com predominância na área urbana, quando
a gestora pediu que fossem apresentados projetos para a aplicação também na área rural.
O momento em que a reunião fugiu da linguagem protocolar e mais procedimental e
burocrática voltada à gestão que caracteriza o conselho foi com uma narrativa informal e
emocionada de um agricultor membro da associação dos bananicultores, bem parecido
com a ocasião em que a professora extensionista solicitou espaço para o testemunho da
liderança. Tratava-se de um episódio de truculência da polícia ambiental em sua
propriedade, que mostrou que mesmo os produtores mais capitalizados e organizados,
que acompanham a APA desde sua criação, estão sujeitos à forte fiscalização ambiental
em busca de fábricas clandestinas de palmito. Ele não participa do conselho, mas decidiu
levar a denúncia aos conselheiros, pois sua família se sentiu ultrajada com a abordagem
agressiva e inadequada do oficial, uma vez que a família não estava violando nenhuma
lei, reivindicando assim a diferença entre “bandido” (se referindo aos palmiteiros) e
“trabalhador”. A professora extensionista se pronunciou em seguida, reforçando que a
abordagem violenta da política ambiental é histórica e gera mais medo do que segurança
nas famílias rurais. A memória dos conflitos agrários e da violência na fiscalização no
interior da APA estava começando a ser reconstituída no âmbito das reuniões, com relatos
fragmentados, mas incisivos no tom de denúncia, embora sem desdobramentos efetivos
até então.
Na reunião seguinte, em julho de 2011, duas ONGs bastante atuantes no litoral e
parceiras do CG estavam presentes, a Mater Natura e o GIA, propondo capacitação dos
conselheiros para a gestão. Nessa reunião também foi comentado o que havia sido
discutido sobre a criação do Parque da Guarnicana, como uma ocasião importante para
dar um passo em direção da regulamentação do manejo dos PFNM, mas até onde eu pude
165
acompanhar nenhum encaminhamento foi tomado sobre isso no conselho.
A oficina de capacitação dos conselheiros foi realizada na reunião de agosto, mas
eu não estive presente. Conforme as discussões posteriores e as atas, a comissão criada
em dezembro de 2010, a princípio para acompanhar o processo de regularização
fundiária, na oficina de capacitação dos conselheiros em agosto de 2011, decidiu-se em
plenária que deveria ser também uma câmara técnica permanente que teria o nome de
Câmara Técnica de Auxílio à Regularização Fundiária nas Comunidades do Interior da
Baía de Guaratuba. Foi proposto então que o representante do ITCG fosse convidado para
coordená-la, em conjunto com a professora extensionista e o técnico da Emater que
trabalha junto às comunidades, entre outros conselheiros. As CT costumam se reunir fora
do conselho e depois apresentam os resultados ou explicações sobre o andamento para o
conselho. Essa CT foi aberta, mas o processo pouco progrediu tampouco apresentou
resultados nas reuniões sucessivas a que eu assisti até o final de 2011. Mas em que
medida esse processo se relaciona com a dinâmica social do Sítio?
No Pirizal, os sitiantes entrevistados que falaram do tema demonstraram não saber
o que se passava nas reuniões sucessivas do Conselho. O que se ouviu deles sobre a
possibilidade de documentação oficial e regularização fundiária das posses foi que,
depois do conflito judicial entre a filha de Fausto e Joana e os Vasconcelos, o desfecho
judicialmente desfavorável assustou a Judite do Marcelo a ponto de ela chamar um
advogado particular. Fausto disse que essa atitude da família seria perda de dinheiro,
visto que “um advogado do governo” logo iria “legalizar” a situação de posse de todo o
Sítio, em conjunto. Os entrevistados disseram que o técnico responsável pela
regularização, designado de forma genérica como um técnico ora do IBAMA, ora do IAP,
ora do ITCG, tinha sido chamado pela pesquisadora, e de fato o técnico acabou indo até o
Sítio, quando realizou uma reunião explicando no que estava trabalhando, conversou com
os sitiantes e lhes apresentou mapas oficiais e documentos públicos.
Como explicou Seu Floriano, a situação do Pirizal é “inferior” em relação à
condição dos colonos, e ao mesmo tempo se diferencia dos outros Sítios do estuário
descritos por ele como “pequeninhos” e “muito pobres”, afinal no Pirizal há algumas
casas “ajeitadinhas de alvenaria” e há alguns funcionários públicos, e por isso “o governo
não dá [apoio]”.
166
Segundo a conversa com Seu Chico, Seu Gilberto e seu genro Fausto, o técnico
lhes havia explicado que a demarcação das áreas deverá acontecer em duas etapas: de
início, serão demarcadas as áreas das chácaras ou os quintais onde ficam suas casas, e,
depois, farão a demarcação da área comum onde se planta a roça, os terrenos. Só que o
Pirizal não seria uma prioridade em relação aos outros Sítios, por não ser “pobrezinho”, o
que adormeceria o processo para suas famílias e lhes daria tempo para pensar
coletivamente em como iam decidir fazer a demarcação, havendo duas opções.
Primeiramente, a parte das chácaras seria documentada conforme se encontra
delimitada pelo uso e ocupação das famílias nos dias atuais, o que os tiraria da condição
de posseiros. Judite do Marcelo da ponta é a exceção que decidiu procurar um advogado
particular e um agrimensor para a documentação da área de uso da sua família, que já
está em andamento. Seu receio é que o resultado da sua iniciativa de legalizar sua
chácara e o terreno com roças fosse subordinado à decisão coletiva, conforme os
rumores que tinha escutado.
A segunda parte, que gerou maior polêmica, se refere à regularização do terreno
(áreas de uso comum reservado para a roça), reduzido segundo eles a menos de trinta
hectares a serem fracionados entre mais de vinte famílias que cultivam a mandioca e
produzem farinha para venda. O impasse sobre as vantagens e desvantagens de cada tipo
de legalização, no caso da individualização ou no caso da manutenção do uso comum,
dividiu as opiniões dentro do Sítio.
Uma primeira opção seria legalizar coletivamente, levando em conta o histórico
familiar de uso comum do espaço da roça, em que cada bola é escolhida e utilizada de
forma rotativa, de acordo com as oportunidades da capoura crescida e disponibilizada,
circuito que continuaria. Desta forma, a rotação do acesso condicionada pela
disponibilidade da capoura se manteria, mas filhos e netos estariam impossibilitados de
herdarem aquelas áreas pelo fato de que a área coletiva pertenceria a uma associação que
precisaria ser montada para tal. A reunião com a equipe de extensão da farinheira já havia
dado indícios de que eles não estavam propensos a criar uma associação.
Outra possibilidade seria dividir o terreno equitativamente pelo número das
famílias que possuem roças ativas, o que, espacialmente, seguiria a direção da chácara de
cada morador. Entretanto, com essa opção, a legalização alteraria o atual sistema
167
apropriação da área de roça vigente na vizinhança, que é rotativo, coletivo e assimétrico.
