http://museudevora.imc-ip.pt 03 SETEMBRO 2008 CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora Os artigos são da responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião do Museu de Évora. A utilização integral ou parcial dos textos do boletim deve ser sempre acompanhada pela citação do nome dos autores, título dos textos e a referência à essa publicação on-line. Editor Joaquim Oliveira Caetano periodicidade semestral Museu de Évora Largo Conde de Vila Flor 7000-804 Évora TLF 266 702 604 E-mail: [email protected] aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora ÍNDICE Memória descritiva do assalto, entrada e saque da Cidade de Évora pelos franceses, em 1808 | Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas | Introdução e transcrição de António Francisco Barata (1887) | apresentação de Celso Mangucci Introdução ao estudo do Presépio do Museu de Évora | Alexandre Pais Estudo, conservação e restauro do presépio do Museu de Évora | Ana Andrade e Conceição Ribeiro Análises dos materiais e técnicas do presépio do Museu de Évora | Ana Pereira Francisco da Silva, António de Oliveira Bernardes e Francisco Lopes Mendes na Igreja da Misericórdia em Évora | Celso Mangucci A colecção de armas do Museu de Évora | Ulrico Falcão Galamba Catálogo da colecção de fósseis do Museu de Évora | Anabela Perpétuo CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página http://museudevora.imc-ip.pt ESTUDO, CONSERVAÇÃO E RESTAURO DO PRESÉPIO DO MUSEU DE ÉVORA Ana Andrade e Conceição Ribeiro INTRODUÇÃO Este estudo resulta do trabalho de conservação e restauro efectuado num presépio de conchas, pertencente ao Museu de Évora. A análise material dos aspectos mais significativos, para a compreensão das técnicas de produção artística envolvidas, foi efectuada pelas conservadoras-restauradoras Ana Pereira e Ana Andrade, nos laboratórios do departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova de Lisboa, cuja disponibilização agradecemos ao Professor Doutor Fernando Pina. O trabalho de conservação desenvolvido foi de grande complexidade, não só pela particularidade e diversidade material, mas sobretudo, pelas inúmeras intervenções que a peça apresentava. Este facto, sob o prisma da devolução do objecto a um estado mais próximo do original, conduziu a significativas reformulações, trabalho que exigiu a pareceria com historiadores da arte. Neste sentido, foi de grande relevância a orientação prestada pelo Director do Museu Évora, Dr. Joaquim Oliveira Caetano e ainda, o contributo do Dr. Alexandre Pais para a definição da configuração das figuras, bem como, para o entendimento da tipologia de presépios com conchas. O trabalho de conservação e restauro contou, ainda, com a valiosa colaboração das conservadoras-restauradoras Ana Lourenço e Sílvia Marques, e do colega João Paulo Gil. O recurso à utilização de materiais menos nobres na arte presépista nacional é muito comum. Podem ser observados mesmo em obras de maior monumentalidade e erudição, como nos Presépios da Estrela e da Madre de Deus, em Lisboa, invariavelmente na execução do torrão1, com o emprego de cortiça, barro, fibras vegetais, têxteis, contas de vidro, lantejoulas, papel, tecido, etc. Este facto poderá estar relacionado não só com o carácter efémero das primeiras representações da Natividade, que inicialmente constituíam composições destinadas apenas ao período natalício, mas também com a tentativa de imprimir realismo à encenação pelo recurso ao emprego de substâncias locais. Já a utilização de materiais marinhos, como a de conchas e de búzios, na decoração de Natividades, parece afastar-se desta realidade para antes recriar, através de um gosto pela naturália, exuberantes e fantásticos ambientes palacianos. Não poderemos, contudo, deixar de estabelecer um paralelo desta prática, com a da decoração de pequenos oratórios flamengos, designados por Jardins Clos, datados do século XVI, onde se observam, para além, de motivos florais elaborados em papel, também, aplicação directa de materiais retirados da natureza, como sementes e flores secas [De