UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DANIELA SANT' ANA TRANSFORMAÇÕES EM UMA COMUNIDADE CAMPONESA DO LITORAL SUL DO PARANÁ: TERRITORIALIDADE, ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA, PRÁTICAS MATERIAIS E PARENTESCO CURITIBA 2012 DANIELA SANT' ANA TRANSFORMAÇÕES EM UMA COMUNIDADE CAMPONESA DO LITORAL SUL DO PARANÁ: TERRITORIALIDADE, ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA, PRÁTICAS MATERIAIS E PARENTESCO Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de mestre em Sociologia, no Programa de Pós Graduação em Sociologia, no Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Profº Dr. Dimas Floriani CURITIBA 2012 Catalogação na publicação Fernanda Emanoéla Nogueira – CRB 9/1607 Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR Sant’Ana, Daniela Transformações em uma comunidade camponesa do litoral sul do Paraná : territorialidade, estratégias de resistência, práticas materiais e parentesco / Daniela Sant’Ana – Curitiba, 2012. 198 f. Orientador: Prof. Dr. Dimas Floriani Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. 1. Litoral do Paraná – Mudança social. 2. Camponeses – Paraná. 3. Famílias – Costumes - Guaratuba (PR). 4. Parentesco. I.Título. CDD 303.4 DEDICATÓRIA À Nika, à Aninha e aos meus pais, com amor. AGRADECIMENTOS Eu refletia sobre a razão de se colocar a parte dos agradecimentos no começo, se de fato ela só acaba sendo escrita ao final, depois do processo todo. Concluí que agradecer pessoas importantes por contribuições e presenças tão fundamentais não é pouca coisa e merece abrir os caminhos da pesquisa. São muitas pessoas para agradecer e começo pelos meus pais, Nilton e Magdalena, por estarem por perto nessa fase controversa de dificuldade e de aprendizado, no contexto de uma família que vive para o trabalho. Afinal, prolongar os estudos, sabemos, é para poucos, ainda mais na universidade pública “que não é (era) lugar pra nós”. Minha irmã Sandra e minhas sobrinhas Nika e Anna merecem um agradecimento especial, pela alegria dos nossos reencontros. Com eles todos aprendi a importância da família de um jeito único, só nosso. Agradeço à minha segunda família, Bernadete, David e Vic. Aos amigos queridos Andrey, Patrício, Rodrigo, Keka, Genevive, Renato, Margit, Tia Karla, pela diversão e pelas trocas sobre o dizível e o indizível. O mundo fica mais lindo na companhia de vocês! Famílias da Baía de Guaratuba que me receberam em suas casas e dividiram suas histórias, admiráveis por resistirem às adversidades que chegam por todos os lados... Anael e Larissa pelas trocas de ideias sobre sociologia e sobre a vida, ao longo dos nossos estudos. Membros e convidados do Conselho da APA de Guaratuba pela vivência e aprendizado sobre os desafios da democracia participativa. Pesquisadores e comunidades vinculadas à Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná e ao PNCS, em especial aos cipozeiros do MICI e aos faxinalenses da APF, que provam que um mundo mais justo é possível. Professores Ademar, Francisco e Edmilson do MADE e Dimas, Simone, Tarcisa, Alexandro, Mirian e Osvaldo da Sociologia, pelas aulas e questões que tanto me inquietaram e por tantas janelas de conhecimento que abriram. Agradeço em especial aos Professores Edmilson e Osvaldo, que fizeram leituras atentas e ricas contribuições nas duas bancas, e ao Professor Dimas pelo processo de orientação. Foi com eles que eu mais aprendi a aprender nos últimos anos. Ao Reuni/ Capes pelo apoio financeiro sem o qual não teria sido realizada essa pesquisa. E ao meu amado Bernardo agradeço pela paciência e pela generosidade, ele que me acompanha às montanhas mais altas, nos dias mais lindos. E naqueles nublados também. EPÍGRAFE Nesse momento a população foi sacudida por um apito de ressonâncias pavorosas e uma descomunal respiração ofegante. Nas semanas anteriores viram-se grupos de trabalhadores que colocavam dormentes e trilhos, mas ninguém prestou atenção porque pensaram que era um novo artifício dos ciganos, que voltavam com a sua secular e desprestigiada teimosia de apitos e chocalhos apregoando as excelências de sabe Deus que miserável panaceia dos xaroposos gênios hierosolimitanos. Mas quando se recuperaram do espanto dos assovios e bufos, todos os habitantes correram para a rua e viram Aureliano Triste acenando, com a mão, da locomotiva, e viram assombrados o trem enfeitado de flores que, já da primeira vez, chegava com oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidências, e tantos deleites e desventuras, e tantas mudanças, calamidades e saudades haveria de trazer para Macondo. (Gabriel García Marques, Cem Anos de Solidão) [...] les plus grands ont aussi les plus grandes familles tandis que lex “parents pauvres” sont aussi les plus pauvres en parents. (Pierre Bourdieu, Les stratégies matrimoniales dans le système de reproduction) RESUMO A literatura acadêmica caracteriza o Litoral do Paraná como um lugar com fortes paradoxos, sob transformações de ordem política, cultural, econômica e ambiental. Os sujeitos sociais que constituem o recorte empírico dessa pesquisa são vinte e quatro famílias que habitam um Sítio situado no entorno da baía de Guaratuba, Paraná. O objetivo que se colocou foi analisar em que medida as famílias são capazes de reelaborar práticas de resistência diante do quadro heterogêneo de pressões e conflitos que se apresenta. A pesquisa apontou fatores relacionados à formação social da comunidade em transição como os modos familistas de apropriação do território e dos recursos naturais, como a rede de parentesco e cooperação, formas organização do trabalho, regras de casamento e movimentos migratórios, relações de subordinação a atores externos, diversificação produtiva, em um processo bastante diverso e, portanto, multicausal (econômica, política, cultural) obrigando cada família a elaborar arranjos de ação próprios, individualizados, sem que signifiquem a desagregação do Sítio. Ao contrário, foram a condição para sua permanência. Palavras-chave: modernização do Litoral, camponeses paranaenses, familismo, conflito, mudança social, (des-re)territorialização. ABSTRACT The literature features the Coast of Parana as a region with strong contradictions, where intense political, cultural, economic and environmental changes took place. The empirical study focused on twenty-four peasant families that live in a Sítio located in the surroundings of Baía de Guaratuba, Paraná. The main objective was to analyze to what extent the families are able to reformulate practices of resistance in a context of social pressures and conflicts produced by those changes. The research pointed out that factors related to the social formation of the group are in movement. One can mention for instance the kinship territoriality, ways of labor organization, types of use and appropriation of land and of natural resources, rules for marriage and dynamics of migration, interactions with external social actors, diversification of wage and of production, as a part of a diverse and multi causal process. The diversification of each families’ projects did not mean that the group is bound to disappear. On the contrary, this tendency provides their very permanence. Key-words: Coastal modernization, peasants from Paraná, familism, conflict, social change, (des-re)territorialization. RESUMÉ La Côte du Paraná est caracterisé dans la literature académique comme une région avec de fortes contradictions, qui a récemment traversé des changements politiques, culturels, économiques et environnementaux. Les acteurs sociaux que consituent la partie empirique de cette recherche sont vingt quatre familles paysannes qui habitent un Sítio situé dans les anvirons de la Baía de Guaratuba, Paraná. L’objectif principal était d’analyser dans quelle mesure les familles peuvent reformuler les pratiques de résistance dans un contexte de pressions sociales et conflits produits par ces changements. La recherche a souligné que les facteurs liés à la formation sociale du groupe sont en mouvement. On peut citer par exemple la territorialité de la parenté, modes d'organisation du travail, les types d'utilisation et d'appropriation des ressources naturelles et du territoire, les règles de mariage et la dynamique de la migration, les interactions avec les acteurs sociaux externes, la diversification des salaires et de la production, dans le cadre d'un processus de causalité diverse et multiple. La diversification des projets de chaque famille ne veut pas dire que le groupe est appelé à disparaître. Au contraire, cette tendance assure leur permanence. Môts-clés: Modernisation des zones côtières, paysans du Paraná, familialisme, conflits, changement social, (des-re) territorialisation. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...........................................................................................................11 1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................17 1.1 Construindo a pesquisa................................................................................................17 1.2 O que a literatura nos diz?...........................................................................................25 1.3 Sobre o campo..............................................................................................................34 2 CONHECENDO O SÍTIO E OS SITIANTES: “AQUI É TUDO PARENTE!”.....42 2.1 Um retrato de família...................................................................................................42 2.2 Conflito, território e bem comum para falar de resistência e familismo.....................46 2.3 Nos meandros do território dos parentes.....................................................................55 3 TECENDO O BALAIO: ENTRE A PONTA E A VIZINHANÇA............................63 3.1 Os sitiantes e o Sítio em movimento: fracionamento das posses, sucessão masculina e migração feminina.............................................................................................................63 3.2 Os irmãos da ponta, o turismo da pesca e a privatização das posses...........................69 3.3 O vínculo familista pela terra e pelo guajú: o declínio da lavoura de arroz e o protagonismo da lavoura de mandioca..............................................................................77 3.4 A ambiguidade de uma outra territorialidade: entre a opressão e a oportunidade em tempos de transição............................................................................................................83 3.5 A importância do plantio da mandioca e dos terrenos desde os antigos......................98 3.6 O guajú e a sua transversalidade nas práticas de reafirmação do familismo ............100 3.7 A transformação da mandioca na farinheira compartilhada.......................................111 3.8 Os tipos de pesca e a hierarquização das identidades produtivas..............................116 3.9 O tecido do cipó como coadjuvante, mas não menos importante..............................130 3.10 Velhas práticas e novos dilemas: a farinheira comunitária e os incentivos externos ao associativismo..................................................................................................................134 3.11 A má distribuição e a lentidão na concessão de benfeitorias: mas não eram direitos? ..........................................................................................................................................142 3.12 Assalariamento municipal, identidades produtivas híbridas e falta de acesso à cidadania..........................................................................................................................147 3.13 Auto-consumo, as mudanças e a cidade...................................................................155 3.14 Os primeiros passos para a regularização fundiária: o que fazer diante de arranjos híbridos?...........................................................................................................................160 3.15 O novo convite: o conflito mudou de nome?...........................................................173 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................180 REFERÊNCIAS.............................................................................................................188 11 APRESENTAÇÃO Quando a literatura acadêmica caracteriza o Litoral do Paraná, os autores se referem a um lugar com fortes paradoxos. Com efeito, a região passa por transformações intensas, de ordem política, cultural, econômica e ambiental, onde uma grande cidade portuária e balneários urbanos que se expandem coexistem com extensas áreas naturais protegidas, com baixa densidade demográfica, e para onde convergem populações de outras regiões do estado e de estados vizinhos (PIERRI, 2003). Em que pese a produção crescente de estudos sobre a temática nas diversas disciplinas, ainda existe uma lacuna no entendimento sobre a forma como as populações rurais produzem essas mudanças ao mesmo tempo em que são afetadas por elas, sobretudo no que se refere aos sitiantes estuarinos que vivem no litoral sul. O presente estudo visa contribuir justamente com esse aspecto: analisar em que medida um grupo social específico, as famílias do Sítio Pirizal 1 situado na região estuarina de Guaratuba, é capaz de reelaborar práticas de resistência diante do quadro heterogêneo de pressões e conflitos que se apresenta. Primeira região do Estado do Paraná a ser colonizada, o litoral foi considerado uma das mais pobres em diagnósticos sócio econômicos recentes. Seu fraco desempenho na economia estadual se deve em grande parte à baixa aptidão dos solos para a agricultura intensiva, o que levou ao abandono das terras e ao declínio de alguns núcleos urbanos, e deixou a região historicamente à margem do processo de agroindustrialização (IPARDES, 1989 apud DENARDIN et al, 2008; PIERRI, 2003; PIERRI et al., 2006; SILVEIRA & OKA-FIORI, 2007). O relativo isolamento vivido pelo litoral do Paraná, marcado pela baixa vocação agrícola e por vastas extensões de terras devolutas, atraiu grileiros e posseiros. O funcionamento local do mercado de terras propiciou práticas ambientalmente danosas e a formação de latifúndios em áreas desvalorizadas, na ausência de políticas que poderiam limitar a ação desse mercado e na presença de outras, desenvolvimentistas, que 1 Os nomes utilizados para se referir aos sujeitos sociais e a localização precisa do Sítio são fictícios, a fim de preservar a identidade dos envolvidos na pesquisa. 12 incentivaram tais práticas desde a década de 70. A costa e os estuários paranaenses, situados no Bioma Mata Atlântica, possuem vastas áreas rurais de grande relevância ecológica associada a ambientes de manguezais, ilhas, planície costeira, à Serra do Mar, sobre os quais passaram a incidir um grande número e tipos variados de áreas naturais protegidas, em decorrência do processo de ordenamento territorial ditado pela nova legislação ambiental contida na Constituição Federal de 1988 e da pressão de organizações não governamentais (ONGs) ambientalistas regionais e internacionais (TEIXEIRA, 2004; PIERRI et al., 2006; IAP, 2006). A implantação do controle ambiental ocorreu por meio de decisões institucionais contraditórias do ponto de vista da ação multissetorial do estado, pois, no início da implementação, priorizaram a fiscalização e o policiamento ambiental, buscando controlar o desmatamento da floresta nativa e da perda da biodiversidade local desencadeados pelo estabelecimento de grandes domínios produtivos, cujas atividades recebiam incentivos estatais visando o desenvolvimento da região (SONDA, 2002; TEIXEIRA, 2004; IAP, 2006). Adams (2002), Sonda (2002) e Pierri et al. (2006) analisam que os remanescentes florestais que chamam atenção para sua conservação se encontram hoje justamente em áreas litorâneas de menor desenvolvimento econômico e social historicamente desprezadas por grandes investidores, como regiões acidentadas, com solos de baixa fertilidade, marcadas por sistemas de produção familiares de subsistência ou tradicionais – em grande parte produtores pobres sem acesso aos instrumentos de políticas públicas. Conforme sua pesquisa de 2002 sobre os aspetos socioeconômicos do extrativismo vegetal realizado pela população de pequenos produtores rurais em Guaratuba, Cláudia Sonda já chamava atenção para o fato de que, nas treze coletividades analisadas por ela, nenhum dos moradores nativos entrevistados sabia que vivia em uma Área de Proteção Ambiental (APA), ou sequer sabia o que o termo significava. Nesse sentido, expressão mais contundente da institucionalização e estruturação da política ambiental dirigida para a região, é possível dizer que a multiplicação de Unidades de Conservação da Natureza (UC) nas últimas três décadas se deu “desde o gabinete” e por decretos, negligenciando demandas sociais e a participação de segmentos mais pobres, distantes da lógica do associativismo voluntário que era esperado da 13 sociedade civil (PIERRI, et al., 2006; SEMA/IAP, 2006; SONDA, 2002; FERREIRA, 2010; REIS, 1995; SCOTT, 2002). Hoje, o litoral paranaense pode ser definido como uma grande área protegida. Como nos detalham Pierri et al. (2006), o litoral teve 82% de sua área voltada para a conservação, incluindo unidades de conservação federais, estaduais e municipais, sendo as maiores a APA Federal de Guaraqueçaba e a APA Estadual de Guaratuba. Apesar das suas características próprias e singulares, “avessas” ao processo de modernização agrícola do Paraná como um todo, o litoral sofreu uma pressão de fenômenos de mercado e de acumulação capitalista e de políticas públicas. Ou seja, nesse contexto, o surgimento de uma arena propriamente ambiental não é a única intervenção ou força social modernizadora, com amplas implicações para dinâmica social, econômica e institucional da região. Os efeitos da modernização sobre o litoral se fazem ouvir também por processos mais antigos, como a ampliação da malha rodoviária estadual e da rede de distribuição de eletricidade “conectando” sedes urbanas e bairros rurais até então mais remotos, a expansão da infraestrutura de exportação no porto de Paranaguá, bem como a urbanização e a expansão dos serviços de turismo na orla marítima, a introdução de culturas agropecuárias e florestais patronais altamente capitalizadas e tecnificadas, que contaram com apoio técnico e incentivos econômicos estatais, a abertura democrática e o advento da nova constituição “cidadã” (e consequentemente eleições locais), a chegada de pesquisadores acadêmicos cujas pesquisas e projetos de extensão passam a ter rebatimento nas políticas públicas (IAP, 2006; TEIXEIRA, 2004; PIERRI, 2003; PIERRI et al., 2006). Os processos mencionados modificam a vida social e político institucional no nível local, como condições de possibilidade para novas contradições sociais que visivelmente se imprimem na paisagem. A área onde vive o grupo foco da pesquisa é coberta pela APA Estadual de Guaratuba, criada em 1992, a maior UC do litoral sul, que abriga em seu interior o Parque Nacional Saint-Hilaire Langue, o Parque Municipal Lagoa do Parado e o Parque Estadual do Boguaçú, que praticamente ainda não saíram do papel. A gestão da APA se propõe participativa e paritária (poder público e sociedade civil), por meio de um colegiado que é seu principal instrumento, o Conselho Gestor (CG) criado em 2006, cujo 14 objetivo é tornar compatíveis os diversos usos do território e dos recursos com os objetivos da conservação da natureza, ou seja, tornar esses usos ambientalmente “sustentáveis” via ordenamento territorial das atividades humanas cobertas pela UC (IAP, 2006; FERREIRA, 2010). Por conta do vasto território da APA é possível verificar múltiplos modos de ocupação e o uso dos recursos naturais, que representam um cenário de transformações regionais. Ao norte encontra-se o polo portuário de Paranaguá, a leste a orla litorânea com crescente desenvolvimento do turismo e do lazer, levando à intensa especulação imobiliária, e a oeste a Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Em seu “miolo” na parte rural do município de Guaratuba, no litoral sul paranaense, estão atores econômicos que se dedicam à atividade de reflorestamento, à produção de banana e arroz, atravessadores de cipó e caranguejo, bem como extensionistas técnicos e universitários, pesquisadores e ativistas ambientais filiados a ONGs, gestores ambientais, turistas e os próprios moradores dos bairros rurais. Esses grupos sociais possuem interesses, valores, visões de mundo e motivações representados por institucionalidades diferentes, e interagem direta e indiretamente não só por meio da paisagem compartilhada e disputada para diversos fins, mas também por regras divergentes, que operam assimetricamente em disputas pela legitimidade da ocupação. Até o mais distraído visitante que chega aos lugarejos ao redor da Baía de Guaratuba percebe uma “vizinhança misturada”, não importa se o longo caminho foi feito pelos rios ou pelas estradas de terra. Ao sair das rodovias estaduais em direção ao estuário por estradas de chão batido, a ocupação humana se dispersa entre trechos de floresta nativa que parecem sem dono, “um mar” de pinheirais geometricamente plantados cercados e finos córregos que atravessam a estradinha de terra e levam aos rios que desembocam no estuário. Eventualmente um ou outro caminhão com toras de madeira ou carros com famílias passam desviando lentamente dos buracos; mais a frente, nas bifurcações aparecem placas indicando a direção de rios, de pousadas remotas e de “comunidades” ou vilas rurais de povoamento antigo, chamadas localmente de Sítios2. A partir daí, a ocupação vai se adensando à beira da estradinha de terra e nas suas 2 Trata-se de um tipo de bairro ou vila rural de povoamento antigo, definido como Sítio pelos próprios moradores. Já quando o leitor encontrar o termo chácara, no referimos aos ranchos ou pequenas posses das famílias que, em seu conjunto, conformam um Sítio. 15 ramificações, entre coloridas casas de veraneio muradas e desocupadas, fazendas de búfalos com portais exuberantes cercados por palmitais e mais e mais pinheiros monotonamente enfileirados, que logo terminarão em algum bairro ou Sítio, onde finalmente se começa a ver pessoas circulando, conversando e trabalhando. Nos Sítios estuarinos moram famílias nativas, pequenos produtores posseiros (sem titularidade da terra) com baixa escolaridade, que vivem do trabalho na terra e da exploração dos recursos naturais por meio do agro extrativismo, da pesca, do artesanato, pequeno comércio, do turismo, mas também do assalariamento e da aposentadoria (SONDA, 2002). O quadro de relações sociais constituído no passado recente insere as populações permanentes em um cenário complexo e contraditório de oportunidades, pressões e restrições que ressignificam seu modo de vida e alteram sua organização social e lhes exige a tomada de novas decisões e a reelaboração de seu modo de vida, não só em situações de conflito mas também de aliança entre os diferentes segmentos sociais. Os sujeitos sociais foco da pesquisa são as vinte e quatro famílias aparentadas entre si que vivem por mais de quatro gerações em um Sítio formado há mais de um século por três fundadores que ali constituíram família, que tem, portanto, a especificidade de se tratar de uma comunidade de parentesco. Os elementos fundamentais da sua formação social, como sua estrutura fundiária, a organização familiar do trabalho, dinâmicas de migração e casamento, pluriatividades para obtenção de renda, sua relação com atores externos não se encontram cristalizadas, mas estão em processo de reinvenção. Na origem das mudanças que interferem na organização do Sítio parecem estar fatores de ordem econômica moderna e de mercado (empresa de reflorestamento, por exemplo; assim como dinâmica do emprego e de renda) e política (políticas de Estado e suas formas de controle e organização administrativa), fatores de caráter exógeno, mas também fatores endógenos, próprios da organização interna da comunidade (estrutura familiar e fundiária, organização do trabalho, tempo de lazer etc.) que se altera em função de sua relação com os fatores externos à vida no Sitio. Levando em conta a particularidade das relações sociais que se desdobram no processo de modernização do litoral paranaense e do quadro coercitivo bastante diverso 16 que se produz, dado por alterações na forma de acesso à terra, renda, emprego, escolaridade, sociabilidade e na relação com as instâncias de poder do estado, qual seria então o papel de resistência desempenhado pelas famílias? Essa é a questão principal sob a qual se debruça a presente pesquisa. O leitor encontrará o estudo dividido em quatro capítulos. No primeiro constam a apresentação do problema, bem como delimitação do objeto, objetivos e aspectos metodológicos de construção da pesquisa. O primeiro capítulo apresenta ainda um breve balanço do debate em torno das tendências históricas e dos aspectos estruturais que ameaçam os modelos de organização comunitária. O segundo capítulo mostra uma “fotografia” de como se estrutura atualmente o Sítio foco desta pesquisa e as pressões sociais que se lhes impõem, e inclui uma abordagem teórica com discussões que de certa forma complementam a teoria do campesinato, a exemplo do tema do território/territorialidades e teoria dos bens comuns, conjugados com o conceito de conflito. O terceiro capítulo apresenta os pormenores da realidade social do Sítio, buscando evidenciar indicadores de mudança na sua formação social, com um olhar pormenorizado sobre alguns elementos em transformação, como as normas de casamento, emigração e herança, a estrutura fundiária, a diversificação produtiva e de fontes de renda e auto consumo, bem como relações de conflito e aliança com atores externos ao Sítio. Ao mesmo tempo, faz-se um diálogo com estudos de outros autores, que ora se aproximam do contexto da presente pesquisa, ora se distanciam. Por fim, a conclusão traz algumas reflexões sobre o quadro empírico encontrado bem como sobre o exercício de tensionamento entre categorias empíricas e teóricas identificadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa. 17 1 INTRODUÇÃO 1.1 Construindo a pesquisa A presente dissertação é fruto das discussões, leituras e experiências de que eu me aproximei há pouco mais de dois anos. Meu ingresso no mestrado em Sociologia se deu com um projeto de continuidade do tema da monografia de graduação, inicialmente bastante diferente daquele que originou a presente dissertação. O tema foi redefinido apenas no segundo semestre de 2010, quando eu me inseri na linha de pesquisa Ruralidades e Meio Ambiente. Essa escolha foi influenciada pelo meu ingresso, no mesmo ano, no Curso Multidisciplinar de Especialização em Meio Ambiente, Educação e Desenvolvimento no Programa do MADE da UFPR, em que as leituras, as discussões em sala de aula com professores de diversas áreas do conhecimento e as viagens de campo me apresentaram perspectivas instigantes sobre a questão ambiental até então inéditas para mim, e me inspiraram a tomar a difícil decisão de mudar de tema. Uma temática em especial me interessou, inscrita na sociologia ambiental, a dos conflitos ambientais no ambiente rural, entrelaçada com a problemática da presença humana em áreas naturais protegidas e das lutas camponesas e indígenas por território. O primeiro passo no sentido da delimitação do tema foi realizar um breve levantamento de artigos científicos, dissertações e teses, produzidos em diversas regiões do país e dentro do Paraná, que tratassem da intersecção do debate acerca de populações rurais e políticas ambientais. Chamou minha atenção o grande número de estudos sobre as chamadas Populações e Comunidades Tradicionais (PCT), particularmente aquelas que mencionavam os Caiçaras da Mata Atlântica, camponeses que habitam a região costeira que vai do Rio de Janeiro até Santa Catarina, onde que pela proximidade eu poderia acessar durante a pesquisa de campo. Tais estudos conduziam para a discussão acerca das ameaças ao modo de vida Caiçara e a seu conhecimento tradicional, seu modo de gerir os recursos naturais relacionado com o ambiente marinho (CREADO ET AL, 2008; CASTRO et al, 2005; ARRUDA, 1999; ADAMS, 2000a, 2000b, 2002; DIEGUES1995, 2001a, 2001b; 18 CUNHA, 2004; CUNHA, ALMEIDA, 2001). Meu primeiro estranhamento em relação ao termo “Caiçara” quando li pesquisas sobre PCT tinha a ver com a minha própria experiência pessoal quando durante a adolescência me mudei da capital paulista onde nasci para morar com a família em Praia Grande e Santos, municípios urbanos no litoral paulista que recebem centenas de milhares de turistas da capital e do interior paulistas. À época, percebemos a diferenciação e o preconceito que havia de quem estava na condição de “paulista” e quem estava na condição de “caiçara”, este como o nativo que trabalha em função das férias daquele e que, “ignorante sem futuro”, que só conseguia superar aquele no surfe. Os nativos entendiam o termo como pejorativo e depreciativo, como de fato se caracteriza a relação entre “paulistas” e nativos litorâneos, nos balneários urbanizados da Baixada. Foi assim que conheci o termo Caiçara, traduzindo o descaso por um segmento subalterno presente no processo de urbanização do litoral paulista, portanto, em nada associado à luta de movimentos sociais no campo. Cristina Adams (2002, p. 35) já havia percebido que, desde a primeira metade do século XX, a palavra “Caiçara” evoca a figura estereotipada de um sujeito preguiçoso, ébrio, indolente e não confiável que mora na costa sudeste brasileira entendida como atrasada, subdesenvolvida, pobre, onde a malária era endêmica. Para ela, em grande parte dos estudos sobre a população Caiçara, a denominação (de sujeitos que não se auto reconheciam como tal) era inicialmente pejorativa foi ressignificada publicamente, no bojo da luta por direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT), passando vincular a identidade Caiçara com um modo de vida em estreita conexão com a natureza (DIEGUES, 1995, 2001a, 2001b; ARRUDA, 1999; CUNHA, ALMEIDA, 2001; LOBÃO, 2006; ADAMS, 2000a, 2000b). Quando refinei a busca para a população rural do litoral paranaense, os estudos encontrados abordavam sobretudo o litoral norte, em parte do Complexo Estuarino Lagunar Cananeia Iguape Paranaguá, na forma de diagnósticos interdisciplinares que subsidiavam a política de conservação da natureza em implementação desde a década de 80. Foi nesse levantamento prévio, em que se enfileirou uma exaustiva produção sobre o litoral norte, tratando especialmente das áreas protegidas em Guaraqueçaba e na Baía de Paranaguá, que observei a ausência ou uma lacuna na produção acadêmica que cruzasse 19 abordagens sobre as populações litorâneas e o estabelecimento de diversos tipos de UCs no estuário sul paranaense3, a Baía de Guaratuba, para a qual finalmente dirigi a reelaboração do projeto. A maior parte das pesquisas que mencionam as populações rurais do litoral sul (SONDA, 2002; VALENTE, 2009; CECCON-VALENTE, 2009; BALZON, 2006; FERREIRA, 2010) são das ciências naturais, realizados como subsídio ao manejo dos Produtos Florestais Não-Madeireiros (PFNM) na forma de extrativismo vegetal (cipó, musgo, samambaia, guarnicana) no interior da APA de Guaratuba; os quais se referiam a elas como “comunidades tradicionais”, “população local” ou “caiçaras” ou “caiçaras rurais”. Uma das teses encontradas (FERREIRA, 2010) faz referência ao extrativismo do cipó, aos conflitos fundiários e à importância do trabalho de extensão universitária da UFPR Litoral em uma comunidade Caiçara rural. Por sua vez, na tese de Andriguetto Filho (1999) sobre a pequena pesca no litoral do Paraná, as populações locais são referidas como “ribeirinhas” ou “comunidades agro extrativistas”. A tese de Andriguetto chega a afirmar que as vilas ribeirinhas da baía de Guaratuba, dentre elas o Pirizal, apresentariam a tendência a desaparecerem (ANDRIGUETTO FILHO, 1999, 2003). Outras fontes importantes foram os produtos da mobilização da Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais (doravante Rede Puxirão) e do Movimento Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras (MICI) – cartografia social, filipetas, blog, notícias –, bem como o mapa oficial do Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Paraná (ITCG) sobre as Comunidades Tradicionais no Paraná com o título “Terras e Territórios Quilombolas, Indígenas, Faxinais, Ilhéus e Cipozeiras no estado do Paraná – 2010" (ITCG, 2010), subsidiado com dados fornecidos por movimentos sociais paranaenses. Tanto o site da Rede Puxirão quanto o mapa do ITCG se referem às comunidades rurais do estuário de Guaratuba como Cipozeiros. De modo geral, essas designações especificam suas práticas produtivas dependentes dos recursos naturais e reforçam a necessidade de um compromisso da população rural do estuário com a conservação da natureza e de diálogo direto com representantes do poder público. 3 Os estudos localizados, mais significativos nesse esforço, são Miguel e Zanoni (1998), Teixeira (2004), Francisco (2004), Andriguetto Filho (1990) e Ferreira (2010), os quais dirigem o olhar para as populações habitantes sob a ótica dos entraves da política ambiental e agrícola enfrentados pela agricultura familiar e pesca, levando em conta fatores de ordem socioeconômica, política e ambiental. 20 O primeiro esboço do projeto, submetido ao grupo da linha de pesquisa, trazia a questão dos arranjos institucionais em torno dos bens comuns, e o caso empírico do extrativismo do cipó pela população rural no litoral paranaense, no interior da APA de Guaratuba. Em agosto de 2010 comecei a pesquisa de campo indo pela primeira vez à reunião ordinária do Conselho Gestor (CG) da APA de Guaratuba, onde eu esperava encontrar representantes da população chamada, nos estudos e em publicações oficiais, de “Cipozeiros”, Comunidades Tradicionais e Caiçaras. No entanto, não só as populações rurais estavam ausentes dessa reunião em que grupos organizados e instituições discutem os rumos da gestão do território e de recursos naturais na APA, como não havia nesse dia nenhum outro morador que representasse no conselho o interesse das famílias antigas de pequenos agroextrativistas e pescadores, que vivem nas comunidades rurais de Guaratuba. Na reunião seguinte do CG, no final de 2010, conheci a liderança das comunidades rurais do estuário, pescador aposentado, e uma professora da UFPR Litoral que coordena um projeto de extensão nessa comunidade, convidados do dia, no contexto da pauta sobre conflitos fundiários solicitada pela professora. As falas dos dois sublinharam o histórico de invisibilidade das comunidades de “Caiçaras rurais”, posseiros que haviam perdido terra para a extinta madeireira Faber Castel, através de grilagem, de ameaça de violência e compras irregulares no final da década de 70. Hoje, uma outra madeireira, a Comfloresta, reivindicava o usucapião de áreas onde vivem moradores nativos, basicamente lavradores e pescadores, segundo a professora havia verificado em cartórios do município. Eles acrescentaram que a falta de terra levou ao êxodo e restringiu as opções produtivas dos que ficaram, recorrendo ao extrativismo do cipó, desestruturando o grupo e dificultando a permanência das famílias remanescentes. Nessa ocasião de denúncia apresentada publicamente ao CG por eles, ainda não estava clara a relação das comunidades que ele representava, que realizavam do extrativismo vegetal, com o MICI e a Rede Puxirão, pois sua interlocução parecia estar mais consolidada com o grupo de extensão da UFPR Litoral. Era mais que necessário acessar diretamente os próprios moradores e suas lideranças para entender, a partir da perspectiva deles, os conflitos na região. Nessa fase ainda, o professor Osvaldo Heller, em reunião da linha de pesquisa, 21 comentou sobre a relação de um de seus orientandos do doutorado com a Rede Puxirão, de que faz parte o MICI. Depois de entrar em contato com ele, assessor da Rede Puxirão e até então doutorando do mesmo programa PPGSocio, eu assisti à sua banca de defesa de doutoramento sobre o movimento social dos Povos Faxinalenses, também associado à Rede Puxirão, e pedi mais informações sobre o cronograma de encontros públicos do MICI, no esforço de encontrar com os extrativistas pessoalmente. Fui informada por outros assessores do evento que haveria em dezembro de 2010, o 1° Encontro Interestadual dos Cipozeiros e Cipozeiras em Garuva – SC, onde eu encontrei com representantes dos moradores do Sítio Pirizal três meses depois, levados pela professora extensionista e pela liderança local. O objetivo anunciado do evento, promovido pela Rede Puxirão e por pesquisadores acadêmicos da UFPR e UDESC, era “garantir a visibilidade e a troca de experiências entre os Cipozeiros do Paraná e Santa Catarina visando o estabelecimento de propostas que fortaleçam o reconhecimento de seus direitos”, por meio de denúncias e demandas feitas diante de representantes do poder púbico convidados para aquele dia: funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e Ministério Público Estadual (MPE). Na ocasião, aconteceram a inauguração da Feira Interestadual de Cipozeiros e Cipozeiras e o lançamento oficial do Mapeamento Situacional dos Cipozeiros e Cipozeiras, este último realizado com apoio técnico de pesquisadores da UFPR e UDESC e do Projeto Nova Cartografia Social (PNCS) dos Povos da Amazônia. Os representantes do MICI e os pesquisadores apoiadores apresentaram o processo de levantamento cartográfico do extrativismo vegetal nas florestas entre Garuva e o litoral sul do Paraná e também demonstraram a motivação de fortalecer o contato com os extrativistas da área rural de Guaratuba que meses antes haviam sido visitados para responder ao Mapeamento Situacional. Destes últimos, foram ao encontro cerca de quinze moradores de três bairros rurais, entre eles o Sítio Pirizal e o Sitio onde mora a liderança que os estava representando. No entanto, para minha surpresa depois de ter lido as pesquisas sobre os PFNM e o mapa do ITCG (2010), eles manifestaram publicamente que o extrativismo do cipó não era a atividade principal da região e que não se identificavam com a mobilização política dos Cipozeiros de Garuva. 22 Naquele encontro, os Cipozeiros denunciaram diante de órgãos ambientais e do MPE os conflitos fundiários e a opressão violenta da parte de palmiteiros, fazendeiros e jagunços que dominam as áreas onde ocorre a extração de cipó em Garuva. Já o representante de Guaratuba, apoiado pela professora extensionista da UFPR Litoral, relatou novamente as denúncias apresentadas no CG, assinalando que os principais obstáculos para a permanência das famílias da sua comunidade, bastante pauperizada e sem alternativas para a sobrevivência, eram a fiscalização e repressão violenta da parte da Força Verde e a tomada de terras por empresas de reflorestamento de pinus que chegaram nos anos 70 (a extinta Faber Castel e a Comfloresta/Brascan atuante até hoje em Santa Catarina e Paraná). Embora o sentimento de usurpação, expresso nas narrativas dos membros do MICI e do senhor que representava Guaratuba, fosse comum aos grupos paranaenses e catarinenses, a adesão ao MICI não ocorreu. A liderança vive em uma comunidade que vem sendo apoiada por extensionistas universitários, o que ajudou a delimitar a percepção do conflito e a denunciá-lo. No diálogo com o MICI, o pescador aposentado reivindicou a lavoura como atividade fundamental, mais importante que o cipó, e explicou que a atividade extrativista das famílias da região acontecia de forma complementar e secundária, justamente pela dificuldade no acesso à terra produto do conflito fundiário com empresas madeireiras, o que para eles diferenciava os conflitos apontados pelos Cipozeiros dos enfrentados na sua comunidade. Desde o encontro com o MICI, quando eu escutei o testemunho da liderança e mesmo antes, no CG da APA, ficou claro que o modo de vida atual nos Sítios de Guaratuba não poderia ser entendido sem que eu levasse em consideração as pressões tanto do estabelecimento do empreendimento de reflorestamento quanto a consolidação do controle ambiental no litoral sobre o modo de vida local. Logo depois do I Encontro do MICI, ainda no começo de 2011, a liderança e membros do MICI e pesquisadores acadêmicos que assessoram a Rede Puxirão foram até o Pirizal para tentar uma nova articulação com as famílias dos Sítios locais que realizavam o extrativismo, e apresentar o argumento de que os conflitos e os antagonistas, bem como as demandas, eram parecidas, pois estas se enquadravam nos direitos dos PCT, caminho de luta trilhado pela Rede Puxirão. Dessa vez, entre iguais e sem a presença de 23 representantes do estado, as famílias falaram com menos receio dos desmandos e da truculência da Força Verde na fiscalização em busca de caça e corte de palmito, para comercialização, encontrando somente famílias que sem ter o que comer caçavam para subsistência. Mais uma vez afirmaram, junto com uma estudante que representava o grupo de extensão da UFPR Litoral, que o extrativismo era secundários para eles, que o importante era a terra que havia sido reduzida em decorrência dos conflitos com as madeireiras Faber Castel e Comfloresta, no passado e no presente. Mas recusaram novamente o convite de integrarem a mobilização do MICI. No começo das atividades de campo, em 2011, tive a chance de conhecer a diversidade de movimentos sociais que fazem parte da Rede Puxirão, particularmente o MICI e a APF (Articulação de Povos Faxinalenses), quando entrei em contato com um grupo de extensão da Geografia da UFPR que colaboravam com a rede. Como voluntária em oficinas promovidas com a contribuição de alunos e professores, pude acompanhar alguns momentos da mobilização faxinalense em torno da sua luta por reconhecimento de direitos territoriais e identitários. As reuniões promovidas junto com diversos movimentos da Rede Puxirão (Pescadores Artesanais, Faxinalenses, Indígenas, Quilombolas, Cipozeiros entre outros), com representantes do IAP, ICMBio e MPE (como aquela do MICI em Garuva), em oficinas de cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Paraná, mobilizações intra comunitárias dos faxinalenses, foram definidas como foco da monografia de especialização4 defendida em 2011, em que eu pude conhecer um pouco mais os conflitos fundiários e os antagonistas do movimento e da rede estadual, bem como a articulação com a política ambiental do estado, no interior do Paraná. Essas vivências empíricas alteraram minhas perguntas feitas para teoria e mesmo para o campo e, consequentemente, o processo de desenvolvimento de ambos os estudos, a dissertação e a monografia de especialização. A literatura recente sobre os Caiçaras e PCT e minha aproximação aos contextos públicos de luta e organização de movimentos sociais paranaense constituíram as referências principais por meio das quais eu procurava olhar o contexto das populações rurais do litoral paranaense. 4 Monografia de título “A reconstituição da identidade política faxinalense a partir da oficina de fitoterapia animal e dos sonhos para o futuro: reflexões acerca da história e reconhecimento do movimento” (SANT' ANA, 2011). 24 Ocorreu assim uma redefinição no foco de abordagem, pela desconstrução de uma imagem apresentada por alguns estudos e documentos sobre o Litoral, que não correspondiam (ou condiziam) com o que fui percebendo com as observações iniciais, os aspectos vinculados às estratégias de reprodução social do Pirizal no contexto de uma forte intervenção “modernizadora”, por parte de agentes externos, com repercussões sobre a região sul do Litoral paranaense e consequentemente sobre a própria dinâmica interna da formação social em questão. De fato, devido à minha trajetória dentro dos dois cursos, meu contato com a literatura sobre campesinato se deu tardiamente, já ao longo da pesquisa de campo, o que teve influência sobre o processo de construção e fechamento do texto e sobre a forma como eu pude dialogar com os autores identificados. Em certa medida, é possível traçar semelhanças entre as circunstâncias estruturais das pressões enfrentados pelos Caiçaras, Faxinalenses, Cipozeiros e pela população rural de Guaratuba, derivadas da expansão da grande propriedade e do agronegócio, da especulação imobiliária pelo turismo e do espraiamento da regulação ambiental e do processo de ordenamento territorial pelo estado, por exemplo, além de poderem contar com o apoio de acadêmicos e de movimentos sociais. Porém, a despeito do que há em comum, certas condições históricas e mecanismos sociais peculiares a cada situação permitiram o desenvolvimento de diferentes padrões de estratégias e arranjos de ação em seu interior. É para o entendimento da especificidade das condições sociais e políticas do litoral sul paranaense e das formas de resistência dos sitiantes que o presente estudo pretende contribuir. Os estudos sobre extrativismo vegetal na APA, o mapa do ITCG (2010) e mesmo a chamada na reunião do MICI em Garuva em dezembro de 2010 davam a entender que havia ali um movimento organizado que denunciava conflitos e reivindicava a identidade de pequenos extrativistas e agricultores no diálogo com órgãos ambientais em prol da proteção da biodiversidade, quando de fato os moradores dos Sítios de Guaratuba não aderiram ao MICI, tampouco participavam da gestão da APA. Ademais, as denúncias feitas contra a antiga madeireira pela liderança de Guaratuba retratavam uma realidade de esvaziamento demográfico e pauperização específica a este Sítio estuarino, e refletiam em grande medida o apoio e a interlocução com o grupo extensionista. Observei o silêncio dos moradores do Pirizal nas duas reuniões com o MICI e sua 25 distância do Conselho, em situações em que outros grupos falaram em nome deles em espaços públicos buscando denunciar seus conflitos locais. Tais estratégias de luta, de participação e de alianças que foram apresentadas aos sitiantes do Pirizal não lhes interessaram a ponto de atrair seu engajamento e adesão; eles pareciam seguir outros modelos de ação política possibilitadas por mecanismos sociais diferentes, longe dos espaços públicos mais visíveis acessados pelos movimentos sociais. Isso se contrasta com os posicionamentos políticos mais objetivos na luta pública dos Faxinalenses, dos Cipozeiros e da comunidade apoiada pelos extensionistas da UFPR, diante de conflitos tratados e denunciados por eles como agudos, com a identificação clara de seus objetivos, antagonistas e de suas alianças. A pergunta que emergiu desses dados iniciais era: quais seriam suas formas alternativas de elaborar modos de ação particulares? Representam decisões familiares ou do Sítio como um todo? Baseados em quais valores e interesses e possibilitada por quais condições sociais? As pressões externas levam as famílias e o Sítio a qual situação? 1.2 O que a literatura nos diz? A análise das metamorfoses da organização social do Sítio se inspira em autores do conflito e da mudança social e ao mesmo tempo faz referência ao debate sociológico sobre campesinato, populações autóctones, ou locais, e da sua territorialidade específica, temas abordados também pelos estudos das novas ruralidades e os estudos da resistência cotidiana que são colocados em diálogo aqui com a teoria dos comuns 5. A literatura em torno das tendências históricas que ameaçam os modelos de organização comunitária e das diversas estratégias de resistência acionadas frente a elas está consolidada nas ciências sociais e, nas suas diversas abordagens, esses estudos podem ser agrupados, grosso modo, em duas correntes. Simplificadamente, é possível dizer que, de um lado, estão as posições que destacam a modernização inexorável que determina a descampenização e, de outro, as posições que destacam a resiliência e autonomia de 5 Entre os autores principais que influenciaram diretamente as análises no presente estudo, cf. Simmel (1983); Neves (1985); Wanderley (1996, 2000, 2001, 2003, 2004); Almeida (1986); Bourdieu (1972, 1998); Seyferth (1985); Moura (1978); Woortman (1990a, 1990b); Cunha e Almeida (2001); Almeida (2009); Brandenburg (2005, 2010); Adams (2000); Creado et al. (2008); Scott (1976, 2002); Monsma (2000); Canclíni (2008); Ostrom (1990); Cunha (2004); Campos (2011). 26 camponeses e indígenas6 e seu protagonismo como ator político na luta por direitos (CANDIDO, 1977; QUEIROZ, 1973; BRANDENBURG, 2010; CANCLÍNI, 1990; WANDERLEY, 2000; NEVES, 1985). Primeiramente, a interpretação clássica inspirada no marxismo avalia como inevitáveis as mudanças engendradas pelo avanço avassalador do mercado capitalista e do progresso sobre as formas de produção pré-modernas que têm na agricultura camponesa ou familiar suas bases fundamentais7. São exemplos autores clássicos como Kautsky e Lênin que “profetizaram” o fim das formas não tipicamente capitalistas da produção submetidas às forças macro econômicas e ao projeto modernizador. No Brasil, cabe ressaltar os estudos de comunidades8 realizados principalmente entre as décadas de 1940 e 1960, os quais se preocupavam com mudanças econômicas em grande escala com o potencial de gerar alterações demográficas, migração e pauperização nas cidades e no campo. Apoiados em noções como assimilação e aculturação, debruçaram-se sobre os efeitos de desintegração que a modernização e processos urbano industriais exercem sobre o modo de vida camponês, conduzindo a novas configurações sociais, desequilibradas e em vias de desorganização. Os estudos comunidades caracterizaram e definiram a comunidade rural em consonância com as ideias de Mendras (1978), focadas no desenvolvimento de relações de inter conhecimento, de formas de solidariedade social, relações de confiança, sentimento de pertencer a um lugar sob o ponto de vista geográfico e social (BRANDENBURG, 2010). Duas referências emblemáticas desse momento são Maria Izaura de Queiroz e 6 7 8 Isto é destacado, por exemplo, por Chayanov, Mendras e recentemente revisitado por Ploeg. Ver, respectivamente: CHAYANOV, Alexander V. La Organización de La Unidad Econômica Campesina. Bueno Aires: Ediciones Nueva Vision, 1974; MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978; PLOEG, J. D. van der. Camponeses e Impérios Alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2008. Esse argumento pode ser encontrado nas obras: LÊNIN, V. I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. O processo de formação do mercado interno para a grande indústria. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985; KAUTSKY, K. A questão agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986. Pesquisas de cunho antropológico influenciadas pela produção da Escola de Chicago. Para saber mais, ver: OLIVEIRA, Lucia L. Do Caipira Picando Fumo a Chitãozinho e Xororó, ou da roça ao rodeio. Revista da USP, São Paulo, n. 59, nov. 2003; MENDOZA, Edgar S. G. Donald Pierson e a escola sociológica de Chicago no Brasil: os estudos urbanos na cidade de São Paulo (1935-1950). Sociologias, Porto Alegre, n. 14, dez. 2005; GUIMARAES, Rafael E. Os estudos de comunidade e urbanos coordenados por Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Cadernos CERU, São Paulo, v. 22, n. 1, jun. 2011. 27 Antônio Cândido, sobre as transformações da cultura caipira e dos bairros rurais paulistas em decorrência da expansão da cultura urbana e da grande propriedade, que redefinem a relação entre rural e urbano (WANDERLEY, ?). Destacam a questão da busca de terras e mobilidade, a centralidade da vida religiosa como elemento de sociabilidade, além do impacto das relações familiares e de vizinhança sobre o sistema de reciprocidade. Adotando uma ótica pessimista, para ambos, o progresso culminaria na desintegração do modo de vida caipira. Devido a sua fragilidade diante das mudanças, o caipira acaba sendo integrado a relações de troca deterioradas e à cultura urbana. Os estudos de comunidade desenvolvidos nessa época foram fundamentais para as análises posteriores sobre as sociedades rurais brasileiras, haja visto que impulsionaram temáticas candentes até hoje, como dinâmicas migratórias camponesas, descrição ecológica dos espaços rurais, relações de parentesco e vizinhança e laços de reciprocidade. No entanto, recebem a crítica de que ao caipira não era atribuído um potencial de inovação, capacidade de resistência e reinvenção das suas estratégias voltadas à reprodução social. Além de se tratar do momento da institucionalização das ciências sociais no Brasil9, que buscava superar o ensaísmo na direção do cientificismo, o foco privilegiado dos cientistas sociais era o caráter nacional do Brasil e o desenvolvimentismo latino-americano, engajados na condução do país à Modernidade. Essa preocupação não era sem razão, tendo em vista uma crise estrutural da sociedade brasileira e latino-americana que tendia a superar o agrarismo e a questão social e política (crise do Estado), em direção às teorias da modernização e da industrialização, quando o país passava para a segunda metade do século XX focado em um projeto de desenvolvimento. Não obstante, a persistência de valores e visões de mundo próprios ao campesinato em contextos mais amplos de modernização e globalização na contemporaneidade trouxe novas consequências para a maioria das construções teóricas sobre o rural que sugeriam o seu fatal desaparecimento (WANDERLEY, 2000). Como contraponto aos primeiros estudos “clássicos” que apresentavam o campesinato (como modo de produção) em decomposição, emergem novas leituras que deslocam suas análises para temas mais antropo sociológicos, com posições matizadas 9 Cf. OLIVEIRA, Nemuel S.; MAIO, Marcos C. Estudos de Comunidade e ciências sociais no Brasil. Soc. estado., Brasília, v. 26, n. 3, dez. 2011. 