Para as famílias que ficassem alinhadas com áreas sobre-exploradas ou onde o banhado
predomina esse tipo de distribuição pareceu desfavorável.
A maioria das roças do núcleo de Seu Chico está em terrenos particulares fora do
Sítio, mas como sua família tem uma ou outra bola ali (enquanto outras famílias possuem
três ou quatro) ele se posiciona a favor da individualização do terreno, pois entraria na
distribuição equitativa. Suas filhas que moram na cidade, de acordo com o acordo
tradicional, pelo fato de terem se casado com pessoas de fora, não participarem da vida
comunitária e não trabalharem a terra, em tese não teriam o direito à herança de uma
parcela na área de uso comum. A única filha de Seu Chico que permaneceu no Pirizal,
Conceição, casou-se com Nilton, nativo descendente dos Fagundes. Conceição é
funcionária pública, mas não deixa de manter práticas produtivas diversificadas, inclusive
a roça. Sua preocupação foi no sentido de poder garantir uma herança para as filhas que
estão na cidade. Para ele, “cada qual com o seu parece bem”, mesmo reconhecendo que o
trabalho acontece de forma coletiva sobre a terra.
O dilema que Seu Chico apresentou foi que quando ele morrer, seus filhos que
moram em Guaratuba não vão ter direito: “E pra nós fica ruim. Porque, como diz o
ditado, nós morrendo os outros vão ser donos e meu filho que tá pra fora e quiser voltar
pra cá, eu não sei onde ele vai viver. [...] E os filhos sempre têm aquela parte”. Assim, a
questão de se cair com uma bola ruim ou uma bola com a terra mais produtiva não era
importante.
Argumentando que a escassez de terra forçou a sobre exploração de todo o
terreno, Seu Chico sustenta que não faria diferença para o acesso das capouras se
permanecer o sistema rotativo ou o sistema privado. Seu Chico vislumbra a possibilidade
de garantir o sistema de herança, para as filhas que estão na cidade, por meio da alteração
da instituição tradicional, já que no caso de sua família as regras antigas lhes são
desfavoráveis. Falando desde a perspectiva familiar, ele vê a individualização das terras
como uma proteção para quem vive na condição de posseiro e para o nativo que vive na
cidade que pode decidir voltar, relembrando o episódio da “briga”, em que a vizinhança
perdeu terreno para a Comfloresta e das disputas judiciais com pessoas de fora:
168
SEU CHICO: Pra nós vai ser bom, porque pelo menos ninguém vai
entrar no nosso lugar e dizer como estavam fazendo. Porque aqui hoje
tem pouco morador que mora aqui mesmo, e muitos moradores que
moravam aqui, foram tudo embora. E hoje, depois que o lugar cresceu,
vamos dizer, veio luz, tem estrada, cada casa tem sua televisão,
melhorou nessa parte então eles querem voltar. E não tem mais o
terreno, e é onde entrou a briga [...]. E estavam indo e pegando mesmo!
Pegaram um Sítio ali e essa parte pra cá.
Em seguida, perguntei-lhe se os moradores já haviam realizado a reunião entre si,
a que ele respondeu “E então o povo decidiu que cada qual. [fica com uma parcela
individual]. Foi por causa dessa parte de família”. Seu argumento aponta que se ele e sua
esposa falecerem, suas filhas e netos da cidade, como a maioria do Sítio também tem
filhos lá, não terão direito, ainda mais que não se conhece o futuro incerto de roubo,
mortes, falta de emprego para todos na cidade onde “às vezes eles não têm nem onde
sobreviver”. Assinala ainda que “Aqui passa de pai pra filho, de filho pra neto” onde se
vive do que os antigos deixaram, e questiona como ficaria a situação daqueles que estão
levando a vida na cidade. Assim, Seu Chico avalia positivamente a possibilidade de
regularizar a posse dos terrenos (hoje a posse é coletiva e o uso, rotativo e familiar)
tornando-os propriedade privada individual65 que possa ser introduzida no sistema de
herança que já incide sobre a área individualizada das chácaras (posse individual). Sua
fala mostra que ele está bastante atento à valorização dos imóveis e à especulação
imobiliária e também à dificuldade de inserção das filhas mulheres no sistema de
transmissão de terras.
De outro lado, tendo em mente o monopólio de terreno que vem sendo exercido
pela família de Seu Marco, Seu Gilberto discorda a modalidade privatista, a qual segundo
ele mudaria o que tem sido realizado costumeiramente:
SEU GILBERTO: Agora ninguém é dono, um planta aqui, o outro já
planta ali. Eles querem repartir porque eles querem primeiro ver posse a
posse. Primeiro vem a posse, primeiro eles tiram e depois vão medir a
área que tem fora, pra cada qual ficar com seu pedacinho pra plantar. Às
vezes eles moram aqui e vão plantar lá. E vai mexer lá perto do que o
outro tem. Assim não dá confusão também.
Diferente de seu primo Chico, o que Seu Gilberto nota é que nem sempre é
65
De maneira semelhante, de acordo com que já foi mostrado acima, Seu Cacá se mostrou incomodado
com o avanço das propriedades adquiridas por "estranhos", principalmente naqueles terrenos vizinhos
aos terrenos das famílias nativas.
169
possível se plantar perto de sua própria chácara, pois o sistema de ocupação é móvel. A
distribuição de bolas favoráveis ou desfavoráveis depende da rotatividade, que por sua
vez se subordina ao ciclo longo da mandioca conjugado com a temporada de guajús. Se
um tipo de terreno for afixado para uma família, esta corre o risco de permanecer com
uma bola desfavorável para a roça. Aparece nessa parte uma preocupação com um
conflito identificado também na entrevista com sua filha, Joana do Fausto, em que não
parentes reivindicam posses a que não têm direito. Em tom de crítica, ela explicou que a
apropriação das bolas pelos sitiantes da vizinhança nem sempre “dá a sorte de cair” em
uma boa capoura ao passo que o núcleo de Seu Marco tem monopolizado e fixado as
bolas melhores, no terreno que está dentro do sistema comum, desviando da área de
banhado, mantendo as capouras ao redor dos olhos d’água sob seu domínio e avançando
sobre as capouras a que as outras famílias também têm direito (Fig. 2.1).
Seu Gilberto entendeu que com um traçado arbitrário de individualização das
roças, a distribuição vai criar mais conflitos, pois reordenará as terras com critérios que
favorecerão alguns e desfavorecerão outros, mudando a ordem atual da gestão das roças.
Dona Inês tem uma posição bem clara, parecida com a de Seu Gilberto. Como
viúva, com filho pescador, trabalha na roça com sua cunhada, com quem cuida de quatro
bolas simultâneas, com roças em estágios diferentes, plantadas geralmente onde “sobrar”.