Nijn, s/d]. CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora O gosto pela arte decorativa miniatural com conchas, que parece ter florescido um pouco por toda a Europa a partir de meados do século XVIII, terá provavelmente bebido as suas influências primeiras às decorações embrechadas das casas de fresco da renascença italiana. São composições que baseiam o seu deslumbre não tanto pela originalidade e erudição mas, antes, pela simplicidade dos materiais empregues, engenho e minuciosidade do trabalho. De carácter profano, são vários os objectos executados com conchas, búzios e por vezes corais, que vão desde centros de mesa com exuberantes arranjos florais, a composições bidimensionais, que formam quadros com paisagens e faustosas arquitecturas palacianas. laustradas, colunas, complexos e delicados arranjos florais. Desdobram-se, ainda, numa grande multiplicidade compositiva que tira partido das cores, polimento e cintilações naturais desses materiais marinhos, criando jogos cromáticos em tons de rosa, branco e nacarados. A cor, surge também aplicada no realce das superfícies das conchas, em pequenos apontamentos, sob a forma de velaturas vermelhas e amarelas. Foram, ainda, aplicados outros materiais tais como papel, recortado em forma de folhas, lã, como que a simular ramalhetes de ervas, e outras substâncias que revestem as superfícies como areias ou conchas trituradas, palhetas de vidro e partículas metálicas douradas. DESCRIÇÃO As figuras do presépio são de barro cozido policromo, à excepção do Menino e dos querubins que são de cera pigmentada. Revelam épocas de execução diferente. Este facto é visível não só do ponto de vista material e técnico mas, também, do ponto de vista estético. São ainda de escala muito variáveis, articulando-se com alguma dificuldade numa lógica de conjunto. Posicionam-se na cenografia arquitectónica, fundamentalmente, em dois andares. A cena da Natividade encontra-se em primeiro plano, sob o vão central de três arcadas que abrigam, também, mas em planos laterais mais recuados, uma lavadeira e um casal de namorados. Esta estrutura de arcadas sustenta uma ampla varanda, à qual se acede nas extremidades por duas longas escadarias, repartindo-se por patamares, onde se situam figuras isoladas de pastores. A varanda acolhe o restante e numeroso grupo figurativo, composto por camponeses, pastores, um soldado e uma Glória de anjos. O presépio do Museu de Évora é de médias dimensões e está inserido numa maquineta quase que portátil, não fosse ter como particularidade no seu interior, o frágil e exuberante trabalho decorativo de conchas e búzios. Estes compõem e revestem as superfícies de uma arquitectura palaciana, em cartão prensado, numa singular e minuciosa composição ornamental que lembram a uma escala miniatural as decorações embrechadas das casas de fresco. Constituem ba- A maquineta de madeira ou móvel, no qual se insere o conjunto é de caixa pouco profunda e revestida no painel fundeiro por um espelho, criando a ilusão de espaços exteriores. É actualmente aberta e apresenta como cobertura um imponente sobrecéu. Este forma um baldaquino tronco-piramidal, numa arrojada ornamentação entalhada, talvez numa linguagem de um barroco tardio. É constituída por um equilibrado jogo de simetrias, entre, volumosas volutas, pequenos Cremos que este tipo de composições ornamentais possam ter servido de modelo à construção e decoração de cenários de presépios, como é o caso do existente nas Instituto dos Museus e da Conservação (IPCR/ IJF) ou do que aparece numa fotografia de num boletim impresso sobre Presépios de Évora (Rosas, 1929). Ou mesmo, terem sido aproveitados e adaptados para recriarem cenas Natividades, como provavelmente aconteceu com o do Museu de Évora. A atribuição destes presépios, embora sem fontes que o comprovem, está frequentemente relacionada com o trabalho freirático, feminino, talvez pela intemporalidade e delicadeza que requerem, que nos transporta para um universo conventual. CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora filetes e delicados enrolamentos de