28 baseadas diferentes premissas teóricas. Surgem enfoques que recolocam o papel do camponês como ator social capaz de alterar e participar da construção da sua relação com a sociedade englobante e registrando formas de resiliência camponesa bem como suas conquistas políticas. Ganha importância a compreensão das organizações camponesas, tais como sindicatos, ligas camponesas, movimentos sociais ou partidos populares, como as formas mais importantes da luta social e da mudança social (SCOTT, 1985, 2002). Trata-se de discussões sobre cultura, identidade, modo de vida, enfoques críticos às práticas hegemônicas do mercado e, mais recentemente, abordagens sobre conhecimento tradicional e exemplos bem sucedidos de gestão ambiental (WOORTMAN, 1990a, NEVES, 1995, 2008; BRAMDERBURG, 2010; MALAGODI, 2009; ALMEIDA, 2008; CUNHA, ALMEIDA, 2001). No interior da crise do processo de expansão do capitalismo e sua consequente destruição dos recursos naturais, chama atenção o processo de expulsão camponesa e indígena do campo. Mais recentemente, as preocupações globais em torno da degradação ambiental e depleção de recursos naturais passaram a olhar com mais atenção para as modalidades de acesso e apropriação dos recursos naturais em pequena escala, a escala comunitária de gestão ambiental enraizada nas práticas de milhares de unidades sociais camponesas ao redor do mundo, concedendo certa legitimidade aos camponeses como atores bem sucedidos na conservação ambiental (OSTROM, 1990, 2005; FEENY et al., 2001; AGRAWAL, 2003; BERKES et al., 1998; CUNHA, 2004; DIEGUES, 1995, 2001a, 2001b; LEFF, 2010; GUHA e MARTINEZ-ALIER, 1997; MARTINEZ-ALIER, 2007; ALMEIDA, 2009; CAMPOS, 2011). Nesse contexto, o final dos anos 80 foi paradigmático, na confluência da constituinte, como o momento, de interlocução de setores do ambientalismo internacional, mais atentos às questões sociais na Amazônia e demais fronteiras agrícolas, com movimentos sociais rurais, reconhecidos juridicamente como PCT, abrindo precedentes para sua participação política nas questões envolvendo seu território produtivo (CUNHA, ALMEIDA, 2001; CREADO et al., 2008; LOBÃO, 2006). No caso da Mata Atlântica em especial, a expansão da política ambiental na forma de UCs restritivas sobre os territórios Caiçaras aqueceu o debate sobre a permanência de PCT em Parques. O texto mais emblemático é o livro “O mito da natureza intocada”, de 29 Diegues. Nos embates públicos, parte de processos decisórios, a comunidade acadêmica foi chamada e se dividiu politicamente ente entre dois posicionamentos, os preservacionistas e os antropocentristas. Estes últimos defenderam a identidade Caiçara como Povos e Comunidades Tradicionais com modo de vida “ecologicamente correto”, para justificar a permanência das populações litorâneas em UCs de proteção integral pelo critério da tradicionalidade como garantia da sustentabilidade dos recursos e, assim, refutar o argumento central do modelo da “tragédia dos comuns”10, acionado pelos preservacionistas (ADAMS, 2000b; ADAMS, 2002; CASTRO et al., 2006). O grupo definido como antropocentristas defende que os PCT são vítimas da degradação, no que chamaram de “tragédia dos comunitários” (DIEGUES, 1995, 2001a; CUNHA, ALMEIDA, 2001; ADAMS, 2002). As características do pescador familiar tradicional, dotado de um mundo simbólico marítimo (DIEGUES, 1995, 2001a) foram enfatizadas, ao passo que as formas de gestão dos recursos da floresta e atividades agroextrativistas que impactavam diretamente a vegetação e que caracterizavam essencialmente como lavrador no passado foram ofuscadas para reforçar o argumento da simbiose coma natureza e justificar seu direito de permanência (ADAMS, 2000b). Ao avaliarem a política de conservação no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, Castro e colaboradores (2006) concluíram que a concepção de PCT como atores sociais que negociam na arena ambiental seu papel e seus direitos no interior das UCs acabaram gerando uma contraposição entre PCT e populações não-tradicionais, em termos de distribuição preferencial de políticas públicas e reconhecimento social. A imagem “intocada” da cultura marítima tradicional do Caiçara teria sido construída, portanto, em contraste com as estratégias alternativas dos não tradicionais, através da assimilação de valores urbanos e constituição dos bairros rurais organizados em pequenas propriedades privadas, assalariamento na agricultura modernizada e predatória, por exemplo. Adams procura demonstrar mostra que, historicamente, as práticas de subsistência 10 Tragédia dos comuns, segundo a qual a autogestão dos bens naturais submetida aos próprios usuários acaba acarretando seu esgotamento. Este debate já foi bastante explorado, mas será tratado mais adiante. Para saber mais, cf. Ostrom (1990) e HARDIN, Garret. La tragedia de los espacios colectivos. In: DALY, Herman E (org.). Economía, Ecología, Ética: Ensayos hacia una Economía en Estado Estacionario. México: Fondo de Cultura Económica, 1989. 30 adotadas pelas populações caiçaras variam muito, de acordo com as oportunidades e restrições, e nem sempre estiveram diretamente voltadas à natureza, mas também aos ciclos de desenvolvimento regional, a exemplo da participação dessas populações na construção naval, mineração, cultivo comercial de banana, anil e fumo, pesca comercial da baleia, trabalho em serrarias e fornos de cerâmica. Isso demonstra a habilidade histórica do camponês para encontrar alternativas e se articular a um contexto econômico em constante mudança, que pode ser exemplificada pela “incorporação do barco a motor ao litoral de São Paulo, no início do século XX” (ADAMS, 2002, p. 35). A figura do camponês que dá vida ao Sítio, nos estudos de comunidade, foi deixada de lado na literatura sobre PCT da Mata Atlântica, frequentemente denunciado como destruidor dos recursos naturais sem que se realize uma contextualização sociopolítica e cultural que justifique seus comportamentos. Deste modo, Adams (2000a, 2000b, 2002) e Castro et al (2006) sugerem que características importantes que definem as comunidades caiçaras como agrícolas, mais próximas ao caipira paulista, na definição de Cândido (1977), não estão recebendo a consideração necessária na literatura (CASTRO et al., 2006). Apesar da grande proporção de grupos não-tradicionais vivendo na região da Mata Atlântica, discussões sobre PCT e sustentabilidade dos recursos naturais têm dominado a agenda de conservação ambiental, ao mesmo tempo em que deixa de lado os problemas socioeconômicos e políticos relacionados aos grupos não-tradicionais, sua importância cultural e histórica bem como seus direitos à terra e ao uso dos recursos. As dificuldades e demandas de grupos pobres do meio rural, desprovidos do traço de “tradicionalidade” sem acesso à cidadania ou a direitos específicos, não alcançam a esfera pública, uma vez que não são associados formalmente. Essa leitura é similar à de Sonda (2002) e Pierri (2003) sobre as populações rurais do litoral paranaense. Nessa direção de argumentação, assumo a proposição do cientista político James Scott (1976, 1985, 1990), e no Brasil de Sales et al. (1994), Telles (2001) e Elisa Reis (1995), segundo a qual, na maior parte do tempo, para a maior parte dos sujeitos sociais, a possibilidade de assembleia pública, a criação de organizações, ou de participação em processos democráticos simplesmente não existe. Conforme Scott (1976, 1985, 2002), as ciências sociais privilegiaram sobremaneira as lutas públicas das organizações 31 camponesas, movimentos sociais, sindicatos. Scott defende que a resistência da grande maioria de camponeses e indígenas não ganhou a esfera pública, está dispersa e pouco coordenada, e se expressa através de “formas cotidianas de resistência”. Conforme complementam Menezes e Malagodi (2009) e Menezes (2002), tratam-se de estratégias implementadas pelos camponeses, em condições muito adversas, para assegurar a reprodução da família no contexto de mudanças nos padrões culturais, políticos, econômicos e ecológicos. Essa dimensão “menos perceptível” da resistência camponesa ganhou pouco reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia É emblemático nesse sentido o conceito de “economia moral” desenvolvido por E. P. Thompson (1991) que inspirou o debate sobre resistência camponesa de James Scott (1976, 1985, 2002; MENEZES, 2002; MENEZES, MALAGODI, 2009). Thompson, analisando a cultura política dos amotinados ingleses em torno da eclosão da fome, mostrou como as normas sociais costumeiras e as regras de reciprocidade da multidão desfavorecida se confrontam com contextos históricos marcados pela economia de livre mercado, produzindo descontentamento moral bem como protestos públicos contra a exploração e injustiças exercidas pela classe dominante (THOMPSON, 1991; MENEZES, 2002). Do pensamento de Thompson, Scott assimilou a ideia central de que as relações econômicas são balizadas por regras não econômicas, o que lhe possibilitou olhar para a exploração entre elites agrárias e camponeses como uma questão moral (MENEZES, 2002; MONSMA, 2000). Scott se utiliza da noção de transcritos públicos (o que se manifesta transparentemente diante de outrem) e transcritos escondidos (boicotes, fofocas, piadas internas, saques ou manifestações secretas), entendidos como uma espécie de conhecimento prático acerca realidade, para explicar como os camponeses logram driblar as formas de exploração e injustiças via formas cotidianas de resistência (SCOTT, 2002; MOSNMA, 2000). A resistência camponesa, seja como meio de conferir a si mesmo vantagens imediatas e concretas seja como meio de negar recursos às classes apropriadoras, é considerada por Scott uma luta defensiva permanente que interage com as brechas que a classe dominante possibilita. Os estudos de Scott sobre o tema viraram uma grande referência nos estudos de campesinato e na sociologia rural. Entre estes se encontram os escritos de Monsma 32 (2000), que dialoga diretamente com esses estudos, cunhando a crítica de que o modelo de ação humana elaborado por Scott é deveras ingênuo e voluntarista na medida em que pressupõe que os seres humanos possuem a capacidade constante de elaborar novas escolhas para lidar com cada situação específica do cotidiano. Ao privilegiar um olhar sincrônico sobre a estrutura de dominação Scott teria superestimado o grau de entendimento discursivo e fenomenológico presente no transcrito escondido e o grau de consciência estratégica que mobilizaria a resistência. De outro lado, podemos considerar que a conduta humana resulta de códigos morais e de valores, ou seja, da internalização de normas e instituições, com sanções e incentivos, sugeridos de fora para dentro. A criação e o funcionamento dessas instituições são objetos constantes de disputa (BECKER, 2008; HALL, TAYLOR, 2005; OSTROM, 1999, 2005; ANDREWS; 2005). As instituições que rotinizam nossas condutas são múltiplos e coexistem, e podem resultar tanto da decisão de um ente externo (da gestão impessoal e burocrática da APA com o Plano de Manejo, por exemplo) ou de um acordo interno entre os membros de um grupo (como o controle criolo das áreas de roça de mandioca pelos parentes, por exemplo). Nesse sentido, Monsma sugere que os entendimentos parciais da interação e a resistência de pequena escala podem resultar em pequenas melhorias na vida dos subalternos mas ao mesmo tempo fortalecer aspectos importantes de dominação (SCOTT, 2002; MONSMA, 2000; SIGAUD, 1979a). Assim, a estrutura de dominação não seria o único elemento que determina o que é ou não resistência; sendo necessário entender a relação entre subalternos e elites inscritas nas suas condições de possibilidade, que depende o balanço entre dois níveis de situação: as mudanças no nível de repressão institucional e mudanças na organização social do Sítio. Na mesma direção, mas dentro de uma outra discussão teórica, Nestor Canclíni, em seus estudos sobre cultura e globalização, se refere a relações de opressão impessoais mediadas por mercados, instituições e procedimentos burocráticos, nas quais os subalternos lidam com várias formas de pressão ao mesmo tempo, por meio de poderes oblíquos (CANCLINI, 2008). Por isso, segundo ele, o registro dos confrontos verticais ou diádicos permitiria enxergar muito pouco da dominação e das relações políticas. De acordo com Canclini, os paradigmas clássicos de explicação da dominação não levam em 33 conta os efeitos da globalização e a disseminação dos centros, da multipolaridade das iniciativas sociais, em que as relações de poder se entrelaçam. As sociedades contemporâneas globalizadas compreendem diversas institucionalidades, sobrepostas e possivelmente em conflito. Voltando ao tema do camponês e suas estratégias de resistência, a despeito do arraigamento daquelas duas correntes principais, resumidas acima, os dados de realidade oferecem uma gama complexa de possibilidades, evitando uma pré determinação histórica unilinear. Neves (1985) nos lembra que no campesinato brasileiro os atores sociais raramente se identificam com categorias genéricas de autodesignação de que é exemplo o termo “camponeses”. A condição camponesa aparece em formas sociais heterogêneas e pode ser identificada em uma multiplicidade de situações sociais, podendo ser entendida mais facilmente desde sua interlocução com outros atores sociais, mediante negociações interculturais de valores básicos, que delimitam a especificidade das estratégias produtivas e reprodutivas da família (NEVES, 2008; MALAGODI, 2009; MARQUES, 2008; WANDERLEY, 2000; ALMEIDA, 1986; 2007). Para a autora, pensar o campesinato como uma unidade abstrata geral pode ser o ponto de partida, mas o ponto de chegada vai depender da ampliação do olhar sobre a multiplicidade de relações que esses sujeitos sociais mantêm com a sociedade englobante (NEVES, 1985; WANDERLEY, 2000, 2003, 2004). Desta forma, Neves (1985) propõe apreender o campesinato como uma categoria relacional, pois, por maior que seja a envergadura do conceito, faz-se necessário olhar as particularidades das realidades empíricas, a exemplo do recorte em questão, o sítio Pirizal, no contexto do Litoral paranaense. O termo “sitiante”, escolhido aqui para se referir à população permanente das áreas rurais de Guaratuba, pode ser encarado como uma categoria rural que pertence a esse “mosaico ou contínuo de tipos de campesinato” (ALMEIDA, 2007; NEVES, 1985, MARQUES, 2008). Apesar de dizerem que vivem no Sítio, as famílias do Pirizal não se reconhecem como sitiantes, da mesma forma como não se auto identificam como Caiçaras, Cipozeiros ou PCT, tampouco se veem como atores políticos. Ao longo das entrevistas percebi que, dependendo das circunstâncias, eles se identificam como parentes quando se referem a situações de sociabilidade e como lavradores e pescadores quando 34 lidam com o mundo do trabalho diante da burocracia estatal, a exemplo do processo de regulamentação da pesca profissional ou do processo de aposentadoria. Optei por designá-los como sitiantes, uma categoria analítica síntese, de fora, mas “elástica” do ponto de vista da teoria, que se remete ao domínio sobre a terra e sobre o território definido por princípios de parentesco e descendência, que tem no Sítio sua disposição espacial, como encontrado em outros estudos clássicos do campesinato (CÂNDIDO, 1977; WANDERLEY, 1996; SEYFERTH, 1985; WOORTMAN, 1990a, 1990b; BOURDIEU, 1972). Esses elementos da literatura contribuem para direcionar o olhar em campo, que buscou compreender as diferentes decisões e escolhas mobilizadas pelas famílias do Pirizal diante da heterogeneidade de pressões e oportunidades produzidas no processo de modernização do litoral paranaense. Mais especificamente, em que medida tais mudanças lhes impõem um novo espaço de reprodução e lhes exigem mudanças significativas na sua formação social? E por outro lado, de que modo as famílias, em seu processo histórico particular, percebem esse processo e reorientam suas próprias experiências e estratégias de resistência diante dele? 1.3 Sobre o campo Responder às indagações que nortearam o desenvolvimento da pesquisa exigiu duas tarefas básicas. Em um primeiro momento, recompor os mecanismos socio históricos do processo de mudanças regionais ocorridas nas últimas cinco décadas; e, depois, apreender aspectos fundamentais internos à formação do Sítio que se alteraram nesse período. Esse segundo objetivo exigiu localizar, descrever e analisar um conjunto de elementos da formação social do Sítio que chamei de indicadores de mudança: mecanismos de acesso e apropriação da terra e de recursos naturais, formas de organização social, a relação de poder com os agentes econômicos e políticos, a dinâmica migratória, o trabalho e as formas de obtenção de renda e o sistema de autoconsumo e de compra. O recorte temporal, ou diacrônico, foi possível por meio do recurso da memória 35 dos sitiantes captada por entrevistas, mas também por meio do recurso de fontes secundárias, em estudos realizados por outros pesquisadores, notícias de jornais regionais e locais, atas do Conselho Gestor, documentos e mapas oficiais. A parte empírica se utiliza também do recurso sincrônico, trazido na forma de descrições sobre como se constituem as tramas familiares, as práticas materiais, as relações entre os moradores e grupos de fora, bem como a observação da dinâmica das reuniões públicas do CG da APA de Guaratuba e reuniões com o MICI. A pesquisa de campo se desdobrou ao longo do período de agosto de 2010 até dezembro de 2011, na combinação entre seis viagens que somaram quinze dias no Sítio, a observação de seis reuniões do Conselho Gestor da APA de Guaratuba 11 e de duas reuniões com o MICI. As entrevistas e as observações foram registradas no caderno de campo. Foi possível registrar também expressões e termos usados pelos próprios sitiantes, destacadas em itálico ao longo do texto. Os nomes utilizados para se referir aos sujeitos sociais e a localização precisa do Sítio são fictícios, a fim de preservar a identidade dos envolvidos na pesquisa. A parte de campo começou, portanto, nas reuniões do Conselho Gestor da APA de Guaratuba, que aconteciam na sede urbana de Guaratuba, para a qual eu costumava ir com funcionários do IAP que saíam desde o escritório em Curitiba. As reuniões eram situações públicas em que, por meio da observação direta da dinâmica argumentativa e procedimental, eu pude identificar redes de interação dos principais grupos e instituições atuantes no litoral com interface direta com os gestores da APA, mas o mais importante foi entender como o Pirizal e os Sítios vizinhos eram levados em consideração nas discussões. Eu me interessei pelas reuniões porque lá pareciam dialogar representantes de elites políticas e econômicas (setor produtivo, ONGs, órgãos públicos) com influência sobre o estuário onde fica o Sítio. O difícil acesso aos bairros rurais do entorno da baía restringiram as condições de desenvolvimento da pesquisa. Por terra, as longas estradas de chão são acidentadas e falta transporte público regular e, por água, o serviço é oferecido por barqueiros locais a partir 11 As atas oficiais das reuniões do Conselho Gestor da APA analisadas (simplificadas em relação à riqueza dos debates observados diretamente) estão disponíveis em <http://conselhoapaguaratuba.blogspot.com.br/2011/10/atas.html. >. Último acesso em março 2012. 36 de acordos prévios. As oportunidades de caronas até o Pirizal, com colegas pesquisadores, arranjos de acomodação e alimentação garantidos favoreceram o desenvolvimento da pesquisa ali. Comecei a ir para o Sítio Pirizal com uma pesquisadora ornitóloga bastante conhecida na região (também conselheira da APA representando a ONG Mater Natura, conservacionista) e sua equipe de pesquisa, que alugava a casa do casal Nilton e Conceição como base de pesquisa e seus serviços de barco para levá-los em expedições pela baía. A visibilidade dos pesquisadores da Biologia fez com que alguns moradores me associassem a eles quando eu cheguei, o que os deixou curiosos com o que eu estava estudando, para o que eu respondia que eu procurava registrar a história do Sítio, sob da perspectiva dos moradores, como se organizavam socialmente e como dividiam o trabalho. Na oportunidade seguinte fui ao Pirizal por conta própria, mas em outras vezes cheguei com a colega da sociologia Larissa Mellinger 12 que também estava na região na etapa de pesquisa de campo e de trabalho pelo Grupo Integrado de Aquicultura e Estudos Ambientais (GIA). Com ela, realizei parte das entrevistas e compartilhei parte dos dados coletados, como anotações em diário de campo, fotografias e vídeos. Em uma outra vez, meus pais me levaram até o Pirizal com meu companheiro, e foram embora no dia seguinte. Nós nos instalamos na pousada do casal Judite e Marcelo Rezende, onde eu me instalei nos dias seguintes, como nas outras vezes. Em uma outra visita de campo na temporada de guajú cheguei com este casal, depois de ter combinado carona por telefone. Aluguei por alguns dias o quartinho que Dona Dulce, mãe do Marcelo, também aluga para turistas da pesca quando a pousada de sua nora está cheia, tudo no mesmo quintal desse núcleo dos Rezende, na ponta do Sítio. Eu tinha a preocupação de onde ficar, por não conhecer ninguém, pois dependendo de quem me recebesse, isso poderia significar, aos olhos dos sitiantes, uma adesão a certo subgrupo dentro do Sítio e pressuposições a que eu estava alheia que poderiam afetar logo de início minha posição com eles, de modo que ter almoçado no restaurante e ficado na pousada da família dos fundos do Sítio, serviços encontrados 12 Sua pesquisa de doutorado, no âmbito do mesmo programa e sob orientação do mesmo professor, e seu projeto de extensão relacionado à aquicultura e a gestão participativa, vinculado à APA e à UFPR abrangem bairros rurais do estuário. A cooperação durante o campo aconteceu quando Larissa fazia as observações e levantamento de dados em torno da baía na mesma época que eu, tanto para seu trabalho no GIA quanto para sua pesquisa acadêmica. 37 somente ali e oferecidos regularmente para visitantes “estranhos” e turistas, tornou a minha escolha aparentemente mais neutra. No início de uma conversa ou entrevista, o local onde eu “estava parando” foi uma pergunta frequente, já seguida de outra que só buscava uma confirmação: “na pousada na ponta?”, como se fosse o lugar mais óbvio pra quem chega pela primeira vez, na minha situação de visitante; o segundo lugar possível que surgiu, nas indagações cheias de curiosidade, era a casa da Nilda, que frequentemente serve de “base”, alugada pelos pesquisadores biólogos que permanecem durante dias para o lado do brejo. Em situações de entrevista, logo quando eu batia em um portão perguntando por alguém, já anunciavam lá para dentro da casa “Olha, vai lá, é a moça da entrevista”. Em um local pequeno como o Pirizal, já esperavam a visita. Minha inserção em campo foi sempre uma questão delicada. Isso porque na primeira vez que encontrei alguns dos moradores da baía foi em um contexto de luta de movimentos sociais em que também estavam extensionistas universitários que mantém vínculos políticos mais pragmáticos e engajamento político direto junto às comunidades rurais, na reunião do MICI, onde eu procurei ser neutra e apenas observar. Logo depois cheguei ao Pirizal com a pesquisadora, que possuía uma longa relação de confiança e apoio público no CG, aonde levava os conflitos fundiários enfrentados pelos moradores. Foi inevitável que eles me associassem com a figura de alguém que pudesse “trazer” melhorias objetivas como eles mesmos contaram do grupo de extensão da UFPR Litoral que oferece cursos, promove horta comunitária e assessora juridicamente um Sítio próximo, ou outro grupo da mesma universidade que investe na melhoria da farinheira comunitária, ou se referiam ao “advogado do governo” que vai agilizar a regulamentação das terras, e o antigo prefeito que foi chamado quando foram multados por fazer queimada para a roça de mandioca. Essas parecem ser as consequências da atuação das instituições que tradicionalmente “atendem” a região estuarina. Nem sempre, porém, a importação de “pacotes de soluções vindas de cima” pelos extensionistas universitários e pelos distintos setores do estado, em seus três níveis, logrou atender às demandas reais enfrentadas no cotidiano pelos sitiantes; apesar de serem instituições mais atuantes localmente, algumas das intervenções são negociadas. Parecia existir essa expectativa ao longo de toda a pesquisa, de que quem chega 38 de fora está na “iminência de lhes oferecer ou propor alguma coisa”, e me sensibilizei com ela, do ponto de vista dos meus questionamentos sobre o papel do pesquisador em campo, e também do papel muitas vezes contraditório dos diferentes setores do estado, e ainda mais depois de ter vivenciado brevemente um momento decisivo do processo de mobilização estadual dos povos faxinalenses e do conteúdo que eu havia conhecido no curso de especialização do MADE. A isso reagi mostrando a limitação do alcance de uma pesquisa acadêmica de mestrado, como a minha. Inicialmente, eu pretendia realizar o campo com outros Sítios vizinhos situados no entorno da baía de Guaratuba visando a um panorama social mais completo dos conflitos enfrentados pela população estuarina, contudo, as dificuldades práticas de acesso, mobilidade e de permanência e estadia, o pouco contato com os moradores de outras comunidades, e principalmente, o tempo disponível para a conclusão da pesquisa, foram fatores que me impeliram a reduzir o recorte do estudo apenas ao Pirizal. Em seu conjunto, os estudos que falam da população rural do litoral (baseados em SONDA, 2002; FERREIRA, 2010; CECON-VALENTE, 2009; VALENTE, 2009; ANDRIGUETTO FILHO, 1999), somados a minha breve passagem pelos bairros vizinhos ao Pirizal em que conversei informalmente com poucos moradores acompanhando minha colega Larissa, e também as menções que os próprios moradores do Pirizal faziam da relação intercomunitária permitem afirmar que as comunidades do entorno da baía possuem características semelhantes quanto a sua formação social baseada no parentesco, quanto à organização do trabalho, práticas econômicas e culturais. Por outro lado, o mesmo detalhamento e o aprofundamento da história e da dinâmica social atual dos bairros vizinhos no presente teriam permitido sistematizar aproximações e divergências que poderiam apontar para reflexões sobre a situação mais ampla dessa população estuarina. Este ponto é, sem dúvida, uma fragilidade do recorte empírico, no entanto, mesmo com essa limitação, o foco nos moradores do Pirizal é um caso ilustrativo e ao mesmo tempo diz muito sobre as dinâmicas sociais no contexto regional. Portanto, não deixa de ser relevante. A tarefa que eu me coloquei foi valorizar uma perspectiva mais autorizada sobre o universo social do Sítio e as dificuldades e formas de contorna-las, narrada pelas próprias famílias sitiantes (inspirada pelas abordagens da Economia Moral em THOMPSON, 39 1991; SCOTT, 2002) Esse caminho teórico metodológico se faz relevante, eu sustento, pois se trata de uma abordagem historicamente escassa nos estudos sobre o Litoral paranaense. Faz-se ainda mais pertinente diante do processo de institucionalização dos conflitos ambientais denunciados por segmentos do campesinato que alcançaram a esfera pública, nos últimos anos, no Estado do Paraná e em todo o Brasil, e da tendência de serem oferecidas respostas tecnocráticas “impostas de cima para baixo” para a resolução desses conflitos (ACSELRAD, 2004, 2010; OSTROM, 1999). A observação do cotidiano, as narrativas e as histórias de vida dos sujeitos, registradas em anotações em diário, constituem portanto a maior parte da pesquisa. Eu estive com as famílias em situações rotineiras e de trabalho como por exemplo na limpa do peixe, na produção de farinha dentro do engenho (casa de farinha), na carpina da roça de mandioca, na organização de uma refeição em família, de mutirões de entre ajuda para o plantio de mandioca, o guajú. Participei também de uma grande festa em comemoração ao aniversário de um nativo bastante notável, Seu Chico, que atraiu um grande número de parentes e vizinhos, depois de um dia de mutirão. Em campo, com a observação direta, de caráter etnográfico, procurei estabelecer um contato mais direto com a realidade dos moradores, “sem qualquer intermediação a respeito de objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas que orientam seu comportamento” (LAKATOS, 1996, p.79 apud QUARESMA, BONI, 2005; GIL, 2008). As situações de interação de que participei, os caminhos que percorri durante a pesquisa e os silêncios e entreolhares dos sujeitos entrevistados entre uma narrativa e outra, de fato, revelaram detalhes que não haviam sido verbalizados na entrevista ou então mostraram como minha presença direcionava ou censurava certos assuntos, como no momento descontraído e exclusivo entre mulheres de se contar piadas maliciosas durante o plantio de mandioca, o constrangimento de falar da caça que surgia no decorrer de uma conversa e logo era interrompido, ou quando na cozinha uma família da vizinhança fazia “fofoca” de um parente da ponta na minha presença. As circunstâncias de interação dentro da rotina das famílias foram fundamentais, pois agregaram confiança e abertura da parte deles com relação a minha presença como pesquisadora nos lugares abertos e de trabalho da comunidade e mesmo dentro de suas casas. Ainda, questões familiares, como casamentos desfeitos e o papel da mulher na casa 40 e no Sítio, e, sobretudo, a prática da caça, pareceram temas bastante sensíveis no contexto da entrevista, por eu ser uma jovem moça de fora e ainda mais pelo fato de eu ter sido associada com a atividade de pesquisa da bióloga, voltada para a conservação da natureza, com quem cheguei ao Sítio e que censura a atividade de caça abertamente, apesar de apoiar a comunidade em outros assuntos. Ademais, para evitar o desconforto relacionado ao fato de eu ser uma mulher em campo num contexto em que o homem é a figura de autoridade da casa e do Sítio, e à mulher cabe o papel doméstico, procurei realizar as entrevistas com os moradores homens sempre quando eles ou eu estávamos acompanhados. Foram realizadas dez entrevistas semi-estruturadas com dezoito moradores, com uma média de duração de aproximadamente duas horas cada uma. Vinte e oito pessoas do Sítio participaram de entrevistas abertas e semi-estruturadas. Uma parte das entrevistas foi realizada com uma entrevistada, individualmente, e outras, em conjunto, durante seus afazeres do dia ou no momento de lazer, de modo distribuído entre as famílias, tendo conversado com pelo menos um membro de cada. Como os temas eram comuns aos presentes nos contextos de entrevista, os sujeitos puderam levar em conta os pontos de vista dos outros para a formulação de suas respostas e também tecer comentários sobre suas experiências e a dos outros (BAUER, GASKELL, 2002). Como ponto de partida para as entrevistas, optei por procurar moradores com idade mais avançada, que nasceram ou que passaram a sua vida toda ou grande parte dela ali. As circunstâncias cotidianas de arrumação dos petrechos de pesca, cuidado com a roça e de produção de farinha favoreceram a sugestão de temáticas ligadas à pesca, à terra e a entre ajuda, o que abriu novas janelas para as conversas sobre outras temáticas do cotidiano. Foi portanto a abordagem inicial das próprias situações de entrevistas que tiveram o efeito de tecer “um balaio de cipó” ou que lhes permitiu desenvolver uma variedade de eventos significativos remontadas a partir delas, reconstruídos por eles a partir de suas próprias experiências no âmbito da família, e a partir da memória coletiva. Depois eu fiz o trabalho de “destrinchar as tramas do balaio” estirando-as em “textos”, focando naqueles elementos que apareceram como fundamentais na formação social do Sítio: estrutura fundiária (chácara e terrenos), a organização familiar do trabalho (os parentes e 41 sistema de guajú), dinâmica de migração (ir embora pra cidade), formas de obtenção de renda (tecido, lavoura, pesca, emprego, aposentadoria), sua relação com políticos do município, turistas, comerciantes e outros atores institucionais (as brigas e a ajuda de quem é de fora). As perguntas sobre a mudança mostravam as divergências nas perspectivas das próprias famílias acerca das suas relações com políticos municipais, com a Comfloresta, técnicos do estado, turistas, por exemplo, e mesmo das relações dos sitiantes entre si. Isso porque as relações entre sitiantes e quem chega de fora não costumam acontecer concertadas em bloco, com o Sítio todo simultaneamente, mas diluída no tempo, com cada família individualmente, encabeçadas pelo pai ou sogro ou avô ou tio que detém autoridade para falar e decidir publicamente em nome da sua família. Com isso eu quero evitar a ideia de que os sitiantes tenham suas vidas voltadas somente para dentro da casa da família. Ser descendente dos fundadores, Fagundes, Santos ou Rezende, é uma definição que faz referência aos antigos, mas que tem um lugar de enunciação ancorado no agora, nas interações de hoje e que determina um universo de interdições e permissões no interior do Sítio. Ao mesmo tempo em que cada parente é precedido pelos sucessores e por costumes e normas instituídas por eles (BECKER, 2008), não são entidades sociais engessadas no tempo, mas se reconstroem nas ações do presente reordenadas nos movimentos constantes de vínculos e rompimentos. Por isso foi importante o esforço de reconhecer a posição social de quem reconstitui os eventos em torno dos fatores de mudança e em relação a quem, para mostrar que aquilo que os sitiantes elaboram como interpretação das transformações que afetam sua organização, fundada na família, não está flutuando de forma inerte sobre o mundo real, mas se (re)produz de modo bastante vívido. A presença desses elementos na fala dos entrevistados permitiu recompor como era a vida no Sítio e de como é hoje, como se cada família me tivesse apresentado as tramas de seu “balaio de cipó”, suas estratégias reinventadas diante do novo. Busco entender o grupo em suas contradições, dentro de um movimento em uma escala maior, o litoral do Paraná. Mas o que os sitiantes nos dizem? 42 2 CONHECENDO O SÍTIO E OS SITIANTES: “AQUI É TUDO PARENTE!” 2.1 Um retrato de família Em princípio, por uma fotografia atual do Sítio é possível mostrar quantos são os sitiantes, como são aparentados, a estrutura do lugar de vida e trabalho. No entanto, se perde nessa imagem o movimento de (re)construção do tecido social, o que foi possibilitado pelas primeiras visitas de campo e alimentado pelo que eu fui conhecendo com as visitas seguintes. É a fotografia apresentada a seguir que eu pretendo colocar em movimento nas próximas páginas. Sobre o histórico do povoamento do estuário, não foram identificadas fontes além dos poucos estudos feitos na região e da memória dos próprios moradores. O que se sabe é que os bairros rurais do município de Guaratuba se formaram entre 1890 e 1903, quando famílias do interior e do litoral do Paraná e de Santa Catarina, sem a posse da terra, chegaram a remo à Baía de Guaratuba e povoaram o entorno (FERREIRA, 2010; ANDRIGUETTO FILHO, 1999; PIERRI et al., 2006). As entrevistas com sujeitos mais velhos do Pirizal puderam reconstituir a genealogia dos moradores do Sítio de forma fragmentada, que remonta casamentos entre descendentes de indígenas, portugueses, espanhóis e alemães. Seu Floriano Rezende de setenta e um anos relembrou uma parte da história dos fundadores Rezende e Fagundes 13: Francisco Fagundes, de origem portuguesa, foi o primeiro a chegar na vila, avô de Seu Mario Fagundes, de noventa e um anos que mora no núcleo mais antigo; o fundador se instalou na ponta do Sítio, para o lado do banhado onde ele construiu sua casa, seu rancho, o primeiro trapiche e a casa de farinha. Mais tarde vieram, desde bairros vizinhos, dois irmãos de sobrenome Rezende, também de origem portuguesa, que se instalaram do lado oposto do banhado, a vizinhança, tendo feito o segundo trapiche. O bisavô de seu Floriano é Filisbino Rezende, um deles. Os fundadores se casaram com moças de fora, das vilas próximas à baía. O terceiro sobrenome importante no Pirizal vem da família Santos, catarinense de origem alemã, espalhada pelos bairros de Guaratuba e de Santa 13 Os nomes e os sobrenomes utilizados ao longo do texto são fictícios, a fim de preservar a identidade dos sujeitos sociais envolvidos na pesquisa. 43 Catarina, como contaram os primos Chico e Gilberto Santos. Os Rezende, Fagundes e Santos “se misturaram” pelos casamentos realizados desde o início da ocupação. Quanto à situação da documentação da terra, Seu Floriano Rezende diz que seus bisavôs eram os “donos” legais dos terrenos, com registro oficializado, no entanto, com o tempo a comprovação de aquisição perdeu importância na rotina e cresceu o desinteresse em pagar por impostos. Seus bisavôs tinham o direito legal sobre a terra registrado em documento “em algum escritório da prefeitura”, até que um acidente afundou e inundou a sede do município, arruinando uma série de registros e documentos que testemunhavam a história oficial de Guaratuba e a propriedade de uma parte do Sítio. O ITCG chegou a rastrear os registros das terras e encontrou detalhes em um mapa do exército que confirmava a propriedade, como contou Seu Floriano, embora hoje vivam na condição de posseiros. Falando sobre os papeis que se perderam, Seu Floriano foi se dando conta de que a interpretação que ele reconstruiu tinha a importância de rememorar a história dos bisavós fundadores antes da criação do Pirizal, da qual pouco se falava no cotidiano e, por isso mesmo, era difícil de se remontar com precisão. Ainda que não falem sobre seus antepassados diariamente, como deu a entender, são aos feitos, costumes, valores e às instituições criadas pelos fundadores que os sitiantes de hoje se voltam para reconstruir sua vida no Sítio, no presente. No período da pesquisa de campo, havia sessenta e oito sitiantes no Pirizal, divididos em vinte e quatro famílias 14. Entre eles trinta e cinco são do sexo masculino, trinta do sexo feminino e três são bebês. Deste total, apenas dez nasceram em outro lugar, sendo que destes, sete mulheres nasceram em outros Sítios vizinhos onde viveram até que se casaram com um nativo do Pirizal. Quanto aos três homens que nasceram fora, soube que são do Paraná, mas não perguntei o município. Assim, quase todos os sitiantes nasceram e cresceram no Pirizal, e daqueles que vieram de fora a maioria são mulheres. Praticamente a metade da comunidade é de adultos em condições de trabalho, quase todos casados, ao passo que os filhos jovens (homens e mulheres) em idade de trabalho já se mudaram para a cidade para casar e trabalhar. Cerca de vinte são crianças, 14 Com a expressão “família” quero assinalar que mesmo membros de uma só fratria pertencerão ao mesmo grupo doméstico inicial, mas que originam grupos distintos após seus casamentos (ALMEIDA, 1986). Uma família vive em uma casa com quintal ou chácara, quando reunidas por afinidade formam um núcleo com sua própria farinheira e rancho. As famílias em seu conjunto são os parentes que formam o Sitio. 44 bebês ou adolescentes de até dezessete anos (dentre os quais cinco são portadores de alguma necessidade especial, o que chamou a atenção pela alta proporção), e doze têm mais de sessenta anos. É comum ver os mais velhos, os de idade passada, trabalhando seja na lavoura seja na pesca, pois estar na idade de aposentadoria oficial não significa que a pessoa parou de trabalhar. A organização da família, uma instituição ao redor da qual orbita a vida no Sítio, dá sentido à responsabilidade e a autoridade do pai, herdeiro de um dos fundadores, Santos, Rezende ou Fagundes. As famílias do Sítio se agrupam em nove subdivisões que eu optei por designar por “núcleo”. Tradicionalmente tem-se que, quando os filhos homens se casam, saem da casa dos pais e adquirem uma posse em seu quintal 15. A casa própria pode ser nova, construída, o mais comum, ou pode se tratar de uma casa de parente abandonada, disponível para ser reocupada, opção mais cada vez mais rara. Com a morte do pai, os filhos homens o sucedem e passam, cada um com sua nova família, a conformar novos núcleos independentes entre si. Quando a mãe se enviúva, mantém o núcleo do falecido marido até que seu último filho se case, quando passa a se integrar ao núcleo do filho mais velho já casado16. Nos dias de hoje, a centralidade das condutas familistas na organização das trocas e da socialização e a convivência rotineira entre as famílias sinalizam como são personalizados os laços sociais no interior da coletividade e como todos acompanham e participam da rotina de todos, intensamente. Com autoestima e orgulho os entrevistados reivindicam sua genealogia comum e a identidade de parentes como fatores de distinção e como explicação para a permanência no Sítio. Mas embora o grupo reconstrua nas lembranças um passado com antepassados em comum, de vínculos fortes, de grandes festas católicas, de grandes mutirões intra e intercomunitário com bailes memoráveis, esse passado dinâmico também é perpassado por momentos de dificuldades e penúria material, de idas e vindas da cidade, de brigas e ressentimentos. A intensa convivência cotidiana, as relações de reciprocidade e confiança, a 15 16 A não ser que o marido seja de fora, o que é mais raro; então ele e sua esposa nativa devem ir para o quintal dos pais dela. O casamento entre os casais mais velhos consistem em uniões consensuais, ao contrário dos casamentos feitos entre os mais jovens, que passaram a ser formalizados em cartório. Os casamentos parecem ser estáveis e duráveis, até a viuvez. 45 interdependência produtiva, a hierarquia familiar e o estreito parentesco, que em certa medida dão coesão e unidade ao Sítio, não significam ausência de disputas internas. As decisões e vontades do pai ou do sogro como autoridade masculina da casa e herdeiro dos três fundadores parecem ser fundamentais nesse sentido (pelo menos da porta da casa para fora – e do Sítio para dentro), pois influenciam a organização do trabalho familiar, o sistema de transmissão patrimonial (terra) e lógicas migratórias subjacentes a essa hierarquia. A pesquisa se desenrolou justamente a partir das narrativas familiares sobre eventos significativos que dizem muito sobre como foi e como é viver no Sítio hoje. Na entrevista com Cleiton, ele definiu bem os laços a partir dos quais eles mesmos “se localizam” entre si: “No Sitio tudo é parente, a maioria é primo e irmão”. Os cinco homens descendentes mais velhos das três famílias fundadoras, Mario Fagundes, os primos Marco e Floriano Rezende e os primos Gilberto e Chico Santos, junto com suas esposas, formam até hoje os cinco principais núcleos ao redor do quais orbitam as casas das famílias de seus filhos, que também formarão novos núcleos depois do casamento e quando seus pais morrerem. Seguindo a lógica de afinidade, de casamentos e partilhas, os herdeiros dos Santos se reuniram para o lado da entrada do Sítio, designado por eles de vizinhança, mais perto dos terrenos e da plantação de pinus, ao passo que os herdeiros dos Fagundes e dos Rezende, na ponta perto pelo banhado. Na vizinhança se concentram o maior número de casas, dezesseis, distribuídas entre os núcleos dos primos Seu Gilberto Santos, Seu Chico Santos, das viúvas Dona Santina Carvalho Santos, Dona Inês Tomazino Rezende, e membros da família Carvalho e Seu Júlio Ferraz, núcleos que não estão ligados aos fundadores, são de fora. Já na ponta, estão os núcleos de Seu Mario Rezende Fagundes, Seu Marco Rezende e Seu Floriano Rezende. Cada “lado” dispõe de um porto e são sete casas de farinha ou farinheiras para produção exclusiva das famílias de cada um dos sete núcleos de parentes. O espaço social do Sítio implica a construção de fronteiras e enraizamentos materiais e simbólicos que os sitiantes evocavam ao se referirem aos de fora e aos parentes, mas também ao lidarem com aquela que está na posição de outro na entrevista, a estudante da cidade. Designar quem é parente e quem é de fora demonstra que os sitiantes exercem o movimento de inter reconhecimento de que fala Woortman (1990a) e também que reafirmam os delineamentos de seu lugar de vida e trabalho, a 46 territorialidade de que falam Haesbaert (2004, 2007) e Little (2002). O controle sobre seus domínios fica perceptível quando tais limites são anunciados naturalmente, nas falas. Basicamente, os de fora são representados em relação aos parentes, a exemplo do que se passou com as famílias Carvalho, Tomazino e Vasconcelos vindas de fora que casaram suas filhas com sucessores, como me explicava a viúva Dona Inês na reconstituição do vínculo pelo casamento que a tornava uma Rezende. A diferenciação também aparece na figura do sitiante e do colono, este descrito como o grande proprietário de hoje que possui maquinário agrícola, funcionário, apoio do governo e vastas terras férteis no outro lado da baía, por Seu Marco, e, como relembrado por Seu Gilberto, o colono também se refere à figura do arrendatário dos antigos arrozais dos lados de Cubatão, de que seu pai foi funcionário nos tempos áureos da lavoura de arroz. Seu Marco explicou que o Sítio aparece com o nome de Colônia Pirizal na conta de luz, conforme uma determinação da Companhia Paranaense de Energia (Copel), quando começou o fornecimento público de energia elétrica, um engano, pois ali é o Sitio, o Sítio Pirizal. Refletindo sobre o que mudou, Seu Cacá diz que os novos não conheceram os tempos de abundância de madeira que os antigos podiam usar para construir as farinheiras. As fronteiras são percebidas também quando Seu Floriano explica a decisão de seu filho de voltar, de Caiobá para o Pirizal, e fala da dificuldade e da falta de trabalho na cidade definida em relação à segurança familiar e patrimonial garantida no Sítio. Seu Chico também estava falando de distâncias e raízes ao reclamar do “sumiço” de peixe e caranguejo na baía associado aos turistas e as pescadores guaratubanos “que não sabem pescar como os pescadores crioulos daqui”. 2.2 Conflito, território e bem comum para falar de resistência e familismo Aqui é importante chamar a atenção do leitor para alguns conceitos da literatura que se espraiarão pelo texto – conflito, territorialização, bem comum – relevantes para pensar as diferentes maneiras pelas quais os sitiantes “tecem” seus arranjos de ação, dentro de um sistema estruturado sobre o pilar da família representada na vontade do paisucessor, sistema que busca permanecer a partir da construção contínua de vínculos e fronteiras por seus sujeitos. O Sítio se constitui como um território de parentesco, 47 organizado pela classificação gradiente de quem é mais ou menos próximo aos fundadores Rezende, Fagundes e Santos. Georg Simmel (1983), considerado um autor clássico nas ciências sociais, não foi um sociólogo dedicado ao campesinato ou ao mundo rural, contudo, sua teorização mais geral sobre conflito como um conceito fundante para entender a mudança nas sociedades humanas contribui para o entendimento da forma como as famílias têm se reestruturado e reformulado suas práticas sociais e materiais no interior do Sítio. Isso porque, na perspectiva da sociologia simmeliana do conflito, a sociedade tal como a conhecemos é resultado dinâmico de duas categorias básicas de interação (ou sociação): de um lado, a subordinação, dominação, competição, hostilidade, e, de outro, harmonia, convergência, atração, cooperação e aliança. É assim que sociólogo alemão concebe toda e qualquer forma de interação entre seres humanos, uma sociação, inclusive o antagonismo e o conflito entre sujeitos assimétricos que se influenciam mutuamente, um tipo de interação que obviamente não faria sentido se pensado a partir de um único indivíduo. Ambas as formas de relação, a antagonista e a convergente, se distinguem da mera indiferença que possa haver entre dois ou mais indivíduos ou grupos, pois mostram um momento de unidade e de síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra o outro, quanto um para o outro (SIMMEL, 1983, p. 123-124). Se a indiferença resultar na rejeição e, depois, na supressão da liberdade e na aniquilação do outro, terá um efeito destrutivo e negativo puro, levando ao fim da sociação. O conflito tem a função reforçar a interdependência no interior da unidade e de resolver a tensão entre contrastes. Deste modo, o conflito não possui só uma face destrutiva e deve ser visto de forma dialética. Isso porque, para Simmel, as sociedades definidas e verdadeiras não resultam apenas das forças sociais direcionadas para a integração: um grupo absolutamente centrípeto e harmonioso numa união “pura” não só é empiricamente irreal como não poderia traduzir um processo de vida concreto. Sua preferência pelo termo sociação, em vez do termo sociedade, confere ao seu pensamento flexibilidade e sensibilidade em relação às questões de mudança social, enfatiza sua concepção de vida social como um processo (COHN, 1979). Essa é a contribuição mais importante da concepção de conflito como sociação para se reter aqui, 48 a designação do seu papel positivo como propulsor de mudança social. A dialética entre conflito e consenso, ao reforçar a consciência dos sujeitos e a percepção da diferença que eles possuem em relação a outros grupos, estabelece continuamente interdições e permeabilidades, ou condutas de territorialidade, como sugerem Little, Haesbaert e Almeida. A definição de territorialidades parece se complementar com o conceito de sociação, de Simmel, nesses termos. A territorialidade junto com a territorialização e território são conceitos centrais que merecem uma breve sistematização. O geógrafo Santos (1997, p. 26 apud ALBAGLI, 2004, p. 38) oferece uma definição ampla de território, assim resumida: “um conjunto indissociável de que participam, de um lado, um certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais e, de outro, a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento”. O geógrafo Haesbaert complementa essa primeira definição assinalando que cada território se constrói por uma configuração singular de múltiplas relações de poder, que mesclam escolhas materiais e simbólicas. Assim, “o território, enquanto relação de dominação e apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais “concreta” e “funcional” à apropriação mais subjetiva, cultural, simbólica” (HAESBAERT 2004, p. 95). Existem diversas concepções de território de acordo com sua maior ou menor permeabilidade, que vão desde territórios mais excludentes e “puros”, até territórios totalmente híbridos, que admitem a existência concomitante de várias territorialidades (HAESBAERT, 207, p. 44). A territorialidade por sua vez seria a expressão de um sentimento de vínculo e enraizamento e um modo de agir no âmbito do território vivido, sendo acionada como um meio de regular as sociações (SIMMEL, 1983) espacializadas e reforçar a identidade do grupo que lhe imprime suas marcas interventivas diante de outros grupos. Nesses termos, a territorialidade implica interações sociais, uma vez que é promovida ora pela coesão social e relações recíprocas ora por relações de exclusão e disputa em torno de recursos com significados específicos. Resulta então do processo dialético de territorialização, o que lhe atribui historicidade, e maior ou menor provisoriedade (ABALGLI, 2004, p. 2829). 49 Logo, os territórios não são estáveis e contíguos, ao contrário encontram-se superposições e instabilidades dentro de seus próprios limites, ou seja, processos de territorialização, deserritorialização e reterritorialização (HAESBAERT, 2007). O território possui dois vetores, a desterritorialização e a reterritorialização. Do mesmo modo que a territorialização pode ocorrer no movimento de controle e identificação com o território, a desterritorialização pode ser construída por meio de novos limites impostos ao território, não necessariamente, mas traçados desde dentro ou pelo controle de outros (HAESBAERT, 2004 p. 236). Ainda que o campo de maior tradição nos debates sobre território seja a economia, o autor observa que a desterritorialização pode ser descrita em outras dimensões, como a política e cultural/simbólica, debate acesso pelos temas da pósmodernidade e da globalização17, associado a noções como flexibilidade, incerteza, hibridez, diversidade. Por sua vez, a reterritorialização consiste no movimento de (re)construção do território: não é possível afirmar a existência de um processo de desterritorialização sem pensar no movimento sucessivo, pois ambas são partes de processos incessantes e generalizados de territorialização (HAESBAERT, 2004). Little (2002), partindo da perspectiva antropológica, está de acordo com a afirmação de Haesbaert de que a conduta de territorialidade é um componente fundamental de todos os grupos humanos, cuja manifestação explícita depende de contingências históricas. Little define a territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território”. O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. De maneira semelhante, Almeida (2008) define que as condutas de territorialidade camponesas e indígenas funcionam como fator de identificação, defesa e força, e se baseiam normas em instituídas e seguidas internamente (BECKER, 2008; HALL, TAYLOR, 2005). Eu pude perceber mais nitidamente a importância que a terra tinha para as famílias nas visitas de campo ao longo do segundo semestre de 2011, que coincidiu com 17 Haesbaert escreve que na história há referências indiretas ao fenômeno da des-territorialização desde antes da chamada modernidade ocidental, mas é no tempo moderno que o fenômeno da globalização se intensificou. 