Sua casa fica na vizinhança, ao lado do banhado, de modo que fixar uma roça perto de
sua casa a deixaria com um terreno em condições ruins para o plantio. Dona Rita se
preocupa com os possíveis critérios de divisão de terra, na futura regularização fundiária:
DONA INÊS: O técnico veio pra fazer uma reunião pra documentar as
nossas propriedades. Aí eu disse pra ele “as nossas propriedades não”.
Nós queremos documentar o terreno, porque a propriedade nossa
ninguém vai vir de lá e invadir a nossa propriedade! Olha, pra falar a
verdade isso [regularização fundiária] não influencia em nada pra mim.
DONA RITA: Eu acho que não vai sair, porque o técnico andou um
tempo com isso aí. Sabe por quê? Porque onde eles plantam é mais pra
lá, e daí tem um mapinha lá, tem uma turma que planta tudo junto
[famílias da ponta], um planta aqui e outro planta aqui [famílias da
vizinhança]. E eu acho que é pouca terra pra fazer isso, porque no caso
cada morador vai querer um pedaço, mas quem vai dividir a terra? No
caso, o documento disso aí, porque por lá é tudo plantado, tudo é roça,
quase que não tem terra. É pouca terra, então todo mundo já fez a roça.
Se pegar um pedaço meu, se o documento cair um pedacinho pra mim e
corta e fala “tó, isso aqui é seu”, tem a roça do outro e eu não posso
170
plantar! Até dois, três anos eu vou trabalhar no quê?
Dona Rita chama atenção para o fato de que não há terras propícias para o plantio
da mandioca para todas as famílias produtoras, o que eles de certa forma tentam
compensar no sistema de rodízio atual, no qual a escassez de capouras e a extensão do
banhado são distribuídas de acordo com regras decididas pelos núcleos familiares, que
mesmo assim geram desentendimentos. A privatização de um terreno, para uso afixado,
sobreporia as roças que cujas raízes ainda não foram cortadas. Assim, o novo proprietário
não poderia utilizar logo seu terreno, pois teria que esperar o ciclo da mandioca, plantada
por outra família. Seu Cacá parece compartilhar a mesma preocupação com os critérios
de divisão dos terrenos, que “são de todo mundo”.
Logo em seguida Seu Cacá explicou que concordava com proposta de cada um ter
o que é seu, pois o controle é maior, porém, avaliou depois que alguns ficarão com uma
área de banhado sobre a qual não é possível plantar mandioca, sem poder fazer
alternância. Nesse sentido, concorda com seu cumpadre e cunhado Marco, que não
concorda com a privatização, pois ele prefere deixar como está. A divisão proporcional
das roças definida na direção das respectivas casas não lhe parece uma boa ideia, pois
para as famílias da ponta restariam áreas alagadas que são impróprias para o plantio da
mandioca. Nesse sentido, são a favor da mesma opinião de Seu Marco Rezende de se
manter como está, de forma que podem escolher tais áreas que avançam para a
vizinhança. Quando lhe perguntei se eles já haviam sentado juntos para cnversar sobre
isso, seu Cacá disse que chegaram ao fim da reunião com as famílias da vizinhança, mais
propensas à individualização.
O processo recente de desterritorialização do Sítio, sobretudo como produto do
conflito fundiário com a empresa privada de reflorestamento, significou a intensificação
da pressão para a privatização das áreas, reforçada pela família de Seu Marco
especializada na pesca turística e também como opção oficial oferecida às famílias pelo
próprio estado no processo de regularização fundiária recentemente iniciado.
A iminência da formalização do processo de regularização fundiária coloca em
evidência as particularidades da institucionalidade local acerca das formas de uso e
apropriação da terra, que combina regime privado e coletivo e vem sendo repensada pelos
próprios sitiantes. As famílias se reuniram, discutiram entre si e pareceu um consenso que
171
a legalização das chácaras não é o maior dilema, uma vez que seus limites já estavam
claros e consensuados para todos.
As entrevistas indicaram que o dilema envolve a distribuição dos terrenos,
escassos, e em condições produtivas heterogêneas, o que dificulta o critério de divisão
entre todos. A propensão em aceitar a regularização dos terrenos da roça em novos
moldes, legalizado como propriedade privada, aparece como o lado para onde a balança
pesa, a despeito de alguns terem demonstrado o receio de acabar ficando com uma porção
de terra ruim produtivamente; além de terem observado que será difícil a transição para a
privatização, uma vez que o novo dono do terreno onde houver a roça de outra pessoa
terá que esperar terminar o ciclo da mandioca, para começar a plantar a sua própria. E,
assim, a distribuição das roças demorará para se reorganizar.
No entanto, apesar das ressalvas, mostraram-se mais propensos a decidirem pela
privatização das bolas, conforme defendeu Seu Chico, que possui uma posição de poder e
influência na vizinhança, além de apresentar um argumento forte relacionado à crise do
sistema de transmissão de terras que afeta quase todas as famílias, levado a cabo pela
desterritorialização. O título individual se colocou como uma possibilidade como
preservação dos direitos de roçado e de herança. Em mais esse momento de tomada de
decisão importante para o Sítio como um todo, que apareceu nas entrevistas além da
“briga”, a opinião de seu Chico aparece como representativa das vontades da vizinhança.
De outro lado, existe um ponto delicado vinculado à opção de manter o uso
comum, no contexto da regularização fundiária, a dificuldade de criar uma associação.
Nas discussões sobre a farinheira comunitária, os sitiantes já haviam sinalizado a
dificuldade de criar e manter uma nova associação para decisões coletivas e
consensuadas, que também é um pré requisito para que a regularização dos terrenos
ocorra conforme o regime coletivo atual, de ocupação rotativa. Essa questão torna ainda
mais propensa a decisão coletiva pela privatização dos terrenos.
O processo está apenas no começo e chega em um contexto de reconhecimento
dos riscos de as roças sucumbirem à pressão do mercado de terras e também dos filhos
que já não moram mais na comunidade ficarem sem herança. A tendência à privatização
das áreas de uso comum responde à prioridade da manutenção do território da família,
mas esbarra no problema de que o “bolo a ser dividido” está no território até então
172
reconhecido como coletivo. E não há uma perspectiva unificada de fato, pois cada família
se insere de forma particular numa teia de relações de interdependência e cooperação no
interior do Sítio e portanto se coloca em posições específicas no processo de decisão que
fatalmente reorganiza relações. O que ocorreu foi a conversa, a discussão entre parentes,
em que Seu Chico apresentou argumentos convincentes e definitivos que acionaram o
cenário de dificuldades e os valores tradicionais relacionados à importância central da
família e da terra como herança para os filhos, para a futura decisão coletiva quando o
técnico do ITCG retomar o processo.