acanto, com bordaduras que formam os remates laterais e os pés, onde assenta o conjunto. As superfícies são douradas, com zonas brunidas e outras matizadas pela aplicação de velaturas alaranjadas. Apresenta, também, uma decoração translúcida verde de imitação de jaspeados, nos frisos de remate da caixa e ao centro da cobertura. MATERIAIS E TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO Maquineta A maquineta é um móvel pouco profundo, construído por pranchas e blocos maciços de madeira, com assemblagens simples, coladas e fixas com pregos. Não foi efectuada a identificação científica da madeira, contudo trata-se de uma folhosa, dada a ausência acentuada entre os anéis de crescimento de Primavera e Outono. A homogeneidade de veio, densidade, e a cor avermelhada do lenho, embora as fibras se encontrem impregnada por restos de uma cor castanha, aplicada numa intervenção anterior, parece remeter a madeira para uma espécie subtropical, da família dos mognos (Swietenia). A estrutura da maquineta do ponto de vista técnico é pouco estável. Resume-se a uma pesada cobertura, formada por vários elementos maciços entalhados, e uma base ou chão, adossados a um fundo constituído por duas pranchas de espessura reduzida. Este fundo, revestido por espelho, está recortado reproduzindo nos seus contornos os frisos de talha aplicados pela frente. O conjunto assenta em quatro pés entalhados, o que lhe reduz a estabilidade, tendo em conta o 1. Presépio. Portugal, segunda metade do século XVIII. ME 950/1-4 Registo fotográfico antes da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora peso da volumosa cobertura. Pela frente, observam-se marcações e cavilhas, provavelmente para a colocação de vidros de fecho à maquineta. Cremos que esses vidros estivessem colocados numa armação fixa, formada por filetes de madeira dourados que seriam presos nos ressaltos existentes com pregos, existindo vestígios dessa furação. Esta hipótese parece resolver também o problema da descarga de forças da cúpula que passaria a ter o sistema de fecho, como apoio. É curioso observar, na parte de trás da maquineta, a marca das goivas que desbastaram as pranchas e constatar que nesse momento já estariam unidas. O tratamento policromo das superfícies entalhadas denuncia um apurado conhecimento das técnicas de aplicação de folhas metálicas, bem como, de velaturas na imitação de materiais. O douramento a têmpera2 abrange praticamente toda a superfície, com brilhos matizados pela aplicação de velaturas amareladas, que na sua origem seriam certamente de maior intensidade. Embora não tendo sido analisadas, sabemos serem os corantes amarelos de grande sensibilidade fotoquímica, como o açafrão, curcuma ou ainda outros, extraídos substâncias orgânicas3. A delimitar a “boca de cena” do oratório e na cúpula existe uma jaspeado verde, de intenso brilho, obtido pela conjugação de folha de prata revestida por velaturas verdes, efectuadas com camadas espessas de resinato de cobre, sobre folha metálica. A sua constituição é à base de pigmento de verdigris, dissolvido em resina com uma parte de óleo. análise em corte estratigráfico terem sido aplicadas entre as duas camadas de resinato de cobre, outras duas de um verniz oleoso. Foi ainda determinado que a folha de prata terá sido aplicada sobre uma superfície se bolus4 ocre, embora com uma técnica oleosa (mordente). O preparo é de sulfato de cálcio hemi-hidratado (gesso) aglutinado com uma cola animal5. Revestimento decorativo do interior da maquineta No interior da maquineta, a arquitectura palaciana de dois andares (arcadas, varanda, duas escadarias, muretes, volutas, etc.) foi executada em cartão prensado, impregnado com um adesivo que, ao secar, torna o cartão rígido. Este cartão tem várias espessuras, que podem ir até aos dois milímetros, sendo o mais grosso usado nos elementos estruturais de suporte, e os mais finos usados em elementos decorativos, como as volutas laterais e as volutas e cartelas que pendem da cobertura. Toda esta arquitectura foi minuciosamente decorada com conchas marinhas, e, embora para a sua