50 a temporada de mutirões. Os guajus, como são chamados, ocorrem há décadas em roças mantidas em uma área reservada para o uso comum e envolvem quase todo o Sítio no plantio da mandioca, regido por um sistema que tem se mostrado fundamental para a organização da territorialidade do Sítio (ALMEIDA, 2009). Quando eu falo em bens comuns me refiro aqui à terra em especial, mas também aos ecossistemas e aos recursos manejados (tais como a rios, morros, floresta, mangues, cipó, terra, pesqueiros) dos quais as gerações atuais e futuras de sitiantes dependem e dependerão como meio de tornar sua reprodução social possível. Alguns desses bens há décadas têm sido geridos e regulados coletivamente, de modo que não podem ser considerados propriedade particular com o qual uma família pode fazer o que quer, ainda que essa obstrução de base moral exista “para seu próprio bem” ou para sua sustentabilidade social. Sendo assim, trata-se de qualquer bem compartilhado, considerado entre eles como “nosso” (FLÓREZ, 2008, p.109). Nesse ponto do texto, convido o leitor a mais um parênteses, pois qualquer discussão sobre o conceito de bem comum, por mais breve que seja, não pode prescindir das questões levantadas por Elinor Ostorm (1990, 2005), em uma abordagem já considerada clássica. É no livro “Governing the Commons” (1990) que Elinor Ostrom, prêmio Nobel de economia de 2009, reflete sobre a auto gestão que grupos fazem dos recursos de uso comum, no calor das preocupações globais com a degradação ambiental e da discussão de soluções políticas para o enfrentamento da crise ambiental. O livro apresenta dados e análises institucionais de situações de dilemas da ação coletiva em torno da gestão de recursos naturais de uso comum espalhados por todo o planeta. Seu notável conjunto de dados sustenta o argumento de que a gestão comunitária dos comuns, baseadas em instituições criadas pelos próprios usuários em pequena escala, é uma opção mais eficiente que a gestão pública ou privada. Os conceitos utilizados por Ostrom vêm dos paradigmas clássicos das ciências econômicas e políticas (institucionalismo e teoria da escolha racional), com os quais no entanto ela dialoga criticamente: bem, ator racional e instituição (OSTROM, 199; 2005; ANDREWS, 2005; HALL, TAYLOR, 2005; BECKER, 2008). O bem comum se contrasta com o bem que pertence a uma única pessoa excluindo todas as outras (um bem de acesso privado), ou com o bem que não tem dono (acesso aberto) ou que se contrasta 51 com um bem que pertence ao Estado ou é por ele gerido (bem público). O conceito do sujeito da escolha racional supõe que os cálculos para se fazer uma escolha estão orientadas para a maximizar vantagens e, portanto, os sujeitos balançam custos e benefícios antes de uma decisão. Instituição são regras e normas criadas para rotinizar a ação dos sujeitos visando um resultado. Segundo ela, a visão estreita dos sujeitos, dos bens e da situação nos primeiros estudos sobre os comuns levou ao pessimismo de que largados aos interesses dos usuários diretos, sujeitos egoístas, os recursos estariam predestinados à sobre exploração e ao esgotamento, a “tragédia dos comuns”, efeito indesejado do ponto de vista da relevância do recurso. Essa conclusão defendia a necessidade de um agente regulador externo. Ostrom não abriu mão dos mesmos conceitos para a produção e análise dos seus dados, mas chegou a conclusões diferentes, de que é sim possível a cooperação para sustentar os recursos. Novos resultados foram encontrados porque Ostrom acrescentou variáveis aos modelos testados em laboratório, confrontando-os com situações empíricas. A partir disso, formulou críticas às limitações explicativas e as ambições universalizantes dos modelos, por desconsiderarem a diversidade das realidades empíricas. Em vez de pensar que os sujeitos envolvidos em um dilema estão isolados e que necessariamente orientam sua ação pelo egoísmo, seu framework considera que os sujeitos se comunicam e acumulam aprendizados, constroem confiança mútua, reconhecem a reputação, e assim são capazes cooperar para modificar e criar novas instituições, como uma alternativa à necessidade de regulação pelo estado ou pelo mercado (OSTROM, 1990, 2005; ANDREWS, 2005). Sua crítica à abordagem do uso dos bens comuns foi feita do interior da teoria dominante, mas sua leitura dos resultados a levou a uma crítica de fora dela (ANDREWS, 2005). A questão central que Ostrom busca responder é o que faz com que pessoas comuns, na posição de usuários, consigam criar instituições robustas para a manutenção dos bens comuns. Ostrom (1990; 2005) chegou a intuir que quando quaisquer políticas públicas pressupõem que os usuários dos comuns não sejam capazes da auto gestão e por isso precisam de regras exógenas impostas, a construção deliberativa da legitimidade e o aprendizado institucional acumulados ao longo de muito tempo em interações face a face se perde. Reconhece assim a dimensão interativa da construção de normas de 52 reciprocidade e cooperação, ainda que os conceitos dos cânones da economia e da ciência política não tenham lhe fornecido meios interpretativos para entender o processo de origem e legitimação dessas normas, que variam enormemente no mundo real. As instituições que persistem dependem de mecanismos sociais que as legitimam as mantendo aceitáveis, e não só de coerção ou incentivos, o que pode ser explicado com a adoção de uma concepção de ação social, segunda a qual os sujeitos fazem escolhas não só orientados pela maximização das vantagens mas também por valores e códigos morais (ANDREWS, 2005; HALL, TAYLOR, 2005; IMMERGUT, 1992; BECKER, 2008). De fato, por serem modelos teóricos puros, o framework de analise institucional da Ostrom (2005) ajuda a entender determinadas lógicas dos processos históricos, mas não dão conta de explicar completamente casos concretos, como o do Pirizal. A manutenção do sistema de uso comum pensado segundo a teoria dos bens comuns dependeria de um conjunto de variáveis que são vulneráveis no contexto de mudanças intensas observadas no Pirizal, pela combinação de múltiplos fatores. O olhar sobre a dimensão das relações sociais envolvidas no uso comum de um bem em certa medida converge com a posição de Helfrich e Haas (2008), para quem o termo “bem comum” é tomado como o um conceito político. Os comuns não existem em si, são uma convenção social, um direito que pode ser formal ou informal, ou em síntese uma relação social; se estruturam da relação de sujeitos com o recursos e entre os sujeitos com os recursos. Como defendem ambos autores (HELFRICH, HAAS, 2008), a mera a definição de direitos coletivos de propriedade obedece ao intuito de garantir que os recursos comuns sigam disponíveis sucessivamente, se renovando. Mas se a definição de um bem comum está vinculada à questão da propriedade, é importante lembrar que vai além dela. Tratam-se de “estratégias que se opõem às tendências dominantes da privatização, da desregulação, da comodificação e a valorização monetária dos processos sociais e naturais” (HELFRICH, HAAS, 2008, p. 306). Assim, eles trazem a reflexão mais geral de que um bem comum pode ser entendido como práticas sociais e culturais e normas de consumo diferentes do trato que a sociedade, o mercado e o estado vêm dando à natureza, à cultura e aos conhecimentos (SCOTT, 2002; GUHA, MARTINZ-ALIER, 1997; ALMEIDA, 2009; CAMPOS, 2011; 53 ACSELRAD, 2004; JATOBÁ et al, 2009). Quando olhamos o Pirizal com as lentes desse debate, vemos que o principal bem compartilhado entre as famílias é a terra. A centralidade da terra para a família camponesa é amplamente destacado pelos autores que discutem autonomia e resistência camponesa. Os estudos clássicos sobre o campesinato tradicional “fazem sempre referência ao profundo enraizamento das comunidades camponesas a um lugar, visto como a terra ancestral, conquistada pelos seus antepassados e depositária do trabalho e do afeto de seus membros” (MALAGODI et al., 2009, p. 37). Os autores indicam que a terra constitui o principal patrimônio e meio de produção de famílias camponesas, parte constituinte de sua territorialidade (ALMEIDA, 1986; BOURDIEU, 1972; ALMEIDA, 2009; GALIZONI, 2002; PLOEG, 1994, 2008, 2009; SEYFERTH, 1985; WANDERLEY, 2001, 2004; WOORTMANN, 1990a, 1990b; ACSELRAD, 2004). As terras de uso comum estruturam a organização familiar, as relações de vizinhança e amizade, mas são acionadas também em face de conflitos internos e externos, de modo que não pode ser reduzida analiticamente a uma mera resposta econômica. A centralidade da terra no campesinato vai além de seu valor no mercado, dela depende a reprodução e produção da família no território (ALMEIDA, 2009; BOURDIEU, 1972; SEYFERTH, 1985). No Sítio a manutenção do sistema de uso comum que rege os terrenos pode ser considerado uma prática de resistência, uma vez que se materializa na interdição do acesso a quem é de fora representado pela figura do fazendeiro, do empresário, do turista, do estado e portanto àqueles com outros interesses sobre a terra, mercantis, que não compartilham dos seus interesses e valores familistas (SEYFERTH, 1985; REIS, 1995; WOORTMAN, 1990a; GALIZONI, 2002; BOURDIEU, 1972; ALMEIDA, 1986; ALMEIDA, 2009). Por outro lado, realizar uma análise sincrônica sobre as regras de uso, posse e sucessão da terra, enfocando-a como o único bem importante às famílias do Sítio, é ignorar a heterogeneidade de estratégias acionadas no interior de uma mesma família e por todas elas. Para além da agricultura, estão as diferentes modalidades de expoloração e recursos pelos quais as famílias concorrem ou cooperam – a produção de farinha se articula com a exploração de outros recursos materiais (pesqueiro, cipó, salário). Mas 54 também os sitiantes dependem de outras modalidades de recursos como status, conhecimentos, alianças sociais, compondo uma variedade de práticas de resistência, definidas e mobilizadas no âmbito da família, por meio das quais interagem com a sociedade englobante. Até algumas décadas atrás, as formas de uso e apropriação dos recursos naturais e da terra eram decididas entre as populações locais, com pouca interferência institucional externa, seja do estado seja do mercado. Com efeito, as decisões são tomadas em sua maioria na instância doméstica, no âmbito da família. Grande parte das regras e instituições sociais em torno dos casamentos, da migração, da organização do trabalho, da gestão dos recursos e do território explorados emergem de uma organização familiar em seu duplo aspecto. Se por um lado diz respeito aos ancestrais e às decisões, conhecimentos e costumes aprendidos de gerações anteriores, são, ao mesmo tempo, reformuladas nos projetos de cada família, cada uma com suas preocupações particulares, no presente. Os moradores se depararam com novas mudanças promovidas pela chegada dos empreendimentos florestais e, em seguida, a valorização imobiliária que atrai principalmente turistas da pesca e veranistas “neo-rurais”, e as restrições ambientais resultantes da implementação da APA de Guaratuba. Além de grupos reflorestadores, começaram a chegar fazendeiros que reforçaram práticas agropecuárias não recomendadas pela legislação ambiental vigente, o uso de agrotóxicos proibidos, e a extração clandestina de recursos florestais, incluindo fábricas improvisadas de palmito (IAP, 2006). A incidência de políticas públicas e de novos segmentos capitalistas nas localidades rurais se deu de várias formas, implicando em disputas entre institucionalidades servindo a diferentes interesses. Uma das primeiras empresas reflorestadoras a chegar ao litoral foi a Faber Castell, seguida pela Comfloresta. Ambas haviam sido objeto de denúncia nas reuniões da APA e com o MICI, pelo grupo da UFPR Litoral e por uma liderança local entre 2010 e 2011. A Comfloresta também se faz ativamente presente nas reuniões do Conselho Gestor da APA, justamente por possuir extensas terras dentro dessa UC, e é presente de forma contundente também nos limites dos terrenos. Assim, a relação entre a Comfloresta, as formas de apropriação e uso das terras e o sistema do guajú não podiam deixar de ser um 55 assunto explorado nas entrevistas e objeto das observações em campo, que apontaram para a importância central do cultivo da mandioca para os sitiantes, no contexto da falta de vocação da terra para a diversificação da agricultura. O propósito não será explorar cada um dos casos que se apresentaram, conflitos e as alianças entre cada família e cada ator externo, em determinado momento ou evento reconstituído nas entrevistas, mas sim buscar nos relatos como essas sociações, em seu conjunto, representam pressões que exigem novas estratégias dos nativos, e por isso são importantes para os objetivos aqui colocados 2.3 Nos meandros do território dos parentes O primeiro morador que entrevistei foi Seu Mario Fagundes, viúvo, o morador mais velho com noventa e um anos de idade. Ele vive sozinho numa casa cercada pelas casas de seus filhos homens que permaneceram na comunidade. Sua única filha mulher, Dona Dulce se casou com Marco Rezende e hoje forma o núcleo do marido. Os filhos de Dona Dulce, Marcelo e Ronaldo, casados, já possuem suas próprias casas, mas antes disso moravam com seus pais. As casas dos jovens casais Marcelo e Judite e Ronaldo e Renata foram construídas perto da casa de Dona Dulce e Seu Marco Rezende, formando um núcleo de famílias que pode compartilhar a farinheira familiar e o rancho ou um “puxadinho” que funciona de garagem para os automóveis recém comprados por seus filhos pescadores, convivem e trocam apadrinhamentos, trabalho e festas. Outro exemplo é a viúva Dona Santina que nasceu numa casa na entrada do Pirizal, na vizinhança, onde morou com seus pais e irmãs (os Tomazino, de fora) até seu casamento. Ao casar com o irmão de seu Chico Santos (bisneto e herdeiro de um fundador), mudou-se para perto de seu sogro; quando este faleceu, formou com seu marido seu próprio núcleo. Seus filhos que permaneceram na comunidade já são adultos, mas o solteiro ainda mora com ela na casa da família (provavelmente até que case). Seu outro filho, Cleiton, casado com Marcia, levantou uma casa de madeira onde mora com sua esposa e filha na frente da casa da mãe viúva. Por sua vez, o cunhado de Dona Santina, Seu Chico Santos, herdeiro politicamente importante, casou-se e teve filhos com sua esposa Dona Suzana, nascida 56 em um Sítio vizinho. Os filhos que permaneceram na comunidade também se casaram e construíram suas casas ao redor da casa dos pais, formando um outro núcleo. Estes exemplos ilustram a lógica dos núcleos familiares e podem ser observados de forma mais completa no Quadro 1. O quadro apresenta a configuração social da ponta e da vizinhança, dos núcleos familiares, bem como das casas em que moram pais e seus filhos solteiros, e também apresenta suas respectivas atividades produtivas (por cada casa), as quais serão descritas e analisadas mais adiante. Quadro 1 – Configuração dos núcleos familiares e suas respectivas atividades econômicas. NÚCLEO CASAS Nº AUTOCONSUMO FONTES DE RENDA cipó, mandioca pesca, mandioca, aposentadoria PESSOAS PONTA Seu Mario 1 Seu Brasílio 4 Seu Cacá 5 Seu Mario Fagundes (viúvo) Zeca Seu Marco Seu Marco e Dona Dulce Marcelo 3 5 4 farinha, horta mandioca, farinha, pesca pesca, mandioca, farinha, cipó, horta Seu Floriano e Seu Floriano Dona Luzia 3 3 func. municipal, farinha pesca (com. e tur.), farinha, cipó, func. pesca, mandioca, municipal aposentadoria, pesca farinha, criação animal, (com. e tur.). serv. horta, pomar turísticos, farinha pesca (com. e tur.), serv. pesca, criação animal, horta, pomar, farinha Rezende Ronaldo func. municipal, farinha pesca mandioca, farinha turísticos, peq. com., caseiro eventual, farinha pesca (com. e tur.), serv. turísticos, caseiro eventual, func. municipal aposentadoria, farinha 57 Rezende VIZINHANÇA Seu Gilberto e Seu Gilberto 3 Paulo 4 Jailson 2 Dona Helena Santos pesca, mandioca, farinha mandioca, farinha, pesca pesca, criação animal, mandioca, farinha, aposentadoria, farinha farinha func. municipal, farinha horta, pomar Fausto 4 mandioca, farinha, cipó criação animal, Seu Chico 2 Seu Chico e Dona Suzana Dona Santina (viúva) Dona Inês Felício 2 Nilton 3 Dona Santina 2 Cleiton 4 Dona Inês 1 Lorenço 3 Patrício 2 Wiliam 1 Moisés Lucia 1 5 Júlio Júlio 1 9 núcleos 24 casas --- mandioca, farinha, cipó, func. municipal, farinha, cipó aposentadoria, farinha, cipó, peq. com. horta pesca, cipó, mandioca, func. municipal, cipó, farinha pesca, mandioca, farinha pesca (com. e tur.), farinha, cipó cipó, mandioca, farinha, farinha, cipó cipó, farinha, pesca pesca com. pesca, cipó, mandioca, func. municipal, pesca farinha pesca, mandioca, com., cipó, farinha pesca com., farinha, farinha, cipó cipó pesca (com. e tur.), cipó, pesca, mandioca, cipó pesca, mandioca, func. municipal caseiro assalariado, farinha pesca, mandioca, pesca com., farinha func. municipal, farinha, farinha mandioca, farinha --pesca, mandioca, pesca com. func. municipal, farinha pedreiro aposentadoria, serviços farinha gerais 68 moradores Legenda: pesca com. = pesca comercial; pesca tur. = pesca turística; mandioca = cultivo de 58 mandioca; farinha = uso doméstico e/ou venda de farinha; cipó = coleta, beneficiamento e artesanato em cipó; func. municipal = funcionário(a) municipal (professor, trabalho na estrada, zelador etc.); serv. turísticos = serviços turísticos (restaurante, pousada, limpeza de peixes); peq. com. = pequeno comércio local; criação animal = criação de aves (galinhas, galos, patos) e vacas; caseiro eventual = trabalho como caseiro(a) de turistas em algumas épocas do ano; caseiro assalariado = trabalho como caseiro(a) fixo de turista (mora na propriedade). Com o Quadro 1 fica mais fácil visualizar que as famílias ligadas a Seu Mario Fagundes se concentram em um núcleo, e da mesma forma acontece com Seu Floriano Rezende e Seu Marco Rezende, todas na ponta. Na vizinhança, encontram-se os núcleos da viúva Inês Tomazino Rezende, de Seu Chico Santos, de Seu Gilberto Santos e a viúva Dona Santina Carvalho Santos, cunhada de seu Chico. E existem os que não são vinculados com os fundadores, como Moisés Carvalho (mora sozinho na casa herdada dos pais), sua sobrinha Lúcia e Gabriel e seus três filhos (que moram em uma casa da família) e seu ex-cunhado Wiliam (que mora na casa de sua ex-mulher no terreno dos Carvalho)18; o nono núcleo seria de Júlio Ferraz, solteiro, filho do finado professor Ferraz que veio de fora e se instalou com a família para dar aula nos primeiros anos de existência da escola da Sítio. O conjunto de relações de interdependência e obrigações mutuas entre os parentes do Sítio e as famílias dos outros bairros vizinhos representa um padrão de organização social do sitiante do estuário, mas a interferência de outros grupos com sistemas de normas, práticas socais e de autoridade e condutas de territorialidade próprios, altera essa lógica. No que se refere a benfeitorias, na ponta, as casas são quase todas construídas em alvenaria e pintadas recentemente. O porto da ponta é mais estruturado do que o porto da vizinhança, em parte devido aos investimentos dos irmãos da ponta na pesca turística, que atende a intensa saída e chegada de embarcações, mais concentrada na ponta. O porto possui dois grandes e bem estruturados ranchos de alvenaria, onde ficam também dois 18 Para fins de organização dos dados, estes últimos foram agrupados em um mesmo núcleo por serem vinculados à família Carvalho. 59 trapiches, um de madeira e outro recente de cimento. Na vizinhança fica o “centrinho” do Sítio, onde se concentram as casas de madeira do Pirizal, além do campo de futebol, o orelhão, a igreja evangélica, a igreja católica, o salão paroquial usado em festas, a farinheira comunitária, e o cemitério. Existem sete ranchos no porto da vizinhança, bastante semelhantes entre si, erguidos em madeiras e cobertos por “eternit”, enfileirados um ao lado do outro, de frente para o banhado. Não há trapiche nesse porto, os barcos encostam no pirizal. A estrutura de certa maneira rústica do porto da vizinhança reflete a finalidade principal de seu uso: atender às demandas da pesca pro gasto e da pequena pesca comercial. Das sete casas de farinha caseiras, uma por núcleo, a mais antiga que fica na ponta está praticamente desativada - a farinheira de Seu Mario. As outras da ponta pertencem a Seu Marco e Seu Floriano; a as da vizinhança, a Seu Chico, a viúva Dona Santina, Seu Gilberto e Dona Inês. As famílias que compõem um mesmo núcleo familiar compartilham a mesma casa de farinha onde o trabalho se dá conjuntamente e o produto final é apropriado pela família, lógica que permeia a entre ajuda nas outras atividades. Os engenhos de farinha, também chamados de casa de farinha ou farinheira, são barracões antigos, construídos com diversos tipos de madeira nativa (guanandi, canela, por exemplo) ou bambu e as mais recentes com cimento e tijolo, para abrigar os aparelhos utilizados na transformação da mandioca em farinha. A farinheira mais antiga, a de Seu Mario, parada, chama atenção pelos equipamentos rústicos e peças feitas artesanalmente, e também pelas madeiras de lei, tendo passado por pelo menos duas gerações. Há duas farinheiras construídas recentemente de alvenaria, com a demanda de novas famílias que foram se formando: a farinheira do núcleo de Seu Floriano, compartilhada com a família do Zeca; e a farinheira da família de Dona Inês compartilhada com seu irmão Patrício e sua cunhada Dona Rita. Existe também a farinheira comunitária. Como será tratado posteriormente com mais detalhes, as famílias em sua maioria têm preferido produzir farinha nos engenhos caseiros geridos pelas famílias de um mesmo núcleo, em vez de usar a farinheira comunitária. As exceções dos núcleos familiares que não possuem uma casa de farinha são o núcleo de Seu Júlio e o núcleo de Lucia e Gabriel e Wiliam 19. Destes, apenas Wiliam que 19 Seu Júlio não constituiu família e não possui roça tampouco produz farinha. Já Lucia nasceu na comunidade mas desde de sua juventude morou na área urbana, onde casou e teve filhos. Há menos de 60 se casou e separou de uma nativa possui roça e eventualmente produz na farinheira de outras famílias. Lucia é nativa, mas ficou fora por muitos anos e não participa tão ativamente da vida comunitária; por sua vez Júlio e Wiliam não possuem nenhum grau de consanguinidade com os moradores. As áreas contiguas às casas reservadas à roça de mandioca são chamadas de terrenos; assim como os pesqueiros tradicionais, eles são exemplos de espaços comuns apropriados rotativamente de acordo com um sistema de troca de trabalho entre as famílias aparentadas, em uma prática de reciprocidade que se extrapola a outras atividades produtivas de que são exemplo o tecido de cipó e a produção de farinha e a pegação de caranguejo (que será explicado mais adiante). Essa “fotografia” sócio espacial do Pirizal se baseou inicialmente na descrição da Conceição, filha de Seu Chico Santos, logo quando comecei a pesquisa de campo. O mapa esboçado (Fig. 2.1) serviu para situar os pontos de referência para as casas dos moradores mais velhos, de idade passada, para as primeiras entrevistas, e foi sobreposto a um mapa com informações físicas e detalhes mais completos sobre as instituições do Sítio. Depois de ter feito essa primeira imagem do Sítio hoje, as próximas páginas procuram mostrar a dinâmica dos principais elementos da vida social das famílias que vão se reorganizando, e que nos permitem reconhecer o que mudou, a partir das formas de uso e apropriação da terra, da pluralização das atividades econômicas, da dinâmica de migração, da organização do trabalho familiar, enfim, fatores que são difíceis de serem apresentados em tópicos na exposição, porque de fato se influenciam e são mutuamente referenciados na constituição dos “balaios tecidos”. Não há, por exemplo, como se pensar a migração de um filho antes do casamento sem entender o sistema de transmissão de herança e o estresse fundiário, da mesma maneira como a organização do trabalho familiar está estreitamente associada à pluralização das atividades econômicas e a agregação dos núcleos com os casamentos. Nas narrativas apareceram uma variedade de 2 anos resolveu voltar com a família para a comunidade. Seu marido Gabriel trabalha como pedreiro e realiza pequenas obras, como a reforma da “Reserva do Bicudinho” administrada pelos ornitólogos próximo à lagoa do parado e a construção da pousada da Judite e do Marcelo em alvenaria (antes era um casebre de madeira, que foi demolido). Wiliam passou a fazer parte da comunidade ao se casar com a irmã de Lucia, que com o divórcio se mudou para a cidade; Wiliam ficou com a casa no terreno dos pais dela e participa do sistema de uso comum da terra; ele produz farinha em casas de farinha de vizinhos. 61 elementos da formação do Sítio que vão se alterando ao longo do tempo, conjugados com as mudanças sociais do Litoral. As entrevistas relacionam muitos eventos, sujeitos, lugares e tempos, elementos que convergem e se distanciam conforme a família, dificultando uma exposição linear, por isso como opção de escrita as entrevistas foram apresentadas de uma forma que mais lembra uma espiral. 62 Figura 2.1 – mapa do Sítio esboçado com a ajuda de Conceição no primeiro dia de campo. 63 3 TECENDO O BALAIO: ENTRE A PONTA E A VIZINHANÇA 3.1 Os sitiantes e o Sítio em movimento: fracionamento das posses, sucessão masculina e migração feminina Desde a ocupação e criação do Sítio Pirizal, os homens tendem a se fixar e se enraizar no território, ao passo que as mulheres podem ser as nativas que se casam com nativos e saem da casa dos pais para a do marido ou as que emigram e se casam fora; podem ser também as que chegam de outra localidade, casam com nativo e permanecem. Afinal, é o casamento com o homem “enraizado” que situa a mulher em algum lugar entre os parentes, na sua nova família. Os casamentos endogâmicos são os mais comuns entre os mais velhos e geraram os casais de primos, diretos e indiretos, como Dona Dulce Fagundes e Seu Marco Rezende, Seu Gilberto Santos e Dona Helena Santos, Conceição Santos e Nilton Fagundes. Porém, desde o início do povoamento, acontecem os casamentos de nativos com mulheres de famílias que se mudaram para o Sítio ou mulheres nascidas em comunidades da região, que “foram buscadas”, se casaram e se mudaram sem a família de origem. Desde o casamento com um nativo, a moça passa a assumir as obrigações e os direitos que lhe cabem, conforme diz a família que a acolheu, diante dos vizinhos e da comunidade. A família do marido passa a ser a nova família da esposa e seu nome passa a ser seguido do nome dele, como se escutou frequentemente. Este é o caso de Dona Suzana do Chico, Melina do Zeca e Flor do Jailson, Judite do Marcelo, Geraldina do Cleiton, como podemos observar na seguinte passagem da entrevista com a viúva Dona Inês, moradora da vizinhança: INÊS: Aqui é Rezende, Santos e Fagundes. Meu nome sobrenome de solteira é Tomazino, mas agora é Rezende, porque o irmão dela (apontando para cunhada Rita) era Rezende. Mas só o que encontra no Pirizal é Rezende, Santos e Fagundes. Só que não casa parente com parente. Mas não sei, vem outros, namora, casa, mas mora aqui, e é Rezende, é Santos. Eles ali, a Conceição e o Nilton são parente. 64 Há duas gerações, as famílias dos Carvalho e dos Tomazino se mudaram para o Pirizal, cujos filhos eram em sua maioria moças. Os casamentos de suas filhas Acácia, Inês, Lucélia, da família Tomazino, e Luzia e Santina, da família Carvalho, com herdeiros nativos integraram-nas ao Sítio, ou seja, as então moças de fora passaram a pertencer ao lugar, pelo casamento (suas outras irmãs saíram e se casaram com homens de fora). Já entre os dois filhos homens, Moisés Carvalho e Antonio Tomazino, este se casou com Rita Rezende com quem se mudou para a cidade, mas recentemente voltaram para a baía, onde compraram uma casa. Voltaram sem herança justamente por ela ser mulher, que emigrou e ele ser de fora. Apesar de trabalharem no guajú junto com os moradores, de fazerem farinha no engenho próprio e de participarem da vida comunitária, e terem sua casa no Sítio, esta está fechada, pois decidiram morar num Sítio próximo voltado ao turismo da pesca, onde trabalham como zeladores para um proprietário. Por sua vez, Moisés Carvalho é solteiro e vive sozinho na casa que fora de seus pais, ao lado da casa do cunhado Wiliam, formando, cada um, um núcleo individual, na vizinhança. A mulher vinda de fora, quando casa com um nativo, é mais aceita e passa menos dificuldades do que o homem na mesma situação. Isso porque um novo membro da família quando é um homem de fora pode trazer implicações importantes para a regra de sociabilidade e para os arranjos de sucessão e herança. Para os homens não-nativos fica mais difícil acumular confiança e construir raízes na comunidade, pois esse direito cabe apenas aos homens que descendem ou dos Fagundes, ou dos Rezende ou dos Santos. Existe somente um caso de casamento entre uma descendente dos fundadores e um homem de fora em que o marido logo se mudou para o núcleo do sogro: Joana, filha de Seu Gilberto e Dona Adelina Santos, e Fausto. Outras duas situações de mulheres que nasceram no Pirizal e casaram com homens de fora são Linda e Lúcia Carvalho (irmãs de Dona Santina, viúva, e Dona Luzia casada com Seu Floriano) que se casaram e se mudaram para a cidade, mas retornaram com seus maridos de fora. Lúcia se casou na cidade, mas recentemente, por dificuldades com oportunidades de trabalho, voltou para a comunidade com seu marido Gabriel, que trabalha como pedreiro, e seus dois filhos préadolescentes. No caso de Linda, ela casou fora com Wiliam, levou-o para o Sítio e depois se separaram. Foi quando ela se mudou para a cidade e ele decidiu permanecer na chácara 65 da família Rezende, seus cunhados. A chácara implica um terreno de uso rotativo para a roça que é compartilhado com os outros moradores. Wiliam foi descrito como uma figura bastante controversa, por diversas famílias. Há anos adquiriu o direito de plantar no terreno dos cunhados, sucessores, mas no meio de 2011 cercou o terreno e decidiu oferece-lo a um comerciante local como pagamento de uma dívida que tinha com ele. Quando a intenção de “venda” do terreno foi descoberta, depois que Wiliam tinha levantado uma cerca, chegaram a realizar uma reunião para esclarecer a situação do terreno, mas Willian não quis participar. Após a tentativa de conversa, sem solução, o cunhado Seu Floriano Rezende aproveitou o momento de seu guajú em que já estavam mobilizados homens e mulheres para derrubar a cerca levantada por Wiliam, e, assim, impedir a venda. A situação virou um impasse porque que o terreno de uso da sua ex-esposa Linda “pertencia à comunidade”, onde famílias da ponta e vizinhança iam participar de um guajú20 já programado para breve, e agravado pelo fato de Wiliam não ser herdeiro, ele é de fora. A retaliação, expressa no ritual do mutirão de homens com a enxada em punho, impediu Wiliam de usar a venda para pagar sua dívida, interditou seu acesso à roça por uma temporada e simbolicamente reforçou a regra de apropriação comum (BECKER, 2008; OSTROM, 1990), a que tem acesso quem é parente. Para o homem de fora casado com uma nativa a integração fica limitada e diferenciada em relação a quem é nativo, ainda mais na situação de moças que já não eram parentes, como é o caso das irmãs da família Carvalho e de Linda que casou com um homem de fora. Os indivíduos “agregados” vindos de outras comunidades (na maioria mulheres) se acomodaram aos núcleos pré-existentes através dos casamentos com os parentes, o que lhes exige uma espécie de conversão moral (BECKER, 2008). Devem incorporar moralmente as regras de convívio social e os costumes próprios aos sitiantes, como por exemplo o direito de fazer roça nas terras de uso comum (terrenos), participar do culto religioso, participar da cultura do guajú, respeitar a hierarquia de seu núcleo familiar, ou seja, compartilhar instituições criadas e legitimadas pelo grupo, que explicitamente levam em conta o nascimento e o casamento. 20 O guajú ou o mutirão compensa a ausência da força de trabalho dos filhos emigrados e também reforça os laços de troca de trabalho, um traço bastante recorrente do campesinato brasileiro (WOORTMAN, 1990a, 1990b). 66 Isso porque a retirada de terras do circuito dos parentes ameaça as normas de casamento e nascimento que asseguram o familismo. As regras excludentes de herança e sucessão masculina foram instituídas no contexto de escassez de terras e de condições ruins de reprodução social para todos os filhos, que acabam emigrando. Quando algum parente morre e deixa uma posse para filhos que estão na cidade, ou quando uma família toda se muda para longe, a herança pode ser vendida para um parente por um valor simbólico ou fica disponível para algum casal recém-formado, ou seja, não sai do circuito de parentes. Essa lógica se parece com as regras de ocupação das capouras apropriadas para o plantio rotativo da mandioca (bolas), para o lado dos terrenos (áreas de uso comum), em que quando a bola deixou de ser útil para outrem depois do corte, é abandonada até a capoura crescer, pronta para ser escolhida e receber uma nova roça. O que acontece é que existem muitos nativos para pouco espaço, cada vez mais fragmentado. E, além disso, o novo mercado imobiliário se aqueceu com a valorização que a região adquiriu depois da construção de estradas e instalação de luz, atraindo sobretudo turistas da pesca e veranistas (turistas de segunda residência). A permanência preferencial dos filhos homens mais velhos, que quando se casam constroem ou ocupam uma posse ao lado do pai, fracionando o lote familiar, tem a contrapartida da pressão para o êxodo das filhas mulheres. Nos últimos tempos os filhos homens jovens também têm saído. Mas mesmo assim a situação tem sido convencionalmente mais perversa para as mulheres, para quem a interdição ao direito a uma posse no núcleo dos pais impõe o êxodo ou à sujeição à espera pelo abandono ou venda de uma posse. Em tempos de sitiantes disputando um espaço para morar, “se espremendo” nas posses, é cada vez mais rara a existência de imóveis abandonados. Logo, o casamento com um nativo (um primo ou parente) se torna uma condição para a permanência com acesso garantido à terra, para as mulheres que desejarem permanecer. O número total de filhos por família em média é cinco, sendo que mais da metade dos filhos de cada família emigrou para as cidades mais próximas, como Guaratuba, Matinhos e Caiobá, no Paraná, e Garuva e Joinville em Santa Catarina. Preferencialmente, as filhas mulheres se mudam e se casam para os lados da cidade. Os jovens param de estudar cedo e quando entram na idade de trabalho almejam obter um emprego assalariado na cidade, como forma de não seguir a vida de lavoura dos pais. Os 67 jovens emigrados, com baixa escolaridade e sem experiência e qualificação profissional adequadas às demandas do mercado de trabalho propriamente urbano, muitas vezes aceitam subempregos, informais, ou em empregos temporários, de pedreiro, operário, garçom/garçonete e ocupações relacionadas ao turismo, como os filhos de Dona Flor e Jailson Santos, Dona Rita e Seu Patrício, Seu Chico e Dona Suzana, Seu Gilberto e Dona Helena, Fausto e Joana, da vizinhança. Outros conseguem trabalhos como funcionários públicos municipais, como auxiliar administrativo ou professor, a exemplo das duas filhas de Dona Dulce, da ponta. A incerteza das oportunidades econômicas, a insegurança e a falta de reconhecimento do mundo do assalariamento e da subordinação encontrados na cidade são contrastadas com a vida em família, os laços sociais, relativa autonomia em relação a patrões e a mínima garantia de morada que a transmissão patrimonial no Sítio pode oferecer. Esse foi um argumento típico dos entrevistados que têm filhos a cidade. Os caminhos dos sitiantes que emigraram para os centros urbanos ao redor do Pirizal em busca de melhores oportunidades de emprego são definitivos, pois eles não costumam retornar, só para visitas 21. Nas últimas quatro décadas, a emigração para os centros urbanos de famílias inteiras ou dos mais jovens em idade de trabalho não tem sido uma novidade, o que não significa um rompimento com a família e outros parentes. Filhos e netos frequentemente retornam para o Sítio em finais de semana, feriados e datas e festejos importantes para a vida familiar e comunitária, como pôde ser observado, enquanto eu estava em campo, pelo número de parentes reunidos na festa de aniversário de Seu Chico Santos e nos almoços de domingos na casa de Dona Dulce, por exemplo. Para os parentes que porventura retornaram à comunidade, que são muito poucos, não existe a possibilidade de reocupação do núcleo a que pertenceram. Entre os que decidiram retornar ao Sítio estão Seu Floriano Rezende, que se aposentou como funcionário da Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), Dona Rita Rezende que por conta da idade disse que não encontrava mais emprego, Dona Dulce, esposa de Seu Marco Rezende, que dava aula num bairro vizinho até o fechamento da escola, e Catarina que não encontrou emprego com seu marido na cidade. Cada um enfrentou situações diferentes ao voltar. Na condição de mulheres, Dona 21 Deste modo, a experiência da migração se constitui como parte integrante das próprias práticas de reprodução do campesinato (WOORTMANN, 1990b; GALIZONI, 2002). 68 Rita Rezende ficou sem o terreno de sua falecida mãe, ocupado pela família de Seu Marco Rezende e Dona Dulce e teve que comprar uma casa na entrada da comunidade, perto de sua cunhada Inês22. Seu Floriano e sua esposa Dona Luzia Carvalho Rezende se mudaram pra cidade mas continuaram cuidando do terreno e da posse herdados, fazendo manutenção e reformas, marcando e garantindo sua ocupação para onde retornaram e moram até hoje. Sobre a geração de filhos e netos que estão na cidade, Seu Floriano contou que sua filha decidiu ficar com a família em Matinhos, pois está bem empregada, mas seu filho, depois de ter enfrentado dificuldades econômicas e o alcoolismo, resolveu voltar para o Sítio. A professora Paulina comentou que os jovens da cidade não acham emprego e “se envolvem com drogas”, mas ainda sim a maioria dos jovens em idade de estudo prefere mudar de vida e não seguir a vida dos pais sitiantes. Seu Chico Santos também mencionou o receio pelo futuro das filhas e netos e as incertezas de se morar na cidade, a falta de emprego e a violência propriamente urbana. Não foi possível entrevistar parentes que ainda vivem na cidade, apenas seus pais e diretamente aqueles que saíram e decidiram retornar ao Sítio. Os pais com filhos na cidade demonstraram que gostaria que os filhos permanecessem. No conjunto das entrevistas, a saída de mulheres e filhos homens mais novos foi interpretada de três maneiras diferentes, às vezes por um mesmo entrevistado na mesma conversa. A saída foi vista como uma escolha pessoal na busca por melhores oportunidades em empregos urbanos, ou como recusa da trajetória dos pais na lavoura e na pesca, e nesses dois modos de olhar a questão a decisão é do sitiante que vai embora. Uma outra forma de interpretar a emigração, menos mencionada, se refere às condições desfavoráveis pra se viver no Sítio, como motivos alheios à vontade da família, a exemplo da redução da terra para o plantio e as poucas alternativas econômicas. A emigração é um aspecto contraditório da vida no Sítio, pois uma vez que alivia o fracionamento patrimonial e possibilita a reprodução dos papeis sociais para os que ficam, a vida difícil e incerta na cidade vai contra as aspirações dos pais daqueles que se 22 Recentemente se mudou para um Sítio próximo, voltado para o turismo da pesca, para acompanhar seu marido que cuida de uma propriedade lá temporariamente, mas mantém sua casa no Sítio e trabalha regularmente na roça, com sua cunhada no Pirizal. Para os efeitos da pesquisa, Dona Rita e seu marido foram considerados moradores, pois além de terem nascido na comunidade, participam ativamente da vida comunitária. 69 vão. Se a partilha fosse feita para todos os filhos o patrimônio se fragmentaria demasiadamente, inviabilizando o Sítio. Além disso, há o imperativo do êxodo das filhas mulheres. O fracionamento é uma questão tão delicada que as novas famílias feitas de casamento de algum herdeiro homem têm cada vez menos espaço par construir perto dos pais, de modo que os filhos homens também têm sido pressionados para sair. Praticamente não há chácaras ociosas e desocupadas, a não ser as casas de veraneio dos turistas, vazias na maior parte do ano. 3.2 Os irmãos da ponta, o turismo da pesca e a privatização das posses Já foi mencionado que as famílias tiveram em média cinco filhos, dos quais mais da metade saiu da comunidade. E entre os emigrados a maioria era de mulheres e mais recentemente os filhos homens mais novos também têm saído com mais frequência para a cidade, preferindo buscar um emprego e uma vida melhor. Esse é o quadro geral do Pirizal, mas, se olharmos para a ponta, uma outra dinâmica acontece, particularmente no núcleo de Seu Marco Rezende casado com Dona Dulce. No caso do núcleo de Seu Mario, com noventa e um anos, dos cinco filhos, apenas um emigrou para a cidade, os outros quatro (três homens e uma mulher) moram na ponta hoje em dia. No entanto, os três homens não formaram seus próprios núcleos, uma vez que seus filhos (netos de Seu Mario, a maioria de mulheres que casaram com homens de fora) se mudaram para a cidade. Assim, as casas dos filhos de seu Mario se localizam dentro de seu núcleo. Dona Dulce e seu Marco Rezende formaram seu próprio núcleo familiar, onde estão até hoje rodeados das chácaras de seus filhos homens, casados. Dos sete filhos do casal, suas duas únicas filhas mulheres se casaram com pessoas de fora e foram morar na área urbana. Todos os filhos homens ficaram, sendo três filhos solteiros que moram na casa dos pais e outros dois que casaram-se com moças de fora, fragmentando o lote dos pais em duas outras chácaras, de Marcelo e de Ronaldo. Este núcleo é o que mais parece se preocupar a erguer um patrimônio comum e buscar a prosperidade como garantia do patrimônio dos filhos e netos. Com pouca terra de herança, insuficiente para a lavoura de tantos filhos homens (dois casados e três 70 solteiros que moram na casa dos pais, mas “passados” da idade de se casarem), o turismo de pesca logo se tornou a melhor opção como uma atividade econômica fundamental para o núcleo. Essa dedicação e afinco ao trabalho, comum ao núcleo, pode ser notada na fala de Marquinho, de quinze anos. O único pescador jovem do Pirizal, neto do pescador Seu Marco Rezende e Dona Dulce Fagundes e filho de Judite e Marcelo, quando perguntado se, jovem como é, ele pensa em sair da comunidade avalia que: MARQUINHO: o trabalho da gente tá tudo aqui. [Os jovens] vadios, não querem trabalhar, não têm nada pra fazer, eles querem sair daqui. Ele acha que lá [na cidade] vai ser melhor pra ele. E não acha o caminho certo. Se não querem procurar um serviço... só ficam de folia. A gente já tem um serviço, mas [outros jovens] não querem seguir o mesmo caminho, não tem o interesse, não faz o esforço também. Aí vai às vezes acha algum serviço, às vez não acha nada. Às vez não tem com quem morar, aí vai trabalhar, ganha quinhentão e paga seiscentos numa casa pra alugar. Seu Marco, seus cinco filhos e seu neto (todos homens) trabalham juntos no ramo da pesca. Com certa autonomia por serem proprietários dos meios de produção (nenhum deles é funcionário da prefeitura, ainda que dependam da demanda turística e do fluxo comercial regional e de atravessadores), capitalizaram-se rapidamente sem se assalariarem e investem crescentemente nos serviços que gerenciam associados à pesca e ao turismo local. O acesso à terra se desdobrou de forma pouco convencional, já que se deu pelo movimento de êxodo-retorno, depois que os projetos de vida e trabalho num bairro vizinho foram modificados com a instalação do monocultivo de pinus pela Comfloresta nos anos 80, que desmantelou a comunidade e obrigou o fechamento da escola onde Dona Dulce dava aula. A retomada do espaço de morada com seus filhos aconteceu no contexto do drama de se ter perdido a casa, a lavoura e os laços que construíram nesse outro bairro (que será detalhado em outro capítulo). Em outras palavras, no núcleo de Seu Marco a proporção de irmãos que permaneceram na comunidade é maior em relação aos que emigraram. Essa situação difere do que acontece no resto do Sítio, onde o número de irmãos homens e mulheres que emigrou é maior do que a que permaneceu. Como veremos na seção sobre as atividades econômicas dos moradores, a tendência para o empreendedorismo e a capitalização propiciados pelas janelas de 71 oportunidade na pesca esportiva é notada especialmente entre os irmãos, solteiros e casados, da ponta, que trabalham em conjunto. O acesso conturbado à terra, a falta de acesso aos cargos da prefeitura e a permanência e coesão entre os irmãos homens de certa forma favoreceram o trabalho no negócio coletivo voltado ao turismo de pesca, no âmbito do núcleo familiar. Por outro lado, o desenvolvimento dessa disposição para os negócios ligados ao turismo pesqueiro, realizado em família, não foi observada na vizinhança. Com efeito, Seu Marco Rezende, sua esposa Dona Dulce e sua nora Judite, da ponta, afirmaram em diferentes ocasiões sua disposição ao trabalho, o quanto são caprichosos e esforçados e, em contraponto, e em referência aos habitantes da vizinhança, afirmaram que estes não são propensas ao trabalho árduo e que são preguiçosos. Esse seria também o motivo de a família de Marcelo e a de seu pai Seu Marco não trocarem tempo de trabalho com as famílias da vizinhança, pois teriam que refazer o que tivesse sido mal feito por estes. Em outras palavras, sua disposição para o trabalho e para o capricho é como eles explicam sua prosperidade, e não a partir das pressões e oportunidades. Aos poucos, a diferenciação pôde ser percebida visualmente tanto na aparência dos terrenos, ranchos e casas de alvenaria bem pintadas da ponta, como também na dinâmica cooperativa do guajú, mais fechada na ponta e com a comunidade engajada na vizinhança, e também a partir da especialização na pesca turística na ponta e a combinação mais equilibrada entre o assalariamento, pesca comercial, venda da farinha na vizinhança e pelos conflitos entre escolhas familiares e desentendimentos entre os moradores. Na ponta moram os chefes de família mais velhos das famílias Fagundes e Rezende, Seu Mario e Seu Marco. Os núcleos familiares são bastante coesos e procuram cooperar entre si, de maneira introvertida, e são vistos pelos moradores da vizinhança como um aglomerado unificado e homogêneo, tamanha a imagem de coesão interna construída a partir das relações de conflito com outros núcleos. O processo de intensificação da pesca esportiva atrai turistas à procura de casas de veraneio para comprar. O comércio de terrenos e casas vazios já trouxe rendimentos para o filho mais velho de Seu Maro Rezende e Dona Dulce: Marcelo, já imaginando uma futura proposta dos clientes assíduos, fez uma proposta para Seu Chico para comprar um 72 terreno. Como um dos terrenos ficava perto do banhado, não era útil nem para se construir benfeitorias tampouco para a lavoura, Marcelo comprou por um valor considerado abaixo do mercado. Depois da compra do terreno de Seu Chico, Marcelo dividiu em três lotes e revendeu, para veranistas, por um valor mais elevado. Os turistas que conseguiram comprar terrenos diretamente com nativos construíram casas de veraneio, que permanecem fechadas na maior parte do ano, pois são frequentadas com mais regularidade no inverno, época de intensa pescaria ou nos dias mais quentes no verão. Ao lado e na frente de sua pousada, Ronaldo, irmão de Marcelo, tomou a mesma medida e revendeu os lotes que havia comprado, para turistas que já eram seus clientes. Não ficou claro, no entanto, qual iniciativa foi a primeira, mas sabe-se que se deram na mesma época e foram semelhantes. O fato é que tem crescido a procura por terrenos para construção de casas, e as primeiras já foram negociadas pelos pescadores que atendem diretamente aos turistas interessados na pesca esportiva e em passar o verão. A oferta de chácaras e terrenos vazios para turistas é nova e se concentra para o lado do banhado, que cerca uma grande porção da ponta, portanto no lado menos procurado pelos nativos para ocupação (ao contrário do “tempo áureo” dos arrozais). Os terrenos são alagados e estão fora das situações de espólio e disputas entre famílias, oportunidade que favorece a compra por pessoas de fora. Nos dias de hoje, o banhado é como uma terra de que não se pode desfrutar nem produtivamente nem para se construir, logo adquiriu valor de troca. O interesse comercial nos terrenos dentro da comunidade contraria Seu Cacá Fagundes. Seu irmão que não mora mais no Sítio queria vender sua chácara para um estranho, ao que Seu Cacá reagiu comprando-a do irmão, para manter tudo em família. Seu Cacá comenta seu incômodo com a presença crescente de estranhos à comunidade, tendência que leva a fragmentação das chácaras entre quem é nativo e quem não é. Mesmo que ocupado de forma duradoura, por um casal até a viuvez, quando desocupado, a posse costuma a ser disponibilizada para uma nova família, seja para um herdeiro do núcleo seja para um parente que queira comprar, pagando menos que no mercado oficial ou que ainda se trate de uma transação não oficial ente sitiantes posseiros. A lógica oficial de propriedade privada que se iniciou na ponta rompe esse 73 circuito ao tirar das mãos dos nativos o monopólio de ocupação do terreno por seus filhos. Colocado em outras palavras, se por um lado a ocupação das chácaras já se dá pela privatização por uma família que era sucedida, quando porventura “sobravam” posses, outro parente podia morar ali. Novos padrões de uso e apropriação das chácaras e de frações do banhado se estabelecem a partir do processo de privatização. Os casamentos, juntamente com as regras de transmissão de herança entre parentes, têm sido um dos principais meios de reger a circulação e ocupação das famílias nas chácaras e nos terrenos que constituem o Sítio, conformando de geração em geração o território coletivo, interditando o acesso para não parentes. Porém, lentamente, a configuração da área das posses (o terreno é preservado para o sistema rotativo e está fora da comercialização), intimamente vinculada à instituição local do espólio, sofre os efeitos do processo de individualização do núcleo de Seu Marco Rezende da ponta que se especializou no turismo, da chegada de veranistas à procura de casas para compra e da consequente valorização da região. Seu Gilberto Santos, da vizinhança, detalhou a história do conflito dos herdeiros dos Vasconcelos com a família de sua filha. Os Vasconcelos não eram nativos tampouco parentes de nenhum nativo da comunidade. O chefe da família, o comerciante Antonio Vasconcelos veio da Prainha, localidade rural de Guaratuba, e trabalhava com a extração de madeira nativa em pequena escala, para construção de casas de madeira. Comprou pequenos quintais na ponta e na vizinhança23, e se mudou com sua família, ao lado de onde hoje mora a família de Fausto, genro de Seu Gilberto. Os Vasconcelos não ficaram muito tempo no Pirizal e casaram Fátima, uma de suas filhas, com o falecido irmão de seu Gilberto, Sezefredo. Este, já falecido, foi descrito pelo primo Chico Santos como um bom comerciante como o sogro: trabalhava com gado, tinha um bar no porto, e deixou uma roça de arroz no banhado quando faleceu na baía. Com a morte de Seu Sezefredo, a viúva voltou com os filhos para a Prainha. Foi Seu Chico que ajudou a viúva a levar a casa de madeira desmontada 24 em seu barco25, 23 24 25 Na entrevista com Seu Cacá e sua esposa Dona Acácia, da ponta, Dona Acácia explicou que foi a falecida mãe de Dona Rita Rezende que vendeu o terreno para os Vasconcelos, depois que deixou a casa e precisou ser cuidada e foi morar com a filha na cidade, já bastante adoecida. Era comum as famílias venderem apenas a casa e não o terreno, a qual era levada para o novo destino desmontada, por barco. Era um barco grande usado também para transportar pessoas que não tinham um, como um serviço de barqueiro. 74 para a Prainha onde moravam os parentes da moça, os Vasconcelos. Seu Chico fez um acordo e, como parte do acordo, ficou com o terreno do primo no banhado perto do porto de baixo na ponta. Um tempo depois Seu Chico vendeu o terreno para um advogado que construiu um tanque de pesca; o terreno permanece lá, mas o turista não aparece com muita frequência. Os Vasconcelos saíram do Pirizal após venderem as chácaras que possuíam, com casas erguidas em madeira, para um parente deles que voltou para Prainha, que então o revendeu26 para Seu Gervásio Gonçalves e Dona Geni, já finados, nativos de um bairro vizinho. Seu Gervásio levou a casa de madeira desmontada no seu retorno e permitiu que os nativos do Pirizal ocupassem o quintal. Foi quando Catarina, neta de Gilberto, se mudou para lá com seu marido e ocuparam o terreno, limpando-o e se instalando nele. Os herdeiros dos Vasconcelos de hoje, atentos à valorização imobiliária do Sítio, recentemente reclamaram na justiça o direito sobre as chácaras onde seus avôs moraram. Distantes, morando na cidade, fizeram a documentação das terras, e alegaram que continuaram pagando impostos. O que eles pediram foi o direito a duas parcelas de terra. Uma delas na ponta, fração vendida pela mãe de Rita Rezende e onde hoje fica a roça da Judite do Marcelo, e a outra na vizinhança, onde morava a família da Catarina, exigindo a desocupação das famílias que passaram a ocupá-las. Joana (a mãe de Catarina e filha de seu Gilberto Santos e Dona Helena Santos) não saiu do núcleo paterno quando se casou para morar com a família do marido, foi Fausto que veio morar no núcleo do sogro. Catarina, filha do casal, é nativa e, repetindo a trajetória dos pais, ao contrário de ter emigrado para morar com a família de seu marido, foi ele quem se mudou para o núcleo. Como a ela não havia terra de herança garantida, como acontece com os filhos homens, ela estava sujeita à disposição contingente de algum abandono de chácara. Foi quando ocupou a chácara que fora da viúva de Seu Gilberto Santos, Fátima Vasconcelos, o qual já havia passado pelas mãos de outros donos em compras não oficiais. Esse quadro se desdobrou na contenda judicial que a forçou a sair para a cidade, contrariando sua vontade de permanecer e o sistema de regras sobre ocupação para parentes. Catarina (filha de Fausto de fora e neta do herdeiro Seu Gilberto Santos) foi 26 A compra e venda de casas e terrenos se deram não oficialmente, por meio de recibos, prática bastante comum na região até hoje entre os posseiros. 