Depois das polêmicas e especulações geradas, o advogado ainda não voltou à
comunidade, até meu último dia em campo. Ele ficou de retornar para dar continuidade
ao processo de regularização baseado nas decisões coletivas, depois das discussões que
propôs que os moradores realizassem entre si.
A pergunta acerca do que é melhor para a família vai coincidir com o que se
define como bom para o Sítio até o limite em que a lógica coletiva não prejudique a
lógica familiar. A lógica patrimonial e familiar se atualiza como o valor primordial que
baliza as decisões em âmbito coletivo.
Cada posicionamento diante da controvérsia nos mostra que o regime coletivo de
apropriação da terra não é importante por si mesmo, ao contrário, está imerso nas
relações de conflito e cooperação entre as famílias. Esse dilema, ainda sem um desfecho
decisivo, permite entender que os terrenos são importantes não somente pelo retorno
financeiro que garantem com a venda da farinha de mandioca, que como os próprios
sitiantes assinalaram, é muito pouco perto do árduo trabalho dedicado. Para além da
complementação de renda, os terrenos fazem parte de um mundo complexo de
significados, que envolve interdependência e hierarquia expressas em uma variedade
formas de organizar as atividades produtivas, organização social que busca atender os
interesses da família. Assim, qualquer uma das opções propostas pelo órgão fundiério
exigirá a adequação e a conformidade do sistema atualmente em uso para o sistema
oficial, uma vez que não reconhecem o arranjo territorial híbrido do Pirizal (LITTLE,
2002; ALMEIDA, 2009).
173
3.15 O novo convite: o conflito mudou de nome?
O conselho seguia com as pautas dos representantes presentes, frequentemente
discutindo temas bem localizados em defesa de interesse de grupos específicos mais
assíduos ou com discussões atreladas à viabilização da gestão interna do próprio
conselho.
Na reunião de outubro, foi discutida a redistribuição e criação de cadeiras para os
conselheiros. Se em 2005 havia sido indicada a participação de um morador como
representante das comunidades da baía, este apareceu em 2007 e desistiu em 2009,
devido a dificuldades práticas de transporte, de linguagem e procedimentos durante as
reuniões e ao convite impessoais por meio de ofícios e recados. Com efeito, a maneira
como é conduzida a reunião, baseada em meios escritos e documentais, não favorece
pessoas com baixa escolaridade, sendo que a sociabilidade dos Sítios funciona por meio
de outras formas menos burocratizadas (FERREIRA, 2010).
A liderança que havia participado de reuniões ao longo dos últimos meses
substituiu o antigo representante, mas estava ausente na reunião de outubro. Sua falta foi
justificada por extensionistas presentes que acompanham seu Sítio, dizendo que estava
doente. Sua ausência foi encarada como desinteresse na participação por um conselheiro
defendendo que não deveria ser criada uma cadeira nova para os Sítios onde viviam a
liderança local, no caso, uma cadeira não governamental que implicaria na criação de
uma governamental. A presidente do conselho e gestora da APA argumentou que a
justificativa de conselheiros faltantes deve ser feita por escrito e com antecedência, senão
os Sítios perdem a vaga. Outro estudante extensionista explicou que eles estão com
dificuldade de transporte e que a comunicação por telefone é complicada, pois é
necessário ligar e mandar recado, situação difícil por lá; para o que a presidente do
conselho reforçou que já são dadas as condições de participação, como café da manhã e
almoço, além de o ofício com a divulgação da reunião sair uma semana antes. Em
seguida, outra funcionária do IAP no Litoral sugeriu que no início do ano seguinte seria o
momento para rever às cadeiras e então chamar novos representantes. A pesquisadora que
frequenta o Sítio, conselheira na cadeira de ONGs, concluiu então que o que faltava era
oficializar o convite a um representante do Sítio.
174
Nesse dia também foi discutido a proposição da Comfloresta para alteração dos
limites das zonas no plano de manejo, em processo de avaliação no interior da CT
Florestal. A equipe montada estava tratando de uma vistoria conjunta e da análise de
pareceres de professores, dizendo que o impacto do pinus é pouco intenso, pois a
plantação existe há mais de três décadas. A equipe da CT ratificou a importância
econômica do pinus para a região e achou coerente a proposta da empresa, defendendo
que deve ser implantada a alteração de indicação de uso, e inserir o termo
“reflorestamento” no documento. Foi quando uma funcionária do IAP de Curitiba
levantou o debate sobre a diferença entre espécies exóticas e nativas e entre uma floresta
que implica diversidade e uma monocultura florestal. O representante do município de
Tijucas do Sul, que ora se apresenta como professor da UFPR ora fala diretamente em
favor dos interesses da empresa, pediu que a votação ocorresse naquele mesmo dia,
enquanto aquela representante do IAP ponderou que o pedido de revisão de limites da
zona precisaria antes ser encaminhado para o IAP para avaliar o licenciamento, mesmo
porque a votação não estava prevista na pauta do dia.
Uma representante dos bananicultores se manifestou sobre o assunto dizendo que
nem todos que atuam e moram na APA foram consultados no passado e quando ela
descobriu que morava dentro de uma APA, não sabia o que podia e o que não podia. Para
ela, é assim também com a briga da Comfloresta, pois “acima deles estão o ICMBio e
IBAMA”. A funcionária do IAP no Litoral integrante da CT se posicionou e lembrou eu
esse tema já havia sido discutido em campo e em outras reuniões, sobre o fato de que se
trata de uma unidade de conservação de uso sustentável [e não restritiva] e que a
bananicultura já existia, bem como outras atividades já existiam e que o zoneamento foi
feito por dez consultores que lhe deixaram “muito ambiental”. Acrescentou que hoje
existem definições diferentes, dentro da botânica, da faunística, da ecologia, mas que a
função da APA é dar ordenamento territorial. Relata que eles tiveram “um grande ganho
com essa CT e a base do conselho existir é de ser uma APA”. Assinala que
[...] nós estamos sendo referência, a noticia é boa e o que a gente está
fazendo é um exercício para todas as demais zonas de uso. Então na
visão unilateral daquela época [“muito ambiental”], talvez outra visão
fique de lado. Eu sempre gostei de trabalhar com o uso sustentável por
causa disso. É melhor do que pegar um parque.
175
A Comfloresta tem participado assídua e ativamente das reuniões do conselho,
espaço discursivo fundamental pelo qual seus advogados eloquentes, engenheiros com
um arsenal de dados técnicos e apoiadores como professores da engenharia florestal da
UFPR, em conjunto, têm pressionado as decisões dos conselheiros. Como vimos na
dinâmica discursiva transcrita resumidamente acima, são também apoiados pela
funcionária do IAP membro da CT Florestal, com formação acadêmica na área, que
defende o uso sustentável e está otimista em relação ao exercício positivo dessa CT.
Nessa importante fase política de vontade coletiva de construir o novo plano de manejo, a
empresa tem buscado meios formais para consolidar e legitimar sua presença na região.