correcta identificação seja necessária a presença do molusco que a produz, foi possível por comparação detectar conchas de proveniência da zona de confluência do Oceano Atlântico, com o Mar Mediterrâneo6. As conchas, de dimensões que variam entre 2. Painel ornamentado com conchas, do século XVIII, que se encontra em Devon, na casa museu “A la Ronde” (Ingrid, 2007) Esta técnica encontra, talvez, as suas raízes na policromia de retábulos flamengos do século. XVI, na imitação de veludos e de pequenas incrustações de pedras semi-preciosas. Contudo, não é comum a sua execução em grandes áreas, como a verificada na peça em estudo, devido à dificuldade de obtenção de uma camada homogénea. Para, talvez, minimizar esse problema verificou-se pela CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora 5 e 35 milímetros, constituem balaustradas, colunas, complexos e delicados arranjos florais, desdobrados numa grande multiplicidade compositiva que tira partido das cores, polimento e cintilações naturais desses materiais marinhos, criando jogos cromáticos em tons de rosa, branco, nacarado, e violeta. Estes materiais foram aplicados intactos, recortados, ou triturados. Nesse último caso, foram polvilhados, revestindo os planos de fundo. O trabalho de recorte das conchas é bastante significativo e revela uma aturada execução, com a recolha prévia, a selecção e o tratamento individual do material. Foram recortadas sobretudo as conchas rosa (telinas), as conchas de interior violeta (donax), e as nacaradas. Estas últimas foram dispostas em sequência, formando grinaldas, enquanto as donax se encontram fixas sobre a arquitectura a formar flores ou folhas. As telinas rosa são as conchas que apresentam maior variedade de recortes, desde a forma de meia-lua, a pétalas de vários tamanhos, e a finos rectângulos. Estes últimos foram usados para delimitar formas arquitectónicas, como volutas, muretes, e degraus, e para constituir as grades das janelas do piso inferior. As conchas rosa recortadas em pétala formam vários tipos de flores, e também revestem volutas, enquanto as recortadas em meia-lua estão maioritariamente agrupadas em ramalhetes. sequências numerosas, formam frisos que decoram arcadas, colunas e plintos. Estes búzios menores têm também uma função extremamente importante, pois, conjugados com as conchas dente de elefante, formam os pilares das balaustradas. Com efeito, os pilares são constituídos por um destes búzios e uma ou duas conchas dente de elefante, conforme são pilares do piso inferior e escadas ou do piso superior, unidos por um arame que os atravessa interiormente. Finalmente, as conchas brancas (4 a 10 milímetros) são não só usadas em série, compondo frisos em praticamente todos os elementos arquitectónicos (arcada, cimalha, voluta, corrimão, etc.), mas são também agrupadas com uma massa branca, formando dois tipos de flores. Um tipo de flor é mais aberta e tem no centro grãos de um pigmento amarelo (identificado como monóxido de chumbo ou massicote7), enquanto o outro tipo é fechado, e frequentemente pintado com veladuras vermelhas ou amarelas. 3. Detalhe da uma composição ornamental com conchas recortadas. Registo fotográfico antes da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores Mais raramente, estas telinas rosa também foram usadas inteiras, compondo flores ou frisos. Mas as conchas mais usadas inteiras foram as de bivalves brancas, os búzios brancos, as dente de elefante, e as vieiras de várias cores. Estas últimas foram utilizadas pontualmente como remates, no topo dos pilares e no centro dos arcos. Os búzios brancos têm duas ordens de dimensões, os menores variam entre 5 e 10 milímetros, e os maiores entre 25 e 30 milímetros. Estes últimos, dispostos em sequências de três ou quatro, compõem colunas adossadas ao fundo, enquanto os menores, dispostos em CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora A maioria destas últimas flores tem um pé de arame, que serve para juntar várias flores em ramalhetes, saindo de dentro de búzios ou pendendo da cobertura. As massas usadas para fixar as