75 diretamente afetada pelo processo judicial: perdeu a causa e teve que desocupar a posse. Fausto conta que a família Vasconcelos alegou usucapião, sendo que há anos não visitava a comunidade e enviava advogados que fotografavam a casa ocupada por sua filha e o pomar e horta, alegando que a movimentação na casa era na verdade do herdeiro dos Vasconcelos, mostrando como prova um abacateiro que seus ancestrais haviam plantado. Como desfecho desse dilema, a família da filha do Fausto recebeu uma quantia, considerada por eles bastante baixa, pela casa feita, além de ter perdido as melhorias que haviam construído no quintal, e teve que se mudar novamente com o marido e filhas pequenas para a cidade, lugar considerado muito inferior do ponto de vista da segurança e do custo de vida, além do fato de ser longe de sua família. Fausto explicou que seu advogado de defesa era da prefeitura, não acompanhou o caso e perdeu a data das audiências, o que deu causa ganha para o herdeiro dos Vasconcelos. Seu Gilberto explicou que de fato o terreno era mesmo dos Vasconcelos anteriormente, mas ele e sua esposa Dona Acácia defendem que o terreno passou a ser da família de sua neta justamente quando “Eles entraram ali, né, daí foram limpando, arrumaram, só que não tinha nada documentado […]. É, antes, plantaram umas palmeiras, só que não tinham documento. Até hoje nós não temos documento”. Seu Gilberto demonstra aqui a importância de se ocupar o espaço para dar sentido de uso e legitimar a posse, que, na falta de atividade pode ser facilmente ocupada por outrem. Assim, a compra (informal) de uma chácara só tem legitimidade se o novo parente ocupá-la. Essa é a mesma regra vigente para a capoura nos terrenos e para os demais sistemas produtivos de uso comum como o mangue e o pesqueiro, uma institucionalidade não oficial bastante comum na região que rotiniza o sistema de uso e apropriação de terras a partir do critério de uso, sistema reforçado diante do fracionamento progressivo do patrimônio. A outra família de quem os Vasconcelos poderiam cobrar as terras reagiu diferente diante às ameaças de retomada. A família de Marcelo, da ponta, foi alertada pelas “fofocas” criadas por Wiliam, de que os Vasconcelos logo brigariam para recuperar a chácara onde moravam hoje, que havia sido comprado da falecida mãe de Dona Rita Rezende e também ficou atenta ao desfecho desfavorável à família da filha Fausto, para o que se adiantou e contratou um advogado e um agrimensor. Na minha primeira visita ao 76 Sítio, almocei no pequeno restaurante desse casal que funciona também como venda e pousada para turistas da pesca. Depois do almoço, Judite me levou toda orgulhosa para conhecer sua pequena agrofloresta dentro do seu quintal e suas roças de mandioca nos terrenos do núcleo familiar do seu sogro, atrás das chácaras. Ainda que os homens de seu núcleo familiar se dediquem mais ao turismo da pesca, a lavoura não deixou de estar presente. Quando lhe perguntei sobre a propriedade das terras e o sistema de plantio, Judite explicou que teve problemas com divisões naturais de terra e que precisou definir na justiça o seu pedaço. Chegou a cavar uma vala que se encheu de água do banhado para servir de divisa para as chácaras e contou que, diante de problemas com demarcações, preferiu chamar um advogado particular para medir sua chácara e seu terreno (ou terra de planta) e “resolver na justiça”, em vez de tentar resolver pessoalmente divergências. Sua reclamação era de que os parentes de seu marido acabam sempre repetindo e roçando por cima da divisa de seu terreno, o que a levou a querer individualizar e fixar roças em espaços que antes eram de uso coletivo e espacialmente rotativas. Além disso, a rumores de que os Vasconcelos iam pedir o terreno de volta aumentou seu receio de perder sua chácara e o terreno. A decisão de contratar um advogado particular e um agrimensor para formalizar também a posse da área dos terrenos, individualmente, foi isolada, não foi aberta para discussão entre outros núcleos. A atitude gerou hostilidade principalmente da parte dos núcleos da vizinhança, que não cercam seus terrenos e trabalham de forma interdependente. De fato, o núcleo de Seu Marco Rezende tem se fortalecido internamente, restringindo a organização de suas atividades produtivas quase totalmente entre si e não participando do sistema de entre ajuda corrente entre os núcleos da vizinhança, além de terem privatizado as roças, sobre áreas que deveriam ficar disponíveis para a vizinhança. A falta de regulamentação da posse (são posseiros, não possuem o documento da terra) acaba gerando uma insegurança às famílias, ainda mais depois do precedente de desocupação da família da filha de Fausto por meios judiciais, pelos Vasconcelos que garantiram a propriedade. No caso da Judite do Marcelo, o receio da falta de terras e de perder o terreno de sua casa a levou à decisão ela documentação e privatização permanente da propriedade familiar. Lentamente, o direito rotativo de ocupação, de 77 acordo com o uso, mais flexível e fechado aos nativos, cede espaço para a fixação oficial da apropriação privada, de que as situações de cobrança judicial da parte dos Vasconcelos e da venda dos terrenos aos turistas foram os primeiros exemplos. Como vimos, a conjugação de migração feminina, casamento e sucessão masculina faz parte de um sistema complexo de direitos criado internamente e regulado pelos homens, frente à saturação das posses, que exige um processo contínuo de territorialização que opera a partir do critério do familismo (SIMMEL, 1985; HAESBAERT, LIMONAD, 2007). A territorialidade da família vai sendo construída relacionalmente na distinção de seu grupo em relação aos os outros, em um gradiente que varia desde quem é da família, do núcleo, do Sitio e, a partir dessa referência básicas, quem é “mais ou menos” de fora. 3.3 O vínculo familista pela terra e pelo guajú: o declínio da lavoura de arroz e o protagonismo da lavoura de mandioca “Meu deus, antigamente, antes de vim a luz, esse guajú aí, esse é de tradição” (Seu Cacá, morador da ponta). Foi lugar comum para os mais velhos quando se referem à época de seus avós como um tempo de acesso irrestrito a terras extensas e à mata bruta para a lavoura e o extrativismo, abundância de peixe nos rios e na baía, madeira, caça, práticas que conformavam um território vasto e disponível, “sem dono”. Durante a infância dos entrevistados mais velhos, os problemas enfrentados por seus pais e avós incluíam a dificuldade de comunicação e de circulação. Foram mencionadas as mortes de pelo menos três nativos navegando nas águas da baía sem que fosse possível lhes dar assistência emergencial deixando esposa e filhos. Era complicado acessar bens e serviços da cidade, como saúde, emprego, educação, lazer, consumo de combustível, alimentos e roupas. O relativo isolamento geográfico e comunicacional, permitido pelo cruzamento da baía apenas de barco a remo, não impediu, porém, o contato e interações com povoados vizinhos, que incluíam a procura por parteiras, troca de ajutório na lavoura, união nas festividades religiosas, relações econômicas tipicamente 78 mercantis com atravessadores urbanos, pequenos comerciantes diretos e consumidores. Mencionaram também a restrição das relações econômicas a determinados gêneros, mercados e atravessadores. Dona Inês e Seu Chico justificaram que como “a terra é fraca”, culturas de subsistência como milho e feijão eram inviáveis. O processo de produção de mandioca e sua transformação era inteiramente manual cansativo e levava dias, exigindo o trabalho dos filhos e dos parentes. Quanto à sua finalidade agrícola, em algumas passagens significativas das entrevistas é contundente a percepção da baixa fertilidade do solo. Apareceu em diferentes momentos a comparação com o solo da comunidade do Cubatão e Pai Paulo, ao norte da baía, segundo a qual o Sítio não possuía condições naturais que pudessem fornecer meios de alcançar a prosperidade econômica encontrada em outras comunidades com terras mais ricas. A condição de “areião” em um lado da rua principal e de banhado noutro é um atributo que limitou o leque de cultivos agrícolas possíveis e que impediu o interesse de investidores e compradores nos produtos que as mãos dos nativos poderiam cultivar. A diversidade de atividades produtivas e localização geográfica, próximo a concentrações florestais e cercado de rios e da baía, de certo modo complementa essa falta de vocação agrícola (DENARDIN et al., 2008). O cultivo do arroz pelos nativos do Pirizal teve seu período de predominância na primeira metade do século passado, fortemente marcado pela organização coletiva/familiar do trabalho. Mesmo que essa cultura tenha desaparecido do território (o banhado era um lugar privilegiado para o arroz), ainda está presente na memória coletiva, sendo mencionado frequentemente quando se fala de guajú, da lavoura e do banhado. Nesse sentido, julguei importante registrar uma fração dessa história que pode ajudar a compreender a atual situação produtiva e fundiária dos sitiantes e as disputas entre ponta e vizinhança. Seu Gilberto calcula que a comunidade parou totalmente de plantar arroz há 20 anos (seu cálculo é baseado na idade atual de seu filho, com 33 anos, que ajudava na lavoura na época) e explica que a concorrência com as arrozeiras do lado de Cubatão, a falta de terras e o fim do interesse dos compradores do arroz influenciaram o declínio do cultivo. Para Seu Floriano, que parece complementar o relato de Seu Gilberto, os mais 79 velhos foram morrendo e alguns mais novos foram para a cidade, abandonando a atividade. Outro obstáculo para a lavoura foi o “embargo do banhado” pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA), que tem fiscalizado a área há aproximadamente quarenta anos, segundo ele. A intenção era fazer uma “terra de estudo” que ele chamou de reserva. Seu Floriano relatou que naquele tempo, queimar roça pra trabalhar na várzea não dava problema nem multa como hoje. Quanto à presença do Estado restringindo a atividade dos nativos sobre o banhado, existe um ponto positivo: SEU FLORIANO: Trinta metros dali é da Marinha, mas é bom, sabe por quê? Porque esses homens, os primeiros que roçou aqui, o primeiro dono que comprou do Chico aí, queria tomar até o porto. Aí chamaram a Marinha e a Marinha veio e multou ele. Só que não pode vender. Se quiser vender, a marinha não deixa. Seu Floriano se refere ao fato de que essa mesma presença restritiva do IBAMA, associada à figura genérica do Estado que os impede de tirar madeira ou queimar e roçar no banhado, impediu também um turista de instalar um tanque de pesca ali (que queria inclusive comercializar o porto), que foi multado. No entanto, sua percepção é que, de maneira geral, as famílias pobres sofrem maior penalização, quanto às restrições ambientais. Seu Floriano, ao se referir ao desrespeito da uma empresa mineradora à regra de dragagem a uma certa distância do costão quando operam de noite e fora de área para tirar areia para vender, diz que “a pessoa que trabalha aqui e vive disso aí” fica “aborrecida” porque a empresa trabalha irregularmente, mas não é censurada. Ele compara a sutuação da dragagem clandestina da empresa com a situação de uma amiga de um Sítio vizinho, Dona Madalena “que vai fazer farinha e ela tem que fazer a queimada à noite pra ninguém pegar. Olha a diferença, do porquê que ela precisa da farinha e do porquê eles precisam da areia. É bem complicado, ali é uma empresa e a Dona Madalena é uma pessoa, tem uma família pra manter”. Com efeito, Seu Floriano se mostrou bastante sensível para a diferença de tratamento que o estado dá para diferentes situações envolvendo nativos, turistas, empresários na exploração do espaço e dos recursos naturais e as pressões que acabam colocando sitiantes em situações humilhantes de clandestinidade, para poderem continuar 80 produzindo. Ele associa as atividades dos nativos mencionadas, como caça, pesca, queimada (pra lavoura e produção de farinha) à subsistência e a condições materiais básicas de vida, bastante diferenciada em relação à mineração e à caça e pesca esportivas por gente de fora. Para ele, a restrição ambiental censurou as atividades no banhado. Nos dias atuais, por conta da desvalorização e do desinteresse sobre o banhado é possível encontrar capouras altas, mas ninguém planta, como nos contaram Rita e Inês, pois “não se pode derrubar um pé de árvore, porque é proibido”, uma percepção semelhante à de Seu Floriano. O banhado já tinha perdido a utilidade produtiva desde o declínio da lavoura de arroz, e até chegou a ser usado em um período de procura dos atravessadores pelas esteiras feitas da palha trançada do piri pelas mulheres da vizinhança, demanda que não existe mais. Atualmente se alguém quiser fazer uso de um capourão no banhado está sujeito às restrições ambientais, bastante frequentes por conta da fiscalização reforçada sobre a derrubada de árvore e a queimada para o roçado, segundo Dona Inês e Seu Floriano. Por outro lado, como já observado acima, a marginalidade da área para o uso agrícola e sua concentração na ponta, fizeram o banhado adquirir valor de mercado, principalmente frente à valorização imobiliária que atrai turistas da pesca. Aqueles com idade mais avançada e seus filhos mais velhos, seu Chico, Seu Mario, Seu Marco Rezende, Seu Floriano, Seu Brasílio, entre outros, quando jovens chegaram a trabalhar na lavoura de arroz, cujo processo de produção era inteiramente braçal, sem a ajuda de nenhum maquinário. Seu Brasílio explica que era feito o guajú para desmatar. Já o plantio, ou a planta, como eles chamam, era mais simples e dispensava o guajú: pegava-se uma lata e germinava. Para colher também se fazia guajú. Os moradores realizavam todas as etapas de produção, desde o cultivo até o embalamento do arroz27. O acesso e apropriação da área da lavoura de arroz pelo conjunto de moradores se davam de forma diferenciada entre a ponta e a vizinhança. A proximidade com o 27 Seu Gilberto conta que em abril, maio e junho acontecia a colheita do arroz, que era recolhido em cachinhos e depois socado. A fase da colheita variava de seis meses a um ano, e dependia do tipo de solo, se em terra seca ou em terra baixa, de forma que o próximo plantio deveria ser em outro lugar, para o descanso da terra. Depois de colhido, era descascado, batido e ensacado; nessa fase final de preparo os atravessadores eram avisados e mandavam o buscador a remo para pagar os moradores e buscar as sacas no Pirizal pra revenda; outra possibilidade era o próprio morador levar de barco e vender para os engenhos de arroz na cidade. 81 banhado favoreceu as famílias da ponta que podiam plantar arroz perto de suas casas, nas áreas úmidas que cercam aquela área. Seu Brasílio relembra que seu pai Mario Fagundes plantou uma roça de arroz no banhado do fundo de sua casa. A ponta tinha o privilégio de reservar suas bolas restringindo o acesso aos núcleos afins, no mesmo sistema o roçado da mandioca. Mas, para as famílias da vizinhança que não dispunham do banhado para a lavoura do arroz, não foi possível recolher dados suficientes com mais entrevistas para precisar se os arrozais se localizavam em área de uso comum, se dependiam do sistema de pousio e rodízio, ou se cada família possuía restritamente uma área de banhado, se esta era cercada, se o arrendamento era uma prática corriqueira ou se a lavoura de arroz ocorria em terras longínquas de acesso aberto e aparentemente sem donos. O que Seu Gilberto Santos, da vizinhança, relembrou foi que, à procura de espaço e solo apropriado, era necessário à sua família atravessar os rios afluentes da Baía de Guaratuba e cultivar em terras arrendadas. Este foi o caso de sua família, que plantava em um terreno arrendado que antes fora cuidado por seu pai e que pertencia ao Joaquim Gabriel Miranda. As famílias que trabalhavam na lavoura do arroz foram largando a atividade conforme os arrozais de colonos foram monopolizando o atendimento da demanda dos compradores, por terem maior competitividade, e quando o ciclo regional entrou em declínio. Um dos motivos do abandono desse cultivo, além da aquisição das áreas onde plantavam arrendados por terceiros (próximas à comunidade do Cubatão) e a consequente proibição do uso das mesmas, foi também a pouca condição técnica e produtiva de concorrência com os arrozeiros dos produtores patronais mais capitalizadas do norte da baía. O declínio da lavoura do arroz criou uma maior dependência dos moradores em relação ao cultivo da mandioca e da produção da farinha. Aqui fica clara sua autopercepção como “pequenos” produtores em relação às condições produtivas tecnicamente superiores das comunidades do norte da baía: SEU GILBERTO SANTOS: [meu pai] Parou de plantar arroz porque pararam de comprar. Acabou, porque só tinha arrozeira, pro lado lá de Cubatão. Eles trabalhavam no terreno arrendado, mas o dono morreu. Tinha que pagar a terra, era arrendado: colhia o arroz e pelo tanto 82 pagava. O dono do terreno era o falecido Joaquim Gabriel Miranda, do Cubatão. Seu Floriano lembrou que as famílias comerciantes da região28 além de negociar arroz, farinha, e posteriormente o cipó, com os moradores do Pirizal também negociavam milho, banana, peixe, madeira e cipó com o Sítio e outros produtores locais, o que levou ao seu enriquecimento com as fábricas e armazéns de transformação, onde faziam o beneficiamento e a revenda. O comércio dos produtos agrícolas e do extrativismo animal e vegetal era dominado por negociantes e artesãos articulados que se estabeleciam nas pequenas vilas e nas cedes urbanas controlando os preços, o beneficiamento e o transporte dos produtos, conformando no plano local uma relação política tradicional de dependência e dominação, desdobrada do vínculo comercial. Atualmente se tornaram políticos profissionais, empresários industriais ou atravessadores dos produtos regionais, com forte influência sobre as localidades ainda hoje. Essa passagem de certa forma ilustra as assimetrias que marcam até hoje o acesso e as formas de uso da terra entre os pequenos produtores e os grandes proprietários chamados localmente de colonos, como os produtores de Cubatão. As fazendas dos grandes produtores foram mencionadas pro Seu Gilberto e Seu Marco como mais capitalizadas e tecnificadas, com meios de empregar funcionários e adquirir maquinário, além do apoio técnico e financeiro do governo. Por exemplo, Seu Marco e Seu Chico comentaram que a região do Cubatão ao norte da baía possuía “terra boa pra planta de qualquer coisa” e conseguia se destacar na venda de banana e arroz (como até hoje), valendo-se de maquinários, de empregados; e observaram também a capacidade organizativa pra apresentar suas demandas direto ao Estado. Acrescente-se ainda que outros diferenciais dos produtores de Cubatão que favorecem a produtividade é que eles dispõem de maior atenção política, acompanhamento e assistência técnica (do governo e particular) e também crédito, sem falar nos insumos químicos aplicados (SEMA/IAP, 2006; Atas Reuniões do Conselho Gestor, 2010-2011). Nos relatos, o arrendamento nos arrozais é o mais próximo da imagem de 28 Foram citadas especificamente as famílias Miranda, Mafra e Jamur, cujos herdeiros têm ainda hoje presença marcante na vida política do município (basta ver a lista de ex-prefeitos e ex-vereadores da região – do município de Guaratuba e outros municípios do litoral paranaense e de Garuva). 83 agricultura patronal pelo grande proprietário de terras, em que o camponês é diretamente explorado pelo trabalho (MALAGODI, 2010; SIGAUD, 1979a). Para a maioria dos sitiantes que permaneceram, não existia um chefe a quem se subordinavam, pois tinham a posse da terra e eram os donos dos meios de trabalho. Já a relação patrão-empregado se expressava naquele tempo, e até hoje se expressa, no comércio desigual com o atravessador, o comprador dos produtos do Sítio, como a farinha e o pescado; um deles é chamado de patrão do camarão, cuja demanda criou uma dependência da parte dos produtores. A alternativa ao trabalho na agricultura implicava na sujeição aos poucos empregos disponíveis na cidade, em grande parte informais. Nesse sentido, a lógica ritualística do guajú consiste em um contraponto importante, como sistema de troca de trabalho aplicado para várias atividades produtivas, uma prática considerada socialmente equilibrada entre famílias em posições simétricas, que persiste até hoje, mesmo que o ajutório seja permeado por rupturas, intrigas e desentendimentos. Ademais, a eletricidade não tinha chegado e as famílias não eram capitalizadas para investir em maquinário e aumentar a produtividade e assim poder competir com as comunidades próximas que conseguiam responder às demandas dos mercados regionais. A princípio não havia demanda de compradores por cipó, caranguejo e camarão como são procurados no presente devido ao aumento do turismo sazonal e do comércio. Foi justamente numa época de pouca opção de renda para as comunidades que se instalaram em torno da baía os empreendimentos de monocultivos florestais (primeiramente a antiga Faber Castell e logo em seguida a Comfloresta). Quando perguntados sobre o que mudou no Pirizal nas últimas décadas, era recorrente o tema da abertura da estrada pela Comfloresta e a chegada da eletricidade, o que não é difícil de entender se atentarmos para alguns eventos que foram reconstituídos sob a perspectiva de famílias diferentes. 3.4 A ambiguidade de uma outra territorialidade: entre a opressão e a oportunidade em tempos de transição Com o que eles deixaram, nós ficamos 84 sufocados, porque todos trabalham na roça e é pouca terra pra todo mundo (Dona Inês, 54 anos). A virada entre as décadas de 70 e 80 pode ser considerada um período emblemático das transformações por que passa o Sítio, marcado sobretudo pela chegada da eletricidade como barganha clientelista de políticos municipais e a criação da rede de estradas de chão como meio de estruturar a instalação de monocultivos florestais pela empresa Comfloresta. Não é à toa que o pinus continua sendo a escolha preferencial para a implantação de monocultivos, se observarmos que a atividade madeireira é uma das principais matrizes produtivas da indústria paranaense, que adquiriu uma dimensão estratégica desde os anos 70. A essa época a UFPR abriu seu curso de engenharia florestal e surgiu a Sociedade Brasileira de Engenheiros Florestais, além de ter sido o momento quando incidiram importantes políticas e incentivos através do Fundo de Investimentos Setoriais (FISET) sobre o setor florestal (FANZERES, 2005; BRANDANBURG, SOUZA, 2009). Como nos contam Brandenburg e Souza (2009, p. 104), esta atividade integrava o Plano Nacional de Desenvolvimento executado pelo governo militar. Desde a década de 70, os madeireiros e grileiros que chegaram ao litoral, impulsionados por medidas fiscais, o fizeram em grande medida por meio da apropriação dos espaços sem domínio explícito ou legal, inclusive onde já havia o domínio frágil das populações permanentes. A ideia era abrir novas fronteiras para o progresso, mesmo que sobre florestas nativas, e assim gerar empregos e renda à população rural, onde reinava o “atraso”. A partir de 1972, o governo federal começou passou a atrair empresas estrangeiras, investindo nelas. Em 1975 a Brascan, uma empresa canadense especializada em reflorestamento com monoculturas, chegou a Santa Catarina. A empresa, mais tarde rebatizada de Comfloresta (mantendo-se uma das empresas do Grupo Brascan de multiinvestidores), adquiriu vastas áreas de Floresta Atlântica no norte catarinense e também sudeste paranaense, ocupadas por agricultores que, em seguida, migravam para a cidade. A inserção do pinus – árvore nativa do Canadá – transformou ecologicamente a região contribuindo para o desenvolvimento econômico dos projetos de reflorestamento, sob o apoio do extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) (FANZERES, 85 2005; BRANDANBURG, SOUZA, 2009). Conforme consta no relatório de Fanzeres (2005), no Paraná já se encontra a maior área plantada com pinus do Brasil. Seu documento afirma também que a expansão das plantações de pinus e de eucalipto favoreceu o aumento regional da concentração de terras, que sobrepôs territórios sobre os quais já incidiam modalidades tradicionais e não oficiais de apropriação e ocupação, em regimes combinados de uso, comum e privado, marcado pelo desinteresse do mercado e pelo baixo controle estatal (ALMEIDA, 2008; CAMPOS, 2011; PIERRI et al. 2006; SONDA, 2002). O relatório de Fanzeres (2005) enumera diversos conflitos de natureza econômica, social e ambiental, alguns levados a juízo pelos afetados, envolvendo a Comfloresta. As denúncias identificadas por seu relatório apontam para um padrão característico de ocupação, que incluem grilagens, expropriação de agricultores, devastação de floresta nativa, descumprimento de acordos não oficiais com pequenos produtores. O relatório resultou da reação do Ministério do Meio Ambiente a denúncias de conflitos, que contratou a consultora para inventariá-los; porém, o documento não fornece informações sobre a presença de monocultivos florestais (eucalipto e pinus) especificamente no litoral do Paraná, argumentando que não foram encontradas bases de dados confiáveis, devido à alta disparidade entre dados fornecidos pelas instituições públicas e privadas consultadas pela pesquisadora (no caso, SEMA e ARACIP). O único artigo29 que eu encontrei sobre os impactos do estabelecimento de empresas de reflorestamento com pinus e eucalipto, de Corona e Silva (2010), na RMC, apontava “a perversidade da relação entre as políticas assistencialistas, a atuação econômica da Comfloresta e a vulnerabilidade social da comunidade do Postinho em Tijucas do Sul”. Em outro artigo localizado, sobre as pressões sofridas pelos Caiçaras da Mata Atlântica, Adams (2002) nota o mesmo padrão em outro segmento produtivo. Além do interesse da indústria de madeira e celulose, especuladores atraídos pela valorização imobiliária do litoral iniciaram um processo violento de “aquisição” de terras da população permanente, que devido à inexistência de propriedade legal muitas vezes é 29 “O gobal e o local: as empresas reflorestadoras e a comunidade de Postinho na RMC”, cf. <http://www.anppas.org.br/encontro4/cd/ARQUIVOS/GT1-759-437-20080505203921.pdf>. Acessado em fev. 2011. 86 expulsa. E completa: Um caso exemplar é o de Trindade (RJ), onde as populações locais foram ameaçadas, na década de 1970, pela mesma multinacional Brascan-Adela, que adquirira uma extensa área próximo à comunidade para implementar um empreendimento imobiliário. Desejando aumentar sua área, a Brascan-Adela utilizou advogados, autoridades locais e homens armados para intimidar os moradores e forçá-los a abandonar suas casas (Campos 1980 apud ADAMS, 2002, p. 33). Na busca em bases de dados online nada mais foi encontrado de estudos sobre o impacto social da atividade sobre a região (mas sim pesquisas acadêmicas como subsídio para o processo produtivo), além desses poucos documentos, dois artigos e do que foi acompanhado pessoalmente nas reuniões do Conselho da APA e nas entrevistas com os sitiantes, ao longo da pesquisa de campo. O que se sabe, portanto, é que os empreendimentos da empresa receberam incentivos estatais no passado, tendo expropriado pequenos produtores posseiros entre final de 1970 e meados de 1980, ao que parece, com um certo padrão de instauração baseado na intimidação, negociação e persuasão, resultando na tomada de terras. Hoje estão espalhados por mais de uma dezena de municípios no nordeste de Santa Catarina e sudeste do Paraná, e a Comfloresta em especial participa ativamente como conselheira da APA. No âmbito do Sítio, o contexto da observação participante durante o guajú facilitou a situação para a abordagem do conflito pela demarcação ao final da década de 70 nessas terras, mesmo porque a plantação de pinus contorna os terrenos que estavam sendo roçados para o plantio. Diferente do que eu esperava, Seu Floriano, Dona Inês, Seu Gilberto, Seu Cacá, por exemplo, não deixam de reconhecer a importância da Comfloresta como a primeira empresa empregadora e as mudanças positivas que a abertura da estrada trouxe, a despeito do contexto opressivo de ter sido contribuído diretamente para o estresse fundiário e ainda ter explorado a mão de obra local em uma fase de vulnerabilidade social. A surpresa diminui quando as narrativas dos próprios sujeitos chamavam atenção para um cenário de ausência de políticas públicas que pudessem fornecer bens e serviços mínimos em um contexto de penúria e crise econômica no Sítio como um todo, que forçou uma dependência da lavoura de mandioca como fonte principal de sustento. Esse 87 período foi seguido pela abertura das estradas, o que mudou a dinâmica local favorecendo novas possibilidades. Como os sitiantes detalham, de certa maneira, reconheciam interesses nesse sistema de dominação (SCOTT, 2002; THOMPSON, 1991; MONSMA, 2000). Ora, as estradas de chão batido interligaram os acessos entre os Sítios estuarinos (antes o acesso era por meio de picadas ou passagens estreitas em meio ao mato ou pelos rios da baía) e com as principais rodovias estaduais que ligam os municípios mais próximos, em Santa Catarina e Paraná. As novas vias se tornaram uma opção para se chegar à cidade e ter acesso mais regular à cultura e a bens e serviços urbanos, ao passo que lhes permitiu a abertura para novos mercados e a diversificação produtiva, em tempos de crise da lavoura arroz e de mandioca. O período aumentou o fluxo de novos compradores em busca de produtos nativos, como as esteiras de piri, as cestarias de cipó, peixe, agora não somente em barcos, mas em carros e caminhões, e foi seguido de empregos temporários gerados com a instalação do empreendimento de pinus. O emprego formal é um fenômeno recente, se considerarmos a área de estudo como um ambiente rural de estuário e costa, com floresta nativa e solo fraco ou “areião”, com baixo desenvolvimento econômico e social e baixa institucionalidade, onde a pequena agricultura e a pesca artesanal prevaleciam como fontes de renda. Na verdade, o trabalho “registrado em carteira” se iniciou com a primeira professora sitiante, esposa de Seu Mario Fagundes (seguida de seus filhos e neta) em escolas rurais, e Seu Floriano, que começou a trabalhar desde jovem para a Sanepar. Mas o assalariamento se formalizou de maneira mais ampla, primeiramente, com os cargos temporários oferecidos pelas recémchegadas empresas de monocultivos florestais, principalmente para a criação da infraestrutura com a rede de estradas de chão e para o plantio, entre o fim dos anos 70 e o começo dos anos 80. A primeira empresa de monocultivos florestais que ofereceu emprego aos moradores foi a Iguaçu (atual Faber Castell), no ano de 77. Seu Cacá, da ponta, contou que foi contratado, mas sem carteira assinada, por ele não ter 18 anos completos; ele trabalhou na empresa por 4 anos, tempo que não contará para sua aposentadoria, lamenta ele. Logo depois da Iguaçu, chegou a Comfloresta, ambas oferecendo empregos temporários, em alguns casos o acordo consistia no pagamento por tarefa, como explica a 88 esposa de Seu Cacá, Dona Acácia. Seu Gilberto, da vizinhança, avalia que a Comfloresta se inseriu na região em tempos de poucas opções de trabalho, em que mantinham somente a roça e a pesca e, em menor escala, o tecido com o cipó. A empresa estava na região havia pouco tempo, mas: SEU GILBERTO SANTOS: Nesse tempo acabou-se tudo e era só roça. Daí a Comfloresta entrou. Tinha um companheiro chamado Manuel Galdino [de um bairro vizinho], que veio procurar pra trabalhar. Naquele tempo pouca gente trabalhava na Comfloresta. Nós éramos em quinze homens, daqui e de lá [apontando para outro Sítio]. Aí depois foi entrando gente, quando foi depois tinha umas mil pessoas. Pra passar o veneno, naquele tempo ganhava um adicional por tá usando o veneno. Devido ao contexto de introdução do monocultivo de pinus, a infra estrutura ainda precisava ser criada: a derrubada das árvores, a abertura da estrada, a limpeza da área, o roçado, o plantio e o levantamento de cercas, a instalação de manilhas. Os homens foram os primeiros a serem contratados pela Comfloresta, primeiramente para abrir a estrada. Depois no preparo para o plantio do pinus, etapa em que as mulheres e adolescentes também foram contratadas. O emprego foi devidamente registrado em carteira e acertaram todos os pagamentos corretamente, como contaram Seu Gilberto e Fausto. Os que aplicavam veneno, Seu Gilberto conta que recebiam adicional, que foi importante para comprar leite na época em que seus primos tinham filhos pequenos. Dona Inês conta que as mulheres também eram contratadas, para tarefas específicas contribuindo diretamente para o plantio, colocando as sementes, separadas em pacotinhos, em canteiros, como foi o caso dela e de suas irmãs. Os moradores contratados trabalhavam na implementação do projeto de monocultivos florestais nos bairros por todo o entorno da baía, inclusive no Pirizal. Dona Inês conta que seu falecido marido chegou a plantar o pinus perto do Sítio. Depois do estabelecimento da empresa com o plantio, as fases seguintes prescindiram da mão de obra local, mas esse primeiro momento foi apontado como uma fase de inflexão fundamental no cotidiano dos sitiantes. No entanto, Seu Chico Santos, da vizinhança, atribui um significado diferente às implicações da instalação da firma (como designam a empresa de monocultivo de pinus), ao mostrar sua perspectiva. Quase todos do Pirizal trabalharam para a Comfloresta nessa época, o único que não trabalhou na firma foi ele, Seu Chico, dedicado ao comércio, um homem conhecido e respeitado localmente e, por isso, comumente o mais procurado por 89 políticos locais e comerciantes da cidade. Hoje as opções de mobilidade30 podem parecer óbvias, mas quatro décadas atrás sair da comunidade para a sede do município era possível apenas de barco, em viagens que levavam mais de cinco horas. Mas para Seu Chico, as novas vias terrestres foram sinônimo de adormecimento de seu comércio local, por meio do qual revendia grande parte dos mantimentos consumidos pelos moradores e gerava laços de dependência (muitas vezes retribuídos como favores e não necessariamente em dinheiro) com aqueles que não podiam pagar no ato da compra. Ele comenta que, com a dificuldade de transporte, até então a remo, e com a falta de emprego, os moradores frequentavam sua venda e, não raro, seus parentes sem dinheiro nem comida faziam compra fiado. Sobre o prestígio adquirido com a falta de alternativas no passado de isolamento das vilas estuarinas, ele avalia que “A estrada numa parte ajudou muito”, mas por outro lado prejudicou quem tem comércio, pois “antigamente o pessoal que morava aqui era obrigado a morrer no comércio daqui mesmo, não tinha como sair pra fora, porque se ia de canoa era mais difícil”. Antes só existia sua pequena venda, que perdeu a centralidade em face à possibilidade de se acessar os mercados de alimentos da cidade pelas novas “estradinhas”. Seu Chico também foi o dono do maior barco das redondezas e seus serviços persistiram até pouco depois da ampliação das vias de terra, principalmente para as famílias que não tinham condições de comprar barcos a motor, motocicletas ou carros ou que não enfrentavam o remo. Usava seu barco grande mais como transporte para os sitiantes que iam comercializar farinha de mandioca, seus produtos do extrativismo vegetal, como cipó, musgo e piri, para vender arroz e aipim nas fábricas em Guaratuba e para trazer alimentos que abasteciam sua venda. Seu monopólio como intermediário na comercialização de alimentos dentro do Sítio e fornecedor de transporte coletivo por água lhe colocava na posição de poder econômico e político. Ficou conhecido como comerciante na região, ao mesmo tempo 30 Nos dias atuais, as famílias que conseguiram comprar um automóvel ou um barco motorizado têm pelo menos algum membro assalariado ou têm renda vinculada com a pesca comercial ou turística. Quem não tem meio de transporte pode se arriscar a pegar carona com o ônibus escolar pago pela prefeitura quando o motorista permite, pois é exclusivo para os alunos, ou com outros moradores, ou ainda pegar o ônibus que semanalmente faz o trecho da estrada de chão à rodovia estadual. 90 então descendente importante dos fundadores, padrinho, “credor”, com autoridade de liderança para quem chegasse ao Sítio buscando serviços, produtos para a revenda, na intermediação, ou procurando mão de obra nativa. Seu avô, que o criou, além de pescador conhecido, foi um importante negociante local e sustentador do fandango e construtor dos instrumentos musicais; não é à toa que a chácara herdada esteja situada no centro do Sítio, onde estão a igreja católica, o salão paroquial, o barracão da festas, seu bar e venda, o orelhão e o campo de futebol, que reúne os moradores da vizinhança para a sociabilidade e lazer. Seu Chico é o “festeiro” da comunidade. Católico, ele e sua família foram quem usualmente organizava as grandes festas. Decerto, seu papel político articulador foi desfavorecido com a abertura para novos mercados, além de novas famílias da ponta terem ganhado autonomia política e produtiva, o que não apagou sua poder e reconhecimento entre os parentes e outros Sítios. Um outro aspecto da instalação da firma foi mencionado por poucos entrevistados, não menos importante para as questões da pesquisa. A penetração do pinus em terras em “fronteiras frágeis”, devido à situação fundiária e a documentação da terra irregular ou inexistente, e outras em áreas de acesso aberto, se tornou mais fácil, por meios mais ou menos violentos. Em comunidades vizinhas, conforme a liderança dos moradores de um Sítio próximo relataram em reuniões públicas com o MICI e mesmo em uma reunião pública do Conselho Gestor da APA de Guaratuba, a invasão ocorreu de maneira truculenta, por meio da ação ameaçadora de jagunços e por meio de grilagem cartorial. No entanto, as iniciativas de invasão ou expropriação não foram um ato isolado, presente só nesse outro Sítio. As empresas encontraram situações variadas de organização social, para as quais utilizavam distintas abordagens, mais ou menos impositivas. Conforme contaram Dona Dulce e Seu Marco, que passaram seis anos no em outro Sítio, logo da instauração dos monocultivos florestais industriais ao sudoeste paranaense, aos moradores não restavam muitas opções diante das oferta de indenização, em troca das desapropriações, e da pressão exercida pela adesão dos vizinhos, simultaneamente à progressiva derrubada da floresta nativa. Ou seja, a situação de quem permanecia ia piorando com o cerco e, para quem decidia vender, pagava-se muito pouco. Não havia solução otimista, relembram Dona Dulce e Seu Marco, como se as alternativas fossem ruins: ou se perde, ou se perde. Comentam também que a situação adquirira mais 91 insegurança à medida que um sitiante local agia como intermediário em meio à oportunidade de comprar e revender para a Comfloresta. Em seu relato, Dona Dulce resume que o êxodo foi tamanho, generalizado, a ponto de não restar um único aluno na escola onde ela trabalhava, razão pela qual ela retornou ao Pirizal. Ademais, explica com detalhes como as áreas iam sendo desbravadas, com tratores segurando correntes de ponta a ponta, derrubando as árvores mais altas. Depois o local era limpo e roçado, na preparação para o plantio. Nesse momento da memória de Dona Dulce eu me lembrei que Dona Inês, em uma outra situação de entrevista, detalhou que os operários, nativos contratados, eram encarregados de demolir os sambaquis das novas áreas ocupadas com monocultivos. O tempo passou, o empreendimento se alastrou, até o pinheiral chegar ao Pirizal. Se em vilas mais próximas a inserção da monocultura florestal se deu de maneira coercitiva, com o Pirizal algumas etapas aconteceram de forma um pouco diferente. O Sítio Pirizal é um dos poucos que mantém um território significativo, que persiste com a ocupação ativa dos terrenos, por múltiplas famílias. No entanto, é geral a percepção de que o cultivo tem avançado cada vez mais. Na Fig. 3.1 (esquerda), é possível observar a parte da terra tradicionalmente reservada para o rodízio do terreno, que a empresa ocupou, no limite com uma bola onde aconteceu um dos guajus que acompanhei (participei do plantio também); ao lado (direita), a estrada que leva aos Sítios. Figura 3.1 – À esquerda, homens fazendo as covas e mulheres enterrando as ramas para o plantio de mandioca no Guajú de Seu Wiliam, no limite do Sítio com o terreno da Comfloresta. À direita, estrada de chão margeada por pinus de um lado e por roça de mandioca de outro, em trecho que leva às comunidades vizinhas. 92 Sua presença marcante desde a estrada de acesso às comunidades pode ser vista na Fig. 3.1 (direita) e Fig. 3.2: Figura 3.2 – À esquerda, estrada de chão, margeada em grande extensão por plantios de pinus, sob a propriedade da Comfloresta. À direita, placa da Comfloresta na frente do terreno com pinus. Desde a entrada da rodovia estadual até o estuário pelas estradas de chão, o monocultivo é quase onipresente e se faz contundente não só pela monotonia da paisagem, mas também pelo significado objetivo de seu impacto desterritorializante, que pesou principalmente sobre as populações marginalizadas política, cultural e economicamente, provocando mudanças significativas na distribuição e no acesso à terra. Logo nos primeiros anos, a instalação da empresa implicou na reterritorialização da lavoura, tradicionalmente realizada de forma rotativa por meio do sistema de guajú em vastas áreas de acesso aberto, hoje ocupadas com pinus. A extensão da área destinada para a lavoura de mandioca hoje não corresponde ao tamanho que teve no começo dos anos 80. No passado, quando os terrenos de planta eram abundantes, a produção de mandioca ocorria de forma itinerante por toda a área circundante que antes não estava delimitada oficialmente como privada por grandes proprietários, processo de ocupação ilustrado no zoneamento do Plano de Manejo da APA (IAP, 2006). A visão crítica das consequências da instauração da firma apareceu muito pouco no conjunto de comentários dos sitiantes entrevistados. Mesmo assim, um desdobramento visível e descrito nas entrevistas, e reconhecido pelo próprio técnico do ITCG em reunião do CG, é que o espaço agrícola foi progressivamente reduzido à uma área comum 93 reservada para o roçado da mandioca, restrito ou a áreas contíguas às casas (em sua maioria); quem fica fora da rotatividade, chega a escolher bolas clandestinas na margem da estrada ou mesmo entre os pinus; em últimos casos chega a pedir pelos quintais de vizinhos dentro das chácaras, ou, contraditoriamente, negociar o arrendamento temporário com a firma, em uma área que outrora compunha os domínios do Sítio. Os terrenos (cerca de vinte e nove hectares, segundo seu Floriano) tem especial importância analítica nesse sentido, pelo fato de o cultivo da mandioca e da transformação em farinha serem permeados pela lógica do guajú que historicamente mobiliza os parentes, como ocasião de se reafirmar laços sociais, mas que vai adquirindo novos sentidos para cada núcleo familiar. O que chama a atenção é que, em conjunto, as entrevistas mostram a percepção de que o território diminuiu e, junto com ele, o guajú, ainda que as perspectivas sobre o assunto sejam variadas, quase sempre como uma constatação de um problema inexorável com que tinham que saber lidar, e apenas em alguns casos associando com a firma. Seu Cacá relembrou na entrevista feita em sua casa, desde a perspectiva de um morador da ponta e filho do nativo mais velho do Sítio, como foi a abordagem da empresa. Esta solicitou aos moradores que demonstrassem a parte de onde queriam tirar terreno (recortar). Isso porque a outra porção, todo o resto do território, independente se utilizado pelas famílias ou não, supostamente constituía o total de terra já “comprada” pela firma. Seu Cacá entende que a “proposta” da firma se justificou a época, uma vez que, antes, havia pouco morador para muita terra, como defendeu Seu pai Seu Mario durante o impasse marcante na história do Pirizal, chamado por eles de “briga”. Seu Cacá recorda que o terreno do Sítio era extenso na época em que não exitia a firma, quando também havia “poucos moradores”: “Os filhos hoje tudo usam a terra, e na época era bem pouco. Daí veio uma pessoa aí na época da firma, aí liberou pro pessoal por onde que queria tirar terreno. [...] Ia tirar o tanto que quisesse da parte que queria pra plantar e usar assim”. No entano, Seu Cacá reconhece que “[...] hoje se tornou bem pequeno pra todos pra morar. Aí o pessoal foi aumentando os filhos, netos e tudo”. O terreno tirado, ou seja, a parte das terras em uso que os moradores foram convencidos a subtrair da cartografia dominante da firma, hoje é pouco tanto para a lavoura quanto para a partilha dos filhos que não moram no Sítio. 94 Situar as narrativas sobre esse evento em posicionamentos de famílias e de núleos permitiu perceber que o processo de extensão do empreendimento florestal sobre o território do Pirizal, há mais de 20 anos, consistiu em um dilema que gerou ressentimentos, pois não se deu em bases consensuais entre os homens dos núcleos da ponta e os homens dos núcleos da vizinhança, uma “briga”marcante que, como eles próprios remontam, reforçou a distância entre famílias. Dona Inês, Dona Rita, Seu Floriano, Seu Chico, Dona Helena e seu Gilberto, de núcleos diferentes da vizinhança, relembram o mesmo evento de outra perspectiva. Por exemplo, Seu Chico remontou em sua narrativa um momento anterior à delimitação pela Confloresta, quando havia sido orientado por uma amiga da cidade, que era também sua comadre, que chegariam umas pessoas comprando e tomando terra, alertando que era para não cederem. Os representantes da empresa o procuraram em seu armazém, onde estava com seus compadres, e disseram que as terras eram deles e que os moradores precisariam passar para um lado só, a porção “tirada do total da empresa”. Seu Chico contou que perguntou de forma desafiadora e irônica de quem compraram, pois “nunca tinha visto alguém com duzentos anos” para ter comprado a terra há mais tempo do que o Pirizal existe. Foi quando, educadamente, o levaram para debaixo de uma árvore para propor um negócio, “depois que eles viram que nós tínhamos o direito de terra, né?”. A proposta teria sido para que Seu Chico “fizesse um agrado com o armazém” para convencer as famílias a criarem uma “vilinha nova”, para ele seria garantido um pedaço de terra demarcada, da mesma forma que havia se beneficiado um outro nativo de um bairro vizinho, com quatro alqueires, ao que seu Chico contou que reagiu, dizendo que eram todos família que se ajudavam e sem terra ninguém mais se ajudaria. Assim, lhe ofereceram um acordo de que voltariam com um engenheiro e as famílias demarcariam o terreno com a extensão de que precisassem para a lavoura. A história que vem depois, resumida, parece coincidir com a que contou Seu Cacá, de que a Comfloresta se apresentou como dona de tudo e que os moradores precisavam tirar o que queria para plantar. Porém, conforme contou Dona Helena, esposa de Seu Gilberto, na entrevista em sua casa, o detalhe era que quem falou em nome de todos foi Seu Mario, na ausência dos primos Santos da vizinhança: DONA HELENA: Quando entrou a Comfloresta, era pra ter mais terra, 95 mas quando foram demarcar, o tio Mario achava que não precisava de tanta terra. Enquanto Seu Mario, o mais velho já nessa época, conversava com representantes da empresa, os outros homens estavam trabalhando. Nessa época tinha umas dezenove casas. Na entrevista coletiva, Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto afirmaram que não foi consensual a delimitação. Seu Mario Fagundes da ponta foi quem negociou diretamente com os representantes da firma o repasse de terras que de fato eram usadas por famílias do lado oposto, da vizinhança. Os homens dos núcleos da vizinhança, afetados diretamente pela decisão de seu Mario estavam ausentes, trabalhando longe dali, quando o advogado e o técnico agrimensor da empresa chegaram ao Pirizal. Sem apresentar nenhuma documentação, com base na autoridade e na convicção sobre o que falavam, afirmaram que as terras já haviam sido compradas há muito tempo pela firma, logo, os moradores deveriam desocupar em breve ou então delimitar apenas o que fosse necessário para as famílias. Na entrevista conjunta com Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto, assim que eu perguntei quem havia ido junto com o engenheiro da empresa mostrar o quanto de terra que eles queriam, Fausto prontamente respondeu que foi Seu Mario, cuja decisão “judiou” porque “muita terra no fim não era nada”. Seu Chico completou que foi por conta de seu Tio Mario que ficou apenas “um pedacinho”; as reclamações e contestações dos Santos chegaram tarde demais no dia da “briga”, para as quais Seu Mario teria respondido energicamente que não tinha por quê ficar tanta terra se ninguém trabalhava nela. Seu Chico concluiu que seu Tio Mario acreditava que “aquilo dava pra todo mundo, mas não pensou nos filhos dele. Então ficou essa bola aí pra nós, essa bola que hoje ficou pequeno pra todo mundo. Meus filhos cresceram, os filhos dele cresceram”. Seu Gilberto completou explicando que o pedaço que foi poupado é um grande brejo e o problema é que “terra alagada não faz roça, metade é terra que chegamos aí e é tudo terra baixa”. Nessa perspectiva, era Seu Mario, da ponta, quem estava presente na tarde da demarcação e acompanhou os representantes da empresa, sugerindo os novos limites em nome do Sítio, e, segundo os primos Santos, ele argumentou que havia “terra demais”, mas “pouca vontade” de trabalhar nela. SEU GILBERTO: Isso aqui foi cortado. […] ele não pensou na família dele e não pensou na família dos outros. Se não cortasse ia parar lá 96 entrada de baixo, sabe a estrada de lá? Então cortava e marcava com o terreno lá do lado. Mas ele disse por que que tinha... então ele cortou ali. Então eles falaram que ficou 50 alqueires de terra, mas a metade é só pra arroz. Com tudo, com tudo, pode até chegar a uns 25 alqueires de terra. O máximo que vai ter num chute é isso aí, mas com tudo. Os primos Santos disseram que aquilo que Seu Mario sugeriu como delimitação para os representantes da empresa não correspondeu ao que as famílias da vizinhança precisavam de fato. Seu Cacá e Dona Acácia, com quem falei da chegada da Comfloresta na ponta, contaram da mesma forma que os engenheiros, técnicos e advogados abordavam com certa pressão, mas não mencionaram o fato de Seu Mario ter sido a pessoa que colaborou com os técnicos na nova demarcação. O que os primos Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto descrevem sobre esse evento é, junto com a maneira como se deu a abordagem autoritária e persistente da Comfloresta, a evidência da tensão perene entre os sucessores dos dois lados do Sítio. O evento definitivamente marcou as desavenças entre as famílias de Seu Mario Fagundes e os primos Santos, ao passo que a empresa acabou beneficiada pelo impasse, afinal, a decisão e o acordo já estavam fechados. Assim, a postura defensiva de Seu Chico em favor do território de parentes no primeiro dia em que a empresa o abordou parece ter sido o grande diferencial que garantiu uma área residual no Pirizal, mantida exclusivamente para a lavoura, mesmo que no dia da visita Seu Mario tenha permitido uma extensão maior para ser cedida, sem os diretamente interessados. O contrário se passou em outros Sítios vizinhos frente à pressão fundiária das empresas de monocultivos que se instalaram na região, que também recorreram a grilagem, mas seguida de ameaça de violência, na presença de advogados e jagunços, e com o mesmo discurso de que os nativos eram intrusos ou invasores em terras compradas pelas empresas. Mesmo tendo sido mais “branda” em relação ao uso da persuasão, mais cordial (REIS, 1995; TELLES, 2001; SIGAUD, 1979a; 1979b), em vez de ameaça física, não constituiu uma relação de compra e venda, e por isso não deixou de ser impositivo. Afinal, os sitiantes não receberam nada pelas terras “cedidas”. Os investidores interferiram na estrutura fundiária da região adquirindo terras de diversas maneiras, por meio da compra no mercado informal (pagando valores irrisórios), 97 por meio de grilagem e jagunçagem, e por meio de acordos assimétricos, legitimados. Os Sítios do entorno da baía têm em comum o fato de todas as famílias serem posseiras, não havendo, ainda, a titulação definitiva das terras. Além disso, todas relataram que perderam grande parte de suas terras para a empresa florestal Comfloresta, que implantou extensas áreas com Pinus sp. O curioso é que na totalidade das terras em que se localizam as comunidades e também os plantios florestais, não foi concluída a regularização fundiária, o que, em tese, seria um impedimento para implantação de qualquer empreendimento (SONDA, 2002, p. 67). Atualmente, o pinheiral não parou de avançar sobre o território coletivo; o predomínio do pinus na paisagem chama atenção até mesmo de um visitante desatento, mas despertou poucas reações de confronto. A empresa Comfloresta parece buscar hoje meios formais para consolidar sua presença na região, como abertura de processos em que pede o usucapião de terrenos adquiridos de forma controversa no passado, visando a legalização de sua ocupação no presente, no contexto do processo de regularização fundiária dentro dessa UC e de outros municípios em Santa Catarina e Paraná. Assim, o estabelecimento e a expansão das atividades industriais da Comfloresta desterritorializou os Sítios. Todavia, a firma é representada de maneira ambivalente nos relatos: se por um lado a chegada do empreendimento na região trouxe empregos, e o primeiro registro na carteira assinada, para centenas de produtores rurais historicamente pauperizados do estuário, e resultou na abertura da estrada, diminuindo o isolamento das comunidades (acesso a bens materiais e culturais da cidade e abertura para mercados diversos), por outro lado, sua chegada significou o estabelecimento de uma atividade “predatória” sobre grandes áreas de floresta nativa e sobre áreas agrícolas constituintes do território camponês, devastadas em poucos anos, além do seu perfil de inserção que foi impositivo e levou ao êxodo em massa de famílias que tinham suas terras vendidas ou invadidas, além de ter reduzido o território das populações nativas que permaneceram (FANZERES, 2005; CORONA, SILVA, 2010; FERREIRA, 2010). Enfim, os mecanismos sociais que garantiram a implementação dos reflorestamentos sobre domínios tradicionais são heterogêneos, porém, em geral encontraram pouca resistência nas localidades até hoje e levaram a situações diferentes. O Sítio como um todo diminuiu, mas a área de planta persiste, ocupada e produzindo. 