Para lograr suas alterações no zoneamento, no próximo plano de manejo, no entanto, a
empresa depende da legalização de sua ocupação por meio da regularização fundiária
nessa zona da APA, que como vimos se desenvolve lentamente.
Na última reunião de 2011, o parecer da CT Florestal foi para votação, cujo
resultado foi em favor do pedido da Comfloresta de alteração de zonas de conservação no
plano de manejo. A alteração vai ter implicações positivas aos negócios no futuro
próximo. Porém, nesse processo da votação, um aspecto chamou atenção ao longo da
reunião. O conselheiro que representa os Sítios de Guaratuba, idoso, pescador
aposentado, analfabeto, votou em favor da proposta, mas “cochichando” com quem
estava em sua mesa e por gestos admitiu que não entendeu o conteúdo daquilo para o que
havia sido consultado e tinha votado a favor junto com a maioria. A gerente da APA,
quando percebeu que a liderança não estava acompanhando as discussões técnicas, lhe
entregou o documento transmitido antes por e-mail aos conselheiros, com uma longa
explicação repleta de termos técnicos, esperando que finalmente o pescador entendesse.
No final da votação e no fechamento da reunião os gestores e os representantes da
empresa comemoraram a quase unanimidade e ainda comentaram que o consenso é uma
conquista do conselho, que deve servir de modelo para todo o Paraná.
Aqui não é difícil entender de que maneira e a qual tipo de segmento social um
processo participativo e deliberativo pode, viciosamente, acabar beneficiando. Essa breve
passagem pode dar uma ideia de como a pressão dos grupos organizados para terem suas
agendas reafirmadas e referendadas no conselho é grande, ao passo que a articulação
política de apoios torna alguns deles efetivamente representados, em detrimento da
176
participação tímida, mal articulada ou mesmo da ausência de outros segmentos sociais de
que são exemplos as populações rurais.
Logo após essa reunião do CG, no interim entre a última reunião do ano de 2011 e
a primeira do ano seguinte, ocorreu minha última visita de campo no Sítio Pirizal, ainda
em dezembro, quando eu e minha colega de doutorado acompanhamos a pesquisadora
bióloga, que é também conselheira. Esta liderou uma reunião na farinheira comunitária
para eleição de um representante dos interesses dos sitiantes para assumir uma cadeira no
CG. Até então os sitiantes não demonstravam interesse em participar devido aos custos
sociais, como perda do dia de trabalho, custos de locomoção, falta de credibilidade no
conselho como instância participativa capaz de resolver seus conflitos e promover
benefícios a eles, receio frente a um ambiente culturalmente diferente. Os argumentos
levantados indicavam que eles não se viam como moradores de uma UC, mas como
parentes que trabalhavam em atividades tradicionais. Depois de debates insistentes e
resistências individuais, foi escolhida entre os presentes a Judite do Marcelo, inicialmente
a seu contragosto, mas depois com sua curiosidade pelo que viria pela frente.
Apenas recentemente ocorreram iniciativas concretas, mas ainda incipientes, de
mobilização para a participação dos moradores no Conselho Gestor, principalmente
impulsionada pela pesquisadora bióloga, quem mostrou se preocupar com a situação
fundiária e a ausência da comunidade no CG. Em algumas situações a pesquisadora se
apresentava nas reuniões como interlocutora das famílias, afirmando que quando ela
voltasse a campo poderia levar as informações para as famílias.
Na primeira reunião do ano de 2012, em abril, a pesquisadora fez a apresentação
dos participantes da região do Pirizal, e apresentou a intenção de Judite de assumir a
cadeira do Pirizal para participação junto ao conselho gestor da APA. Explicou que houve
uma reunião no Sítio para a eleição e escolha de um representante, acrescentando uma
explicação da composição do Conselho Gestor do número de cadeiras entre a sociedade
civil e o estado. Como as questões da nova divisão paritária de cadeiras estava permeada
de dúvidas, os membros da CT de Gestão se organizaram para marcar uma reunião para
discutir a distribuição de cadeiras.
Já terminada a pesquisa de campo, portanto, pode-se dizer que surgiu a
possibilidade de participação do Pirizal no CG por meio da escolha de uma liderança que
177
os representará nessa instância. É possível entender que tanto a representação comunitária
quanto a regularização fundiária são as duas principais temáticas que fizeram com que o
CG incluísse na pauta os Sítios estuarinos de Guaratuba, sob pressão da pesquisadora e
dos extensionistas da UFPR Litoral, como seus interlocutores principais.
O ordenamento espacial dos usos dos bens naturais que consta no documento do
plano de manejo da APA, elaborado em 2006, não contemplou as regras sociais internas
aos Sítios quanto ao uso e manejo, ao contrário, impôs novas regras para cuja criação a
população permanente não contribuiu e não legitimou, tornando-as muitas vezes
clandestinas (OSTROM, 1990; FLÓREZ, 2008; HALL, TAYLOR, 2005; BECKER,
2008). O conselho gestor desta UC, partindo do pressuposto democrático,
participacionista e deliberativo, é a próxima etapa lógica de possível inserção desses
sujeitos na arena pública de negociação.
Todavia, o que os dados coletados com a observação direta das reuniões e a leitura
atenta das respectivas atas apontam é que ao longo das etapas de implantação,
planejamento e gestão da APA, os moradores mais antigos e com menos poder de
influência e menor representatividade não se enquadram ao padrão de participação
política no Conselho (que pressupõe o associativismo voluntário). Ao mesmo tempo, é
garantido o controle social sobre as decisões referentes à administração territorial dos
recursos a outros grupos sociais com capital simbólico acumulado na defesa de seus
interesses particulares, tornando o processo de tomada de decisão elitizado.
A meu ver, os projetos territoriais e ambientais confrontantes revelam a oposição
entre dois tipos básicos de importância atribuída ao território e aos recursos naturais,
muito distintos. Para os sitiantes a terra faz parte do território dos parentes, inclusive
gerido por eles com regras reformuladas por eles, e não pode ser privatizada; ao passo
que para o segmento de reflorestamento e de bananicultura, por exemplo, a terra tem um
valor de propriedade no mercado e corresponde ao marco fundiário oficial66.
Esses dois modelos de apropriação da terra se tensionam e são representados pelos
conselheiros no colegiado. Afinal, o espaço social da APA se constitui, desde a criação
dessa UC, como um espaço social, racional de legitimação de posicionamentos em torno
66
Essa assimetria de projetos territoriais e das condições socais para legitimá-los de certa forma já
foi abordada em Acselrad (2004); Guha, Martines-Alier (1997); Givant (2002); Little (2002); Ferreira
(2001); Castro e colaboradores (2006); Jatobá (2009); Lobão (2006).