98 3.5 A importância do plantio da mandioca e dos terrenos desde os antigos A percepção geral é a de que os terrenos aos quais se resumiu a lavoura se tornaram pequenos para tantas pessoas e não suprem a demanda por lavoura. O problema da redução dos terrenos faz com que esporadicamente os moradores busquem alternativas, não descartando a clandestinidade e explorando locais isolados, externos ao circuito tradicional. Seu Chico ainda consegue manter bolas longe da sua casa e da farinheira do seu núcleo, em terrenos onde havia capouras que antes faziam parte do território do Pirizal. Outra saída é “emprestar” terrenos particulares, no fundo dos quintais de famílias inutilizados, como o fizeram Dona Rita e Dona Inês por meio de acordo firmado anteriormente atrás da casa na chácara da Conceição e do Nilton, na ocasião de capina em que eu as entrevistei. Nesse caso, após elas arrancarem a mandioca e a capoura subir, ninguém poderia vir roçar o terreno, pois é propriedade particular do casal, e não faz parte do sistema de uso comum. A pressão gera a opção pela clandestinidade de se plantar em clareiras em meio à floresta de pinus, ou na beira da estrada, por exemplo. As alternativas traduzem decisões que podem ser consideradas “armas dos fracos” em pequenos atos de resistência bem sucedidos, mas limitados a uma pequena vantagem diante da relação com seu opressor (SCOTT, 1985), que no entanto pouco muda na relação além de pequenos ganhos. No que diz respeito às restrições ambientais sobre o terreno, a fiscalização recai mais sobre o período de queimadas. Agricultura está proibida ou fortemente restringida na APA, mas acordos informais permitem a abertura de clareiras em capouras em estágios iniciais (vegetação de até um metro e meio de altura). Prevenindo-se da fiscalização e de eventuais multas, os moradores que fazem sua roça perto do banhado, da estrada e no interior de plantações de pinus optam por realizar a queimada para o preparo do terreno durante a noite, clandestinamente (BECKER, 2008). Em alguns relatos sobre o cultivo do arroz no passado, e hoje da mandioca, surgiu o assunto das multas ambientais. Três moradores explicam os desdobramentos de algumas situações em que foram expedidas multas pela queimada. A morosidade para se fornecer a licença para a queimada e os obstáculos da burocracia, no Instituto Paranaense 99 de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), foram mencionados como obstáculos para se fazer o processo conforme a lei exige. Mesmo com o pagamento da devida taxa, a vistoria demanda um tempo que o cultivo não pode esperar, segundo Zeca. Há oito anos, Seu Floriano detalha que na época de planta ele queimou sua roça normalmente, como outros vizinhos. Contudo, houve uma denúncia e alguns moradores foram multados, e recorreram ao prefeito que os apadrinhava. O então prefeito ficou sabendo da restrição e disponibilizou um advogado que logrou reduzir o valor da multa a uma cesta básica, para cada morador, que foram pagas pelo próprio prefeito de então. O sistema de fiscalização e penalização abrandou, não obstante, não freou a prática persistente, pois não é reconhecido ou legitimado localmente, por confrontar práticas de manejo tradicionais, anteriores à instauração do controle ambiental pelo estado. Dona Inês questionou o propósito da proibição de se queimar a mata. Ela argumenta que na terra de guajú não há mais mata bruta para se preservar e que a capoura é tão baixa que quase não pega fogo e acaba-se fazendo a maior parte do trabalho na enxada. As falas evidenciam a falta de diálogo entre os órgãos ambientais de controle e os sitiantes. Principalmente, as penalizações não impedem a continuidade das queimadas. O contexto descrito, que parece não ser apenas local, mostra a inexistência de diálogo e de busca de soluções articuladas para o impasse. O cultivo dentro e fora dos domínios do Sítio vai se tornando clandestino para se manter, o que ilustra a falta de reconhecimento e de valorização da cultura da mandioca e da institucionalidade nela embutida, por parte dos agentes ambientais. Assim aqueles que “chegaram antes” vão se tornando “desviantes” em relação à normas ambientais recentemente vigentes e que não legitimaram (HALL, TAYLOR, 2005; BECKER, 2008). Não a contento, uma outra solução é plantar por meio de contratos temporários cedidos pela empresa. Ironicamente, os moradores precisam de autorização da empresa se quiserem plantar em áreas contíguas, que já foram domínios nativos. Dona Inês e Dona Rita explicam que as famílias que ficam sem espaço nos terrenos buscam começar bolas mesmo nos terrenos tomados, em meio ao pinheiral, o que é possível na estação de corte onde o pinus já foi retirado. Quando visita as localidades de plantio e toma ciência da intenção dos sitiantes, a empresa chega a permitir a lavoura, com a condição de que não cerquem o terreno e de que assinem um contrato temporário. Seu Floriano e Dona Inês 100 com Dona Rita demonstraram nas suas entrevistas que os sitiantes entendem que a Comfloresta não está legalizada, mas age com força por ser “poderosa” e bem relacionada na cidade. Dona Inês comenta que “O fiscal da firma vem [...] tem que assinar contrato todo ano, de medo que a gente não tome, decerto. Porque sabe deus se é documentado isso aí. […] Se eles têm medo que tome o terreno então na verdade não é documentado”. Em seguida, sua cunhada Rita completou “E como onde tem cerca o outro não pode invadir, então eles não deixam cercar”. Ambas expressam a percepção de que mesmo o terreno que a Comfloresta tomou não deve ser documentado, e reconhecem a efetividade dos meios persuasivos utilizados pela empresa que negocia com os sitiantes condições que não chegam a afetar seus objetivos. A fragilidade dos territórios locais está em que são posses definidas pelo próprio sitiante inserido em lógicas de ocupação baseados no valor de uso, sistema que favoreceu a investida da companhia reflorestadora, pois o que já tem dono não pode ser ocupado, só se ocupa o que está inativo. Tendo entrado na lógica do domínio tradicional, a empresa permite a roça depois do corte, mas mediante contrato e com garantia de que o sitiante não vai cercar a roça. A restrição territorial força a situação de clandestinidade diante e de submissão, seja diante do órgão ambiental, seja diante da empresa, o que dificulta a atividade agrícola, mas sua importância permanece. 3.6 O guajú e a sua transversalidade nas práticas de reafirmação do familismo A lavoura de mandioca consiste em uma atividade produtiva significativa desde a época dos pais e avós dos entrevistados, quando a mandioca transformada em farinha era transportada de barco até Guaratuba para venda. Com o declínio da lavoura de arroz, houve uma certa paralisia econômica local que simplificou a produtividade, em que a lavoura de mandioca e a farinha produzida para comercialização passaram a consumir mais tempo de trabalho dos habitantes do Sítio e chegaram a constituir a mais importante fonte de renda monetária – quando não a única para certas famílias – junto com a pesca e o artesanato feito a partir do extrativismo vegetal. Seus produtos e habilidades já não 101 eram procurados como outrora. Em uma análise propriamente economicista, que pensa a família camponesa funcionalmente em termos de maximização dos lucros, como uma empresa familiar à serviço dos mercados e das famílias urbanos, alguém poderia se perguntar “então, por que não se mudaram de lá?”. Ora, exatamente porque lá no Sítio estavam sua família e seus parentes, sua história. As entrevistas me mostraram uma ordem inversa de pensamento, baseada em escolhas morais e não puramente econômcias (SCOTT, 2002; TOMPSON, 1991; ALMEIDA, 1986; REIS, 1995; SIGAUD, 1979a). Seu Chico observa que no seu tempo de criança “a produção das plantas dava melhor; lavoura, peixe dava a vontade”, mas não era o suficiente para garantir boa condição alimentar e financeira. Seu Gilberto conta que até a chegada da empresa Comfloresta, vivia-se num tempo de crise em que poucos recursos eram explorados comercialmente, além da farinha, mas como produto principal para a venda não era capaz de lhes render, por si só, proventos para sustentar a família. Assim, a lavoura e a produção de farinha nos engenhos familiares costumam ser complementados com outras atividades produtivas. As entrevistas sugerem que na época dos antigos os terrenos não eram como hoje, restritos e delimitados ao uso comum, mas mais dispersos e ultrapassavam o brejo e o pinheiral para várias direções. As capouras eram mais altas e podiam escolher onde derrubar para roçar em áreas distantes das casas, de modo que a preocupação com a escassez de terra para o plantio era menor. O sistema de uso comum dos terrenos obedece a regras patrimoniais e decisões familiares que reflete a organização social do Sítio. Nos últimos anos, por conta da escassez de terra, as parcelas (ou bolas) para o cultivo de mandioca têm sido distribuídas por oportunidades disputadas de ocupação rotativa entre aquelas famílias que acessam a área de uso comum. Nos últimos anos, aos terrenos têm sido exploradas por meio da rotação das bolas apropriadas por cada família. A forma de apropriação particular de cada parcela por cada família se dá temporariamente, no ciclo que dura até que se arranque a mandioca pronta para colher. Quando crescer a capoura e a terra se recuperar, outra família pode se apropriar da bola. Por conta da pressão demográfica, de escassez de terra e da consequente piora da sua qualidade por sobreuso, o plantio dessa raiz passa por um 102 ciclo que soma quatro anos, começando com a escolha da capoura, o preparo do solo e plantio, capinas e colheita, e novo crescimento da capoura, em resumo. O rodízio acontece em um espaço cada vez menor, o tamanho das bolas tem diminuído. O pousio tem se tornado mais impraticável. Em alguns casos a falta de capouras para a bola, que por vezes chegam a ser disputadas, aumenta o desmatamento, o que Dona Dulce resumiu dizendo: “Era tudo matão. É mato ainda, mas é tudo mato cultivado”. Como consequência, a fiscalização é reforçada no intuito de restringir as queimadas e desmatamentos. As famílias costumam ter em média três ou quatro roças simultaneamente, cada uma em um estágio, mas em todas os moradores procuram capinar31. As mais antigas, com dois anos para mais, são aquelas das quais gradativamente foi se arrancando a mandioca para o engenho de farinha. Aquelas em estágio intermediário servem para o fornecimento das ramas que serão plantadas na temporada de guajú (troca de trabalho entre famílias) e em breve deve brotar e, por sua vez, servir para a produção de farinha. Corta-se a rama com um facão em aproximadamente seis pedaços, que ficam empilhados para serem plantados de novo. Depois os brotos vão crescendo e no ano seguinte vai se fazendo a capina todo mês, agachado tirando as pragas. Ao longo do segundo e do terceiro anos, a mandioca é arrancada à medida que vão se deparando com a necessidade de se produzir farinha pra ser comercializada. Ao fim da roça, a bola é abandonada para que a terra se recupere. Passados dois ou três anos, qualquer outra pessoa pode derrubar o mato novamente pra iniciar sua roça nos terrenos. 31 As etapas de produção são realizadas observando-se, entre outros elementos, o clima, o tempo, as fases da lua, um pragmatismo que é parte do saber dos antepassados, que vai sendo atualizado. O período de chuva só permite a manutenção da roça com a capina das pragas, geralmente em um período do dia, e nessa época os moradores estão livres para se dedicarem a outras atividades. A queimada e a preparação do solo só acontece quando a chuva cessa e se pode então escolher a capoura a ser derrubada. Os que trabalham no cultivo da mandioca contaram que o período de planta, em que a comunidade toda se dedica com intensidade à roça, costuma acontecer até o mês de outubro ou novembro, quando “o sol muito quente” pode queimar as raminhas recém-plantadas. Dona Inês destacou a influência da fase da lua sobre o desenvolvimento da rama. Ela explicou que se o plantio não acontecer na lua certa – no caso a lua nova – “não dá” nenhuma rama de mandioca, por isso é preciso escolher “a lua boa”, para que tão logo tenha sido plantada já brotem novas raminhas. Depois do plantio de uma roça, resta a manutenção desta e das outras plantadas por uma mesma família. A capina, como é chamada, se faz necessária, segundo eles, pois no período de chuva cresce muito mato que concorre com o crescimento da rama. Foi observado em algumas situações que para a capina eles utilizavam um facão improvisado em que a lâmina estava amarrada por uma fibra vegetal a um cabo de madeira curto. Antigamente, conta-se que a capina era feita pelas mulheres enquanto os homens iam pescar. Seu Cacá conta que era feito guajú também para a capina, um guajú só de mulheres, agora se tronou uma tarefa da família dona da roça. 103 Antigamente uma capoura na terra adequada para o plantio da mandioca chegava a ter sete ou oito anos, chamada comumente de capourão, como as que existem no banhado. Hoje, o ciclo completo da raiz leva cerca de quatro anos: até dois anos de descanso da mata crescente até sua derrubada e mais dois anos desde o plantio até arrancar toda a mandioca. Apesar de eles reconhecerem que esses tempo de pousio é curto para a terra fraca se recuperar, eles explicam que não há como esperar mais para derrubar a mata devido à demanda do cultivo para poder sobreviver no pequeno espaço disponível. Como resume Dona Inês, “aqui é muita gente que planta e pouco terreno”. A possibilidade de cada família possuir três ou quatro roças simultâneas em vários estágios, permite que se tenha sempre uma roça na fase de se arrancar a mandioca para o consumo ou para a produção mensal de farinha, de acordo com a necessidade, se for para se obter renda monetária ou mesmo pro gasto. Isso reforça a ideia de que a área comum, ou o terreno que agregam as roças familiares e a capoura, operam como um sistema contínuo e interconectado social e espacialmente, de modo que não só o ciclo de roças e capouras vai se organizando repetidamente, mas também o ciclo do guajú para a realização das roças. Essa trajetória de gestão de três ou mais roças ao mesmo tempo em estágios diferentes é percorrida por uma mesma família e acontece simultaneamente com outras famílias distribuídas em bolas num mesmo terreno. Assim o terreno agrega roças e capouras, em diversos estágios. Essa espécie de síntese ilustra uma dinâmica que sintoniza lógicas espaciais, naturais e sociais. Seu Chico comentou a interferência do pinus sobre a roça e sobre a mata. Atualmente, espalhado por toda a região, Seu Chico e Seu Gilberto reclamam do trabalho para conter a dispersão sobre as roças. Aqui eles evidenciaram o problema atual de dispersão espontânea, para além dos limites da lavoura impostos pelo cerco de pinus enfileirados, cultivados no passado. Seu Brasílio, Seu Gilberto, Seu Chico e Dona Inês acreditam que atualmente a planta tá mais difícil, não só por conta do areião, mas porque a terra enfraqueceu ainda mais devido ao cerco de pinus: “Diz que esse marvado pinus aí puxa 10 litros de água por dia. Diz que puxa muita água. Acabou com tudo. Essas terras que eles deixam plantar no meio do pinus, a primeira planta dá boa, a segunda...” (Seu Chico). 104 Eu lhes perguntei se aplicavam alguma espécie de maquinário, equipamentos e/ou insumos agrícolas, na lavoura. Os moradores disseram que alguns poucos usam o veneno granulado de formiga; fora esse, disseram que no processo todo não se utiliza de nenhum veneno ou adubo químico, mas sim “na unha”, manualmente apenas com foice, enxada e facão, desde a “limpeza” do terreno até a colheita. Seu Chico mencionou com orgulho que a produção ser toda artesanal e “sem veneno” seria o motivo pelo qual a farinha do Sítio é considerada a melhor da região. Um ponto curioso sobre o assunto do uso dos insumos agrícolas e maquinários foi que, ao explicarem o processo produtivo da comunidade, era recorrente a comparação entre as condições produtivas locais com a dos empresários de Cubatão, produtores patronais capitalizados que possuem empregados e maquinários modernos, onde a terra é mais fértil, o uso de insumos é maior e, por consequência a produtividade é superior: em 8 meses na terra de barro já se pode arrancar a mandioca. Ali a terra é fraca, chamada de areião (em oposição à terra de barro encontrada em Cubatão, onde dá a mandioca boa), em que só dá a mandioca brava e o aipim, além disso não usam adubo (só granulado contra formiga que não consideram “veneno”). A comunidade dispõe de duas tobatas, vindas com o Programa Paraná 12 Meses, no entanto, esses equipamentos são raramente utilizados como carreta para transportar a colheita para as farinheiras das famílias. Sobre a tobata, ficou claro que é um privilégio adquirido pelo Pirizal, o único Sítio da redondeza que recebeu equipamentos como esse do governo. No entanto, percebeu-se que eles não usam a tobata, justificando que para seu manuseio é necessário chamar duas ou três pessoas, além da exigência de manutenção contínua e cara. Sobre a dinâmica de escolha e ocupação dos terrenos, Paulina explica que quando uma pessoa roça a frente de uma mata bruta, já quer dizer que aquela área demarcada, ou bola, vai pertencer a ela e a sua família32. Nos dias atuais, o roçado tem sido realizado por homens de cada família ou núcleo de famílias, não mais com a participação de homens de 32 É com o fim das chuvas sazonais que a mata bruta está em melhores condições de ser queimada e roçada, para finalmente se começar o ajutório de planta. Se a família tivesse filhos suficientes em idade para ajudar, o trabalho na etapa do roçado ficava dividido entre os membros da casa, ou em alguns casos se precisaram de ajuda chamavam apenas alguns vizinhos do mesmo núcleo familiar. Outra possibilidade era se pagar alguém de fora para ajudar a preparar o terreno. Contudo, o mais comum era fazer guajú de roçado, em que os homens se juntavam pra trabalhar na roça de um morador, depois na do outro e do outro, até que todos tivessem pago o ajutório recebido. 105 toda a comunidade. As famílias da ponta tem se isolado em relação ao conjunto da comunidade. Da mesma forma, a preparação da bola para a futura roça cabe tipicamente aos homens, pois no guajú a divisão de trabalho por gênero ainda permaneça com bastante força. As cunhadas Dona Rita e Dona Inês são exceção nesse sentido, pois o marido daquela trabalha como chacareiro em outra localidade e esta é viúva. O plantio de mandioca é realizado cooperativamente, da mesma forma que ocorre a coleta do caranguejo, a coleta do cipó e também sobre a produção de farinha; a lógica da ajuda mútua se faz presente com suas várias facetas. A troca de tempo entre pais de família de um núcleo, relacionadas entre si por parentesco e afinidade, exige a liderança e a presença do chefe da família a quem pertence a lavoura. Primeiro a família dona da bola define o dia em que vai acontecer o plantio e chamam de porta em porta vizinhos, homens e mulheres, para ajudá-los na roça deles na data combinada. Logo a notícia se espalha, pois um vizinho conta para o outro e aparecem aqueles que precisarão de ajuda. Essa dinâmica no entanto não é generalizada, pois há o elemento afinidade e seletividade na cooperação, como veremos em relação à família de Dona Dulce e Seu Marco. Uma vez que a bola está delimitada e pronta para o plantio, esperando os parentes para o ajutório, as ferramentas (foices, facões, enxadas, balaios) e os feixes de rama decepada de uma outra roça da família são transportados, em balaios sobre os ombros ou com a tobata, até o barracão de bambú improvisado próximo à nova roça para poder se iniciar o corte da rama em piques para o plantio. O guajú do dia de plantio se divide em duas etapas: de manhã as mulheres cortam a rama sob o barracão e os homens preparam a terra; e de tarde acontece o plantio coletivo na roça de fato. Na manhã do dia de guajú, aparecem portanto, apenas aqueles que pretendem ser ajudados para as mesmas etapas de preparação da rama e da terra. As mulheres trazem seus facões, balaios e sacos para picarem a rama concentradas sob o barracão, enquanto os homens colaboram cortando pragas e raízes e revirando a terra. As família que comparecem nessa fase são geralmente do mesmo núcleo, ao passo que de tarde costumam comparecer mais pessoas, representando outros núcleos de famílias. 106 O guajú de planta33 acontece no período da tarde, depois do almoço, geralmente às quatorze horas. No horário de verão redefine-se o horário de início para as quinze horas. Os moradores vão chegando aos poucos, com suas enxadas e balaios, antes do horário combinado. Nos guajús observados havia cerca de trinta e cinco pessoas trabalhando no total, mais homens do que mulheres. Mas Seu Floriano explica que o ideal do guajú é que haja um balanço entre o número de homens cavando as covas em fileiras com a enxada e o número de mulheres seguindo atrás, enterrando as ramas, de modo que se espera de um dia de guaju que todas as ramas decepadas de uma outra roça sejam plantadas na mesma tarde, na nova roça da família que promoveu o guajú. Sob o barracão, além das crianças – que não participam –, ficam abrigados do sol forte bebidas (garrafas pet com água gelada, refrigerante e vinho 34) que serão consumidas durante o ajutório e os sacos e balaios feitos de cipó para carregar as ramas. Geralmente são os adultos jovens e velhos que participam, enquanto crianças e adolescentes colaboram minimamente, apenas na preparação das bebidas ou no cuidado das crianças menores. Ritualmente, o plantio começa com uma fileira de homens revirando a terra e preparando a cova com a enxada, depois de um pedaço, descansam e então logo atrás vêm as mulheres que, agachadas com o balaio em punho, vão enterrando as ramas nas covas e depois de um trecho param para o descanso, quando os homens recomeçam. Para que exista um compasso, o ideal é que o número de homens seja equivalente ao número de mulheres. Descansam primeiro os homens e depois as mulheres, e na pausa os donos da roça servem as bebidas. O tempo de trabalho depende da relação entre o número de pessoas e o tamanho da roça, com o objetivo de se plantar todas as ramas decepadas. O trabalho da tarde não costuma passar de três horas e meia. Há dois tipos de raízes 35 cultivados por eles: o aipim, mais macio e apropriado tanto para consumo direto quanto para a produção de farinha, e a mandioca brava, que é mais endurecida, mesmo depois do 33 34 35 Com vimos, o guajú é realizado no processo de plantio da mandioca, enquanto que na etapa de se arrancar as raízes cada família trabalha na sua roça sem ajuda. Hoje o guaju acontece numa temporada determinada, uma vez por ano de agosto a outubro. Durante a pesquisa de campo, os guajús para o plantio da mandioca se concentraram nos meses de setembro, outubro e os últimos, em novembro, nos dias de lua nova. Comentaram que antigamente bebiam uma mistura de licor, cachaça e canela. O refrigerante tem sido uma opção para quem, por restrições da Igreja Evangélica, não pode ingerir álcool. Para a finalidade do presente texto, utilizamos o termo mandioca se referindo ao cultivo de ambos os tipos indistintamente, sem entrar nos pormenores das diferenças taxonômicas dessas raízes. 107 cozimento, adequado somente para se fazer farinha. Ao fim do ajutório, o morador que recebeu ajuda costuma oferecer um café da tarde, com pão de forma e margarina, café e leite, seguido por uma conversa com todos reunidos, que se encerra no início da noite36. Os ajutórios acontecem diariamente nas semanas em que a fase da lua é favorável para o desenvolvimento das folhas e da rama. Assim o calendário de guajú continua até que todos tenham sua roça plantada, no fim da temporada anual. Vale lembrar que no caso da ajuda mútua o produto de uma tarde de trabalho coletivo pertence ao dono da roça, de maneira que o ajutório para quem recebe deve gerar a obrigatoriedade do ajutório para aquele que ajudou. Chamou a atenção o monitoramento explícito e generalizado do trabalho, com a finalidade de se verificar a frequência, pontualidade, capricho, ou ausência dos moradores no ajutório, para que quem recebe o ajutório possa controlar a quem deve pagar a tarde de trabalho em que foi ajudado; e para que seja possível pagar na mesma medida de pontualidade37, esforço e capricho. Essa medida tem como consequência a distribuição relativamente equilibrada da força produtiva e do produto final. Ficou evidente que a pontualidade era uma forma de se mostrar engajamento e compromisso, sinais de honra tão importantes quanto a presença em si no ajutório. A tensa atmosfera de cobrança entre as mulheres, onde eu estava, era suavizada com as piadas e comentários sobre a intimidade, sobre os trejeitos corporais ou mesmo comparando a eficiência ou desleixo no plantio, com humor. O empenho das mulheres ao meu lado enterrando a rama parecia sinônimo do dever de trabalhar na roça do outro como trabalharia na sua própria. 36 37 Aqui cabe diferenciar o guajú do mutirão (ou puxirão ou ainda pixirão). O primeiro implica, da parte de quem recebeu o ajutório, na oferta de bebida e café durante a tarde de trabalho e a obrigatoriedade de pagá-lo, na mesma condição e ainda no mesmo calendário de plantio do ano, de roça em roça. O segundo implica na obrigatoriedade de se oferecer uma grande festa, farta de comida, bebida e música, para todos os que ajudaram, na mesma noite que sucede a tarde de trabalho. As festas comunitárias no Pirizal têm sido cada vez mais esporádicas e são realizadas geralmente em comemoração de aniversário ou em celebrações religiosas. Nos dias de hoje, esse sistema de ajuda mútua é o mais comum e têm sido aplicado principalmente no plantio de aipim, mas a influência e de sua lógica aparece em outros processos produtivos baseado da ajuda recíproca. Ao longo da pesquisa de campo, aconteceu uma situação que pode ilustrar melhor. Durante o segundo guajú de que eu participei, de Seu Wiliam, perceberam que eu tinha chegado meia hora atrasada, mesmo não tendo uma roça onde os nativos presentes poderiam ter que pagar o ajutório que eu estava oferecendo. Minha presença, pontualidade e meu esforço e capricho eram explicitamente cobrados, ao mesmo tempo que quanto mais eu me esforçava para copiar os movimentos e a enterrar corretamente a rama na cova, mais era elogiada e incentivada em voz alta. 108 Essa exigência se traduz na preocupação com o rendimento do trabalho, bastante árduo para uma família corrigir depois. É durante o próprio guajú que se determina o tamanho e a produtividade da roça de mandioca38 da família, que só a partir do primeiro ano poderá ser gradativamente cortada para a produção mensal de farinha, que por sua vez poderá ser vendida. Assim, aquele que chama o vizinho estabelece a obrigação de pagar, àquele que foi chamado, o ajutório com esforço e dedicação semelhantes, ainda na mesma temporada de planta (não se deixa para pagar ajutório no ano seguinte), num sistema em que a contribuição na economia doméstica não é unilateral, mas cruzada, nas palavras de seu Chico, “um ajuda o outro, o outro ajuda e tem o guajú”, e apesar do trabalho ser pesado, ou justamente por isso, o ajutório consiste em um encontro ritual, que não se afasta do clima de conversas, fofocas, piadas e cantoria próprios a uma festa em família. O princípio mais óbvio da troca de trabalho é que quando a força familiar é insuficiente, recorre-se à ajuda mútua entre outras famílias ou mesmo em escala comunitária. Seu Floriano conta que, quando havia mais pessoas trabalhando na lavoura no Sítio, compareciam cerca de cem pessoas em cada guajú, cinquenta homens cavando e cinquenta mulheres plantando. Nesse tempo, o ajutório intercomunitário era mais comum. Hoje, ainda participam duas ou três famílias de Sítios vizinhos, onde quase não há mais lavoura e os poucos produtores de mandioca acabam trabalhando sozinhos, combinando pequenos guajus entre vizinhos de casa, mais independentes, inclusive nas mesmas datas do Pirizal. Mas, como afirmam os moradores com um certo orgulho, a comunidade do Pirizal é a única onde a reunião de plantação persiste, onde a família e os parentes permaneceram em maior número. Se comparado à força de trabalho de duas ou três pessoas de uma mesma família no plantio de uma roça, a força de trabalho organizada no guajú propicia ganhos coletivos consideráveis, em termos de rendimento de tempo e de produtividade. O calendário de guajú vai sendo então preenchido com o ajutório e o mesmo ocorre com o terreno em capouras derrubadas em uma temporada, que vão cedendo espaço à lavoura, sucessivamente no sistema de pousio em rodízio. 38 Nos trabalhos de Balzon (2006) e Ferreira (2010), eles afirmam que no Pirizal as roças possuem em média 0,9 ha, mas ambos autores não mencionam a fonte da informação e não se conhecem o rigor e o critério com que foi coletada, portanto esse valor não será considerado. 109 Nesse sentido, o ato inicial de chamar para o ajutório e o ato de se comparecer ativamente no plantio, em conjunto, selam um compromisso reciprocamente assumido que ganha significado econômico e social não só para a família dona da roça, mas também para a comunidade como um todo, tendo em vista a rede de interações que os dois atos implicam. Além desses aspectos que dizem respeito ao vínculo de afinidade e confiança interpessoal, reafirma-se, da mesma maneira, a territorialidade, ou seja, o inter reconhecimento da apropriação familiar dos terrenos. Vale lembrar que as roças familiares não são células isoladas, não constituem nenhum outro território senão o terreno ou a área de planta do Sítio, onde o trabalho molda a terra e expressa e atualiza a presença da família. Esse detalhe foi enfatizado nas entrevistas. Só comparecem ao guajú do outro aqueles que cultivam mandioca para si, ou seja, “ajuda quem quer ser ajudado” em sua própria roça. Dona Rita explica quando e como ocorre o guajú “[...] só quando tá na época de fazer mutirão pra plantar, eles fazem um ajuntamento de gente numa tarde aí vai quem quer ganhar ajutório, nós dizemos. No caso, eu vou lá ajudo eles e daí quando eu fizer a minha, eles vêm”. A cadeia de ajuda mútua se inicia e vai deste modo constituindo um calendário de lavoura que dura aproximadamente três meses em cada ano. Não participa do ajutório portanto aqueles que não querem ajuda para tal trabalho e aqueles que de certo modo estão se relacionando com o território disponível de outra maneira. Um olhar mais individualizado sobre os núcleos de família mostrará que as famílias de pescadores profissionais da ponta cuja renda advém principalmente do turismo, ao se especializarem na pesca, dedicam menos esforços à lavoura e produção de farinha, entre quatro chácaras do núcleo, o que torna a colaboração fora dele prescindível. Já os assalariados que possuem emprego público não deixaram de participar, continuam no sistema de entre ajuda que envolve outros núcleos em âmbito comunitário, apesar da redução da disponibilidade de tempo e da garantia da renda individualizada. Além disso, as famílias dos irmãos Seu Brasílio, Seu Cacá, Zeca, e Dona Dulce, da ponta, lidam com a questão do uso comum da roça a partir da limitação de espaço que eles enfrentam em relação à predominância do banhado. Como todas as outras, as 110 famílias da ponta mantêm na medida do possível suas roças rotativas na direção de suas casas. No entanto, desfavorecidos pela localização de suas roças, todas bem próximas ao banhado, inclusive com olhos d'água embrenhados nas capouras mantidas, o pedaço de terra favorável para a lavoura mais próximo das famílias é o que se estende em direção da vizinhança, que acaba sendo usado exclusivamente pelas famílias da ponta, monopolizando o acesso e a apropriação, mais um aspecto do desentendimento entre as famílias. Um argumento bastante contundente que surgiu nas falas de Dona Dulce e Seu Marco, na entrevista com os dois juntos, e na conversa com Marquinho e sua mãe Judite do Marcelo, foi o capricho de quando se está trabalhando para si mesmo, o que segundo eles não aconteceria quando ocorre ajutório. Costumam organizar o trabalho na lavoura entre si, de forma que se por um lado não recebem ajuda de muitas pessoas, também não precisam pagar. No caso do casal de aposentados Seu Marco e Dona Dulce, ambos idosos, eles buscam colaborar sobretudo nas roças da nora, do primo, do cunhado, irmão, enfim, daqueles parentes-vizinhos dos núcleos da ponta. No último guajú do primo Seu Floriano apenas Seu Marco compareceu e eles chegaram a pagar Seu Júlio Ferraz 39, de 64 anos, e duas moças de outro bairro para que estes trabalhassem no pagamento do guajú em seu lugar. Dona Dulce e Seu Marco não conseguem reunir força braçal suficiente para pagar o guajú, já que seus filhos trabalham apenas em suas próprias roças ou nas dos pais e não na de Seu Floriano. Como Seu Marco e Dona Dulce querem poder contar com o ajutório de Seu Floriano compareceram em seu guajú. Uma outra dimensão sócio cultural que tem tido influência sobre o guajú é o aspecto religioso. O número de evangélicos, ou “crentes” como eles mesmo chamam vem reduzindo a mobilização e a participação dos moradores em festas da comunidade, 39 Seu Júlio Ferraz é filho do finado Professor Ferraz que se mudou com a família para o Sítio ainda na juventude, deixando ali dois filhos e uma casa. Seu irmão Donizete mora “no meio do mato” e Júlio mora na casa herdada dos pais; não tem família nem roça e costuma prestar serviços braçais em troca de pagamentos, sob fortes dores nas costas e pernas, como meio de sobreviver; ele não conseguiu se aposentar pela lavoura por empecilhos burocráticos, ainda que tenha problemas acentuados na coluna e nas juntas. Além do assalariamento dos funcionários da prefeitura, o filho e a cunhada de Dona Inês que trabalham para o turismo de forma assalariada, a situação de Seu Júlio mostra mais um caso de venda de mão de obra entre os nativos residentes. Há também o caso de Gabriel, genro de Seu Floriano. Gabriel não nasceu do Sítio, mas mudou para o lá quando sua esposa decidiu sair de Guaratuba; ele trabalha como pedreiro e presta serviços na construção para turistas, nativos e pesquisadores. 111 censurando a ingestão de bebidas alcoólicas comuns em mutirões e padronizando a vestimenta, inclusive para os dias de trabalho na lavoura. Quando acontece um baile ou festa que vai até tarde da noite, somente os jovens e adultos das famílias que não são crentes participam. Esse fato pode ser exemplificado pela festa de aniversário de seu Chico, em setembro de 2011, que foi comentada e esperada por grande parte dos sitiantes da vizinhança. Para a festa foram contratados músicos que cantaram música caipira e sertaneja com instrumentos elétricos. Houve um jantar com churrasco com carne comprada na cidade e bebida que deu conta de servir todos os presentes, cerca de sessenta pessoas; o baile foi até “tarde da noite”. A festa coroou a semana intensa de guajú. Apesar de terem participado do mutirão, as pessoas que frequentam o culto na igreja evangélica não participaram da festa. Os membros protestantes são poucos; Seu Floriano e Dona Luzia, Dona Santina, Geraldo, Seu Brasílio e Lucélia. Seu Brasílio explicou que a Igreja Evangélica existe no Sitio faz três anos, construída pelos próprios membros, por meio da arrecadação do dízimo. O pastor mora em outra localidade e vem fazer os cultos de moto. O processo de cultivo da mandioca nesse espaço ocorre mediante acordos e regras firmadas de maneira informal atualizada pela relação entre as famílias e seus núcleos. A gestão da terra lida com o fato de sua escassez e ao mesmo tempo com sua distribuição hierárquica e desigual. Joana do Fausto, da vizinhança, comentou que existe um predomínio da ponta sobre as capouras da ponta, como um cerco que não permite que as famílias da vizinhança rocem por lá. O que ficou claro foi que as famílias da ponta contam com uma área de banhado que não é propícia para o cultivo da mandioca, por isso “reservam” por meio do monopólio (ocupação seguida das mesmas capouras que deveria ser rotativa) áreas que correspondem à direção das casas das famílias na vizinhança. Por sua vez, as famílias da vizinhança, entre esse monopólio das famílias da ponta e o limite com outro Sítio e com plantios extensos de pinus, tem seu terreno para o roçado limitado. Tal monopólio que quebra as regras de uso rotativo das roças reforça as diferenças e impasses entre as famílias. 3.7 A transformação da mandioca na farinheira compartilhada A lavoura de mandioca encontra sua razão de ser na transformação artesanal ou 112 semi mecanizada da mandioca em farinha, no interior de engenhos caseiros construídos pelas gerações anteriores. A produção de farinha não é um traço cultural exclusivo do Pirizal, faz parte da história das populações litorâneas do Paraná. Para efeitos de contextualização desses aspectos culturais e históricos acerca dos engenhos de transformação da mandioca na região, merece destaque um estudo multidisciplinar realizado por extensionistas da UFPR Litoral, baseado no levantamento das “Farinheiras do Litoral do Paraná” 40. O projeto de extensão “Reestruturação Produtiva de Farinheiras no Litoral Paranaense” nasce da demanda identificada no projeto de pesquisa “Estudo da Cadeia Produtiva da Mandioca como Estratégia para o Desenvolvimento da Agroindústria do Litoral do Paraná”, pelo qual visitaram, entrevistaram e mapearam centro e trinta e três farinheiras em todo o litoral. Entre as farinheiras visitadas 41, constatou-se que nenhuma possuia autorização da Vigilância Sanitária, seja municipal ou estadual, para operar, encontravam-se em situações precárias, seja em termos de infra-estrutura, seja em termos da adoção de boas práticas de higiene, organização e gestão. A pesquisa identificou, além de gargalos na cadeia produtiva, vantagens competitivas das farinheiras do litoral. A exemplo, o fato de a matéria-prima ser produzida, em sua grande maioria, sem a adição de insumos químicos; o produto ser proveniente da agricultura familiar e ser artesanal, o que mantém as pessoas no campo, as quais são responsáveis por grande parte da produção de alimentos do país. Além de garantir a soberania alimentar local e contribuir para a redução do êxodo rural. A farinha do litoral paranaense é associada pelos consumidores como uma identidade cultural das famílias da região e esta identidade cultural faz com que seja conhecida popularmente como “Farinha da Boa” ou “Farinha da Terra”, mostrando desta forma o valor que este produto possui e as potencialidades que podem ser trabalhadas para o fortalecimento do mesmo perante o mercado consumidor (KOMARCHESKI, 40 41 Cf. DENARDIN, Valdir F. et al. Casas de farinha no litoral do Paraná: realidades e desafios. In: XIII Congresso Brasileiro da Mandioca, 2009, Batucatú. Anais... Botucatú: CERAT/UNESP, 2009. Disponível em: <http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/53990_6253.PDF>. Acesso em: 20 ago. 2010. Conforme consta no site: “Foram escolhidas as farinheiras comunitárias com melhores condições estruturais para comercialização da produção, em Guaraqueçaba e Guaratuba As informações sobre o projeto Farinheiras do litoral podem ser encontradas pelo endereço eletrônico <http://farinheirasdolitoral.blogspot.com/p/o-projeto.html>. 113 DENARDIN, 2010). Com o diagnóstico levantado pelo grupo constatou-se que as principais dificuldades encontradas pelos pequenos produtores são a concorrência desleal com as farinhas vindas de outras regiões; a dificuldade de ampliar a área de cultivo de mandioca, pois municípios do litoral possuem grandes áreas de proteção ambiental, e a falta de infra-estrutura para escoar a produção para o mercado local/regional devido à distância até o mercado consumidor, agravado pelas más condições das estradas. A “arte de fazer farinha” produziu no litoral do Paraná um conjunto de artefatos artesanais representantes da identidade cultural local, que resistiram ao tempo e à modernização da produção. Cada etapa do processo inclui manejo e artefatos específicos, os quais são repassados de geração para geração. Além disso, a construção destes artefatos é imbuída de uma memória mais restrita que perdura até hoje com os mais velhos, mas que vem se perdendo e está ameaçada de desaparecer (KOMARCHESKI, DENARDIN, 2010). Durante as visitas a campo, surgiram depoimentos sobre o processo artesanal de produção da farinha e sua história. Presenciei etapas do processo de transformação da mandioca em contextos distintos, o que sinalizou a complexidade e as particularidades culturais e técnicas dessa prática: foram visitados engenhos caseiros semi-manuais e a agroindústria comunitária, e presenciadas situações em que uma única família trabalhava ou em que várias famílias cooperavam. Figura 3.3 – À esquerda, forno de metal da farinheira comunitária. À direita, prensa de madeira talhada artesanalmente, na Farinheira do núcleo de Seu Marco Rezende. 114 No Sítio, existem pelo menos seis farinheiras caseiras ativas e uma estacionada, distribuídas pelos núcleos familiares. A maioria é antiga, feita com ripas de madeira pelos pais ou avós dos entrevistados, mas uma delas é possível notar que foi reformada em alvenaria; outra foi recentemente construída por famílias de um mesmo núcleo, com tijolos e cimento (Fig. 3.3, direita). Geralmente a casa de farinha fica no quintal da chácara dos pais ou dos sogros e pode ser utilizadas coletivamente, pelas famílias de seus filhos. Os engenhos de farinha apresentam frequências de uso e finalidades variadas. A farinheira fechada que foi visitada, segundo seu herdeiro, produz farinha apenas para o autoconsumo, enquanto outras funcionam ativamente uma vez por mês produzindo farinha pro gasto e sobretudo para venda. Não foi explorado, mas é possível que haja mais que uma farinheira antiga inativa. Foram visitadas casas de farinha (duas no Sítio, mas também em comunidades vizinhas) feitas de madeiras de lei nativas que produziram intensamente farinha no passado, e portanto possuem grande valor histórico. Estão fechadas sucateando sem funcionar e abrigam equipamentos artesanais antigos e às vezes petrechos de pesca entulhados. Algumas farinheiras dessas antigas têm sido desmontadas e suas peças (como prensa e canoa) procuradas para a compra. A produção da farinha passa por algumas etapas básicas: começa com o longo processo de plantio descrito acima e depois com a colheita da raiz de mandioca, seguida pelo descascamento, ralação, prensagem, esfarelamento, torração e é finalizada com o embalamento do produto (KOMARSHESKI, DENARDIN, 2010). Os engenhos possuem características singulares, funcionando em diferentes condições de infra estrutura e de tecnologia que variam entre a rusticidade e a mecanização, com consequências importantes para o rendimento, produtividade e organização do trabalho. Depois da instauração da luz elétrica, grande parte dos engenhos passaram a contar com motores elétricos42. 42 Os motores elétricos estão presentes principalmente nas etapas de ralação e torração. Melina contou que a farinha levava quase uma semana para ser feita, trabalhando-se o dia todo, no processo inteiramente manual, inclusive a etapa de fornear (torração), com pás de madeira. Por causa do calor do forno dentro da casa de farinha, começavam de madrugada. O advento das pás mecânicas, que funcionam continuamente, a produção é otimizada, porém o forneamento com pás manuais, segundo os moradores, deixa a mandioca mais grosa e saborosa. As prensas mais antigas são feitas com fusos talhados a partir de uma peça inteiriça de madeira de lei nativa, por artesãos locais e seu manuseio é 115 Apesar das pequenas mudanças, o processo de transformação da raiz da mandioca é predominantemente artesanal, realizado por meio de instrumentos e técnicas próprios da cultura e do ambiente local. Sobretudo, ele continua sendo organizado cooperativamente, tendo em vista que as etapas são quase todas manuais. Como eu pude observar no processo produtivo do núcleo de seu Floriano e na farinheira de Seu Marco, depois que a mandioca é trazida para a farinheira, ela é lavada e em seguida raspada (descascada). Essa etapa é realizada pelas mulheres, que costumam fazer guajú entre si para raspar, não no âmbito da comunidade, mas entre as mulheres de seu núcleo. Aparecem aquelas que pretendem ser ajudadas na mesma tarefa, mas em sua própria farinheira. As outras etapas, em que a mandioca é seca e torrada, são feitas com ajuda dos membros da família (pai, mãe, filhos mais velhos) ou, no caso de se reunir as colheitas de famílias do mesmo núcleo, todos ajudam até a fase de embalamento. A divisão das sacas de farinha é feita de acordo com o investimento em quilos de mandioca por família. No caso do casal Geraldina e Cleiton, como ela não tem emprego formal, a maior parte da produção fica sob responsabilidade dela; ele afirmou que para ele é só um complemento. As famílias costumam trabalhar na produção da farinha uma vez por mês, na última semana. Para tal, vão gradativamente arrancando a mandioca da roça. Melina mencionou que seu núcleo tira em média cinco ou seis sacos de mandioca, que equivale a aproximadamente de 200 kg de mandioca, que por sua vez resultam em aproximadamente em uns 120 kg de farinha. Com finalidade comercial, uma vez por mês, cada núcleo parte para bairros vizinhos e para as cidades, para escoar a produção, e procura seus compradores individualmente. Do mesmo modo que a apropriação do produto final é familiar, independente da ajuda prestada (uma vez que “ajuda prestada é ajuda paga e dívida zerada”), não há coletivização nem colaboração para a venda da farinha: os intermediários (atravessadores, mercados e aviários) e consumidores finais são diferentes. Cleiton afirmou que a farinha é vendida a R$ 3,50 o quilo e mostrou sua insatisfação com a relação desigual entre os dois anos de investimento e o valor baixo que conseguem com pesado, exigindo a força de duas pessoas ou mais. Recentemente, algumas prensas de madeira têm dado lugar a uma prensa hidráulica de ferro, facilmente operada por uma só pessoa adulta, enxugando uma quantidade de massa de mandioca maior em menos tempo, em relação a peça de madeira. 116 a venda. Com cada embalagem de farinha é possível ganhar R$ 3,50 e o atravessador revende por R$ 5,00 e até R$ 5,50. Essa foi a mesma queixa de Dona Inês, quanto aos intermediários da venda da farinha, e de Geraldo e Marquinho quanto aos intermediários da pesca e do caranguejo, a exploração e a dependência de quem repassa o produto para o consumidor final. Cleiton contou uma prática considerada desleal e que está se tornando bastante comum de adicionar uma farinha de qualidade inferior à farinha produzida no Sítio, vendida como tal. Começou com um dono de mercearia na cidade, que misturava as qualidades e vendiam como se fosse do Sítio. Hoje em dia, a prática é copiada por um fabricante de outro bairro próximo, que compra a farinha pronta e embalada nos engenhos do Sítio, e, visando uma margem de lucro maior, acrescenta a esta uma farinha de qualidade inferior produzida em outra região e a reembala para venda. Desta forma, faz render, o que lhe permite vender o pacote por um preço inferior ao normalmente pago aos produtores locais. Assim os compradores preferem sua farinha, vendida abaixo do preço, em detrimento da farinha pura oriunda dos engenhos do Sítio. Cleiton avalia que a farinha, cuja qualidade é reconhecida pela autenticidade e pelo processo artesanal de transformação, pode perder a credibilidade no mercado. Além desse fator, os moradores têm perdido com a concorrência do preço menor da farinha “alterada”. Por isso Cleiton, que utiliza a farinheira comunitária, tem interesse na proposta dos extensionistas das Farinheiras do Litoral em conseguir o selo da Anvisa atestando as condições sanitárias adequadas da transformação da mandioca, como será colocado mais adiante. 3.8 Os tipos de pesca e a hierarquização das identidades produtivas No Sítio, há aqueles como Seu Marco Rezende, Dona Inês, Dona Flor, Geraldo, Nilton, Marcelo, por exemplo, que continuam pescando regularmente, para os quais a pesca pro gasto se mantém como uma atividade importante para subsistência. Mas se tradicionalmente a pesca pro gasto era regular e importante para subsistência da maior parte dos moradores, ultimamente mostrou-se uma atividade esporádica e flutuante, sobretudo para os assalariados como funcionários da prefeitura. Existe, portanto, uma divisão social do trabalho da pesca. 117 A pesca no Sítio se enquadra como de pequena escala, e seus sistema técnico pode ser caracterizado como rudimentar, pouco tecnificado e de baixa produção (ANDRIGUETTO FILHO, 1999). Há três variações básicas da atividade pesqueira: a pesca para o auto consumo ou pro gasto; a pesca para se obter renda ou comercial; e o serviço turístico relacionado com a pesca esportiva43, práticas que podem ser encontradas combinadas dentro de um núcleo. O fácil acesso aos rios próximos e à baía fez da pesca uma atividade comum aos habitantes. Mais do que uma fonte de subsistência importante, a atividade de pesca materializava um conjunto de conhecimentos44 e práticas rústicas, repassado entre gerações que foi se ressignificando ao longo do tempo. Mesmo sem ter sido um pescador de tempo cheio como seu avô, Seu Chico se remete a um tempo de abundância e variedade de peixes, quando a pesca era praticada sobretudo por nativos, em pequena escala. Os petrechos de pesca rudimentares, muitas vezes trabalhados por artesãos locais ou feitos pelos próprios pescadores, junto com as técnicas variavam de acordo com a finalidade e com o que se encontrava disponível na beira do rio e na mata45. Há poucas décadas, a prática da pesca era conjugada à rotina da agricultura, mais especificamente à roça de arroz e de aipim. Sobre a integração das atividades, Melina detalha a conjugação das práticas cotidianas, como aconteciam na sua casa: seu pai e seu 43 44 45 A pesca corriqueiramente chamada de esportiva se refere à prática do “pesque e solte”, no entanto, ocorre também a pesca pro consumo. Há os serviços informais relacionados ao turismo e comércio da pesca como limpa e descarna do que foi pescado pelos turistas para seu consumo, geralmente realizado pelo filho adolescente do pescador nativo ou por sua esposa. Em duas ocasiões de limpa, notou-se que alguns peixes continham ovas, consideradas uma especiaria. Foi mencionado que nessa modalidade e pro gasto procuram usualmente entre quinze e dez peixes, entre robalo, bagre, pescada, betara, corvina, linguado, caratinga, parati, tainha, tainhota, oveva. Os detalhes sobre o cotidiano da pesca enriqueceram alguns depoimentos e foram registrados alguns detalhes interessantes. Dona Inês, por exemplo, conta que era possível improvisar um copo dentro da taquara, de forma que quando a maré secasse o peixe ficava no copo. Ouviu-se também que os camarões eram pegos em balaios, tecidos do cipó. Na pesca de rede, esta era levada por um grupo de homens para lancear; uma outra variedade de uso da rede era o cerco, em que quatro ou cinco redes, em pontos próximos, cercavam os cardumes. Alguns materiais locais que estão presentes na pesca foram citados, como bambú usado como vara, a linha de pesca feita com fiação de tucum, a cortiça feita de ariticum tirado da beira do rio, espinhel extraído da imbaúva, o cabo da rede de cipó. Havia artesãos que faziam os petrechos, e quem não sabia fazer, comprava. Ainda se pesca com linha e anzol, na vara de bambu, com rede e tarrafa para maiores quantidades, mas acredita-se que atualmente os petrechos, industrializados, sejam comprados em lojas especializadas, na cidade. 118 tio saíam para pescar e voltavam com três balaios repletos de peixes, que eram limpos e secos pelas mulheres e preparados ao longo da semana; da mesma forma, arrancavam a mandioca da roça para estocá-la para poderem trabalhar em outra tarefa, de forma intercalada. As mulheres pescavam menos, no tempo em que predominava o transporte a remo. Mais tarde, com a possibilidade mais segura e menos árdua do barco a motor, chegam a ir para a água sozinhas, mas ainda são minoria dentro do conjunto de mulheres do Sítio. Quando elas vão para água, o mais comum é sair em dupla com uma companheira na mesma situação, ou ir com o marido ou o filho, como o fazem Dona Lucélia, Dona Inês, Dona Rita e Geraldina, por exemplo. Embora o autoconsumo prevalecesse sobre a comercialização uma vez que não havia tantos compradores, as duas atividades se complementavam. Antigamente as demandas de localidades vizinhas surgiam muito esporadicamente, de sorte que pescar poucas vezes vez por semana era o suficiente para o consumo e para compor a renda. O pequeno comércio com os moradores dos Sítios vizinhos ainda se mantém46. A pesca em maiores quantidades, visando a comercialização do pescado em mercados mais distantes era dificultado por conta da falta de estrutura de acondicionamento e refrigeração, situação que não mudou significativamente nos dias de hoje. Para a comercialização, dependendo da demanda, ainda fazem a tradicional salga (chamada de cambira que consiste no peixe seco e salgado) e ainda limpam o peixe. As canoas de madeira geralmente são compradas prontas, feitas por artesãos locais; esse padrão de embarcação é bastante comum entre aqueles que pescam pro gasto (Fig. 3.4). Com a abertura da estrada desde a década de 80, essas embarcações foram progressivamente perdendo sua centralidade como único meio de transporte, à medida que parcela significativa dos moradores se assalaria e se capitaliza, podendo adquirir automóveis, motos e até mesmo caminhonetes esportivas, como é o caso do Marcelo, da ponta. Hoje, em determinadas épocas do ano, motivados pela demanda de atravessadores, turistas e mesmo de consumidores locais, os moradores exploram os caminhos dos diversos afluentes da baía e os mangues que a margeiam, à procura de 46 Para os moradores não vale a pena levar o pescado até Guaratuba para venda, pois os pescadores de Sítios mais próximos já abastecem os mercados por lá. 119 peixes (como bagre, a tainhota, a tainha de fora), camarão (camarão branco e o camarão perereca) e caranguejo. Em pesqueiros próximos à comunidade a embarcação pode ser a remo ou com um motor de baixa potência; pesqueiros que exigem cruzar a baía ou ir até rios mais distantes costumam ser acessados por quem possui barco a motor. Para os pescadores da ponta, mais capitalizados, que trabalham com a pesca comercial e turística as embarcações de madeira têm dado lugar aos barcos de alumínio que além de maiores e mais duráveis possuem motores mais potentes e com maior autonomia (voadeira ou lancha, embarcações rápidas com casco leve, geralmente de alumínio ou fibra de vidro, e motor de popa). Para as famílias que não entraram no ramo do turismo, a pesca ainda possui um caráter de auto consumo e ao mesmo tempo se volta para o comércio nos bairros próximos do Sítio ou chegam a vender iscas para os turistas. Geraldo, da vizinhança, filho de Dona Santina e sobrinho de Seu Chico, por trabalhar como pescador profissional, teve que investir na regulamentação para poder comercializar o pescado. Os turistas compram direto com ele, ou então ele leva até a comunidade Cubatão (em torno de 30 minutos se chega lá a remo). Sua embarcação a remo, chamada por ele de batera, possui documentação mas, por conta do tipo de sua embarcação, ele não pode ir muito longe e acaba vendendo para interessados do entorno do estuário. Pelo mesmo motivo, ele só trabalha com a pesca comercial, já que não possui equipamentos tampouco embarcação adequada para atender a pesca de caráter mais turístico. Os pescadores da ponta, dentre os quais estão Zeca, Seu Marco Rezende e seus filhos homens e também seu neto adolescente Marquinho, se dedicam profissionalmente 47 à atividade, não possuem um emprego na prefeitura e não são subordinados, e a posse dos meios de trabalho lhes provê autonomia nessa profissão, assim como Geraldo. A diferença é que são os que mais se dedicam integralmente à pesca comercial e à turística. Nilton, pescador profissional como seus primos que moram na ponta, é neto de Seu Mario Fagundes e filho de Seu Brasílio, mas ao casar com Conceição, filha de Seu Chico Santos da vizinhança, se mudou para o lado do sogro, em uma casa que 47 Adotamos aqui uma definição semelhante à de Andriguetto Filho (1999), segundo a qual se considera pescador profissional aquele que se dedica regularmente à pesca, seja pro gasto ou comercial, como atividade principal com a qual obtém renda monetária e, por complemento, aquele que possui a carteirinha de pescador (licença) e a documentação de sua embarcação expedida por órgão competente, sendo assim sua atividade regulamentada e reconhecida pelos órgãos do governo. 120 construíram. Nilton e sua esposa prestam serviços para os pesquisadores de Curitiba, oferecendo a própria casa para locação, ele como barqueiro e Conceição com comida e limpeza. A peculiaridade do turismo de pesca é que está se especializando e se concentrando em um determinado núcleo familiar, entre irmãos que juntos e predominam na atividade, em relação aos outros pescadores profissionais da comunidade. A capitalização das famílias da ponta que trabalham com o turismo da pesca pode ser notada se olharmos para os últimos investimentos em automóveis, na ampliação de uma das pousadas ali situadas e nos dois grandes ranchos da ponta. A diferença entre os ranchos da ponta e os ranchos da vizinhança pode ser observadas nas fotos que seguem. 121 Figura 3.4 – Rancho da ponta, com barcos de madeira inutilizados na beira do trapiche no primeiro plano, barcos novos em uso no segundo plano. Figura 3.5 – Ranchos da vizinhança, ranchos com os barcos e petrechos recolhidos, um barco motorizado na beira d'água e pinus no centro ao fundo da imagem. 122 Figura 3.6 – Pescador Geraldo, filho de dona Santina, no rancho de sua família no momento da entrevista. A diferença entre os ranchos da ponta e da vizinhança tanto na estrutura da construção quanto nos barcos e nos equipamentos e petrechos reflete a vitalidade, o investimento e o nível de rentabilidade da pesca na ponta (Fig. 3.4). Existem dois grandes ranchos centrais, erguidos com vigas de madeira e de cimento com pé direito alto e amplo para abrigar até vinte barcos cada um e também as caminhonetes altas e carros esportivos de turistas e de moradores da ponta. Um deles possui telhado de “eternit” e o outro com telha de cerâmica. Na vizinhança há quatro ranchos menores, construídos com paus de madeira, cobertos por telhas de cerâmica e um trapiche (Figs. 3.5 e 3.6), para atender uma atividade que não é central a não ser para dois pescadores profissionais, Geraldo e Nilton, dedicados ao comércio local de pescado, seja com pequenas vendas ou direto com os consumidores. Na vizinhança, os ranchos são individualizados para cada núcleo. Quanto ao acesso aos portos, são considerados de uso público, no entanto, tanto na ponta quanto na vizinhança, só podem “chegar” embarcações autorizadas pelos 123 respectivos moradores. Em ambos os portos, foi observado que existem bateras e canoas de madeiras aparentemente sem uso há muito tempo, desabrigadas, presas às margens do banhado, aquelas usadas pelos pescadores para regulamentar a atividade. Os barcos mais novos, de alumínio, ficam abrigados nos ranchos de seus respectivos donos. Os ranchos ainda são familiares ou compartilhados por famílias do mesmo núcleo. Essa configuração espacial-familiar contraria a tendência de outras comunidades vizinhas onde terrenos e ranchos no porto foram comprados por turistas ou onde se instalaram pousadas que atendem esses turistas da pesca. Nos três Sitios mais procurados por turistas e veranistas, nas redondezas, um grande número de ranchos, erguidos em alvenaria, pertencem a pessoas de fora. Embora os moradores destas comunidades trabalhem em grande parte como pescadores e no atendimento ao turista (quase não há mais roça), optaram por vender tanto seus ranchos nos portos locais quanto chácaras, onde cada vez mais se erguem casas de veraneio48. O tipo de turismo voltado para a pesca envolve os serviços de barco (pagam pelo dia), fornecimento de diesel, da isca, dos petrechos; ademais, a chegada até os pesqueiros é possibilitada pelo nativo que conduz o barco. Os turistas da pesca esportiva procuram sobretudo o robalo. Os nativos conhecem intimamente os melhores pesqueiros de robalo das redondezas e seletivamente levam os turistas até alguns mais conhecidos, ordenando os pesqueiros. Para essa atividade, paralelamente acontece o comércio de iscas-vivas de camarão (principalmente o camarão preto de água doce chamado, o pitu, e o camarão branco de água salgada). O período mais rentável é o inverno, entre junho e julho. A ceva49 e vara é uma modalidade recentemente usada na pesa da tainha, trazida 48 49 Em pesquisa pelo site de busca Google no dia 17/07/2012, foi encontrada uma variedade de imóveis para venda, como pequenos ranchos e fazendas produtivas, com valores variando entre cem e oitocentos mil reais, como pode ser observado no site da imobiliária consultado. Disponível em <http://www.muraski.com/imovel-detalhes-16981-chacara-guaratuba-venda>. No caso da pesca com ceva, comum em bairros vizinhos, os nativos armam uma estrutura com estacas de madeira sob a água, com uma embarcação com uma isca (vísceras frescas de animais) e dois sacos com que vão se alimentar; uma vez que os peixes se aglutinam em tono das bolsas de comida, esta compõe uma armadilha bastante usada na pesca esportiva. Nesta modalidade amadora, com finalidade recreativa, os turistas conduzidos até as cevas montadas pelos nativos, buscam o prazer da captura do peixe usando a vara. A pesca da tainha com ceva foi recentemente difundida entre os nativos da região da baía por uns praticantes de pesca esportiva de Santa Catarina. Essa técnica não parece tem muitos adeptos no Sítio. Tem sido mais usada quando não se vai comer a carne do peixe, como no caso da pesca esportiva (pesque-e-solte), já que os apreciadores da carne da tainha reclamam o gosto forte de ração, quando a tainha é pescada com ceva (ZANLORENZI, 2011). 124 por pescadores de Santa Catarina, mas a modalidade técnica mais comum no Sítio é com rede ou tarrafa. Um elemento que se faz bastante presente nas rotinas ligadas à pesca é o conjunto de implicações práticas que a regulamentação da atividade pesqueira envolve. Os moradores que trabalham com pesca conhecem e estão cientes das restrições de modo geral, mas sem deixar de apontar as dificuldades que elas criam. Geraldo descreveu determinadas temporadas quando um peixe poderia ou não ser capturado e demonstrou conhecer petrechos utilizados na pesca que eram controlados e fiscalizados. Da mesma forma, Seu Marco e seu filho Marcelo. Gerado observou que a fiscalização costuma ser rígida e se faz mais presente na temporada de verão, por meios aquático, terrestre e aéreo (utilizando barcos, automóveis e até mesmo aeronaves). O ciclo de trabalho de um pescador no Sítio compreende a combinação de várias espécies, na temporada de captura e no defeso de cada uma, sob fiscalização dos órgãos ambientais. Essas atividades são combinadas e intercaladas com outras, permanentes ou temporárias, que ao longo do ano também provém renda para as famílias, compondo um ciclo anual de exploração de recursos naturais e da terra. A captura do caranguejo nos manguezais é intensa em dezembro. Na época de pegar caranguejo, ocorre uma mobilização generalizada dos habitantes, profissionais ou não, assalariados ou não; todo o Sítio cata caranguejo na temporada para complementar a renda, justamente quando superlotam os mangues da região. Na alta temporada de captura os mangues ficam cheios de catadores, a despeito do fato de a exploração do mangue ser proibida por lei em todo o território nacional. Quanto ao acesso livre ao caranguejo, Geraldina explicou que a regra é a ordem de chegada: “A gente vai lá do outro lado, Palmeira, dos Mero. Só que daí é quem chegar primeiro. Também não pode ficar muita gente no mesmo ponto, né. Mas nesse mangue da baía de Guaratuba, cabe todo mundo”. O comprador é garantido, pois o caranguejo na época da andada é encontrados em abundância50. Para catar caranguejo, se organizam, de forma semelhante ao guajú para o cipó, em pequenos grupos formados a partir do núcleo, saindo para o mangue em dois, três ou 50 Os moradores se baseiam na fase da lua para saber a melhor época de ir ao mangue, para não ter que procurar muito pelo caranguejo. A fase da lua, Dona Inês e Cleiton explicaram, interfere na maré, que por sua vez interfere na “andada” do caranguejo que é mais frequente com o mangue seco. Na época da “andada”, eles ficam no mangue até pouco antes da maré encher (na lua enche das 15h em diante). 125 no máximo quatro pessoas em cada batera, e não mais, pois catam muitos quilos de caranguejo que ocupam espaço no barco. No mangue, há um rodízio entre o que fica no barco, o canoeiro, e os que entram no mangue: um fica mais dentro da canoa batendo num galão de plástico para sinalizar para aqueles que entram no mangue pra catar o caranguejo não se perderem. Na entrevista com o casal Cleiton e Márcia, ele disse que é divertido sair com o grupo, e que só é mais desagradável pra quem fica no barco, por conta da temporada das butucas. Os outros sabem onde está o barco por causa da batida; as funções se revezam entre os homens51. Dona Inês comentou a dificuldade de ir para o mangue, pois as butucas são comuns no verão, o que dificulta a permanência no mangue, além do calor. Em geralmente é uma atividade masculina, mas as esposas costumam ir e ficam mais na função de canoeiras. E da mesma forma que tem o lado divertido do guajú para a roça, com cantoria, lembrança de histórias e contação de piadas e também na partilha da cachaça durante o árduo processo de plantio sob o sol escaldante, e da retribuição do ajutório com um café no cair do sol, sair para catar caranguejo é mais uma faceta do guajú que se torna divertido, como um momento de encontro e de trabalho, nos mangues pela baía. A venda dos caranguejos, em grandes quantidades, é feita integralmente para o mesmo comprador, o “patrão do caranguejo”, o atravessador que vem de São Francisco do Sul, onde mantém um mercado. Raramente os caranguejos são vendidos diretamente para consumidores de fora da comunidade. O caranguejo é vendido também em pequenas quantidades, geralmente para consumidores finais. Eles vendem por oito reais a dúzia a esse atravessador, mas o valor da venda varia entre oito e doze reais a dúzia, conforme o comprador. Cleiton e Marquinho relataram que há uma pressão da parte do atravessador sobre os nativos para estes procurarem os caranguejos mais graúdos, preferidos pelos consumidores. O comprador sugere que se ponha uma corda, que eles chamam de “lacinho” (uma técnica de captura que prende o bicho com uma laço em sua garra maior, já na sua saída da toca), praticamente dentro das tocas maiores, o que permite pegar só os mais graúdos. 51 Quanto à divisão do que foi capturado entre o grupo, depende do esforço empregado, o que determina se vai ser dividido igualmente entre todos, ou que cada um leva o que pegou ou mesmo que, no caso do caranguejo, o que fica batendo no barco, sem entrar no mangue, só leva para o gasto. 126 Sobre as exigências e desmandos dos atravessadores, Cleiton explicou que, à época de abundância, muitas pessoas vão pegar, em grandes quantidades, e acabam trazendo caranguejos miúdos. Porém, no mercado onde o atravessador trabalha existe a demanda dos turistas que se interessam pelos mais graúdos. A abundância e a distância da fiscalização favorecem as condições de exigência do atravessador, que por sua vez incitam a clandestinidade (BECKER, 2008) com a demanda e estimulam a sobreexploração (OSTROM, 199). O perigo e a pressão da clandestinidade são repassados para quem está no mangue, o sitiante, assim como acontece na coleta do cipó no meio da mata em área particular. Gilberto, Dona Inês, Cleiton e Marquinho disseram que eles procuram pegar os maiores e também os machos, evitando a fêmea, mais difícil de se encontrar. Mostraram ter o conhecimento de que, de acordo com o defeso 52, não se pode pegar a fêmea nem os menores do que oito centímetros de corpo (carapaça). Além disso, também mostraram saber que em janeiro é permitida a captura manual e a venda desse crustáceo, sendo inadequado o uso de armadilhas, como a chamada de “lacinho”. Uma situação interessante foi quando Dona Inês explicou que prefere vender ao atravessador, pois dessa forma não precisa se preocupar com o armazenamento nem com a fiscalização. A fiscalização do caranguejo é intensa na temporada, no entanto, como lembra Cleiton, na baía “tem mangue para todo mundo”, o que permite pegar caranguejo escondido. Marquinho, que trabalha ativamente com o pai Marcelo na pesca esportiva da ponta, contou que em um episódio o patrão do caranguejo ficou muito exigente e passou a escolher os melhores, os catadores começaram a reclamar, porque além de ele escolher ele determinava um preço muito baixo. Marquinho contou que, nessa situação, os catadores reagiram e foi decidido um preço fixo e o atravessador teve que parar de escolher os maiores, na compra da barcada. Andriguetto Filho (1999) lançou um olhar bastante amplo sobre a pesca na região 52 O defeso (ANDRIGUETTO FILHO, 1999) é o período em que a pesca de um dado recurso é interditada, usualmente em momentos de especial vulnerabilidade ou críticos para a reprodução do estoque pesqueiro. Nesta época os pescadores artesanais podem recorrer ao seguro desemprego para garantir uma renda durante o defeso. O benefício do seguro Bolsa Pesca é pago pelo governo mediante comprovação de vínculo com a colônia de pesca e do exercício do ofício, enfim, exigências burocráticas que nem todos os moradores conseguem cumprir. 127 e escreveu que a perecibilidade do pescado e a inexistência de estrutura para sua refrigeração e conservação – além da cambira, somados muitas vezes a falta de embarcações adequadas para transportes até mercados mais distantes reforçam o domínio dos atravessadores, que tentam apresentar unilateralmente suas demandas aos moradores. Com efeito, como descreveram Cleiton e Dona Inês sobre a temporada do caranguejo, a relação com os intermediários que comercializam os recursos pesqueiros é desigual, na qual os sitiantes acabam cedendo às exigências do atravessador, como por caranguejos graúdos. Com o turismo da pesca, entre os irmãos da ponta, uma outra situação de trabalho emerge. Não parece ser ousado dizer que a possibilidade de trabalhar em família, o controle sobre a embarcação, os petrechos, o produto do trabalho e, principalmente o domínio cultural sobre as decisões e os conhecimentos inerentes à prática, são elementos que lhes conferem certa autonomia, como também observou Diegues (1995), sobre a pesca Caiçara em outros litorais. Essa autonomia parece ser o que atrai os irmãos da ponta e o que lhes confere prestígio em relação aos que dependem do assalariamento e da roça para a produção de farinha de mandioca. Do núcleo de seu Marco, nenhum deles é assalariado, não trabalham para a prefeitura, sua atividade principal é a pesca, de onde tiram além do sustento, o capital que têm investido ampliação da infra estrutura local pare receber um número crescente de turistas. Além do aspecto da autonomia, seja para quem trabalha na pesca em geral, seja no comércio ou no turismo, o regime de uso dos recursos pesqueiros combina uso comum e livre acesso (OSTROM, 1990; ALMEIDA, 2009; CREADO et al, 2008). As atividades comerciais e turísticas ligadas à pesca não deixam de estar atreladas a questões de territorialidade, e nesse sentido, os pescadores da ponta e os da vizinhança, e da mesma forma os pescadores das outras comunidades, respeitam os pesqueiros frequentados por cada grupo. Como exemplo, podemos citar que existem os melhores pesqueiros para a tainha, ou então que durante a andada do caranguejo o mangue fica concorrido e a coleta se dá entre as famílias de um mesmo núcleo; ou ainda que os moradores que trabalham com a pesca, na ponta, são quem conduz os turistas para os pontos de pesca esportiva, de modo que o conhecimento do acesso aos pesqueiro é controlado pelo nativo. No Pirizal, o sitiante que lida com a pesca está, proporcionalmente, menos 128 representando no ramo do que nas vilas vizinhas onde predominam proprietários veranistas/pescadores ou naquelas especializadas em pousadas e infra estrutura quase completamente voltadas para o atendimento do pescador esportivo, a exemplo de onde trabalham o filho de Dona Inês, pescador e funcionário, e o casal Rita e Antonio, caseiros e funcionários de uma pousada. O turismo rural é uma ramo em franca expansão em Guaratuba, e a pesca turística é seu representante principal. Quando perguntado sobre o que mudou na pesca, Seu Chico, por exemplo, mencionou a abundância de peixes do passado, que a geração que hoje tem entre seus 30 e 40 anos chegou a conhecer, e a progressiva diminuição de peixes hoje na baía relacionada tanto à abundância quanto à variedade. Seu Chico lamenta que antes a pesca era uma atividade mais comum entre os nativos da baía: “Os guaratubanos de lá não pescavam e “ninguém era dono de nada, cada um pescava onde queria e um respeitava o outro, se eu lanceava aqui o outro ia lancear ali na frente”. Seu Chico avalia que os pescadores de fora chegaram em Guaratuba há poucos anos, intensificando a atividade. Para ele, a diminuição dos peixes é associada diretamente com a chegada e o aumento de novos interessados pela atividade pesqueira. Como ele observa, a pesca para fora da baía é tão intensa que impede a entrada de espécies que antes se conhecia. Criticamente ele observou também que a presença dos pescadores de fora, com seus barcos barulhentos e potentes, assustam e afugentam os peixes e além disso a pressão do aumento da pesca afeta a cadeia alimentar. Esse argumento é muito semelhante ao que eu escutei pescadora bióloga que aluga a casa de sua filha Conceição. Em outros bairros, há opções de hospedagem e também cresce o número de casas de veraneio, onde o turismo está bastante desenvolvido e por isso demanda mão de obra local. Três moradores da vizinhança, do núcleo de Dona Inês, trabalham para empresários do turismo ao redor da baía: Dona Rita e seu Marido Patrício e Lorenço. Dona Rita se mudou com seu marido que, empregado como caseiro, cuida de uma propriedade em outro bairro, mas mantém sua casa no Pirizal e trabalha regularmente na roça, com sua cunhada Inês. Lorenço, filho de Inês, trabalha para o dono de uma pousada também nas redondezas, com o irmão que mora lá; ambos trabalham com o turismo de pesca, como empregados. Esses são os dois únicos casos de nativos do Sítio em que há o assalariamento e subordinação ligados ao turismo. 129 As diferentes procedências dos turistas que chegam à comunidade – há turistas da RMC, da capital, do interior do estado, de Santa Catarina e até mesmo de São Paulo – ilustram o potencial de expansão da atividade, cujos serviços adjacentes são oferecidos apenas pelo núcleo de Seu Marco, que investiram nos negócios da família sem nenhum incentivo do governo local. Este tipo de turismo tem gerado a demanda por outros serviços complementares, como alimentação e hospedagem, além de aquecer o mercado imobiliário. Para os que possuem casa no Sítio, turistas que compraram uma propriedade ainda pagam para o morador vizinho do terreno fazer a manutenção como um zelador ou caseiro, cortando a grama e cuidando da casa. A manutenção de portões, roçado da grama e cuidado do terreno dos turistas é remunerada e costuma ser feita pelo morador com mais contato, no caso aquele que lhe presta serviço no turismo da pesca. Dentre essa freguesia, há os turistas mais antigos que já pescam com os mesmo barqueiros há quase uma década e que inclusive compraram terrenos onde construíram casas de veraneio, como vimos em parágrafos anteriores. Esses são alguns reflexos dos processos impulsionados pelo advento da estrada, que facilitou o acesso de turistas e novos atravessadores, e também reforçou hábitos alimentares urbanos em que o peixe deixa de ser o alimento principal, pelo menos entre famílias com renda maior. No entanto, a pesca pro gasto se faz presente na vida dos moradores, embora com menor frequência. A presença reguladora do Estado também foi mencionada e de fato notou-se que os pescadores que obtêm parte significativa da renda com o comércio de peixe e camarão buscaram se regulamentar e profissionalizar. A tendência de especialização na pesca turística e sua estruturação, sobretudo com os pescadores profissionais da ponta, gera a diferenciação entre as identidades profissionais das famílias. Os pescadores da ponta se colocam como esforçados e prósperos pela via do trabalho caprichoso, que só se alcança quando se trabalha dedicadamente para sua própria família. Na visão delas, “é melhor fazer você mesmo” do que chamar um ajutório e ainda ficar mal feito; e precisar ser refeito depois. Para o núcleo de Seu Marco, a lógica do guajú tem perdido a sustentabilidade. Eles mesmos se declaram na posição oposta dos primos da vizinhança, que são considerados preguiçosos e “não trabalham porque não querem trabalhar”, uma vez que 130 oportunidades de trabalho existem, como cunhou categoricamente o adolescente Marquinho, neto de Seu Marco. O controle moral exercido a partir da distinção de quem é preguiçoso e de quem é próspero justifica o fechamento ou delimitação do trabalho cooperativo apenas para dentro dos núcleos da ponta. Talvez o que Judite e seu filho Marquinho talvez não tenham notado é que na vizinhança, quem se dedica à lavoura e à pesca, e não é assalariado, a maioria está em idade passada, ou seja, na ponta os irmãos e suas famílias são ainda novos, jovens para o trabalho. E quem vive na vizinhança condena a atitude de quando avançam e fixam os monopólios sobre as bolas para o lado dos terrenos na direção da vizinhança, ao que é atribuída a sua prosperidade, afinal, a lógica do guajú ampliada para todo o Sítio é rompida. Para além das questões econômicas, a especialização no turismo rural voltado à pesca é um elemento que permite entender a diferenciação interna dos projetos familiares. A realização dessa atividade em suas diversas modalidades parece ser motivada principalmente pela necessidade de permanecer no Sítio, de se sustentar a família no caso de muitos filhos herdeiros e pouca terra, e de se obter renda monetária para garantir esse sustento. 3.9 O tecido do cipó como coadjuvante, mas não menos importante O cipó é um recurso tradicionalmente presente no repertório de práticas materiais dos nativos. Utilizado na confecção de balaios, esses ainda são utilizados para carregar ramas no plantio da mandioca (Fig. 3.7) ou pegar camarão, como contou Seu Mario Fagundes. Ele explicou que primeiramente se fazia balaio de taquara e depois passou a ser feito com cipó mambú usado. Seu Mario conta que costumava tirar cipó da mata que havia por nas redondezas, mas hoje o cipó está acabando. Dona Suzana explicou que a demanda comercial pelo cipó e outras espécies vegetais comuns na região, como o veludo (musgo) e o piri, data de cerca de vinte anos pra cá. Na entrevista com Seu Gilberto e Dona Helena, ela conta que sua família trabalhou intensamente com o cipó para a venda. Seu irmão, Seu Chico, comprava grandes quantidades de cipó do Sítio mais ao norte, que vinha em um bote cheio. Como 131 explicou Dona Helena, algumas etapas do beneficiamento costumavam ser realizadas pela família e outras eram feitas cooperativamente na troca de trabalho, como hoje eles fazem o guajú para plantar mandioca (antes a capina também era feita com troca de trabalho; hoje cada família se dedica à sua). O cipó era de seu irmão que distribuía para os familiares. Figura 3.7 – Balaio tecido de cipó sobre o areião, sendo usado para transportar ramas de mandioca durante o guajú de Seu Floriano. O sistema de beneficiamento ainda é rústico e inteiramente manual, em etapas realizadas com a mesma lógica do ajutório: DONA HELENA: Eu com as minhas filhas, era como agora nós fazemos hoje com o mutirão de plantar rama! Vinham quatro ou cinco pessoas ajudar a gente; a gente descascava e eles vinham pra rapar o cipó. Quando era a tardinha saía um cafezinho com biscoito, uma bolacha e aquele monte de cipó. E depois entregado pro meu irmão [Seu Chico]. Nessa passagem, Dona Helena detalha as etapas realizadas em grupo quando ainda era solteira (depois que se casou com Seu Gilberto, ela não trabalhou mais com cipó). O cipó não chegava a ser tecido, só era raspado e pesado. No dia seguinte a família ajudada ia ajudar o outro em sua casa, e no outro dia o outro, e assim por diante. Como na roça de mandioca e na coleta do caranguejo, havia a divisão do trabalho entre as mulheres e homens e também entre a família e o Sítio como um todo, e ao fim um lanche ou café era oferecido. Da mesma forma, ajudava quem precisava ser ajudado com a mesma tarefa 132 em um outro dia. Hoje, a tarefa está mais restrita a cada família ou entre duas, em um mesmo núcleo. Seu irmão Chico guardava o cipó e “quando dava a barcada”, acumulando o cipó numa etapa inicial de beneficiamento, ele levava o cipó para Guaratuba pra vender em fábricas e armazéns, que hoje não existem mais. Outra espécie vegetal que tinha valor comercial era o piri, um tipo de palha que dá no banhado, que fica parcialmente submersa pela maré. No momento de reunião de mulheres no barracão antes do guajú de Seu Floriano, Dona Suzana e Dona Lucélia me explicaram que iam pegar piri para fazer esteira de praia, e vender aos atravessadores que também buscavam o cipó. Acrescentaram também que até então não havia estrada, mas os atravessadores já vinham buscar o cipó beneficiado e as esteiras de barco. Depois da abertura da estrada pela Comfloresta o cipó, o piri e o musgo continuaram a ser explorados e procurados pelos atravessadores que passaram a vir de caminhão e a demanda belo beneficiamento primário e pelo artesanato aumentou. No Pirizal, não são os mesmos da geração delas que trabalham atualmente com o cipó, mas seus filhos e genros/noras. A prática acontece de maneira regular/permanente ou esporádica, de acordo com a necessidade, por aproximadamente quinze famílias. Estas comercializam o tecido para complementar a renda, sendo que nenhuma delas vive exclusivamente da atividade. Os compradores de que eles falaram são de São Paulo e Garuva, e são os mesmos que negociam nos Sítios vizinhos, onde existem mais extrativistas que dependem mais da renda oriunda do tecido (SONDA, 2002; FERREIRA, 2010). Os atravessadores vêm na data marcada para buscar a cestaria pronta, pagam muito pouco pelo artesanato que será revendido mais caro em outra cidade. Cada família chega a tecer 80 unidades ou peças por dia, pelas quais recebem menos de dez centavos cada. A quantidade cortada e trazida da mata para casa, em uma tarde no mato, fica entre quarenta e cinquenta quilos em cada feixe de cipó. Essa etapa cabe mais aos homens, devido ao grau de dificuldade em termos de acesso e exigência de força física que a atividade demanda. Os coletores saem em dupla ou trio; às vezes os maridos levam as esposas junto, mas a participação delas é mais comum na parte de raspar e tecer o artesanato (caracterizado pela produção em série e em trançados padronizados, menos 133 complexos em relação ao que teciam no passado pro gasto), enquanto aos homens fica a parte mais árdua e “perigosa” de coleta e beneficiamento. Os equipamentos utilizados no beneficiamento (facão, raspadeira e passadeira) do cipó são dos próprios moradores, feitas artesanalmente e com peças compradas. Os moradores aguardam o atravessador trazer o fundo da cestaria a partir do qual irão tecer; a quantidade de fundos, com formatos variados de acordo com a data comemorativa do ano que está mais próxima (coração perto do dia dos namorados, estrela no natal etc.), já indica a quantidade de unidades que ele quer comprar. O cipó já não é encontrado nas proximidades, pois no entorno só há áreas desmatadas ou cultivadas, e os moradores saem de canoa por percursos cada vez mais longos, à procura desse recurso natural em várias regiões da baía, em matas à beira de estradas, em pés de morros, em fazendas, e a coleta acontece em propriedades privadas. Dona Helena conta que seu genro sai a qualquer dia da semana pelo mato, “arriscando a vida”. O perigo foi atribuído à possibilidade de serem confundidos com os palmiteiros, no interior de propriedades privadas cujas florestas estão sendo exploradas. Além disso, o extrativismo vegetal possui comprador garantido, por conta da demanda de atravessadores, mas ainda não é regulamentado (CECCON-VALENTE, 2009), o que aumenta a clandestinidade (BECKER, 2008) da prática. O extrativismo vegetal constitui uma fonte significativa do sustento do sitiante na região, que de fato exerce diversas atividades complementares, o que vim tentando mostrar ao leitor até aqui. A criminalização do extrativismo vegetal se confronta, portanto, com a falta de reconhecimento das instituições locais e com a importância cultural e econômica da pluriatividade camponesa, da parte da gestão ambiental dos órgãos oficiais. No Pirizal, há tempos o cipó é cortado pro gasto e se faz historicamente presente no cotidiano, seja no guajú carregando as ramas a serem plantadas (Fig. 3.7), seja na pesca, para captura de camarão e peixe, e mesmo em chapéus, em utensílios como no cabo de machados e facões, cercas, remendos. Os utensílios feitos a partir do cipó ainda estão presentes no cotidiano. Mas, apesar de perdurar por muitas décadas, ter um significado cultural bastante forte e reforçar o guajú, a habilidade de coletar e tecer aparece como coadjuvante na economia da casa e mesmo uma escolha produtiva de um 134 número cada vez menor de famílias; assim, está longe de ser a principal fonte de renda de cada casa. Vale ressaltar então que a arte de tecer com o cipó tem sido transformada por uma constelação de fatores em mais uma opção importante de compor renda. Cunha e Rougeulle (1989, citadas por ANDRIGUETTO FILHO, 1999) perceberam uma tendência generalizada de desintegração dessa atividade artesanal, em função do maior contato entre a economia litorânea e a produção mercantil atrelada à progressiva dependência de bens industriais. Por outro lado, o que se verificou na região da baía, de acordo com Valente (2009) e Ceccon-Valente (2009), é que a produção de artesanato com finalidade comercial tende a crescer e, no interior das famílias, pela sua fácil rotinização, tornou-se uma atividade exercida por todos os membros com tarefas distribuídas por gênero e idade, sendo que ao pai cabe a tarefa mais penosa e arriscada, de ir buscar o cipó na mata, em clandestinidade 53. Ou seja, a atividade acompanha as mudanças na vida no Sítio e ganhou um novo papel. 3.10 Velhas práticas e novos dilemas: a farinheira comunitária e os incentivos externos ao associativismo Além das farinheiras familiares, existe na comunidade a farinheira comunitária (Fig. 3.3, esquerda), que foi construída em 2000 pelo programa Paraná 12 Meses criado em colaboração entre os níveis municipal e estadual, mas executado pela Emater. No entanto, não houve engajamento dos sitiantes para a produção na farinheira comunitária e a mesma ficou fechada por alguns anos. Ao todo, o projeto construiu oito farinheiras comunitárias; contudo, como afirmam Komarcheski e Denardin (2010), na concepção e execução do projeto, não houve a consulta à comunidade local ou assessoria na gestão e organização da farinheira, o que gerou uma série de problemas como a inadequação dos equipamentos ao modo de produzir tradicional da comunidade e a monopolização da estrutura por um pequeno grupo. Recentemente, a manutenção do sistema de produção de farinha tem sido estimulada por instituições públicas que dialogam. Em duas situações diferentes de visita 53 A etapa do tecido em si não exige força física tampouco habilidades que uma criança não tenha. Num Sítio vizinho, por exemplo, a filha mais velha dos nativos que me receberam por dois dias em sua casa tece junto com os pais ao verem televisão, ou no quintal fora do horário da escola. 135 de campo participei da reunião do técnico da Emater com os sitiantes, na temporada de guajú em que eu estava presente e na vez seguinte, em que pude comparecer em uma reunião que esta equipe de extensionistas da UFPR Litoral do Projeto Farinheiras. As observações de campo, das duas reuniões e as entrevistas com os sitiantes, apontam que a despeito da atenção dada à proposta de adequação do processo de produção da farinha aos padrões sanitários, o que exigiria a criação de uma associação, poucas iniciativas práticas foram tomadas no sentido de formalizar as propostas, pelo menos da parte das famílias. Numa das noites da temporada de guajú, em que eu estava presente, houve uma reunião na escola convocada por dois técnicos da Emater, um deles que acompanha a comunidade há anos. O assunto era a lavoura de mandioca e a gestão da farinheira comunitária e estavam presentes vinte e três homens e mulheres no total (a maioria deles havia participado no guajú do dia), representando suas famílias, do Pirizal e de uma comunidade vizinha. No começo da reunião, o técnico do estado comentou conhecia bem as comunidades e que o Pirizal era a que mais tinha recebido assistência pública, como o Paraná 12 Meses e a reforma nas casas que colocou o banheiro interno, por exemplo. Ressaltou que os professores extensionistas da UFPR Litoral eram parceiros e não concorrentes. Na abertura da reunião, lançou a pergunta sobre como eles achavam que será o Pirizal no futuro, para o que os presentes foram somando respostas parecidas que se resumiram na ideia de que se tornará uma cidade, com muitas pessoas de fora, aspecto que eles mencionaram como ruim. Quando perguntados sobre o passado, surgiram elogios à Comfloresta e mencionaram também os benefícios da estrada e da luz elétrica. O técnico lembrou, sem entrar em detalhes, que existe um lado ruim, como já havia escutado dos nativos em forma de reclamação o fato de famílias terem perdido terras para a empresa. Rapidamente, o técnico falou da sua disposição em dar assistência técnica para agroecologia e mencionou técnicas de compostagem, a solução do adubo natural com folhagens, novos tipos de mandiocas mais resistentes para terra fraca, análise do solo para investigar o que tem no solo para se produzir mais mandioca no pouco terreno que se tem. Comentou que o pousio está acabando, por falta de terra. Essa foi sua introdução para o tema da necessidade de mais associativismo. Sua 136 fala buscou evidenciar a importância do compromisso dos comunitários com a proposta que seria criada. A reunião acabou sem nenhum encaminhamento prático. Segundo ele, projetos como o da farinheira comunitária, não dão certo porque “falta união”. Em seguida, reforçou sua sugestão de que a comunidade fizesse uma associação, mas informal, antes de regularizar no cartório, para não criar problemas burocráticos depois, caso as famílias desistam e abandonem a associação depois e assim evitar dívidas com taxas. Dona Madalena do Sítio vizinho lembrou que a outra professora extensionista que acompanha seu bairro já havia encaminhado a papelada e já havia registro da associação em cartório. O técnico completou que na região só havia uma associação formal, diante do estado, a dos bananicultores. Quando os presentes começaram a debater, Dona Inês e Cleiton criticaram a atitude de Seu Marco Rezende da ponta. Com sua farinheira doméstica a todo vapor, ele se animou com a ideia de obter o selo, para assim poder vender para novos compradores, mas não quer utilizar a farinheira comunitária para a produção, sendo que a sua está funcionando perfeitamente, com ajuda da esposa e da família de seus filhos. Dona Inês e Cleiton também comentaram que a farinheira comunitária não funciona de fato porque não há confiança e falta união. A oposição foi quase unânime e a proposta acabou inflando ainda mais o dilema em torno da cooperação, e nada tinha sido decidido até então. Dona Madalena completou que algumas pessoas de seu Sítio participavam daquela reunião no Pirizal, mas não farão parte da associação, uma vez que não tem nem mandioca tampouco farinheira para começarem (a associação criada lá com apoio de um grupo extensionista, mencionada anteriormente, era pra outra finalidade, para solucionar os conflitos e a regularização fundiária). Ela reclamou diante do técnico que não construíram farinheira no seu Sitio, ao que o técnico disse que mesmo se houvesse uma eles se paralisariam no mesmo problema de associação do Pirizal. Começou então um momento geral de descontração e piadas, em que no meio do burburinho que tomou o ambiente, com risadas por todos os lados, algum sitiante do Pirizal disse alto que, já que no bairro vizinho eles não tem nem roça nem mandioca, poderiam lhes vender a farinha. A reunião se encerrou e o mal estar com seu Marco, da ponta, era visível e foi sentido no guajú do dia seguinte, quando não se falava de outra coisa senão no dilema de se criar ou 137 não a associação. Eles teriam tempo para discutir isso, seja em âmbito familiar, de cada núcleo ou entre a maioria durante os guajus, pelo menos até as próximas reuniões com os extensionistas da farinheira. Em uma tarde de entrevistas, houve uma reunião que eu presenciei por acaso no mês seguinte, promovida por alunos de graduação e um professor, extensionistas do projeto da Farinheira. A equipe lhes explicava as possibilidades de mercado e benefícios coletivos de se obter o selo de qualidade e promoveram a indicação de nomes para a associação. Os extensionistas realizam o projeto “Reestruturação Produtiva de Farinheiras Comunitárias no Litoral do Paraná”, que tem como principal objetivo auxiliar as comunidades a reestruturar e a se organizar em torno de suas farinheiras comunitárias, que segundo os extensionistas estavam inativas por simples falta de gestão e coordenação entre os agricultores, para poderem gerir sua produção. De acordo com Komarcheski e Denardin (2010), no início do projeto, nenhuma das farinheiras ativas no Litoral do Paraná estava em condições de comercializar a farinha produzida no mercado formal, muita das estruturas são centenárias e em grande estado de precariedade, não atendendo as normas da vigilância sanitária; assim, o projeto visa 54 capacitar os agricultores e reestruturar três das oito farinheiras comunitárias do litoral que estão desativadas desde sua construção, colocando-as em funcionamento de acordo com as exigências burocráticas. A concessão do selo da ANVISA, certificando as condições sanitárias de produção da farinha, exige que a farinha vestida do selo tenha sido produzida na farinheira comunitária, obviamente. Tendo isso em vista, o suporte do projeto não foi apenas de assessoria jurídica e oficinas de capacitação organizativa. A farinheira foi reformada e novos equipamentos foram comprados, com o intuito de garantir as condições materiais de higiene e produtividade com vista à competitividade e acesso a mercados maiores. Além da competitividade vislumbrada, a iminência da intensificação da fiscalização 54 Nesse sentido, as ações de extensão foram propostas e organizadas em forma de metas: i) priorização de ações e busca de ações coletivas; ii) capacitar os agricultores sobre boas práticas de higiene, gestão e organização na farinheira; iii) identificar e implementar estratégias de comercialização para o produto; iv) processos agroecológicos nas propriedades e gestão de resíduos; e v) segurança e saúde no trabalho na agricultura. A metodologia utilizada pelo projeto é “participativa”, compreendendo: visitas às propriedades rurais; reuniões com as comunidades; oficinas de capacitação e mutirões para reformas nas casas de farinha. 138 sobre as farinheiras familiares e o risco de interdição do engenho devido às condições rústicas e higienicamente não padronizadas, é um fator relevante apresentado pelos extensionistas aos moradores, mostrando a necessidade de se adequarem às condições sanitárias impostas pelas agências do governo. Foi quando os sitiantes apresentaram as diferenças percebidas entre a produção nas farinheiras caseiras e na comunitária. Em resumo, mencionaram que, nesta última, além de ser mais nova, mais fácil de limpar e mais duradoura, economiza-se em tempo e em força de trabalho, e por conseguinte a produtividade aumenta a renda. Houve um debate em que foi problematizado que a formação do quadro da associação implica a acumulação de tarefas da parte dos que se dedicarem às funções organizacionais. Em outras palavras, não houve voluntarismo, pois os sitiantes argumentaram que as responsabilidades assumidas exigirão de quem aceita o cargo um esforço de dedicação à coletividade, enquanto os que não fizerem parte do quadro não terão que deixar suas tarefas profissionais, familiares e produtivas para servir ao grupo. Os presentes eram todos da vizinhança e a constituição do quadro da associação foi formado com resistência da parte dos sitiantes. A hesitação frente ao modelo de produção coletiva na farinheira comunitária era perceptível. A despeito do engajamento nas reuniões e dos esforços dos extensionistas, a maioria continua produzindo farinha nas farinheiras familiares. O processo de plantio de mandioca não cessa, as farinheiras caseiras estão em plena atividade, inclusive respondendo a uma determinada organização social que agrega a força de trabalho das famílias dos núcleos, em conjunto, que se dedicam ao trabalho na mesma fase de cada mês: na última semana. Todas as famílias produzem farinha, em um ritmo mais ou menos frequente, seja para o gasto seja para a venda. Os argumentos apresentados eram diversos e exprimiam posições críticas em relação aos custos individuais daqueles que assumissem cargos na gestão da farinheira comunitária. A partir da observação dessa reunião e também dos depoimentos, notou-se uma heterogeneidade de situações. Alguns não usam a farinheira comunitária porque não acreditam que será bem administrada por tanta gente. Outros porque fazem farinha só pro gasto e não dependem tanto da renda da farinha. Outros porque a farinheira familiar de que depende já rende uma quantidade produzida suficiente. Há também aqueles que 139 acreditam possuir uma boa freguesia nos mercados e aviários, mesmo sem o selo. Enfim, a adesão à farinheira comunitária não é unanimidade. Ao contrário, é bem controversa e suas implicações têm sido exaustivamente debatida entre os habitantes. Seu Cacá disse que vinte e dois sitiantes que produzem farinha demonstraram interesse na proposta de se produzir na farinheira coletiva, porém, na prática, apenas duas famílias dela se utilizam: a família do casal Fausto e Joana e do jovem casal Cleiton e Geraldina, em que os homens são funcionários da prefeitura. Estes, aliás, foram entrevistados duas vezes no mesmo dia no interior da farinheira comunitária, durante o processo intenso de produção, que acontece mensalmente. O casal afirmou que os equipamentos da farinheira comunitária propiciam uma melhora na produtividade, se comparada à farinheira da família. Além disso, como já mencionado, Cleiton comentou que existe um produtor de farinha de um Sítio vizinho que a adultera, adicionando uma farinha de qualidade inferior para ganhar um pouco mais, e vende aos mesmos compradores, mas oferecendo um preço mais barato, gerando uma concorrência desleal que inclusive ameaça o reconhecimento da boa farinha do litoral. Esse é o principal motivo pelo qual Cleiton se posiciona a favor da legalização da produção na farinheira comunitária: “Por que que isso aqui é bom legalizar? Porque a gente conhece esse cara que faz, daí ele não vai ter condições de ter uma fábrica assim legalizada. A gente tá legalizado e com o dinheiro de vender a farinha”. Essas duas famílias, de Cleiton e de Fausto, se não utilizarem a farinheira comunitária, podem utilizar as farinheiras de seu núcleo, que são respectivamente a de Dona Santina, mãe de Cleiton, e de Seu Gilberto Santos, sogro de Fausto, mas por conta da condição em que estão preferem a comunitária, disponível para eles durante o impasse acerca da associação. Apesar de a farinha comunitária estar em funcionamento, sendo utilizada por duas famílias pelo menos ao fim de cada mês, o processo burocrático para conseguir o selo até a última visita a campo estava parado. No contexto de falta de engajamento, Cleiton comentou que os moradores chegaram a essa etapa devido ao empurrão dado pela universidade e não se mostrou confiante na iniciativa dos sitiantes em levar o projeto da farinheira adiante. Seu Marco, pai dos pescadores profissionais da ponta, havia demonstrado querer 140 fazer parte da associação na reunião com a Emater e nas conversas que tivemos, mas suas condicionantes não agradaram às famílias da vizinhança. A oposição à proposta de Seu Marco, de produzir em seu engenho que é mais “rustico” e mesmo assim poder adquirir o rótulo coletivo indicando que a farinha foi realizada dentro de determinados padrões de qualidade, representa, além da autonomia dos núcleos, onde o pai da família é o elemento organizador, a importância da farinheira caseira para reafirmar essa autonomia. Os interesses na farinheira comunitária são diferenciados, pois a capacidade e a condição física da farinheira de cada núcleo e a dependência da venda da farinha como obtenção de renda também o são. A tensão que existe entre ponta e vizinhança também foi reforçada com a proposta de Seu Marco para aderir à farinheira comunitária, afinal, como organizar e negociar entre famílias com diferenças produtivas e projetos familiares delimitados a “fila” gerada com a centralização da produção na farinheira comunitária? Por mais eficiente que o projeto seja e ainda o valor comercial que o selo pode agregar, acumular as demandas de cada núcleo em um único espaço criaria um gargalo para se fazer o que cada família já faz com autonomia, distribuída e organizada em cada uma das seis farinheiras caseiras voltada a seus núcleos. A questão parece ser cada família submeter o seu calendário de produção, dentro de cada núcleo, às necessidades produtivas de todas as famílias centralizadas em um só engenho, o que exigiria uma reorganização do trabalho como ele já é feito. Isso mostra o quão forte é a lógica da hierarquia familiar e a afirmação da autonomia entre as famílias, que reforça a distinção intragrupal. Dona Inês foi clara na sua perspectiva, quando disse que “faz anos que faltam confiança e união”. O que justamente o projeto de extensão veio estimular era uma iniciativa coletivista capaz de superar a diferenciação interna, em nome do benefício coletivo que o selo da ANVISA poderia trazer aos sitiantes. As controvérsias e o posicionamento de cada família do Pirizal diante da criação de uma associação, necessária para se obter um selo de qualidade anexado ao produto, parece esbarrar em conflitos familiares e lógicas de organização produtiva que historicamente traduz a cultura local. Seu Chico não participou das reuniões, mas em sua entrevista comentou que embora não pretenda participar da associação (utiliza sua própria farinheira), existem pontos positivos. Para ele, a associação pode ser um potencial para a expansão da 141 comercialização, mas pode proporcionar principalmente o estabelecimento de uma organização que os represente diante do poder público municipal, como já fazem os produtores associados de Cubatão, de quem Seu Chico e Seu Marco falaram com admiração. Seu Chico comparam que no Cubatão as pessoas se organizam em grupo para levar suas demandas para o prefeito, de modo que a imagem que têm é de “um lugar forte, que tem futuro, um lugar de mais cosias. Agora lugar assim que nem o nosso, eles acham que é pequeno, eles acham que o povo não precisa, eles acham que o povo é bobo, e... pintam e bordam por causa disso, né? Mas no Cubatão não”. Acrescenta ainda que o Cubatão, especializado em banana, tem maquinário, outro diferencial, além da terra boa: “[...] primeiro eles trabalhavam com arroz, trabalhavam com aipim, também igual a nós por aqui. Só que lá a terra é o suficiente pra essas coisas, uma terra melhor. Agora aqui nem a banana dá". A condição de areião e baixa vocação agrícola do solo, aliada à pouca mobilização social e à assistência técnica inadequada ou insuficiente torna o Pirizal inferior em relação a Cubatão. Atento às transições institucionais e os novos espaços de negociação com o poder público, ele avalia que, individualmente, os moradores não têm força e que com a associação do Sítio podem conseguir apresentar suas demandas e serem atendidos, como já fazem os colonos do Cubatão. Cabe ressaltar que, de maneira geral, a presença da universidade foi associada à revitalização da farinheira, ou seja, os moradores reconheceram mudanças objetivas a partir do projeto de extensão. Já as agências técnicas do governo, como a Emater e os projetos e programas realizados junto à comunidade, não são mencionados quando se fala de lavoura ou da terra. As benfeitorias concretizadas no Sítio são lembradas através da figura pessoal que falava em nome da instituição que realizou alguma coisa em favor da comunidade, por meio de agências fomentadoras de projetos de extensão, ao longo do tempo. Apenas Seu Marco e Dona Dulce comentaram, de certo modo “avaliando” a assistência da Emater, contando que no passado a agência era mais presente, acompanhando de perto as atividades de pesca e lavoura e ajudando com materiais, e também como o órgão que assinava a aposentadoria na lavoura, tão difícil de conseguir. Hoje, o casal acredita que a atuação do órgão esteja desacreditada localmente por não 142 apresentar projetos contínuos. A Emater tem uma presença de longa data no Sítio, porém, a comparação da condição dos sitiantes com a grandeza da produção dos produtores de arroz do passado e de banana no presente associa um favorecimento da assistência do estado para os colonos. Além do aspecto da assistência técnica, os debates acompanhados nas reuniões e as entrevistas mostram que a associação parece ser uma exigência externa, uma solução de fora, que lhes é apresentada como meio necessário de se comunicar com determinados setores do estado. No entanto, os impasses e a diversificação dos projetos das famílias, inclusive as escolhas produtivas na pesca e no assalariamento que reduzem sua participação no circuito de entre ajuda, dificultam o associativismo. 3.11 A má distribuição e a lentidão na concessão de benfeitorias: mas não eram direitos? A velha política tradicional baseada na troca assimétrica de obrigações pessoais, na ausência de políticas de bem estar social e desenvolvimento, e onde lentamente se reconhecessem direitos sociais universais, é uma situação de dominação historicamente comum no meio rural como elemento básico da nossa formação social (SALES et al., 1994; REIS, 1995; SIGAUD, 1979a, 1979b). De modo semelhante, não é difícil de se imaginar a rotinização da prática de clientelismo no estuário, com promessas de melhorias comunitárias, considerando que mesmo no município da Guaratuba não é necessário um grande número de votos para se eleger um vereador 55, tendo a maioria sido eleita com cerca de 500 votos, como consta no site da própria câmara municipal de vereadores. O advento das eleições municipais para prefeito e vereador, no fluxo da abertura democrática, possibilitou de certo modo uma mudança da “roupagem” da dominação política e da relação de mando tradicional de muitos dos compadres, parentes mais poderosos, comerciantes e proprietários nativos do litoral, ou de seus filhos, que viraram políticos tradicionais, como é possível observar na lista de legislaturas e mandatos no site das câmaras ou da prefeituras dos municípios da região. 55 Cf. <http://www.camaraguaratuba.pr.gov.br/index.php/camara/os-vereadores>. Nesse sentido, a concorrência pelo voto dos eleitores de uma comunidade no porte do Pirizal, supondo que na sua totalidade votasse para um mesmo candidato, significaria quase 10% do eleitorado. 