178
dos recursos naturais e do território, onde os segmentos que participam têm a liberdade
distribuída para discutirem problemas particulares ao grupo que representam. Contudo, a
capacidade de influência sobre o mecanismo de discussão e legitimação não é distribuído
equitativamente. Ora, como vimos no exemplo da discussão da CT Florestal, no processo
comunicativo ou dialógico vai prevalecer a validade do argumento melhor articulado
entre aqueles que “já dominam as regras do jogo”.
Como eu mesma, nem todos os participantes do CG acompanham de fato a
discussão que se dá em um patamar técnico científico. A assimetria de posições produzida
em conflitos consolidados antes mesmo da criação do CG não é levada em consideração
(como já havia analisando ACSELRAD, 2004, analisando os conflitos ambientais
contemporâneos), o que afeta a forma de se tratar e deliberar sobre os conflitos de
interesses e definições acerca das regras de manejo, manifestados em um ambiente que
funciona sob premissas “igualitárias”. O sitiante distante do conselho não se vê como
“morador” de uma UC, sua identidade social é outra, não domina a linguagem das leis,
não conhece o plano de manejo, passa por desvantagens estruturais. Isso ocorre porque o
CG se apresenta como aberto à participação autônoma e efetiva da sociedade civil mas
não é capaz de oferecer reais condições para que haja o nivelamento qualitativo na
inclusão de parcelas sociais historicamente marginalizadas, em contraste com os
segmentos mais politizados e familiarizados com a linguagem dos direitos e dos
procedimentos burocráticos.
Em uma região com baixa institucionalidade (SONDA, 2002; PIERRI et al.,
2006), o CG da APA acaba sendo encarado como a instância institucional que parece
concretizar a presença do estado democrático e da ordem social; um espaço social para
onde convergem as demandas sociais que não foram adequadamente supridas com outras
políticas a que cabiam. Ou seja, a política ambiental, em sua transversalidade e em seu
caráter participacionista em um contexto de modernização pouco democrática como a do
litoral, corre o risco de acumular papeis e atribuições, como uma grande panaceia para
problemas de natureza diversa. Assim que, apesar de ter se democratizado, o modelo de
funcionamento do CG permite visualizar, e mais do que isso, nas suas limitações acaba
reproduzindo as assimetrias políticas e econômicas entre os agentes da disputa
territirial/ambiental, observando-se uma tendência seletiva de participação que favoreceu
179
grupos mais organizados formalmente como as associações de bananicultores, empresa
reflorestadora e ONGs, por exemplo.
180
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa se debruçou sobre o modo como as transformações sociais
mais amplas do litoral paranaense das últimas cinco décadas afetaram a realidade da
população local, inserindo-a em novas relações sociais e assim lhes exigindo novos
arranjos de decisão. A questão no entanto não deve levar à ideia de que o Pirizal se
manteve congelado, a-histórico, sem conflitos, antes do período estudado.
Muita coisa tem mudado em âmbito local, especialmente nos últimos quarenta
anos. Uma rede de eventos foi identificada por eles como alavancadora das mudanças
internas recentes, “o antes e o depois”, a exemplo do estabelecimento das empresas
reflorestadoras, a consequente abertura de vias terrestres e mais tarde a chegada da
eletricidade.
Foram identificados diferentes tipos de pressões que se impuseram. Localmente,
podemos citar, restrições ambientais, dependência de atravessadores, redução do território
de uso comum pela empresa de monocultivos com pinus, especulação imobiliária e
pressão do mercado de terras, ausência de direitos sociais, falta de acesso à cidadania,
falta de crédito e de políticas específicas. Internamente, os sitiantes se depararam com o
estresse demográfico e a hiper fragmentação da terra por herança e a consequente
dificuldade de garantir a sucessão do patrimônio familiar, ameaças aos pilares de uma
ordem moral propriamente familista.
As restrições e oportunidades que surgem no plano local derivam da aspiração
familista/camponesa primordial, e os esforços de manter essa condição assumem o
significado de resistência a pressões. Isso se traduz de diferentes maneiras e em diferentes
sentidos, podendo ser representado pela opção de interditar o acesso à roça a homens de
fora ou individualizando-a, buscar o assalariamento dos dois dentro do casal, ou de um e
o outro complementando a renda com o cipó, dedicar-se à pesca e aos serviços turísticos
ou ter filhos homens e mulheres emigrados como assalariados urbanos, por exemplo.
Haveria ainda a situação daqueles que, mesmo sendo duramente atingidos pelas
diferentes pressões impostas pela perda de terra e por serem viúvas e de fora, lhes resta
poucas alternativas além de manter os costumes dos antigos.
181
A memória dos relatos dos sitiantes mostra um passado de casamentos e
nascimentos endogâmicos, ao mesmo tempo em que já aconteciam casamentos com
mulheres de fora. O controle sobre o patrimônio se submete à lógica hierárquica que
exigiu a interdição da permanência feminina, possibilitando herdeiros preferenciais,
homens. Desde os antigos o êxodo se mantém preferencialmente feminino. Do ponto de
vista da sucessão masculina, na ponta, não há nenhum homem que tenha nascido fora do
Sítio e não há mulheres solteiras, todas as mulheres são casadas e a maioria delas é de
fora. Há somente uma mulher nativa, cujos filhos permaneceram na ponta e entre os
quais dois são casados e três são solteiros e moram na casa dos pais.
Na vizinhança o êxodo aconteceu mais distribuído do que na ponta, porém, teve
maior implicação na saída preferencial de filhas moças e filhos jovens. Lá não se
encontram moças solteiras e o único solteiro vive com sua mãe, viúva. Na vizinhança
existem apenas três mulheres nativas, todas as outras são de fora, sendo que duas delas se
casaram com homens de fora, ao contrário da ponta onde não há homens de fora.
Quanto aos sistema de apropriação da terra, as famílias são posseiras e combinam
o acesso comum ao acesso privado em arranjos híbridos, criados por instituições internas,
sujeitas às disputas e reajustes familiares. Estes arranjos, a despeito de seu caráter
hierárquico e desigual, ou justamente para reafirmá-lo, serviram para assegurar a terra
como patrimônio comum.
Atualmente, existe a tendência à privatização das chácaras (posses familiares) e
dos terrenos. Um núcleo da ponta se expande por posses contínuas e concentradas que
avançam sobre os terrenos na vizinhança. Ademais, com a comercialização de lotes para
turistas sobretudo em áreas que perderam o valor de uso, como é o caso do banhado, os
parentes como uma coletividade perderam o domínio do circuito de terras reduzindo seu
“estoque” patrimonial, o que aumentou o conflito interno. Na vizinhança o domínio da
terra se mantém fragmentado e distribuído para se sustentar a rotatividade e o uso comum
dos terrenos e manter o circuito entre os parentes. A despeito do conflito interno, a
persistência da área comum é uma peculiaridade do Pirizal se comparada à história de
desterritorialização das comunidades vizinhas e possui um significado de resistência de
que se orgulham.
As práticas produtivas coexistem e se combinam conforme as famílias. O trabalho
182
na roça de mandioca e a produção de farinha são comuns a todas as famílias. O ciclo
produtivo da mandioca e da farinha tem o aspecto fundamental de envolvimento familiar,
e suas etapas baseadas no guajú podem ser entendidas como rituais de reafirmação do
familismo.
Na ponta as famílias tradicionalmente foram formadas no magistério e hoje se
voltam ao trabalho na escola. Existem dois casais em que ambos marido e mulher são
funcionários da prefeitura e, portanto, essa é a renda principal, sendo que que não se
dedicam a outras atividades complementares, além da produção de farinha. Os pais dos
três núcleos de descendentes na ponta são aposentados. Outra estratégia produtiva
identificada foi a dedicação à pesca comercial e turística e aos serviços turísticos dela
derivados. Por sua vez, metade das famílias da vizinhança é assalariada pela prefeitura e
combina essa atividade com o extrativismo e tecido do cipó. Há duas viúvas de nativos,
que vieram de fora e que hoje vivem basicamente de atividades nativas, portanto não são
nem assalariadas tampouco trabalham com o turismo.
O drama de se aposentar foi relatado principalmente por aquelas famílias que
estão fora do universo dos direitos trabalhistas por viverem de atividades nativas, mas
não só por elas. A dificuldade de reconhecimento das pluriatividades ilustra a distância
dos sitiantes do mundo dos direitos e da cidadania. Ao contrário de significar uma
“descampesinização” ou sua saída do Sítio ou perda da sua condição social, a ampliação
do assalariamento e da oferta de serviços turísticos pelas famílias se tornaram meios
importantes de garantir a permanência no lugar de vida, sociabilidade e trabalho.
A identidade produtiva das famílias autônomas da pesca cria uma distinção entre
estes e aqueles que “não prosperaram”, os assalariados pelo município e os que vivem
das atividades nativas. As atividades nativas e o assalariamento, conjugadas com a
centralidade do parentesco, são os elementos que dão sentido para organização social do
Sítio. Além disso, por meio delas a autoridade no interior do Sítio é redistribuída entre os
sucessores dos núcleos mais fortes da ponta e da vizinhança.
A despeito de a contenda entre as famílias da ponta e da vizinhança ser antiga,
representada por herdeiros que protagonizaram brigas marcantes na história do Sítio, as
entrevistas reconstituíram um passado em que os guajús eram grandes, com festas
exuberantes, chegando a envolver uma centena de pessoas nas trocas de favores e
183
trabalho, inseridas em um sistema de vicinalidade e familismo.
De outro lado, em virtude das alternativas ao assalariamento e aos serviços
turísticos as famílias da ponta têm sido impelidas a colaborarem mais restritamente com
seu próprio núcleo ou família, em detrimento da troca de trabalho na extensão do Sítio e
da vizinhança. Neste outro lado do Sítio, o ajutório tem se sustentado como modo de
manter uma ordem hierárquica, laços familiares e abreviar o cansativo trabalho nas
atividades nativas, que são conjugados com os empregos na prefeitura. As atividades
nativas são mais significativamente distribuídas na vizinhança, onde o êxodo dos filhos
também é maior, de modo que a interdependência e o ajutório envolvem mais famílias do
que na ponta.
A preservação da família e da sucessão por meio da solidariedade entre parentes e
vizinhos se constituiu como uma resposta ao escasso fornecimento e bens e serviços
públicos. A história do grupo, e o passado de penúria material e de ausência de políticas
púbicas para além do assistencialismo, os levou ao aprendizado de que “o governo” e
seus representantes são incapazes ou insuficientes para garantir a segurança e o bem-estar
familiar e coletivo, o que os fez considerar as relações parentais, vicinais e patronais – no
caso dos comerciantes e elites locais, como os esquemas morais válidos e predominantes
na sua lógica de sociabilidade. A razão clientelista ocupou o lugar vazio de direitos e
cidadania.
No processo pouco democrático de modernização, os governos locais e os setores
responsáveis pela proteção social de alguma forma lhes “deram atenção” ou os
“atenderam” mesmo que limitadamente. Porém o Pirizal e os outros Sítios da região
estuarina em questão não receberam contínua e efetivamente políticas que de fato os
incentivassem à permanência rural. O que chegou até o Pirizal parecem ser iniciativas
públicas fragmentadas e dispersas, assistencialistas em essência, na medida em que
focam na melhoria de renda e de infra estrutura mínima, mas que estão sujeitas à
flutuação de governos estaduais e municipais. Como beneficiários de projetos esparsos de
extensão rural e outros programas estaduais e municipais voltados ao pequeno produtor
rural, o que era um direito universal, e deveria ser distribuído aos outros Sítios
equilibradamente, foi encarado como clientelismo e favores políticos, reproduzindo a
dominação tradicional. Ao mesmo tempo, o ressentimento e o consequente descrédito em
184
relação aos deveres do “estado” se evidenciaram nos relatos sobre a falta de acesso a
qualquer tipo de crédito, seja na lentidão do processo de regularização fundiária, mas
principalmente nos obstáculos burocráticos para alcançar a aposentadoria ou para se
conseguir autorizações ambientais para as atividades de subsistência.
De maneira geral, o agente ambiental que conheceram primeiro foi o policiamento
ambiental. Embora as entrevistas tenham mostrado que os moradores conhecem grande
parte dos regulamentos formais que incidem sobre suas práticas de exploração dos
recursos naturais a mera existência da lei e os mecanismos de controle e penalização em
determinados casos não parecem ser suficientes para frear as atividade criolas. As regras
se subordinam às prioridades para a sustentabilidade familiar no território. Em
consequência do controle ambiental estatal, imposto de cima para baixo sobre a realidade
estuarina, os sitiantes se tornam paulatinamente clandestinos e “desviantes” ambientais.
As agências ambientais parecem ser “entidades” bastante distantes da realidade
dos sitiantes, que não se entendem como moradores da APA. Alguns relatos avaliam essa
interferência, permeada por ambiguidades, no sentido de que ora se apresentam como
obstáculo ao seu modo de vida ora servem de freio para a exploração de atores sociais
extra locais sobre a região que também pressionam seu território (pesca esportiva, caça
predatória, dragagem das margens no banhado, etc.). Multam grandes investidores e
proprietários também. De modo geral, ficou evidente a falta de legitimidade da política
ambiental além do fato de que os moradores não sabiam distinguir os órgãos ambientais e
suas atribuições específicas e apenas recentemente, motivados por pesquisadores que
atuam na região, têm considerado participar do CG da APA.