143 As entrevistas indicaram que a presença dos políticos profissionais é comum nas vilas rurais, lugares onde muitos deles nasceram e onde têm propriedades e fazendas, e mesmo onde mantêm roças de mandioca e outras lavouras até hoje. As elites econômicas e políticas locais cultivam a patronagem, a lealdade e a dependência de cada família e seu “apoio” ocupou o lugar de direitos inexistentes, na ausência de políticas universais de proteção e bem estar social e na falta de opções de mercado (REIS, 1995; SIGAUD, 1979a; 1979b). Uma das ocasiões em que o tema de eleições surgiu foi quando Seu Cacá mencionou as intrigas recentes com Wiliam, no Sítio e também no trabalho na estrada, quando a atual prefeita fez uma visita à região do estuário (“nem entrou no Sítio”, disseram) havia um mês, e conversou com os operários e seu supervisor. Wiliam, figura controversa e “encrenqueiro” do Sítio, teria constrangido quem dos operários que, segundo ele, não era eleitor da prefeita, o que gerou um desconforto e o receio de toda a família Fagundes passar a receber tratamento diferenciado e de ser prejudicado, por conta dos boatos acerca de sua preferência política. Como bem relatado por Teixeira (2004), Sonda (2002), Andriguetto (999) e Ferreira (2010), os governos consecutivos, sejam municipais sejam estaduais, não distribuíram os serviços às populações rurais em situações igualmente difíceis, o que se somou à chegada de medidas de controle ambiental restritivas, de modo que os obstáculos comuns ao meio rural paranaense se acumulam. Eu acrescentaria que tais obstáculos são sentidos e enfrentados de diferentes maneiras por cada grupo. Por exemplo, os sitiantes, nas entrevistas, veem sua própria constituição sócio espacial como um lugar da família, onde o guajú permanece, onde há ainda terra para o plantio. Na oportunidade de conversar com os sitiantes das outras vilas, com o técnico da Emater em reunião na escola, e nas teses de Andriguetto (1999) e Ferreira (2010), era lugar comum a afirmação de que as vilas vizinhas passam pelo processo de desmantelamento e êxodo, onde o guajú se enfraqueceu justamente porque as famílias perderam as terras e não conseguem se manter, onde as políticas públicas não chegam, as restrições ambientais são opressivas, à medida que aumenta a ocupação massiva por turistas e investidores de fora. A chegada das duas empresas madeireiras diferentes, incentivadas pelo estado, é 144 um dos fatores mais significaivos que reorganizou a estrutura fundiária da região e pressionou os Sítios e as famílias de forma diferenciada. Na entrevista coletiva com Seu Chico, Seu Gilberto e Fausto, no bar do primeiro, em um final de semana, perguntados sobre o funcionamento do guajú, os três comentam a falta de terrenos para roça nas outras comunidades e explicam que a área de uso comum ainda resiste no Pirizal como resultado dos laços familiares de reciprocidade atualizados pelo guajú. Quando perguntado se os moradores das vilas vizinhas participam do mutirão, Seu Chico respondeu que, no passado, até mesmo o roçado da terra que ocorre antes do plantio era realizado em conjunto entre famílias, o guajú de roçado, ao que Seu Gilberto completou que “É o único lugar que existe de fazer reunião de plantação, é aqui na comunidade. De resto, até ali, nós íamos lá ajudar eles lá e eles vem de lá ajudar nós aqui. Mas pra lá daquele lado cada qual faz por si”. Em seguida, perguntei se nos bairros imediatamente vizinhos têm roça para plantar mandioca e Seu Chico e Fausto responderam que existem muito poucas. Seu Gilberto completou dizendo que uma comunidade perdeu as terras porque, lá, as madeireiras haviam lhes tomado, além de que alguns posseiros as teriam vendido, a mesma história relatada pela liderança no Encontro do MICI e na APA. Seu Chico acrescentou com orgulho que “O único lugar que ficou com terra foi aqui, mas ainda por causa de briga”. O Sítio é apresentado por eles, mesmo que em outras palavras, como o lugar par excellence da permanência, persistência e resistência dos parentes, um grande diferencial entre os Sítios do estuário expresso pelo sentimento de familismo. Nesse sentido, por ser um dos menos remotos e dos mais coesos familiar e socialmente, o Pirizal foi retratado como privilegiado e assistido do ponto de vista de benfeitorias e apoios públicos continuados, em relação a seus vizinhos (menos, porém, em relação aos colonos, grandes proprietários e produtores, com funcionários e maquinário, ativos no CG e beneficiários de assistência técnica rural). Em seu conjunto as políticas, programas e projetos dirigidos parecem ter sido de fato diluídos “em conta gotas” ao longo de mais de duas décadas, mas foram vistos como um “favorecimento” na medida em que os recursos não foram distribuídos entre os Sítios, mas concentrados em poucos. A perversidade dessa visão é que os bens e serviços públicos mais fundamentais 145 deixaram de ser “direitos sociais” e passaram a significar “favores” concedidos pelas elites, seletivamente (REIS, 1995; SALES et al, 1994; TELLES, 2001). Dentre as benfeitorias existentes no Pirizal, realizadas pelos governos municipal e estadual, é possível citar num primeiro momento a chegada de geradores para fornecimento de energia elétrica e de motores para se puxar a água dos poços artesianos caseiros e bombeá-la até as caixas d'água, para algumas famílias. Mais tarde, depois dos anos 80, a rede se estendeu de maneira menos precária e generalizada. A eletricidade proporcionou a energia para a refrigeração de alimentos para quem tinha geladeira, iluminação da rua e a chegada da TV, presente hoje em praticamente todas as casas. Além disso, facilitou o árduo trabalho no engenho de farinha. Melina, que produz farinha junto com Seu Floriano, na farinheira compartilhada pelas famílias do núcleo, avalia a importância da eletricidade: MELINA: Só que antes era muito difícil, né. Pra fornear, pra ralar era no braço... Uma semana! Né, Seu Floriano? SEU FLORIANO: Essa farinha que eu fiz ontem de tarde, hoje e ontem depois pra fornear tudo, antes era três dias! Posteriormente, sucederam a instalação de um orelhão público, a perfuração do poço artesiano municipal56, bem como a melhoria da estrada criada pela firma e das moradias (reformas que as transformavam de madeira para alvenaria e construíam o banheiro para dentro da casa), sendo que algumas iniciativas estavam enquadradas em programas e projetos de parceria entre os governos municipal e estadual. Foram citados pelos moradores o Programa Paraná 12 Meses (PARANÁ, 2003) e os Projetos Baía 56 A comunidade dispõe dos serviços de luz elétrica, um telefone público e transporte escolar municipal diário, mas essa linha é exclusiva para estudantes e não leva moradores. Não há transporte público coletivo. O transporte particular de ônibus é oferecido por um morador da região duas vezes por semana (segunda e sexta, por R$10,00) até a rodovia estadual. O fornecimento de água até hoje se dá a partir de poços artesianos e não há abastecimento público de água. A prefeitura fez um poço grande que passa pela rua, mas existem poços artesianos em toda casas. Seu Cacá alertou que não se deve utilizar mais a água de poço devido a sua coloração amarela, o cheiro e o gosto fortes . Em conversa com o técnico extensionista da Emater que atua na região, em novembro na reunião da APA, foi informado que amostras da água do poço foram analisadas indicando que excesso de ferro e outras substâncias que em altas quantidades são nocivas à saúde. O extensionista acrescentou que, segundo orçamento, a aquisição de filtros para o poço sai cerca de cinco mil reais, mas o órgão não possui recurso e não existe previsão para a execução da obra. O esgoto é depositado em poço morto atrás de cada casa ou nas casas próximas ao banhado é lançado no rio por encanamento da fossa. Já o atendimento público de saúde acontece no posto de um bairro vizinho, mas para emergências os moradores têm que ir ou até Matinhos ou Paranaguá, tendo em vista que o município está sem hospital funcionando para emergências (como parto, infarto, trauma). A coleta de lixo é feita por um caminhão que passa uma vez por semana. 146 Limpa57 e Plantando Palmito, realizadas entre meados dos anos 80 e 2000. Portanto, as obras de infraestrutura e programas socioambientais foram implementados nas últimas três décadas. Já a escola rural é mais antiga, fundada há pelo menos três décadas (Dona Anadir, esposa de Seu Mario, já dava aula quando sua filha Dulce, hoje idosa, ainda era jovem). Cabe aqui abrir um pequeno parênteses sobre o quadro social de acesso à educação na comunidade. A escola oferece ensino fundamental multisseriado, onde estudam em torno de dez crianças, da própria comunidade e de outras vizinhas, e trabalham dois professores, uma zeladora e uma merendeira, todos moradores da ponta. Com referência ao grau de instrução formal, mesmo os mais velhos tiveram aula na escola da comunidade, que existe há mais de quatro décadas. Pela escola passaram todos os moradores, sendo que somente alguns concluíram os estudos. Há menos de cinco anos, o município disponibilizou gratuitamente ônibus escolar que atende às comunidades da região. A escolaridade dos moradores mais velhos não passa do ensino fundamental e apenas os mais jovens têm acessado o ensino médio, mas para isso precisam se deslocar até a sede do município, sendo necessário utilizar o ônibus escolar até o centro urbano de Guaratuba. A baixa escolaridade e qualificação profissional refletiu nas opções de empregos urbanos encontradas pelos nativos que se mudaram para a cidade que, como vimos, se restringem a trabalhos braçais, mesmo no funcionalismo público, ou são trabalhos temporários no verão relacionados aos serviços de apoio ao turismo. Talvez esses sujeitos estejam caminhando para caminhos semelhantes àqueles “Caiçaras” dos balneários urbanos paulistas a que me referi no início do estudo, em condições sociais precárias ou em situação de favelização. 57 “Baía Limpa” é o nome de um programa do Estado do Paraná que remunerava o pescador para exercer trabalho de coleta de lixo, em meio expediente durante três dias por semana, período em que não deveria pescar. A remuneração variava entre meio e um salário mínimo por mês, acrescido ou alternado com uma cesta básica (ANDRIGUETTO FILHO, 1999). 147 3.12 Assalariamento municipal, identidades produtivas híbridas e falta de acesso à cidadania O assalariamento é uma outra fonte de renda representativa entre os sitiantes e se apresentou como uma possibilidade de trabalho, há menos de duas décadas, apenas depois da abertra da estrada. O funcionalismo municipal faz parte da condição econômica de treze sitiantes, que ainda fazem as atividades tradicionais, e está distribuído por ocupações entre ponta e vizinhança. O assalariamento foi identificado como uma alternativa importante de se manter a família e incrementar a baixa renda possibilitada pelo agroextrativismo nas atividades tradicionais. Dona Acácia explica que os moradores das outras vilas, esvaziadas pelo êxodo e pouco esforçados, não ficavam sabendo ou não se interessavam em prestar concurso público para a prefeitura e os cargos para atividades pesadas e lugares remotos sobravam. Os funcionários da escola do Pirizal são todos nativos da ponta. Isso está relacionado com o fato de a administração da escola ter passado para o município. No passado, a escola do Pirizal era estadual e seu primeiro professor era um senhor de fora que se mudou para um terreno ao lado de seu local de trabalho com a família. Diante do isolamento dos bairros rurais do estuário, acessíveis somente de barco pelos rios, era comum que o professor se mudasse para a comunidade onde ia trabalhar, morando em uma casa ao lado da escola, na falta de sitiantes qualificados. Com a morte desse professor, dois de seus filhos permaneceram na comunidade, Donizete e Júlio Ferraz. O ofício passou então para a falecida esposa de Seu Mario Fagundes, professora pela rede estadual de ensino. Com a sua aposentadoria, foi substituída por sua única filha mulher, Dona Dulce Fagundes Rezende, também professora. Antes de dar aula no Pirizal, Dona Dulce deu aulas em outra comunidade (cujo acesso só se dava a remo por rio, até a abertura estradas), para onde se mudou com sua família em busca de emprego como professora. Como já visto em páginas anteriores, Dona Dulce explicou em sua entrevista que no final da década de 70, com o avanço da Comfloresta sobre a região, derrubando árvores, fazendo estradas e adquirindo áreas para o plantio de pinus, a pressão para que 148 os habitantes da região vendessem seus terrenos foi grande. O fluxo rumo às cidades próximas também. Esse cenário de ocupação não foi diferente no Sítio próximo para onde se mudaram Dona Dulce e sua família, onde moraram durante seis anos. O rápido processo de venda e desocupação esvaziou a comunidade e quando restou apenas uma família e a escola ficou com apenas um aluno, a escola foi fechada e Dona Dulce ficou sem emprego. Venderam a casa e o terreno com a roça que Seu Marco levantou e voltaram ao Pirizal, ocupando o terreno que era a herança deixada para Dona Rita. Já de volta, no começo dos anos 80, Dona Dulce trabalhou na escola com sua cunhada, esposa de seu irmão Pedro Fagundes, que atualmente mora em Guaratuba. Na mesma época em que assumiu as aulas na escola do Pirizal, agentes sanitários em combate à malária contrataram temporariamente seu marido Seu Marco Rezende como agente local de saúde, que foi treinado para aplicar o bombeamento de veneno contar o mosquito transmissor nas casas e acompanhar as datas de aplicação. O casal não deixou de pescar pro gasto ou trabalhar na lavoura da família, já que o salário era baixo. Atualmente, as aulas da escola do Pirizal estão sendo distribuídas entre outro filho de Dona Anadir, Seu Brasílio, e sua neta Paulina, ambos professores do ensino fundamental pela prefeitura. Outros moradores do Sítio trabalham na escola, na sua manutenção. Apesar de os empregos nas escolas se concentrarem na ponta, o maior número de moradores que são funcionários municipais moram na vizinhança; a maioria como operário ou peão. Na maior parte dos casos existe apenas um indivíduo da mesma família que trabalha na prefeitura. Existem apenas dois casais em que os dois são funcionários públicos: Lucélia e Brasílio, Cacá e Acácia. Geralmente, o outro cônjuge que não é assalariado reforça a renda familiar se dedicando mais intensamente às outras atividades que podem gerar renda. Melina e sua filha trabalham no único posto de saúde do interior da baía. Melina é enfermeira e sua filha trabalha no atendimento. Apenas sete moradores se aposentaram, num universo de doze moradores que têm mais de sessenta anos de idade. Os moradores adultos da comunidade, com maior ou menor intensidade e duração, trabalharam nas atividades de pesca, lavoura, extrativismo, no entanto, a aposentadoria se refere à apenas uma das atividades, ou seja, o tempo de trabalho nas outras atividades não conta oficialmente. 149 Os primos Seu Gilberto e Seu Chico da vizinhança se aposentaram em serviços gerais para obras da prefeitura. Seu Chico entrou na justiça para mudar o cargo em que se aposentou, pois ele explicou que trabalhou por muitos anos empregado como encarregado dos operários da estrada, no entanto, se aposentou com um valor bastante inferior para o cargo que exerceu. Na ponta, Seu Floriano se aposentou da Sanepar e Seu Dona Dulce se aposentou como professora, e seu filho caçula, portador de deficiência auditiva, Cláudio, que ajuda seu Marco Rezende na roça e é pensionista do governo e recebe um salário mínimo por mês. Seu Mario e seu genro Seu Marco Rezende também se aposentaram como lavradores. Seu Marco Rezende pretendia se aposentar como pescador, sua atividade principal, tendo pago inclusive os encargos da colônia de pesca, a regulamentação da situação como pescador profissional e de sua embarcação, entretanto, seu pedido foi negado em uma das instâncias e decidiu tentar se aposentar como lavrador, devido a empecilhos burocráticos. Sua esposa Dona Dulce conta que para Seu Marco poder se aposentar, houve uma burocracia bastante difícil e humilhante. Ele precisou de uma assinatura do INSS que às vezes exige perícia, e assinatura do técnico agrícola da Emater, que acompanha a comunidade há anos, e também muitas vezes é exigida a filiação ao Sindicato dos trabalhadores rurais de Guaratuba. Há outras pessoas que toda vida trabalharam na lavoura, seja do arroz seja de mandioca, que já passaram da idade de se aposentar (aos 55 anos é possível se aposentar como lavrador), contudo, devido a dificuldades no processo burocrático ou reprovação no exame de perícia, precisaram aguardar o andamento do pedido junto aos órgãos a que compete a entrada dos papéis ou mesmo desistiram do pedido de aposentadoria, vivendo da comercialização dos produtos em que trabalham no cultivo, coleta ou beneficiamento. Entre estes, estão pelo menos Júlio Ferraz, Dona Inês e sua cunhada Dona Rita, e Dona Helena esposa de Seu Gilberto Santos. Foi visível o descontentamento e o sentimento de impotência dos moradores diante da dificuldade de se conseguir o direito de aposentadoria. Alguns casos dramáticos foram relatados e chamaram atenção. Em especial, Dona Inês de cinquenta e sete anos, viúva, demonstrou grande frustração com o processo de aposentadoria, principalmente depois de ter contribuído 150 com o sindicato rural por quinze anos, e tem pagado o ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural) da propriedade, na condição jurídica de posseira58, sem escritura. Um outro caso marcante é o da Joana do Fausto, de cinquenta e dois anos, que trabalha na lavoura de mandioca, além de tecer com cipó e pescar para o gasto e eventualmente coletar caranguejo com o marido, e cuidar de duas filhas menores. Antes de atingir a idade de aposentadoria como lavradora, já desanimou de comprovar sua experiência e passou a pagar a colônia de pesca, pela qual lhe disseram que conseguiria se aposentar com a mesma idade, mas ainda não se aposentou. Os habitantes acima de seus 60 anos não deixam de trabalhar na lavoura na produção do aipim, preferindo no entanto as etapas que exigem menos esforço físico. O envelhecimento da força de trabalho é inclusive um fator que reforça a entre ajuda no plantio. A roça ainda é a principal fonte de renda e de sobrevivência de Dona Rita e Dona Inês. Embora seja uma atividade penosa, permite que os moradores trabalhem de forma autônoma. Dona Rita expressou sua preferência pelo trabalho na lavoura, em que ela “faz para si”, ao contrário do tempo em que ela era empregada na cidade. Por outro lado, a lavoura depende de fatores climáticos, do trabalho árduo, enquanto aqueles que têm emprego conseguem assegurar um salário regularmente, como ela afirma com ressentimento em relação aos jovens irmãos autônomos da pesca, da ponta. Na entrevista conjunta entre as cunhadas duas vezes elas demonstraram que percebem a dureza e a intensidade do trabalho na lavoura e na capina, que exige que o corpo fique “torto e encurvado“, obrigando-as a lidar com as dores no fim do dia, sem que possam contar com os filhos (os de Dona Inês são empregados em outro Sítio e o de Dona Rita vive na cidade). O desprestígio desse trabalho é visto também em relação ao que se ganha em troca, em comparação com os irmãos da pesca e os assalariados da prefeitura. Quem se nega a trabalhar na roça ou reclama é considerado “preguiçoso”, traço que Dona Dulce e sua nora Judite reconhecem como diferenciadores do trabalho do seu núcleo e o trabalho dos demais. Desta maneira, o assalariamento e o trabalho autônomo no turismo 58 Lei nº 10.406/2002 do código civil Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. As entrevistas indicaram que a maioria dos moradores do Pirizal é posseira, não possuindo o título de propriedade da terra. 151 classificam para elas as famílias mais esforçadas em relação àquelas mais preguiçosas, em uma distinção que reflete a relação da identidade do mundo do trabalho com a identidade do mundo do parentesco. Quanto à atividade pesqueira, os moradores da ponta procuram se manter regulamentados dentro do marco legal, possuem documentação profissional individual e de sua embarcação, pagam o RGP59 e pela filiação à colônia dos pescadores artesanais, que fornece documento que certifica o exercício da atividade. O cumprimento dessas exigências traz o benefício de se exercer a profissão de pescador profissional, sem ter problemas com a fiscalização. Além disso, em época de defeso, o pescador profissional pode recorrer ao seguro desemprego. Os jovens pescadores da ponta, filhos de Dona Dulce e Seu Marco Rezende, por trabalharem com a pesca esportiva, decidiram se regulamentar desde jovens. Dona Dulce contou que, para o cadastro e fiscalização, seus filhos precisam provar que pescam em dupla e ainda levam a batera de madeira que nem é mais utilizada. Ela deu exemplo de casos em que, para conseguir a licença, alguns nativos levam a batera em cima do barco a motor, mesmo sem funcionar, para comprovar que é pescador. Alguns chegam ainda a pagar cerca de R$ 200 para outro pescador, para conseguir demonstrar que pescam em dupla e assim cumprir uma exigência, quando na prática trabalham com o turismo de pesca de fato e pescam pro gasto como prática tradicional, como se a regulamentação da atividade não acompanhasse sua variedade e congelasse as possibilidades do prescador. Assim, a batera de madeira é mantida muitas vezes como forma de garantir o RGP e o seguro da pesca. No entanto, poucos de fato ainda vão para a água com embarcações de madeira, simples e sem motor. A maior parte das embarcações em uso é de alumínio, barcos/botes com motores de popa e centrais, pelos irmãos da ponta. Em meio aos depoimentos em tom de reclamação com relação aos empecilhos da burocracia para aquele que pretende se aposentar, foi possível perceber certa falta de legitimidade da Colônia de Pescadores entre os sitiantes que pescam. A dificuldade de se aposentar pela pesca inclui por obstáculos ao mesmo tempo políticos, relacionados a lideranças e a setores dos governos municipal e estadual, e excessivamente burocráticos, 59 RGP – Registro geral da pesca: o registro, que funciona como uma carteira profissional, é dado aos pescadores que não têm vínculo empregatício formal e não recebem nenhum tipo de benefício da Previdência. 152 ainda mais se levarmos em conta a distância dos escritórios locais e regionais onde se procede com a regulamentação e a exigência de documentos para a comprovação a atividade. Outra fonte de renda, cuja ocorrência não foi averiguada entre os moradores, foi o benefício de bolsas assistencialistas a exemplo do Bolsa Família. Dona Dulce mencionou que algumas famílias se utilizam do benefício, porém, essa informação não foi explorada nas entrevistas. A forma como o estado classifica e legitima algumas profissões do ponto de vista de direitos trabalhistas (e mais especificamente aqueles dirigidos ao trabalhador rural), seja na regulamentação das atividades seja na efetivação da aposentadoria, possui um efeito prático sobre os limites e as possibilidades do exercício dessas atividades pelos nativos, de modo que a validade dessas categorias no mundo jurídico formal parece influenciar em grande medida a forma como eles reconhecem entre eles mesmos as profissões, que se dividem em: pescador, lavrador, funcionário da prefeitura, professor e aposentado, uma forma de distribuir reconhecimento e autoridade entre eles. O fato de se possuir ou não um emprego formal parece ter importantes consequências sobre aspectos econômicos e culturais. Os funcionários da prefeitura não precisam viver ao gosto das oportunidades produtivas que aparecem, pois podem contar com uma renda garantida no fim do mês e, assim, o trabalho na lavoura, na produção de farinha, a coleta, o tecido e artesanato com cipó, a captura de camarão, tainha e a coleta do caranguejo, acabam se tornando atividades coadjuvantes que vão se intercalando com o trabalho externo60. Além disso, o trabalho como funcionário da prefeitura e a renda que ele proporciona possui um caráter marcadamente individualizado, no sentido de que não é organizado e realizado nos marcos das relações inter familiares de reciprocidade, não constitui tarefas exercidas no interior de um núcleo ou entre eles, tampouco o produto do 60 Foi possível notar que o cumprimento do tempo de trabalho como funcionários municipais, atendendo num posto de saúde local, dando aula ou trabalhando como zeladoras e merendeiras nas escolas ou como peões na estrada de chão, impede que estes moradores participem da continuidade de guajús, principalmente daqueles realizados durante os dias de semana. Seus respectivos cônjuges que não são funcionários públicos comparecem representando a família, nas situações em que não é possível comparecer. Tem se tornado comum que as reuniões de ajutório sejam marcadas no fim de semana, dias de descanso, pois são os dias que sobram disponíveis para aqueles que trabalham de segunda a sexta na estrada, na escola ou no postinho de saúde. 153 trabalho é revertido ou compartilhado para seus parentes na comunidade, esse “desencaixe” da esfera do trabalho formal em relação às outras muda os laços cooperativos e de sociabilidade. A disposição para se realizar o guajú, e se produzir farinha com os sogros, pais ou irmãos, ou mesmo sair para pescar pro gasto, se submete à rotina formal de um funcionário da prefeitura. Por outro lado, a longo prazo é possível dizer que o trabalho na prefeitura não exclui completamente o morador do trabalho na pesca e lavoura, pois de certa forma o trabalho externo garante a sustentabilidade do núcleo familiar em momentos críticos, como aqueles desfavoráveis para o plantio, pesca e comercialização. Uma questão interessante que não foi explorada nas entrevistas está relacionada com o assalariamento das mulheres, que pode ter implicações para o seu papel na hierarquia da família e no controle tradicional masculino. Há ainda o caso do trabalho informal com o tecido com cipó, que é realizado intensa e regularmente, com compradores certos para uma produção pré-agendada, por dezesseis pessoas da vizinhança e apenas por duas, na ponta: são, em sua maioria, casais. O casal da casa costuma trabalhar por meio da divisão da tarefa entre coleta e o tecido, e pelo menos um do casal recebe todo mês um provento como funcionário da prefeitura. A atividade não foi regulamentada no contexto da APA e acaba caindo na clandestinidade e, desta maneira, obviamente não contam para aposentadoria por ser uma prática informal. A racionalização que caracteriza a coleta e a fase de confecção com vistas ao mercado e a distância entre o processo de extração e transformação realizado pelos nativos e o mercado explorado pelo atravessador tiram qualquer possibilidade de prestígio do artesão responsável pelo tecido. Sua comercialização com os atravessadores que o revendem não traz ganhos significativos para a família, fazendo com que essa prática aparecesse sempre como coadjuvante. Por sua vez, a lavoura é considerada uma atividade transversal, comum a todos, que persiste no terreno, encarada como um complemento mais significativo do que o cipó. Os casos apresentados, de moradores que se dedicam tanto à pesca quanto à lavoura, e mesmo ao tecido, mas não conseguem o reconhecimento de nenhuma ou apenas de uma das atividades, demonstram o descaso por que passam frente às 154 instituições responsáveis, demasiadamente especializadas e setorializadas de maneira que sua estrutura jurídica não está adequada para alocar o quadro de diversificação de atividades materiais que permeia a realidade produtiva dos moradores do Pirizal. Sem emprego ou fonte de renda formal, buscam o direito à aposentadoria, depois de décadas se dedicando simultaneamente a múltiplas funções, com maior ou menor intensidade, como artesãos, pescadores, lavradores, produtores de farinha, em muitos casos lidando com atravessadores que exploram seu trabalho pagando-lhes muito abaixo do valor do mercado pelo produto do trabalho familiar. Os mecanismos de políticas públicas se mostram insuficientes e em alguns casos “cegos” às demandas fundamentais, como o não reconhecimento do direito à aposentadoria para atividades como a pequena agricultura e a pesca. A aposentadoria não é um direito facilmente acessível. Ao contrário, o tempo de trabalho dedicado a diversas atividades simultâneas, como a pesca e a lavoura ao longo da vida produtiva não garantiu a aposentadoria mesmo para aqueles que pagavam o sindicato de trabalhadores rurais ou a colônia de pesca. A burocracia envolvida no processo de pedido de aposentadoria foi relatado como desgastante e complicado, a ponto de terem acabado na desistência do processo. Mesmo ao abordá-los para as situações de entrevista enquanto estavam tecendo, fazendo farinha, carpindo, prevalecia na fala dos funcionários da prefeitura que essa última era sua atividade, sua identidade produtiva fundamental, uma vez que o tempo para as outras práticas tinha se reduzido e estas passaram a ser complementares. O fato de a identidade como funcionário da prefeitura aparecer com força, e ser considerada como a principal, senão a única que os conectava com a esfera pública e com a sociedade local, está intimamente relacionado com a marginalização social e econômica da pesca comercial, da lavoura e extrativismo pela sociedade envolvente; ao mesmo tempo parece ser produto da falta de reconhecimento do poder público e de remuneração mais justa dessas atividades, além da perda de importância e má remuneração do trabalho braçal entre as gerações mais novas. De maneira geral, trata-se do acesso precário à cidadania que resulta da falta de políticas de desenvolvimento social e de assistência técnica, de restrições ambientais, baixa competitividade dos produtos do trabalho no próprio território e a desvalorização 155 dos ofícios tradicionais (que lhes proporcionam autonomia nos processos produtivos, além de se referirem ao um saber fazer e a tecnologias de manejo com grande importância cultural). Esses fatores acabam favorecendo a preferência pela segurança do trabalho assalariado como principal fonte de renda. A distinção laboral entre as famílias está colocada e hierarquiza as identidades do trabalho identificadas, que parecem traduzir a maneira pela qual eles veem a si próprios, imbricada com a classificação de quem são os parentes, hierarquizados por exemplo entre tios, primos, irmãos e família, espacialmente organizados nos núcleos e ponta e vizinhança. Assim, se definem, a um só tempo e de forma complementar, pela identidade do parentesco e pela identidade do trabalho, que se entrecruzam. 3.13 Auto-consumo, as mudanças e a cidade O quadro atual de consumo de bens e consumo da cidade implica o declínio do auto consumo, progressivamente influenciado pelo turismo, pela cultura urbano industrial das cidades mais próximas, pelo aumento de renda e poder de compra, mas também de alguma forma atrelados ao pequeno comércio local. Esse quadro de mudanças culturais e econômicas não nega o fato de que os moradores sempre estiveram inseridos no sistema de mercado, participando do mercado de terras, do mercado de produtos, do mercado de trabalho e de bens culturais e simbólicos (ADAMS, 2000b; NEVES, 1985). Os relatos dos mais velhos mostraram que seus pais e avôs praticaram sistematicamente venda e compra de mercadorias, contudo as condições ecológicas, de infra estrutura, de mercado, e de sociabilidade eram diferentes. Até a chegada da energia elétrica e a abertura da estrada em meados dos anos 80, a vida no Pirizal era muito distinta do que é hoje. No passado, para se adquirir bateria, gás, alimento e vender farinha, a economia local orbitava em torno do centro de Guaratuba, acessado exclusivamente por barco. A “terra de areião é fraca” e não produz variedade pra subsistência, como culturas de milho e feijão, apesar de sempre ter havido muitos pés de banana, de laranja, de abacate e pequenas hortas. Os moradores iam a remo até Guaratuba pela baía, para vender a farinha, o arroz e comprar alimentos. Outra opção, além de ir às vendas da cidade de barco, era comprar 156 alimentos da venda, que hoje é um bar. Seu Chico, o dono dessa pequena venda, vendia as sacas de farinha produzida por sua família e comprava alimentos para repor sua mercearia, os quais revendia mais caros. Como foi mencionado antes, em momentos de crise econômica, os moradores não tinham dinheiro para lhe pagar, então ele lhes “vendia fiado” os mantimentos. O peixe foi um importante alimento na dieta dos habitantes, além de ser abundante e de fácil acesso. O pescado rendia o que comer por uma semana e até por um mês, dependendo da necessidade. Como não havia geladeira (não havia fornecimento de luz elétrica), as famílias armazenavam o peixe limpando, salgando e defumando-o pra guardar ou esperando ele murchar e secar e guardavam-no seco em um balaio. Os mais velhos contam que na sua infância não adiantava pescar mais do que a necessidade de consumo, pois não havia procura pra comercialização nem meios de armazenamento. A venda era esporádica e direta com o consumidor final, e o peixe era levado a remo até comunidades vizinhas ou na cidade. Outra fonte de alimento farta foi a caça de pequenos mamíferos como quati, tatu, capivara, veado, macaco. Comia-se muito, como ainda se faz hoje, o bijú, feito a partir do polvilho extraído na produção da farinha. A farofa de mandioca nunca lhes faltou à mesa. A água do arroz servia para fazer o pirão. O costume era de se preparar o peixe assado, e não frito. O sistema de auto consumo se diferenciava do sistema de venda no quesito quantidade: enquanto para autoconsumo não é necessário se acumular, pois se pega o necessário para do momento, no mercado passaram a armazenar grandes quantidades para atender às demandas dos consumidores dos produtos da pesca e da lavoura. Atualmente, poucos ainda pescam pro gasto e o peixe não está mais tão presente na dieta dos habitantes como permanecem a farinha e o bijú, derivados da mandioca. Ostras, mariscos e caranguejo também são consumidos, ainda que esporadicamente. A caça é constrangida pelos agentes ambientais, apesar de tradicionalmente apreciada. É possível árvores frutíferas ao redor de algumas casas. No serviço de refeições que Judite do Marcelo oferece aos visitantes, com exceção do peixe, arroz e feijão, os itens dos pratos como mandioca frita, legumes e verduras variados na salada, incluindo o palmito (existem muitos pés remanescentes, principalmente na ponta onde foi implantando o projeto dos viveiros, pelo governo), o suco de maracujá, são colhidos de 157 seu terreno. Mas a fonte principal de alimento progressivamente passa a ser os mercados e vendas da cidade, onde às sextas-feiras cada família vai fazer compras para abastecer a geladeira. Semanalmente o caminhão entrega de casa em casa as respectivas compras. Há também duas vendas pequenas onde é possível encontrar desde materiais de limpeza, biscoitos, bebidas alcoólicas, até artigos de perfumaria, além do botequim, que antes era a única venda da comunidade. Portanto, a cultura de auto consumir o pouco que se produzia, coletava, pescava, caçava vai paulatinamente cedendo lugar à preferência pelos produtos industrializados, principalmente no interior daquelas famílias assalariadas ou do ramo da pesca, que estão transformando seu padrão de consumo e tendo maior acesso ao comércio de bens e serviços e cultura urbana, induzidas pelos valores de consumo fomentados na televisão. O padrão de consumo de alimentos, automóvel, roupa, no entanto, passa a exigir novas despesas que por sua vez exigem mais trabalho. Mesmo morando na área rural de Guaratuba, seu modelo de consumo pode ser considerado parte da cultura urbana. Alguns moradores ainda insistem no pomar61, como Seu Brasílio e Seu Marco, Judite do Marcelo, Joana do Fausto, seu Chico, seu Floriano, que têm pés de maracujá, café, limão, abacate, abacaxi, palmito, e até uva em pequenas parreiras, entre outras. Alguns moradores com cafezais na propriedade inclusive fazem a torra do café para beber em casa. De alguns quintais, tiram as verduras e os legumes das hortas adubadas com restos de comida ou raspa da mandioca. A horta fica sob o cuidado da mulher: Lucélia, Suzana, Melina, Judite do Marcelo e Geraldina, mantém uma pequena horta no quintal da casa, perto da porta da cozinha, com variedades de couve e de alface, chuchu, abobrinha, com temperos e ervas medicinais. Mesmo assim, passou-se a comprar legumes e verduras dos supermercados de Guaratuba. A criação de animais como galinha, galo, ganso e peru é comum nos quintais das chácaras (Jailson, Marco Rezende, Cleiton, Floriano, Seu Chico, Brasílio), 61 Seu Chico e seu Gilberto, nativos mais velhos, percebem que o fim da banana e da laranja e da variedade arbórea que existia antigamente pode estar associado a problemas na terra, em especial à chegada do pinus, por tirar os nutrientes e a água do solo. Os moradores mostraram conhecer algumas consequências da presença massiva do pinus e de sua expansão desenfreada sobre o ambiente ecológico, que tende para a homogeneização da paisagem e redução da variedade biológica da região. 158 principalmente para se comer os ovos e eventualmente a carne da galinha e do perú. Brasílio, da ponta, ainda possui vacas, de onde tira somente o leite, pois não aprecia a carne; ele e seu irmão já tiveram cerca de uma dezena de cabeças de boi cada um e alguns porcos, mas os animais acabaram morrendo ou sendo abatidos em comemorações. Os responsáveis pela criação geralmente são os homens. As pequenas granjas de galinhas compradas por criadores de comunidades vizinhas e aviários e mantidas com milho e rações compradas, fornecem ovos e carne. Perus e patos também são criados. A extração de algumas madeiras62 foi mencionada, quando ainda havia mais áreas de floresta nativa. Havia uma família de fora, os Vasconcelos da Prainha (em Guaratuba), que cortava madeira usada para construir casas para a venda, prática comum em todo o litoral do estado. Outra aplicação da madeira derrubada era a construção da casa de abrigo (caxeta, canela, guanandi, urucurana etc.) do engenho manual de farinha e também estes eram feitos com peças inteiras de madeira, por artesãos locais que recebiam encomendas no passado. Nos dias de hoje, o corte da madeira passa por restrições ambientais. Como comentou Dona Dulce e Seu Chico, o Pirizal está desmatado e o mato que tem é mato cultivado, de modo que só se encontra madeira onde há capourão (capoeira alta com mais de uma década sem ser manejada), geralmente na área de banhado ou brejo, hoje sob fiscalização e proteção ambiental do Estado e abandonada por ser pouco interesse produtivamente depois do fim da lavoura do arroz. A manutenção das farinheiras com peças de madeira é complicada, já que por restrições ambientais não se pode derrubar árvores nem serrar madeiras tipicamente usadas, e nem mesmo serrarias aceitam encomendas, como contou Zeca, genro de um ex artesão local, já falecido. No que diz respeito à caça, ouviu-se muito pouco 63, por se tratar de uma atividade proibida por lei e sob forte fiscalização e penalização. Dois nativos mais velhos disseram que pararam de caçar há cinco ou seis anos. A atividade de caça, feita com arpão, 62 63 Seu Floriano mencionou sem mais detalhes que barcos de fora atracavam no porto para buscar dormente, madeira-de-lei e madeira para estrada de ferro. A pesquisadora que atua na região disse em comunicação pessoal que acredita que há uma demanda externa, de turistas de Santa Catarina, por carne de caça, o que tem fomentado essa prática com a finalidade comercial. De um lado, a proibição total da caça com a fiscalização e risco de denúncia e penalização desencorajou o manejo, mas não impediu o comércio clandestino e conflitos com a polícia ambiental, como foi observado na segunda reunião do MICI no Pirizal, em que uma moradora de um Sítio vizinho reclamou da truculência na abordagem da política ambiental que impedia mesmo aqueles que caçavam para subsistência. 159 armadilhas e cachorros, era revezada com a pesca pro auto consumo animal e só se voltava a caçar e a pescar quando acabava a carne em casa. Eles diferenciam a caça por quem é de fora e por quem mora “no Sítio”. Os últimos seriam os que deveriam poder caçar, já que caçam pro gasto, para comer em casa, e cuidam para não acabar o recurso, diferente dos turistas que, segundo eles, caçam clandestinamente à noite. Os depoimentos levam a crer que são conhecidas as normas que regulamentam a caça, principalmente as que dispõem acerca da proibição de se impedir a procriação, de se caçar à noite e de se caçar para fins comerciais. Entre os poucos que se permitiram desenvolver o assunto, notou-se uma posição clara em favor da modalidade que visa a subsistência daquele que caça. Duas mulheres, entrevistadas com seus maridos, quando perguntadas se achavam que havia ainda gente que precisava caçar, elas disseram que sim, pois há famílias nativas que não tem como plantar nem comprar, em bairros considerados mais empobrecidos. Disseram ser contra a caça praticada por pessoas de fora, que tem um caráter mais predatório. Ao mesmo tempo, os que se permitiam falar do assunto com mais naturalidade apresentavam o discurso de que a caça é uma atividade própria do local, e não se deve caçar a menos que a finalidade seja o consumo. O que foi possível perceber é que a caça faz parte da cultura chamada de Caiçara (ADAMS, 2002), mas sofre a pressão da censura ambiental e da queda na disponibilidade. A carne de animais silvestres, bastante apreciada, não parece ser mais um alimento central dieta no Pirizal como outrora, ainda mais com acesso aos mercados urbanos como alternativa alimentar, mas sim um costume e uma prática predominantemente masculina e coletiva (entre os chefes de família que saem juntos) que diminuiu drasticamente. Quanto ao palmito64, não realizei nenhuma pergunta direta. Somente Cleiton mencionou a extração do palmito e o assunto passou pela amizade entre seu tio Seu Chico Santos e o ex-prefeito Ananias. A amizade entre os dois há mais de duas décadas 64 Seu Cacá explica que no Pirizal o plantio de sementes do palmito foi incentivado em viveiros onde hoje fica uma das pousadas, na ponta. Há alguns anos os governos estadual e municipal apresentaram um projeto chamado por eles de poupança verde, cuja contrapartida da dedicação aos viveiros por um dia por semana, era uma cesta básica. Por conta da inaptidão do solo, eram trazidas sacas de terra preta e distribuíam-se sementes em pacotinhos. Com a mudança de governo, a proposta foi interrompida e as cestas básicas foram cortadas. 160 rendeu troca de oferta de trabalho para seus sobrinhos em sua antiga fábrica de palmito já desativada. Na época, a chegada da luz, do orelhão, da tobata foi favorecida por esse contato. Quanto às fábricas de beneficiamento do palmito aos dias de hoje, nada foi mencionado e naquele momento não parecia pertinente. 3.14 Os primeiros passos para a regularização fundiária: o que fazer diante de arranjos híbridos? Evidenciada no conjunto de narrativas, a disputa interfamiliar pelas áreas dos terrenos e das chácaras no Sítio, decorrente da sua diminuição, caminha junto com a necessidade de pluralização das atividades econômicas e com a restrição ao espólio, o que espelha o processo de reelaboração dos projetos familiares. Como já afirmado anteriormente, a situação fundiária geral dos sitiantes do Pirizal, e de grande parte dos moradores do entorno do estuário, é de posseiros que combinam arranjos coletivos e privados, e coexiste com outras formas de apropriação e uso da terra, formando assim um mosaico de regimes que vai se reajustando. Os conflitos fundiários nas áreas rurais no interior da APA foram problematizados como tema público apenas recentemente no CG, impulsionado principalmente pela atitude do grupo extensionista da UFPR Litoral de denunciar a abordagem violenta e ilícita da antiga Florestal Iguaçu na sua instalação nos arredores. A iniciativa contribuiu com o processo, ainda lento, de aproximação entre a gestão da UC e os moradores das áreas rurais, de que eu pude acompanhar alguns momentos importantes. Na penúltima reunião de 2010 e primeira de que eu participei, dois professores antigos da UFPR Litoral que pesquisam há anos a região e lideram grupos de pesquisa ali atuantes haviam sido convidados para contribuir com a discussão sobre a criação do Parque da Guarnicana. Os professores chamaram a atenção para as dificuldades de inserção e de participação das populações rurais e foi consenso que era necessário levantar mais informações (acadêmicas e, portanto, indiretas) sobre a área de uso da população agroextrativista do interior e entorno, para definir os contornos do novo parque. Mais tarde, no momento em que estavam sendo discutidos os encaminhamentos e projetos da Câmara Técnica (CT) de Agricultura com os empresários familiares da 161 associação de bananicultores, os gestores da APA lembraram que a “comunidade” (se referindo aos pequenos produtores do estuário) não se interessa e não procura participar dessa CT, apesar de reuniões e convites diretos terem sido feitos lá mesmo nas sedes das comunidades e mesmo depois que o almoço durante as reuniões, bem como a gasolina para o deslocamento de barco, passou a ser oferecido e garantido gratuitamente para os conselheiros de “comunidade”. Contra argumentando, os professores buscaram evidenciar a necessidade de haver uma comunicação mais eficaz entre a gestão e as comunidades e de se incentivar a partir o conselho a participação das comunidades, por meio do fortalecimento da organização comunitária e do associativismo, e justificaram que nas comunidades opera uma outra dinâmica de organização social, pessoalizada e familiar, e portanto estranha aos procedimentos do CG. Em seguida, uma representante dos bananicultores completou a fala dos professores argumentando que as comunidades “têm medo de se envolver”, desde que a APA foi apresentada “de forma errada”, como ela descreveu, para os moradores. O que a conselheira, agricultora da associação, se referiu como “forma errada” se tratava da ação fiscalizadora da Polícia Ambiental iniciada, segundo ela, uma década atrás, um braço importante da política de conservação e aquele que a maior parte da população rural não escolarizada, mais “isolada” e politicamente vulnerável, conheceu primeiro. Oficialmente, o representante comunitário a quem se reservava a cadeira de comunidades na cota da sociedade civil já com pouca assiduidade acabou desistindo da posição no conselho, em parte por conta da concorrência do evento com suas atividades produtivas, mas também por não ter encontrado interlocução e não acreditar na possibilidade de resolver suas demandas familiares e coletivas, ou seja, por ter perdido o interesse. Nesse dia, a ausência dos “representantes das comunidades” (como são chamadas as lideranças das vilas rurais, no conselho) e o posicionamento dos professores falando em nome do conjunto deles foram o primeiro indício de que a participação popular nas decisões referentes à gestão dessa UC, criada em 1992, é incipiente e frágil, em processo lento de construção. Como já comentado no início, na última reunião de 2010, em dezembro, a pauta incluía o “conflito fundiário nas comunidades do interior da APA”, e a liderança local dos sítios foi levado à reunião com seu irmão e uma vizinha, por uma professora 162 extensionista da UFPR Litoral que solicitou esta pauta junto à gestão da UC. A professora afirmou que eles querem se manter como lavradores, que somente “estão cipozeiros” no extrativismo vegetal, pois perderam acesso à terra devido ao cerco de pinus feito dentro da APA. Sua exposição em nome das famílias expropriadas dirigida ao conselho e convidados sublinhou o histórico de invisibilidade das comunidades rurais de posseiros, sem nenhuma documentação da terra, o lado mais vulnerável da disputa fundiária. A liderança fez um testemunho emocionado sobre o conflito e contou que hoje “a comunidade mora em cima da terra do doutor”, referindo-se a João Gava, atual dono das terras compradas da reflorestadora (antigamente pertencentes a Iguaçu/Faber Castel), que não quer que as famílias remanescentes fiquem lá. Por causa da ausência de título de propriedade, na condição de posseiros com baixa escolaridade, eles não têm pra onde ir para poder viver e trabalhar, já que eles dependem da terra. Recordando de como era o Sítio antes, quando “o trabalho era no braço e na enxada”, ele conta que era vendedor de farinha de mandioca, mas hoje não tem onde plantar, a ponto de ser necessário comprar alimentos no mercado; a dificuldade está em que justamente “só compra quem tem dinheiro”. A professora extensionista levou a público, por um ofício enviado de antemão ao conselho por e-mail, o fato de que as famílias descobriram que a Comfloresta tinha iniciado processos de pedido de usucapião há mais de dez anos no Fórum do município. O motivo que causou a reação da professora foi que a documentação apresentada pela empresa não é compatível com a área ambicionada por ela judicialmente, é conflituosa, uma vez que ameaça a ocupação tradicional dos sitiantes que vivem ali há gerações. No caso das áreas sob processo de usucapião, o protocolo jurídico diz que os sitiantes devem ser consultados; isso se dá por meio de publicação oficial, para que os interessados se manifestem, o que só acontece se tiverem acesso a jornais ou editais. Definitivamente este não é o caso dos sitiantes expropriados ou que ainda têm posses dentro dos domínios da empresa, em grande parte iletrados e apartados do universo dos direitos sociais. Diante do que foi denunciado, o técnico do ITCG esclareceu nessa mesma reunião que tanto as terras documentadas quanto as terras de posseiros “adquiridas” pela Comfloresta têm origem de sesmarias, hoje a maioria, terras devolutas, e que a matrícula da firma foi registrada em áreas três vezes maior: compraram mil alqueires, mas 163 mandaram medir resultando em um cálculo de três mil alqueires, o que torna a origem dos documentos da Comfloresta e da Iguaçu irregular, segundo ele. O técnico reconheceu assim que em decorrência de a empresa ter anunciado domínios maiores do que as áreas de fato compradas, a regularização se complica, e apontou a necessidade de se solicitar uma ação judicial para anular as matrículas com excesso de área, ressaltando a importância de continuar o processo de regularização. No entanto, ele comentou a dificuldade do papel do ITCG nessa questão fundiária, atrelado à mudança de governo, e sugeriu que os moradores se organizassem e pedissem para a empresa abrir mão da terra. Ele salientou também a dificuldade técnica de se obter um diagnóstico preciso da situação fundiária na região, devido à defasagem dos dados disponíveis que permitiriam identificar a quem pertence uma área e devido à falta de recursos econômicos e humanos para se completar o processo no Litoral, afinal ele é o único técnico disponível para todas as demandas regionais. A liderança comunitária tomou novamente a palavra e afirmou que no final da década de 70, além da presença ostensiva de jagunços, os advogados da madeireira enganavam os moradores, iletrados e “seduzidos” por uma quantia, ínfima, paga à vista, e pediam para eles assinarem papéis, mentindo sobre o conteúdo, de modo que hoje o usucapião esbarra nas assinaturas de contrato. Após essa reunião, sua comunidade assumiu a cadeira para a representação comunitária entre os conselheiros paritários da sociedade civil, com forte apoio do grupo de extensão. Nas reuniões seguintes, a cadeira das comunidades do estuário foi ocupada por Madalena, sua vizinha, e ele foi definido como seu suplente. A participação dos novos conselheiros nas reuniões seguintes foi flutuante. De fato, a composição de “cadeiras” e da paridade no conselho estava em constante reformulação e frequentemente ocupava a pauta das reuniões e discussões, pois muitos grupos faltavam e outros desistiam, como o primeiro representante comunitário, e novos setores demandam novas “cadeiras” de representação de setores específicos. Nessa ocasião, a proposta que surgiu para o ano seguinte seria de que os conselheiros e o técnico do ITCG assinassem um documento com pedido de urgência para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para iniciar o processo de regularização fundiária e, além disso, uma comissão para a regularização fundiária das comunidades do interior da baía foi criada para acompanhar o processo de 164 regularização fundiária, aprovada pelo conselho e constituída, entre outros, pela pesquisadora que frequenta o Pirizal (conselheira da APA por uma ONG conservacionista), pela professora extensionista e pelo representante do ITCG. A primeira reunião de 2011 aconteceu em abril e os interlocutores dos sitiantes, a pesquisadora e a liderança comunitária, não puderam comparecer, mas a professora extensionista acompanhou a reunião. O grande tema do dia foi a onda de chuvas fortes e os estragos, deslizamentos e desastres decorrentes, na área rural da APA. Outro tema discutido foi a aplicação do ICMS ecológico, com predominância na área urbana, quando a gestora pediu que fossem apresentados projetos para a aplicação também na área rural. O momento em que a reunião fugiu da linguagem protocolar e mais procedimental e burocrática voltada à gestão que caracteriza o conselho foi com uma narrativa informal e emocionada de um agricultor membro da associação dos bananicultores, bem parecido com a ocasião em que a professora extensionista solicitou espaço para o testemunho da liderança. Tratava-se de um episódio de truculência da polícia ambiental em sua propriedade, que mostrou que mesmo os produtores mais capitalizados e organizados, que acompanham a APA desde sua criação, estão sujeitos à forte fiscalização ambiental em busca de fábricas clandestinas de palmito. Ele não participa do conselho, mas decidiu levar a denúncia aos conselheiros, pois sua família se sentiu ultrajada com a abordagem agressiva e inadequada do oficial, uma vez que a família não estava violando nenhuma lei, reivindicando assim a diferença entre “bandido” (se referindo aos palmiteiros) e “trabalhador”. A professora extensionista se pronunciou em seguida, reforçando que a abordagem violenta da política ambiental é histórica e gera mais medo do que segurança nas famílias rurais. A memória dos conflitos agrários e da violência na fiscalização no interior da APA estava começando a ser reconstituída no âmbito das reuniões, com relatos fragmentados, mas incisivos no tom de denúncia, embora sem desdobramentos efetivos até então. Na reunião seguinte, em julho de 2011, duas ONGs bastante atuantes no litoral e parceiras do CG estavam presentes, a Mater Natura e o GIA, propondo capacitação dos conselheiros para a gestão. Nessa reunião também foi comentado o que havia sido discutido sobre a criação do Parque da Guarnicana, como uma ocasião importante para dar um passo em direção da regulamentação do manejo dos PFNM, mas até onde eu pude 165 acompanhar nenhum encaminhamento foi tomado sobre isso no conselho. A oficina de capacitação dos conselheiros foi realizada na reunião de agosto, mas eu não estive presente. Conforme as discussões posteriores e as atas, a comissão criada em dezembro de 2010, a princípio para acompanhar o processo de regularização fundiária, na oficina de capacitação dos conselheiros em agosto de 2011, decidiu-se em plenária que deveria ser também uma câmara técnica permanente que teria o nome de Câmara Técnica de Auxílio à Regularização Fundiária nas Comunidades do Interior da Baía de Guaratuba. Foi proposto então que o representante do ITCG fosse convidado para coordená-la, em conjunto com a professora extensionista e o técnico da Emater que trabalha junto às comunidades, entre outros conselheiros. As CT costumam se reunir fora do conselho e depois apresentam os resultados ou explicações sobre o andamento para o conselho. Essa CT foi aberta, mas o processo pouco progrediu tampouco apresentou resultados nas reuniões sucessivas a que eu assisti até o final de 2011. Mas em que medida esse processo se relaciona com a dinâmica social do Sítio? No Pirizal, os sitiantes entrevistados que falaram do tema demonstraram não saber o que se passava nas reuniões sucessivas do Conselho. O que se ouviu deles sobre a possibilidade de documentação oficial e regularização fundiária das posses foi que, depois do conflito judicial entre a filha de Fausto e Joana e os Vasconcelos, o desfecho judicialmente desfavorável assustou a Judite do Marcelo a ponto de ela chamar um advogado particular. Fausto disse que essa atitude da família seria perda de dinheiro, visto que “um advogado do governo” logo iria “legalizar” a situação de posse de todo o Sítio, em conjunto. Os entrevistados disseram que o técnico responsável pela regularização, designado de forma genérica como um técnico ora do IBAMA, ora do IAP, ora do ITCG, tinha sido chamado pela pesquisadora, e de fato o técnico acabou indo até o Sítio, quando realizou uma reunião explicando no que estava trabalhando, conversou com os sitiantes e lhes apresentou mapas oficiais e documentos públicos. Como explicou Seu Floriano, a situação do Pirizal é “inferior” em relação à condição dos colonos, e ao mesmo tempo se diferencia dos outros Sítios do estuário descritos por ele como “pequeninhos” e “muito pobres”, afinal no Pirizal há algumas casas “ajeitadinhas de alvenaria” e há alguns funcionários públicos, e por isso “o governo não dá [apoio]”. 166 Segundo a conversa com Seu Chico, Seu Gilberto e seu genro Fausto, o técnico lhes havia explicado que a demarcação das áreas deverá acontecer em duas etapas: de início, serão demarcadas as áreas das chácaras ou os quintais onde ficam suas casas, e, depois, farão a demarcação da área comum onde se planta a roça, os terrenos. Só que o Pirizal não seria uma prioridade em relação aos outros Sítios, por não ser “pobrezinho”, o que adormeceria o processo para suas famílias e lhes daria tempo para pensar coletivamente em como iam decidir fazer a demarcação, havendo duas opções. Primeiramente, a parte das chácaras seria documentada conforme se encontra delimitada pelo uso e ocupação das famílias nos dias atuais, o que os tiraria da condição de posseiros. Judite do Marcelo da ponta é a exceção que decidiu procurar um advogado particular e um agrimensor para a documentação da área de uso da sua família, que já está em andamento. Seu receio é que o resultado da sua iniciativa de legalizar sua chácara e o terreno com roças fosse subordinado à decisão coletiva, conforme os rumores que tinha escutado. A segunda parte, que gerou maior polêmica, se refere à regularização do terreno (áreas de uso comum reservado para a roça), reduzido segundo eles a menos de trinta hectares a serem fracionados entre mais de vinte famílias que cultivam a mandioca e produzem farinha para venda. O impasse sobre as vantagens e desvantagens de cada tipo de legalização, no caso da individualização ou no caso da manutenção do uso comum, dividiu as opiniões dentro do Sítio. Uma primeira opção seria legalizar coletivamente, levando em conta o histórico familiar de uso comum do espaço da roça, em que cada bola é escolhida e utilizada de forma rotativa, de acordo com as oportunidades da capoura crescida e disponibilizada, circuito que continuaria. Desta forma, a rotação do acesso condicionada pela disponibilidade da capoura se manteria, mas filhos e netos estariam impossibilitados de herdarem aquelas áreas pelo fato de que a área coletiva pertenceria a uma associação que precisaria ser montada para tal. A reunião com a equipe de extensão da farinheira já havia dado indícios de que eles não estavam propensos a criar uma associação. Outra possibilidade seria dividir o terreno equitativamente pelo número das famílias que possuem roças ativas, o que, espacialmente, seguiria a direção da chácara de cada morador. Entretanto, com essa opção, a legalização alteraria o atual sistema 167 apropriação da área de roça vigente na vizinhança, que é rotativo, coletivo e assimétrico. Para as famílias que ficassem alinhadas com áreas sobre-exploradas ou onde o banhado predomina esse tipo de distribuição pareceu desfavorável. A maioria das roças do núcleo de Seu Chico está em terrenos particulares fora do Sítio, mas como sua família tem uma ou outra bola ali (enquanto outras famílias possuem três ou quatro) ele se posiciona a favor da individualização do terreno, pois entraria na distribuição equitativa. Suas filhas que moram na cidade, de acordo com o acordo tradicional, pelo fato de terem se casado com pessoas de fora, não participarem da vida comunitária e não trabalharem a terra, em tese não teriam o direito à herança de uma parcela na área de uso comum. A única filha de Seu Chico que permaneceu no Pirizal, Conceição, casou-se com Nilton, nativo descendente dos Fagundes. Conceição é funcionária pública, mas não deixa de manter práticas produtivas diversificadas, inclusive a roça. Sua preocupação foi no sentido de poder garantir uma herança para as filhas que estão na cidade. Para ele, “cada qual com o seu parece bem”, mesmo reconhecendo que o trabalho acontece de forma coletiva sobre a terra. O dilema que Seu Chico apresentou foi que quando ele morrer, seus filhos que moram em Guaratuba não vão ter direito: “E pra nós fica ruim. Porque, como diz o ditado, nós morrendo os outros vão ser donos e meu filho que tá pra fora e quiser voltar pra cá, eu não sei onde ele vai viver. [...] E os filhos sempre têm aquela parte”. Assim, a questão de se cair com uma bola ruim ou uma bola com a terra mais produtiva não era importante. Argumentando que a escassez de terra forçou a sobre exploração de todo o terreno, Seu Chico sustenta que não faria diferença para o acesso das capouras se permanecer o sistema rotativo ou o sistema privado. Seu Chico vislumbra a possibilidade de garantir o sistema de herança, para as filhas que estão na cidade, por meio da alteração da instituição tradicional, já que no caso de sua família as regras antigas lhes são desfavoráveis. Falando desde a perspectiva familiar, ele vê a individualização das terras como uma proteção para quem vive na condição de posseiro e para o nativo que vive na cidade que pode decidir voltar, relembrando o episódio da “briga”, em que a vizinhança perdeu terreno para a Comfloresta e das disputas judiciais com pessoas de fora: 168 SEU CHICO: Pra nós vai ser bom, porque pelo menos ninguém vai entrar no nosso lugar e dizer como estavam fazendo. Porque aqui hoje tem pouco morador que mora aqui mesmo, e muitos moradores que moravam aqui, foram tudo embora. E hoje, depois que o lugar cresceu, vamos dizer, veio luz, tem estrada, cada casa tem sua televisão, melhorou nessa parte então eles querem voltar. E não tem mais o terreno, e é onde entrou a briga [...]. E estavam indo e pegando mesmo! Pegaram um Sítio ali e essa parte pra cá. Em seguida, perguntei-lhe se os moradores já haviam realizado a reunião entre si, a que ele respondeu “E então o povo decidiu que cada qual. [fica com uma parcela individual]. Foi por causa dessa parte de família”. Seu argumento aponta que se ele e sua esposa falecerem, suas filhas e netos da cidade, como a maioria do Sítio também tem filhos lá, não terão direito, ainda mais que não se conhece o futuro incerto de roubo, mortes, falta de emprego para todos na cidade onde “às vezes eles não têm nem onde sobreviver”. Assinala ainda que “Aqui passa de pai pra filho, de filho pra neto” onde se vive do que os antigos deixaram, e questiona como ficaria a situação daqueles que estão levando a vida na cidade. Assim, Seu Chico avalia positivamente a possibilidade de regularizar a posse dos terrenos (hoje a posse é coletiva e o uso, rotativo e familiar) tornando-os propriedade privada individual65 que possa ser introduzida no sistema de herança que já incide sobre a área individualizada das chácaras (posse individual). Sua fala mostra que ele está bastante atento à valorização dos imóveis e à especulação imobiliária e também à dificuldade de inserção das filhas mulheres no sistema de transmissão de terras. De outro lado, tendo em mente o monopólio de terreno que vem sendo exercido pela família de Seu Marco, Seu Gilberto discorda a modalidade privatista, a qual segundo ele mudaria o que tem sido realizado costumeiramente: SEU GILBERTO: Agora ninguém é dono, um planta aqui, o outro já planta ali. Eles querem repartir porque eles querem primeiro ver posse a posse. Primeiro vem a posse, primeiro eles tiram e depois vão medir a área que tem fora, pra cada qual ficar com seu pedacinho pra plantar. Às vezes eles moram aqui e vão plantar lá. E vai mexer lá perto do que o outro tem. Assim não dá confusão também. Diferente de seu primo Chico, o que Seu Gilberto nota é que nem sempre é 65 De maneira semelhante, de acordo com que já foi mostrado acima, Seu Cacá se mostrou incomodado com o avanço das propriedades adquiridas por "estranhos", principalmente naqueles terrenos vizinhos aos terrenos das famílias nativas. 169 possível se plantar perto de sua própria chácara, pois o sistema de ocupação é móvel. A distribuição de bolas favoráveis ou desfavoráveis depende da rotatividade, que por sua vez se subordina ao ciclo longo da mandioca conjugado com a temporada de guajús. Se um tipo de terreno for afixado para uma família, esta corre o risco de permanecer com uma bola desfavorável para a roça. Aparece nessa parte uma preocupação com um conflito identificado também na entrevista com sua filha, Joana do Fausto, em que não parentes reivindicam posses a que não têm direito. Em tom de crítica, ela explicou que a apropriação das bolas pelos sitiantes da vizinhança nem sempre “dá a sorte de cair” em uma boa capoura ao passo que o núcleo de Seu Marco tem monopolizado e fixado as bolas melhores, no terreno que está dentro do sistema comum, desviando da área de banhado, mantendo as capouras ao redor dos olhos d’água sob seu domínio e avançando sobre as capouras a que as outras famílias também têm direito (Fig. 2.1). Seu Gilberto entendeu que com um traçado arbitrário de individualização das roças, a distribuição vai criar mais conflitos, pois reordenará as terras com critérios que favorecerão alguns e desfavorecerão outros, mudando a ordem atual da gestão das roças. Dona Inês tem uma posição bem clara, parecida com a de Seu Gilberto. Como viúva, com filho pescador, trabalha na roça com sua cunhada, com quem cuida de quatro bolas simultâneas, com roças em estágios diferentes, plantadas geralmente onde “sobrar”. Sua casa fica na vizinhança, ao lado do banhado, de modo que fixar uma roça perto de sua casa a deixaria com um terreno em condições ruins para o plantio. Dona Rita se preocupa com os possíveis critérios de divisão de terra, na futura regularização fundiária: DONA INÊS: O técnico veio pra fazer uma reunião pra documentar as nossas propriedades. Aí eu disse pra ele “as nossas propriedades não”. Nós queremos documentar o terreno, porque a propriedade nossa ninguém vai vir de lá e invadir a nossa propriedade! Olha, pra falar a verdade isso [regularização fundiária] não influencia em nada pra mim. DONA RITA: Eu acho que não vai sair, porque o técnico andou um tempo com isso aí. Sabe por quê? Porque onde eles plantam é mais pra lá, e daí tem um mapinha lá, tem uma turma que planta tudo junto [famílias da ponta], um planta aqui e outro planta aqui [famílias da vizinhança]. E eu acho que é pouca terra pra fazer isso, porque no caso cada morador vai querer um pedaço, mas quem vai dividir a terra? No caso, o documento disso aí, porque por lá é tudo plantado, tudo é roça, quase que não tem terra. É pouca terra, então todo mundo já fez a roça. Se pegar um pedaço meu, se o documento cair um pedacinho pra mim e corta e fala “tó, isso aqui é seu”, tem a roça do outro e eu não posso 170 plantar! Até dois, três anos eu vou trabalhar no quê? Dona Rita chama atenção para o fato de que não há terras propícias para o plantio da mandioca para todas as famílias produtoras, o que eles de certa forma tentam compensar no sistema de rodízio atual, no qual a escassez de capouras e a extensão do banhado são distribuídas de acordo com regras decididas pelos núcleos familiares, que mesmo assim geram desentendimentos. A privatização de um terreno, para uso afixado, sobreporia as roças que cujas raízes ainda não foram cortadas. Assim, o novo proprietário não poderia utilizar logo seu terreno, pois teria que esperar o ciclo da mandioca, plantada por outra família. Seu Cacá parece compartilhar a mesma preocupação com os critérios de divisão dos terrenos, que “são de todo mundo”. Logo em seguida Seu Cacá explicou que concordava com proposta de cada um ter o que é seu, pois o controle é maior, porém, avaliou depois que alguns ficarão com uma área de banhado sobre a qual não é possível plantar mandioca, sem poder fazer alternância. Nesse sentido, concorda com seu cumpadre e cunhado Marco, que não concorda com a privatização, pois ele prefere deixar como está. A divisão proporcional das roças definida na direção das respectivas casas não lhe parece uma boa ideia, pois para as famílias da ponta restariam áreas alagadas que são impróprias para o plantio da mandioca. Nesse sentido, são a favor da mesma opinião de Seu Marco Rezende de se manter como está, de forma que podem escolher tais áreas que avançam para a vizinhança. Quando lhe perguntei se eles já haviam sentado juntos para cnversar sobre isso, seu Cacá disse que chegaram ao fim da reunião com as famílias da vizinhança, mais propensas à individualização. O processo recente de desterritorialização do Sítio, sobretudo como produto do conflito fundiário com a empresa privada de reflorestamento, significou a intensificação da pressão para a privatização das áreas, reforçada pela família de Seu Marco especializada na pesca turística e também como opção oficial oferecida às famílias pelo próprio estado no processo de regularização fundiária recentemente iniciado. A iminência da formalização do processo de regularização fundiária coloca em evidência as particularidades da institucionalidade local acerca das formas de uso e apropriação da terra, que combina regime privado e coletivo e vem sendo repensada pelos próprios sitiantes. As famílias se reuniram, discutiram entre si e pareceu um consenso que 171 a legalização das chácaras não é o maior dilema, uma vez que seus limites já estavam claros e consensuados para todos. As entrevistas indicaram que o dilema envolve a distribuição dos terrenos, escassos, e em condições produtivas heterogêneas, o que dificulta o critério de divisão entre todos. A propensão em aceitar a regularização dos terrenos da roça em novos moldes, legalizado como propriedade privada, aparece como o lado para onde a balança pesa, a despeito de alguns terem demonstrado o receio de acabar ficando com uma porção de terra ruim produtivamente; além de terem observado que será difícil a transição para a privatização, uma vez que o novo dono do terreno onde houver a roça de outra pessoa terá que esperar terminar o ciclo da mandioca, para começar a plantar a sua própria. E, assim, a distribuição das roças demorará para se reorganizar. No entanto, apesar das ressalvas, mostraram-se mais propensos a decidirem pela privatização das bolas, conforme defendeu Seu Chico, que possui uma posição de poder e influência na vizinhança, além de apresentar um argumento forte relacionado à crise do sistema de transmissão de terras que afeta quase todas as famílias, levado a cabo pela desterritorialização. O título individual se colocou como uma possibilidade como preservação dos direitos de roçado e de herança. Em mais esse momento de tomada de decisão importante para o Sítio como um todo, que apareceu nas entrevistas além da “briga”, a opinião de seu Chico aparece como representativa das vontades da vizinhança. De outro lado, existe um ponto delicado vinculado à opção de manter o uso comum, no contexto da regularização fundiária, a dificuldade de criar uma associação. Nas discussões sobre a farinheira comunitária, os sitiantes já haviam sinalizado a dificuldade de criar e manter uma nova associação para decisões coletivas e consensuadas, que também é um pré requisito para que a regularização dos terrenos ocorra conforme o regime coletivo atual, de ocupação rotativa. Essa questão torna ainda mais propensa a decisão coletiva pela privatização dos terrenos. O processo está apenas no começo e chega em um contexto de reconhecimento dos riscos de as roças sucumbirem à pressão do mercado de terras e também dos filhos que já não moram mais na comunidade ficarem sem herança. A tendência à privatização das áreas de uso comum responde à prioridade da manutenção do território da família, mas esbarra no problema de que o “bolo a ser dividido” está no território até então 172 reconhecido como coletivo. E não há uma perspectiva unificada de fato, pois cada família se insere de forma particular numa teia de relações de interdependência e cooperação no interior do Sítio e portanto se coloca em posições específicas no processo de decisão que fatalmente reorganiza relações. O que ocorreu foi a conversa, a discussão entre parentes, em que Seu Chico apresentou argumentos convincentes e definitivos que acionaram o cenário de dificuldades e os valores tradicionais relacionados à importância central da família e da terra como herança para os filhos, para a futura decisão coletiva quando o técnico do ITCG retomar o processo. Depois das polêmicas e especulações geradas, o advogado ainda não voltou à comunidade, até meu último dia em campo. Ele ficou de retornar para dar continuidade ao processo de regularização baseado nas decisões coletivas, depois das discussões que propôs que os moradores realizassem entre si. A pergunta acerca do que é melhor para a família vai coincidir com o que se define como bom para o Sítio até o limite em que a lógica coletiva não prejudique a lógica familiar. A lógica patrimonial e familiar se atualiza como o valor primordial que baliza as decisões em âmbito coletivo. Cada posicionamento diante da controvérsia nos mostra que o regime coletivo de apropriação da terra não é importante por si mesmo, ao contrário, está imerso nas relações de conflito e cooperação entre as famílias. Esse dilema, ainda sem um desfecho decisivo, permite entender que os terrenos são importantes não somente pelo retorno financeiro que garantem com a venda da farinha de mandioca, que como os próprios sitiantes assinalaram, é muito pouco perto do árduo trabalho dedicado. Para além da complementação de renda, os terrenos fazem parte de um mundo complexo de significados, que envolve interdependência e hierarquia expressas em uma variedade formas de organizar as atividades produtivas, organização social que busca atender os interesses da família. Assim, qualquer uma das opções propostas pelo órgão fundiério exigirá a adequação e a conformidade do sistema atualmente em uso para o sistema oficial, uma vez que não reconhecem o arranjo territorial híbrido do Pirizal (LITTLE, 2002; ALMEIDA, 2009). 173 3.15 O novo convite: o conflito mudou de nome? O conselho seguia com as pautas dos representantes presentes, frequentemente discutindo temas bem localizados em defesa de interesse de grupos específicos mais assíduos ou com discussões atreladas à viabilização da gestão interna do próprio conselho. Na reunião de outubro, foi discutida a redistribuição e criação de cadeiras para os conselheiros. Se em 2005 havia sido indicada a participação de um morador como representante das comunidades da baía, este apareceu em 2007 e desistiu em 2009, devido a dificuldades práticas de transporte, de linguagem e procedimentos durante as reuniões e ao convite impessoais por meio de ofícios e recados. Com efeito, a maneira como é conduzida a reunião, baseada em meios escritos e documentais, não favorece pessoas com baixa escolaridade, sendo que a sociabilidade dos Sítios funciona por meio de outras formas menos burocratizadas (FERREIRA, 2010). A liderança que havia participado de reuniões ao longo dos últimos meses substituiu o antigo representante, mas estava ausente na reunião de outubro. Sua falta foi justificada por extensionistas presentes que acompanham seu Sítio, dizendo que estava doente. Sua ausência foi encarada como desinteresse na participação por um conselheiro defendendo que não deveria ser criada uma cadeira nova para os Sítios onde viviam a liderança local, no caso, uma cadeira não governamental que implicaria na criação de uma governamental. A presidente do conselho e gestora da APA argumentou que a justificativa de conselheiros faltantes deve ser feita por escrito e com antecedência, senão os Sítios perdem a vaga. Outro estudante extensionista explicou que eles estão com dificuldade de transporte e que a comunicação por telefone é complicada, pois é necessário ligar e mandar recado, situação difícil por lá; para o que a presidente do conselho reforçou que já são dadas as condições de participação, como café da manhã e almoço, além de o ofício com a divulgação da reunião sair uma semana antes. Em seguida, outra funcionária do IAP no Litoral sugeriu que no início do ano seguinte seria o momento para rever às cadeiras e então chamar novos representantes. A pesquisadora que frequenta o Sítio, conselheira na cadeira de ONGs, concluiu então que o que faltava era oficializar o convite a um representante do Sítio. 174 Nesse dia também foi discutido a proposição da Comfloresta para alteração dos limites das zonas no plano de manejo, em processo de avaliação no interior da CT Florestal. A equipe montada estava tratando de uma vistoria conjunta e da análise de pareceres de professores, dizendo que o impacto do pinus é pouco intenso, pois a plantação existe há mais de três décadas. A equipe da CT ratificou a importância econômica do pinus para a região e achou coerente a proposta da empresa, defendendo que deve ser implantada a alteração de indicação de uso, e inserir o termo “reflorestamento” no documento. Foi quando uma funcionária do IAP de Curitiba levantou o debate sobre a diferença entre espécies exóticas e nativas e entre uma floresta que implica diversidade e uma monocultura florestal. O representante do município de Tijucas do Sul, que ora se apresenta como professor da UFPR ora fala diretamente em favor dos interesses da empresa, pediu que a votação ocorresse naquele mesmo dia, enquanto aquela representante do IAP ponderou que o pedido de revisão de limites da zona precisaria antes ser encaminhado para o IAP para avaliar o licenciamento, mesmo porque a votação não estava prevista na pauta do dia. Uma representante dos bananicultores se manifestou sobre o assunto dizendo que nem todos que atuam e moram na APA foram consultados no passado e quando ela descobriu que morava dentro de uma APA, não sabia o que podia e o que não podia. Para ela, é assim também com a briga da Comfloresta, pois “acima deles estão o ICMBio e IBAMA”. A funcionária do IAP no Litoral integrante da CT se posicionou e lembrou eu esse tema já havia sido discutido em campo e em outras reuniões, sobre o fato de que se trata de uma unidade de conservação de uso sustentável [e não restritiva] e que a bananicultura já existia, bem como outras atividades já existiam e que o zoneamento foi feito por dez consultores que lhe deixaram “muito ambiental”. Acrescentou que hoje existem definições diferentes, dentro da botânica, da faunística, da ecologia, mas que a função da APA é dar ordenamento territorial. Relata que eles tiveram “um grande ganho com essa CT e a base do conselho existir é de ser uma APA”. Assinala que [...] nós estamos sendo referência, a noticia é boa e o que a gente está fazendo é um exercício para todas as demais zonas de uso. Então na visão unilateral daquela época [“muito ambiental”], talvez outra visão fique de lado. Eu sempre gostei de trabalhar com o uso sustentável por causa disso. É melhor do que pegar um parque. 175 A Comfloresta tem participado assídua e ativamente das reuniões do conselho, espaço discursivo fundamental pelo qual seus advogados eloquentes, engenheiros com um arsenal de dados técnicos e apoiadores como professores da engenharia florestal da UFPR, em conjunto, têm pressionado as decisões dos conselheiros. Como vimos na dinâmica discursiva transcrita resumidamente acima, são também apoiados pela funcionária do IAP membro da CT Florestal, com formação acadêmica na área, que defende o uso sustentável e está otimista em relação ao exercício positivo dessa CT. Nessa importante fase política de vontade coletiva de construir o novo plano de manejo, a empresa tem buscado meios formais para consolidar e legitimar sua presença na região. Para lograr suas alterações no zoneamento, no próximo plano de manejo, no entanto, a empresa depende da legalização de sua ocupação por meio da regularização fundiária nessa zona da APA, que como vimos se desenvolve lentamente. Na última reunião de 2011, o parecer da CT Florestal foi para votação, cujo resultado foi em favor do pedido da Comfloresta de alteração de zonas de conservação no plano de manejo. A alteração vai ter implicações positivas aos negócios no futuro próximo. Porém, nesse processo da votação, um aspecto chamou atenção ao longo da reunião. O conselheiro que representa os Sítios de Guaratuba, idoso, pescador aposentado, analfabeto, votou em favor da proposta, mas “cochichando” com quem estava em sua mesa e por gestos admitiu que não entendeu o conteúdo daquilo para o que havia sido consultado e tinha votado a favor junto com a maioria. A gerente da APA, quando percebeu que a liderança não estava acompanhando as discussões técnicas, lhe entregou o documento transmitido antes por e-mail aos conselheiros, com uma longa explicação repleta de termos técnicos, esperando que finalmente o pescador entendesse. No final da votação e no fechamento da reunião os gestores e os representantes da empresa comemoraram a quase unanimidade e ainda comentaram que o consenso é uma conquista do conselho, que deve servir de modelo para todo o Paraná. Aqui não é difícil entender de que maneira e a qual tipo de segmento social um processo participativo e deliberativo pode, viciosamente, acabar beneficiando. Essa breve passagem pode dar uma ideia de como a pressão dos grupos organizados para terem suas agendas reafirmadas e referendadas no conselho é grande, ao passo que a articulação política de apoios torna alguns deles efetivamente representados, em detrimento da 176 participação tímida, mal articulada ou mesmo da ausência de outros segmentos sociais de que são exemplos as populações rurais. Logo após essa reunião do CG, no interim entre a última reunião do ano de 2011 e a primeira do ano seguinte, ocorreu minha última visita de campo no Sítio Pirizal, ainda em dezembro, quando eu e minha colega de doutorado acompanhamos a pesquisadora bióloga, que é também conselheira. Esta liderou uma reunião na farinheira comunitária para eleição de um representante dos interesses dos sitiantes para assumir uma cadeira no CG. Até então os sitiantes não demonstravam interesse em participar devido aos custos sociais, como perda do dia de trabalho, custos de locomoção, falta de credibilidade no conselho como instância participativa capaz de resolver seus conflitos e promover benefícios a eles, receio frente a um ambiente culturalmente diferente. Os argumentos levantados indicavam que eles não se viam como moradores de uma UC, mas como parentes que trabalhavam em atividades tradicionais. Depois de debates insistentes e resistências individuais, foi escolhida entre os presentes a Judite do Marcelo, inicialmente a seu contragosto, mas depois com sua curiosidade pelo que viria pela frente. Apenas recentemente ocorreram iniciativas concretas, mas ainda incipientes, de mobilização para a participação dos moradores no Conselho Gestor, principalmente impulsionada pela pesquisadora bióloga, quem mostrou se preocupar com a situação fundiária e a ausência da comunidade no CG. Em algumas situações a pesquisadora se apresentava nas reuniões como interlocutora das famílias, afirmando que quando ela voltasse a campo poderia levar as informações para as famílias. Na primeira reunião do ano de 2012, em abril, a pesquisadora fez a apresentação dos participantes da região do Pirizal, e apresentou a intenção de Judite de assumir a cadeira do Pirizal para participação junto ao conselho gestor da APA. Explicou que houve uma reunião no Sítio para a eleição e escolha de um representante, acrescentando uma explicação da composição do Conselho Gestor do número de cadeiras entre a sociedade civil e o estado. Como as questões da nova divisão paritária de cadeiras estava permeada de dúvidas, os membros da CT de Gestão se organizaram para marcar uma reunião para discutir a distribuição de cadeiras. Já terminada a pesquisa de campo, portanto, pode-se dizer que surgiu a possibilidade de participação do Pirizal no CG por meio da escolha de uma liderança que 177 os representará nessa instância. É possível entender que tanto a representação comunitária quanto a regularização fundiária são as duas principais temáticas que fizeram com que o CG incluísse na pauta os Sítios estuarinos de Guaratuba, sob pressão da pesquisadora e dos extensionistas da UFPR Litoral, como seus interlocutores principais. O ordenamento espacial dos usos dos bens naturais que consta no documento do plano de manejo da APA, elaborado em 2006, não contemplou as regras sociais internas aos Sítios quanto ao uso e manejo, ao contrário, impôs novas regras para cuja criação a população permanente não contribuiu e não legitimou, tornando-as muitas vezes clandestinas (OSTROM, 1990; FLÓREZ, 2008; HALL, TAYLOR, 2005; BECKER, 2008). O conselho gestor desta UC, partindo do pressuposto democrático, participacionista e deliberativo, é a próxima etapa lógica de possível inserção desses sujeitos na arena pública de negociação. Todavia, o que os dados coletados com a observação direta das reuniões e a leitura atenta das respectivas atas apontam é que ao longo das etapas de implantação, planejamento e gestão da APA, os moradores mais antigos e com menos poder de influência e menor representatividade não se enquadram ao padrão de participação política no Conselho (que pressupõe o associativismo voluntário). Ao mesmo tempo, é garantido o controle social sobre as decisões referentes à administração territorial dos recursos a outros grupos sociais com capital simbólico acumulado na defesa de seus interesses particulares, tornando o processo de tomada de decisão elitizado. A meu ver, os projetos territoriais e ambientais confrontantes revelam a oposição entre dois tipos básicos de importância atribuída ao território e aos recursos naturais, muito distintos. Para os sitiantes a terra faz parte do território dos parentes, inclusive gerido por eles com regras reformuladas por eles, e não pode ser privatizada; ao passo que para o segmento de reflorestamento e de bananicultura, por exemplo, a terra tem um valor de propriedade no mercado e corresponde ao marco fundiário oficial66. Esses dois modelos de apropriação da terra se tensionam e são representados pelos conselheiros no colegiado. Afinal, o espaço social da APA se constitui, desde a criação dessa UC, como um espaço social, racional de legitimação de posicionamentos em torno 66 Essa assimetria de projetos territoriais e das condições socais para legitimá-los de certa forma já foi abordada em Acselrad (2004); Guha, Martines-Alier (1997); Givant (2002); Little (2002); Ferreira (2001); Castro e colaboradores (2006); Jatobá (2009); Lobão (2006). 178 dos recursos naturais e do território, onde os segmentos que participam têm a liberdade distribuída para discutirem problemas particulares ao grupo que representam. Contudo, a capacidade de influência sobre o mecanismo de discussão e legitimação não é distribuído equitativamente. Ora, como vimos no exemplo da discussão da CT Florestal, no processo comunicativo ou dialógico vai prevalecer a validade do argumento melhor articulado entre aqueles que “já dominam as regras do jogo”. Como eu mesma, nem todos os participantes do CG acompanham de fato a discussão que se dá em um patamar técnico científico. A assimetria de posições produzida em conflitos consolidados antes mesmo da criação do CG não é levada em consideração (como já havia analisando ACSELRAD, 2004, analisando os conflitos ambientais contemporâneos), o que afeta a forma de se tratar e deliberar sobre os conflitos de interesses e definições acerca das regras de manejo, manifestados em um ambiente que funciona sob premissas “igualitárias”. O sitiante distante do conselho não se vê como “morador” de uma UC, sua identidade social é outra, não domina a linguagem das leis, não conhece o plano de manejo, passa por desvantagens estruturais. Isso ocorre porque o CG se apresenta como aberto à participação autônoma e efetiva da sociedade civil mas não é capaz de oferecer reais condições para que haja o nivelamento qualitativo na inclusão de parcelas sociais historicamente marginalizadas, em contraste com os segmentos mais politizados e familiarizados com a linguagem dos direitos e dos procedimentos burocráticos. Em uma região com baixa institucionalidade (SONDA, 2002; PIERRI et al., 2006), o CG da APA acaba sendo encarado como a instância institucional que parece concretizar a presença do estado democrático e da ordem social; um espaço social para onde convergem as demandas sociais que não foram adequadamente supridas com outras políticas a que cabiam. Ou seja, a política ambiental, em sua transversalidade e em seu caráter participacionista em um contexto de modernização pouco democrática como a do litoral, corre o risco de acumular papeis e atribuições, como uma grande panaceia para problemas de natureza diversa. Assim que, apesar de ter se democratizado, o modelo de funcionamento do CG permite visualizar, e mais do que isso, nas suas limitações acaba reproduzindo as assimetrias políticas e econômicas entre os agentes da disputa territirial/ambiental, observando-se uma tendência seletiva de participação que favoreceu 179 grupos mais organizados formalmente como as associações de bananicultores, empresa reflorestadora e ONGs, por exemplo. 180 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa se debruçou sobre o modo como as transformações sociais mais amplas do litoral paranaense das últimas cinco décadas afetaram a realidade da população local, inserindo-a em novas relações sociais e assim lhes exigindo novos arranjos de decisão. A questão no entanto não deve levar à ideia de que o Pirizal se manteve congelado, a-histórico, sem conflitos, antes do período estudado. Muita coisa tem mudado em âmbito local, especialmente nos últimos quarenta anos. Uma rede de eventos foi identificada por eles como alavancadora das mudanças internas recentes, “o antes e o depois”, a exemplo do estabelecimento das empresas reflorestadoras, a consequente abertura de vias terrestres e mais tarde a chegada da eletricidade. Foram identificados diferentes tipos de pressões que se impuseram. Localmente, podemos citar, restrições ambientais, dependência de atravessadores, redução do território de uso comum pela empresa de monocultivos com pinus, especulação imobiliária e pressão do mercado de terras, ausência de direitos sociais, falta de acesso à cidadania, falta de crédito e de políticas específicas. Internamente, os sitiantes se depararam com o estresse demográfico e a hiper fragmentação da terra por herança e a consequente dificuldade de garantir a sucessão do patrimônio familiar, ameaças aos pilares de uma ordem moral propriamente familista. As restrições e oportunidades que surgem no plano local derivam da aspiração familista/camponesa primordial, e os esforços de manter essa condição assumem o significado de resistência a pressões. Isso se traduz de diferentes maneiras e em diferentes sentidos, podendo ser representado pela opção de interditar o acesso à roça a homens de fora ou individualizando-a, buscar o assalariamento dos dois dentro do casal, ou de um e o outro complementando a renda com o cipó, dedicar-se à pesca e aos serviços turísticos ou ter filhos homens e mulheres emigrados como assalariados urbanos, por exemplo. Haveria ainda a situação daqueles que, mesmo sendo duramente atingidos pelas diferentes pressões impostas pela perda de terra e por serem viúvas e de fora, lhes resta poucas alternativas além de manter os costumes dos antigos. 181 A memória dos relatos dos sitiantes mostra um passado de casamentos e nascimentos endogâmicos, ao mesmo tempo em que já aconteciam casamentos com mulheres de fora. O controle sobre o patrimônio se submete à lógica hierárquica que exigiu a interdição da permanência feminina, possibilitando herdeiros preferenciais, homens. Desde os antigos o êxodo se mantém preferencialmente feminino. Do ponto de vista da sucessão masculina, na ponta, não há nenhum homem que tenha nascido fora do Sítio e não há mulheres solteiras, todas as mulheres são casadas e a maioria delas é de fora. Há somente uma mulher nativa, cujos filhos permaneceram na ponta e entre os quais dois são casados e três são solteiros e moram na casa dos pais. Na vizinhança o êxodo aconteceu mais distribuído do que na ponta, porém, teve maior implicação na saída preferencial de filhas moças e filhos jovens. Lá não se encontram moças solteiras e o único solteiro vive com sua mãe, viúva. Na vizinhança existem apenas três mulheres nativas, todas as outras são de fora, sendo que duas delas se casaram com homens de fora, ao contrário da ponta onde não há homens de fora. Quanto aos sistema de apropriação da terra, as famílias são posseiras e combinam o acesso comum ao acesso privado em arranjos híbridos, criados por instituições internas, sujeitas às disputas e reajustes familiares. Estes arranjos, a despeito de seu caráter hierárquico e desigual, ou justamente para reafirmá-lo, serviram para assegurar a terra como patrimônio comum. Atualmente, existe a tendência à privatização das chácaras (posses familiares) e dos terrenos. Um núcleo da ponta se expande por posses contínuas e concentradas que avançam sobre os terrenos na vizinhança. Ademais, com a comercialização de lotes para turistas sobretudo em áreas que perderam o valor de uso, como é o caso do banhado, os parentes como uma coletividade perderam o domínio do circuito de terras reduzindo seu “estoque” patrimonial, o que aumentou o conflito interno. Na vizinhança o domínio da terra se mantém fragmentado e distribuído para se sustentar a rotatividade e o uso comum dos terrenos e manter o circuito entre os parentes. A despeito do conflito interno, a persistência da área comum é uma peculiaridade do Pirizal se comparada à história de desterritorialização das comunidades vizinhas e possui um significado de resistência de que se orgulham. As práticas produtivas coexistem e se combinam conforme as famílias. O trabalho 182 na roça de mandioca e a produção de farinha são comuns a todas as famílias. O ciclo produtivo da mandioca e da farinha tem o aspecto fundamental de envolvimento familiar, e suas etapas baseadas no guajú podem ser entendidas como rituais de reafirmação do familismo. Na ponta as famílias tradicionalmente foram formadas no magistério e hoje se voltam ao trabalho na escola. Existem dois casais em que ambos marido e mulher são funcionários da prefeitura e, portanto, essa é a renda principal, sendo que que não se dedicam a outras atividades complementares, além da produção de farinha. Os pais dos três núcleos de descendentes na ponta são aposentados. Outra estratégia produtiva identificada foi a dedicação à pesca comercial e turística e aos serviços turísticos dela derivados. Por sua vez, metade das famílias da vizinhança é assalariada pela prefeitura e combina essa atividade com o extrativismo e tecido do cipó. Há duas viúvas de nativos, que vieram de fora e que hoje vivem basicamente de atividades nativas, portanto não são nem assalariadas tampouco trabalham com o turismo. O drama de se aposentar foi relatado principalmente por aquelas famílias que estão fora do universo dos direitos trabalhistas por viverem de atividades nativas, mas não só por elas. A dificuldade de reconhecimento das pluriatividades ilustra a distância dos sitiantes do mundo dos direitos e da cidadania. Ao contrário de significar uma “descampesinização” ou sua saída do Sítio ou perda da sua condição social, a ampliação do assalariamento e da oferta de serviços turísticos pelas famílias se tornaram meios importantes de garantir a permanência no lugar de vida, sociabilidade e trabalho. A identidade produtiva das famílias autônomas da pesca cria uma distinção entre estes e aqueles que “não prosperaram”, os assalariados pelo município e os que vivem das atividades nativas. As atividades nativas e o assalariamento, conjugadas com a centralidade do parentesco, são os elementos que dão sentido para organização social do Sítio. Além disso, por meio delas a autoridade no interior do Sítio é redistribuída entre os sucessores dos núcleos mais fortes da ponta e da vizinhança. A despeito de a contenda entre as famílias da ponta e da vizinhança ser antiga, representada por herdeiros que protagonizaram brigas marcantes na história do Sítio, as entrevistas reconstituíram um passado em que os guajús eram grandes, com festas exuberantes, chegando a envolver uma centena de pessoas nas trocas de favores e 183 trabalho, inseridas em um sistema de vicinalidade e familismo. De outro lado, em virtude das alternativas ao assalariamento e aos serviços turísticos as famílias da ponta têm sido impelidas a colaborarem mais restritamente com seu próprio núcleo ou família, em detrimento da troca de trabalho na extensão do Sítio e da vizinhança. Neste outro lado do Sítio, o ajutório tem se sustentado como modo de manter uma ordem hierárquica, laços familiares e abreviar o cansativo trabalho nas atividades nativas, que são conjugados com os empregos na prefeitura. As atividades nativas são mais significativamente distribuídas na vizinhança, onde o êxodo dos filhos também é maior, de modo que a interdependência e o ajutório envolvem mais famílias do que na ponta. A preservação da família e da sucessão por meio da solidariedade entre parentes e vizinhos se constituiu como uma resposta ao escasso fornecimento e bens e serviços públicos. A história do grupo, e o passado de penúria material e de ausência de políticas púbicas para além do assistencialismo, os levou ao aprendizado de que “o governo” e seus representantes são incapazes ou insuficientes para garantir a segurança e o bem-estar familiar e coletivo, o que os fez considerar as relações parentais, vicinais e patronais – no caso dos comerciantes e elites locais, como os esquemas morais válidos e predominantes na sua lógica de sociabilidade. A razão clientelista ocupou o lugar vazio de direitos e cidadania. No processo pouco democrático de modernização, os governos locais e os setores responsáveis pela proteção social de alguma forma lhes “deram atenção” ou os “atenderam” mesmo que limitadamente. Porém o Pirizal e os outros Sítios da região estuarina em questão não receberam contínua e efetivamente políticas que de fato os incentivassem à permanência rural. O que chegou até o Pirizal parecem ser iniciativas públicas fragmentadas e dispersas, assistencialistas em essência, na medida em que focam na melhoria de renda e de infra estrutura mínima, mas que estão sujeitas à flutuação de governos estaduais e municipais. Como beneficiários de projetos esparsos de extensão rural e outros programas estaduais e municipais voltados ao pequeno produtor rural, o que era um direito universal, e deveria ser distribuído aos outros Sítios equilibradamente, foi encarado como clientelismo e favores políticos, reproduzindo a dominação tradicional. Ao mesmo tempo, o ressentimento e o consequente descrédito em 184 relação aos deveres do “estado” se evidenciaram nos relatos sobre a falta de acesso a qualquer tipo de crédito, seja na lentidão do processo de regularização fundiária, mas principalmente nos obstáculos burocráticos para alcançar a aposentadoria ou para se conseguir autorizações ambientais para as atividades de subsistência. De maneira geral, o agente ambiental que conheceram primeiro foi o policiamento ambiental. Embora as entrevistas tenham mostrado que os moradores conhecem grande parte dos regulamentos formais que incidem sobre suas práticas de exploração dos recursos naturais a mera existência da lei e os mecanismos de controle e penalização em determinados casos não parecem ser suficientes para frear as atividade criolas. As regras se subordinam às prioridades para a sustentabilidade familiar no território. Em consequência do controle ambiental estatal, imposto de cima para baixo sobre a realidade estuarina, os sitiantes se tornam paulatinamente clandestinos e “desviantes” ambientais. As agências ambientais parecem ser “entidades” bastante distantes da realidade dos sitiantes, que não se entendem como moradores da APA. Alguns relatos avaliam essa interferência, permeada por ambiguidades, no sentido de que ora se apresentam como obstáculo ao seu modo de vida ora servem de freio para a exploração de atores sociais extra locais sobre a região que também pressionam seu território (pesca esportiva, caça predatória, dragagem das margens no banhado, etc.). Multam grandes investidores e proprietários também. De modo geral, ficou evidente a falta de legitimidade da política ambiental além do fato de que os moradores não sabiam distinguir os órgãos ambientais e suas atribuições específicas e apenas recentemente, motivados por pesquisadores que atuam na região, têm considerado participar do CG da APA. Atualmente as pautas do CG são frequentemente elaboradas durante as assembleias atendendo às demandas dos membros assíduos, de modo que não encontra a viabilidade burocrática de problematizar e gerenciar a diversidade de conflitos entre distintos projetos territoriais ali representados. Entende-se que a mera disponibilização do espaço social da APA não garante necessariamente chances equilibradas de incorporação dos segmentos sociais na arena pública, quando há uma multiplicidade de segmentos com diferentes culturas políticas e graus de familiaridade com procedimentos burocráticos. Nesse sentido, esperar a iniciativa e o voluntarismo dos sitiantes para a participação é deixar elites políticas e econômicas tradicionais “colonizarem” esse espaço social, de 185 caráter anunciadamente “público”, reproduzindo e reforçando a desigualdade social e os conflitos na região. A demanda externa pelo enfrentamento das pressões sentidas no plano local chega na forma do incentivo ao associativismo, o qual lhes assedia por todas as partes, haja visto o convite do movimento social, a interlocução com a professora extensionista e da liderança do Sítio vizinho, a proposta do projeto de extensão da farinheira comunitária, a reunião com o técnico do ITCG para a regularização fundiária, a reunião com o técnico extensionista da Emater, atores institucionais que corroboram a necessidade de se criar uma associação oficial, e também a iniciativa da pesquisadora bióloga de reuní-los para escolherem um representante para o CG. Nessas circunstâncias, até onde eu pude observar, o que as famílias ponderaram diante das propostas de associativismo são os esforços pessoais e a distribuição desigual de tarefas (representantes e representados) exigidos pela iniciativa associativa. Isso porque, além dos dilemas internos derivados dos conflitos entre os parentes, as famílias se organizam de um modo diferente, dentro de outros esquemas morais, descrentes da lógica burocrática, impessoalizada e procedimental dos novos espaços a que estão sendo convidadas, e historicamente alheias ao mundo dos direitos sociais. Estabelecida como uma relação duradoura e de confiança, a presença de extensionistas rurais e acadêmicos se deu no sentido de ajudar a construir uma identidade oriunda do mundo econômico, do trabalho rural, em políticas públicas que estimulam o associativismo para viabilizar a agroindústria e o acesso à cidadania. O associativismo e o empreendedorismo social nos moldes oficiais têm sido apresentados como necessários no contexto de transição, de vazio de assistência pública, em direção à participação em espaços públicos, como meio de ingressar mais dignamente na economia regional. Porém, a proposta esbarra nas disputas e desconfianças internas ao Sítio. Por sua vez, a conduta territorial impositiva e violenta da reflorestadora no passado, descrita pelos sitiantes, mostra como se consolidou a assimetria na relação de dominação e de autoridade dos seus representantes na interação com os sitiantes. A empresa expropriou e explorou economicamente a população local, logo depois de alguns anos de estagnação e simplificação produtiva, abrindo-lhes, com as estradas, novas possibilidades, o que torna sua imagem controversa e contraditória. Como uma ironia 186 perversa, a empresa possui ao mesmo tempo papeis de aliada e de “tomadora de terras”. É possível dizer que a sociação dos sitiantes com os atores extralocais não se apresenta na forma de lutas permanentes ou públicas ou no embate com um mesmo antagonista bem delineado, o que não significa que a dominação e a exploração deixam de existir. Estas parecem diluídas cada vez mais no anonimato e na impessoalidade com novos grupos sociais, em que se conformam pressões de diversas naturezas, como vimos tentando mostrar. Diante desses aspectos levantados, buscou-se contribuir com o conjunto de pesquisas sobre o litoral paranaense no sentido de entender suas complexidades e contradições sociais, em um período de intensas transformações de diversas naturezas, multicausais (econômica, política, cultural). O presente estudo buscou, portanto, encontrar dois tipos de respostas articuladas entre si. Por um lado, buscou-se recompor os mecanismos sócio históricos do processo de mudanças ocorrido no litoral paranaense, nas últimas décadas; localizar, descrever e analisar um conjunto de variáveis, já mencionadas, na formação social do Pirizal, a fim de demonstrar que essas mudanças correspondem ao plano das indagações e dos objetivos da presente pesquisa, cuja metodologia busca traduzir essa adequação entre o quadro analítico proposto e o conjunto de elementos empíricos elencados para a demonstração da questão condutora da pesquisa. Por outro lado, o elenco dos elementos reunidos, como resultado do processo investigativo, só cobra sentido sociológico se confrontado com a devida exposição de um marco teórico plural, capaz de garantir um panorama interpretativo para os fenômenos sociais aqui abordados. Daí que foi realizada a leitura de algumas das principais teorias que problematizam categorias e conceitos das teorias sociais, especialmente aquelas que buscam ir além da sociologia rural tradicional e que tratam de ampliar o debate em torno do “campesinato”, articulando-o com outras teorias mais recentes sobre “conflito”, “institucionalismo”, “bens comuns”, “territorialidades” e outras ainda, buscando superar a discussão clássica do fim do campesinato, conforme leituras marcadas pelo economicismo e outros fatores determinantes (urbanização, transformação dos processos de trabalho capitalista, etc.). Nessa pesquisa empírica, não se pretendeu se aproximar da definição de uma nova 187 condição do campesinato, mesmo porque nossa pesquisa não daria conta de tamanha complexidade, não só pela dificuldade teórica inerente a um tal exercício, mas sobretudo pela representatividade de nosso estudo de caso, um a mais no quadro geral da grande transformação das novas ruralidades no contexto atual das sociedades. Da mesma forma, não teve a pretensão de validar ou invalidar as teorias expostas, pois para isso seria necessário entre outras cosias proceder a estudos onde os elementos de realidade combinassem diferentes situações espaciais, temporais, com um número de casos empíricos mais amplos. Assim, embora não fosse o objetivo principal testar o grau de eficácia dessas teorias para melhor entender e interpretar o que vem ocorrendo nas mudanças observadas com esses atores rurais híbridos do Pirizal, não poderíamos deixar de estabelecer algum tipo de consideração sobre o efeito de algumas dessas teorias, apresentadas no capítulo inicial da dissertação, bem como indagar sobre o maior ou menor grau de poder explicativo que algumas delas possas exercer com maior convencimento, mais do que outras. A realidade do Pirizal, internamente bastante diferenciada, não apresenta uma inclinação linear e exclusiva para uma ou outra das duas tendências apresentadas, mas, ao contrário, aponta para um quadro complexo e híbrido de transformações que combina múltiplas possibildiades, em termos dessas explicações teóricas encontradas. As famílias do Pirizal resistem às pressões de diferentes formas, impelidos a elaborarem alternatividades para permanência no território em curto e a longo prazo. Deste modo, a distinção de estratégias familiares foi entendida aqui justamente como um modo de resistência. 188 REFERÊNCIAS ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142010000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 25 ago. 2011. ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: ACSELRAD, Henri. (org) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2004. p. 13-36. ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: pesquisa científica versus planejamento e gestão ambiental. São Paulo: ANNABLUME/FAPESP, 2000a. 337 p. ADAMS, Cristina. As populações Caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, v. 43, n. 1, p. 145-182, 2000b. ADAMS, Cristina. 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