Atualmente as pautas do CG são frequentemente elaboradas durante as
assembleias atendendo às demandas dos membros assíduos, de modo que não encontra a
viabilidade burocrática de problematizar e gerenciar a diversidade de conflitos entre
distintos projetos territoriais ali representados. Entende-se que a mera disponibilização do
espaço social da APA não garante necessariamente chances equilibradas de incorporação
dos segmentos sociais na arena pública, quando há uma multiplicidade de segmentos com
diferentes culturas políticas e graus de familiaridade com procedimentos burocráticos.
Nesse sentido, esperar a iniciativa e o voluntarismo dos sitiantes para a participação é
deixar elites políticas e econômicas tradicionais “colonizarem” esse espaço social, de
185
caráter anunciadamente “público”, reproduzindo e reforçando a desigualdade social e os
conflitos na região.
A demanda externa pelo enfrentamento das pressões sentidas no plano local chega
na forma do incentivo ao associativismo, o qual lhes assedia por todas as partes, haja
visto o convite do movimento social, a interlocução com a professora extensionista e da
liderança do Sítio vizinho, a proposta do projeto de extensão da farinheira comunitária, a
reunião com o técnico do ITCG para a regularização fundiária, a reunião com o técnico
extensionista da Emater, atores institucionais que corroboram a necessidade de se criar
uma associação oficial, e também a iniciativa da pesquisadora bióloga de reuní-los para
escolherem um representante para o CG.
Nessas circunstâncias, até onde eu pude observar, o que as famílias ponderaram
diante das propostas de associativismo são os esforços pessoais e a distribuição desigual
de tarefas (representantes e representados) exigidos pela iniciativa associativa. Isso
porque, além dos dilemas internos derivados dos conflitos entre os parentes, as famílias
se organizam de um modo diferente, dentro de outros esquemas morais, descrentes da
lógica burocrática, impessoalizada e procedimental dos novos espaços a que estão sendo
convidadas, e historicamente alheias ao mundo dos direitos sociais.
Estabelecida como uma relação duradoura e de confiança, a presença de
extensionistas rurais e acadêmicos se deu no sentido de ajudar a construir uma identidade
oriunda do mundo econômico, do trabalho rural, em políticas públicas que estimulam o
associativismo para viabilizar a agroindústria e o acesso à cidadania. O associativismo e o
empreendedorismo social nos moldes oficiais têm sido apresentados como necessários no
contexto de transição, de vazio de assistência pública, em direção à participação em
espaços públicos, como meio de ingressar mais dignamente na economia regional.
Porém, a proposta esbarra nas disputas e desconfianças internas ao Sítio.
Por sua vez, a conduta territorial impositiva e violenta da reflorestadora no
passado, descrita pelos sitiantes, mostra como se consolidou a assimetria na relação de
dominação e de autoridade dos seus representantes na interação com os sitiantes. A
empresa expropriou e explorou economicamente a população local, logo depois de alguns
anos de estagnação e simplificação produtiva, abrindo-lhes, com as estradas, novas
possibilidades, o que torna sua imagem controversa e contraditória. Como uma ironia
186
perversa, a empresa possui ao mesmo tempo papeis de aliada e de “tomadora de terras”.
É possível dizer que a sociação dos sitiantes com os atores extralocais não se
apresenta na forma de lutas permanentes ou públicas ou no embate com um mesmo
antagonista bem delineado, o que não significa que a dominação e a exploração deixam
de existir. Estas parecem diluídas cada vez mais no anonimato e na impessoalidade com
novos grupos sociais, em que se conformam pressões de diversas naturezas, como vimos
tentando mostrar.
Diante desses aspectos levantados, buscou-se contribuir com o conjunto de
pesquisas sobre o litoral paranaense no sentido de entender suas complexidades e
contradições sociais, em um período de intensas transformações de diversas naturezas,
multicausais (econômica, política, cultural).
O presente estudo buscou, portanto, encontrar dois tipos de respostas articuladas
entre si. Por um lado, buscou-se recompor os mecanismos sócio históricos do processo de
mudanças ocorrido no litoral paranaense, nas últimas décadas; localizar, descrever e
analisar um conjunto de variáveis, já mencionadas, na formação social do Pirizal, a fim
de demonstrar que essas mudanças correspondem ao plano das indagações e dos
objetivos da presente pesquisa, cuja metodologia busca traduzir essa adequação entre o
quadro analítico proposto e o conjunto de elementos empíricos elencados para a
demonstração da questão condutora da pesquisa. Por outro lado, o elenco dos elementos
reunidos, como resultado do processo investigativo, só cobra sentido sociológico se
confrontado com a devida exposição de um marco teórico plural, capaz de garantir um
panorama interpretativo para os fenômenos sociais aqui abordados.
Daí que foi realizada a leitura de algumas das principais teorias que
problematizam categorias e conceitos das teorias sociais, especialmente aquelas que
buscam ir além da sociologia rural tradicional e que tratam de ampliar o debate em torno
do “campesinato”, articulando-o com outras teorias mais recentes sobre “conflito”,
“institucionalismo”, “bens comuns”, “territorialidades” e outras ainda, buscando superar
a discussão clássica do fim do campesinato, conforme leituras marcadas pelo
economicismo e outros fatores determinantes (urbanização, transformação dos processos
de trabalho capitalista, etc.).
Nessa pesquisa empírica, não se pretendeu se aproximar da definição de uma nova
187
condição do campesinato, mesmo porque nossa pesquisa não daria conta de tamanha
complexidade, não só pela dificuldade teórica inerente a um tal exercício, mas sobretudo
pela representatividade de nosso estudo de caso, um a mais no quadro geral da grande
transformação das novas ruralidades no contexto atual das sociedades. Da mesma forma,
não teve a pretensão de validar ou invalidar as teorias expostas, pois para isso seria
necessário entre outras cosias proceder a estudos onde os elementos de realidade
combinassem diferentes situações espaciais, temporais, com um número de casos
empíricos mais amplos.
Assim, embora não fosse o objetivo principal testar o grau de eficácia dessas
teorias para melhor entender e interpretar o que vem ocorrendo nas mudanças observadas
com esses atores rurais híbridos do Pirizal, não poderíamos deixar de estabelecer algum
tipo de consideração sobre o efeito de algumas dessas teorias, apresentadas no capítulo
inicial da dissertação, bem como indagar sobre o maior ou menor grau de poder
explicativo que algumas delas possas exercer com maior convencimento, mais do que
outras. A realidade do Pirizal, internamente bastante diferenciada, não apresenta uma
inclinação linear e exclusiva para uma ou outra das duas tendências apresentadas, mas, ao
contrário, aponta para um quadro complexo e híbrido de transformações que combina
múltiplas possibildiades, em termos dessas explicações teóricas encontradas. As famílias
do Pirizal resistem às pressões de diferentes formas, impelidos a elaborarem
alternatividades para permanência no território em curto e a longo prazo. Deste modo, a
distinção de estratégias familiares foi entendida aqui justamente como um modo de
resistência.
188
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DANIELA SANT` ANA - Setor de Ciências Humanas