conchas são de três tipos. Duas das massas são insolúveis em solventes aquosos, enquanto a terceira é solúvel em água. As duas primeiras massas diferem na cor, sendo uma branca e outra avermelhada, e têm uma composição muito semelhante8. Ambas são compostas por cré (carbonato de cálcio), ao qual se acrescentou uma menor quantidade de branco de chumbo (hidroxicarbonato de chumbo). Sendo estas massas insolúveis em água, é possível que o aglutinante seja de natureza oleosa, e que o branco de chumbo tenha sido acrescentado como agente secativo. Uma vez que nas análises não se identificou nenhum elemento químico que pudesse ser responsável pela diferença de cor, a cor avermelhada deverse-á a um corante. A massa branca foi utilizada para fixar quase todas as conchas, com excepção das telinas rosa e de alguns frisos de conchas brancas. Com efeito, as conchas rosas foram fixas com a massa avermelhada, o que curiosamente permite manter a leitura decorativa a alguma distância, quando as conchas se soltam. As conchas brancas, dos frisos da arquitectura, também foram fixas com esta massa avermelhada, e, sendo pouco espessas, esta cor transparece através delas, dando-lhes um tom rosado, que seria intencional. Finalmente, a terceira massa é composta por gesso9 (sulfato de cálcio hemi-hidratado) e um aglutinante solúvel em água, e foi utilizada para fixar as conchas brancas ao longo das partes superior e inferior das balaustradas. Toda esta profusão decorativa é ainda enriquecida com estrelas e lantejoulas metálicas. As primeiras estão aplicadas no centro de algumas flores e grinaldas, enquanto as lantejoulas, cobertas com uma veladura vermelha, formam frisos sobre os pilares. Foram ainda aplicados outros materiais tais como papel, recortado em forma de folhas, lã, como que a simular feixes de ervas, que veremos terem sido aplicados numa intervenção, e outros materiais coevos do presépio, que revestem as superfícies, como areias ou conchas trituradas, palhetas de vidro e partículas metálicas douradas. Figuras As esculturas deste presépio são quase todas em terracota policromada, com a excepção do Menino e dos querubins que enquadram a Glória, que são em cera colorida e semipolicromada. As figuras em cera terão sido executadas com moldes, nos quais foi vazada uma cera já colorida no tom da pele, que se obteve misturando a cera com pigmentos ou corantes10. A figura do Menino foi obtida a partir de um molde composto por mais do que uma peça, uma vez que é possível observar uma costura. No caso dos querubins, em alto-relevo, a cera foi vazada num molde de uma só peça, conforme é visível no reverso de um querubim. Em seguida, estas figuras foram semi-policromadas, aplicando-se camadas de cor somente nos lábios, olhos, cabelos, e asas (nos querubins). 4. (página anterior) Detalhe da pilastra. Registo fotográfico antes da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores 5. (página anterior) Detalhe da “grade”. Registo fotográfico antes da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora antes de ser usada, tendo a argila mais homogénea sido mais finamente tratada (expurgada de impurezas). A pasta cozida tem uma cor alaranjada em todas as esculturas, embora com tonalidades variáveis. Uma vez que esta cor se deve à presença de óxidos de ferro, e à cozedura em ambiente oxidante, as diferenças podem resultar da utilização de pastas de composição ligeiramente diversa, ou simplesmente de cozeduras realizadas noutras condições. As imagens em terracota foram elaboradas de dois modos diversos, algumas foram modeladas, enquanto outras terão sido executadas em moldes (figuras de menor dimensão). O Menino foi integrado num elemento em gesso, com a forma de uma cama de palhinhas e uma almofada para a cabeça, adaptando-se estes dois elementos perfeitamente um ao outro, de tal modo que constituem uma peça única. Dez querubins foram aplicados a uma nuvem de terracota que constitui uma única peça agregada à figura do arcanjo Gabriel. Estas figuras em cera foram fixas com uma mistura de cola e fibras têxteis, o que terá permitido uma melhor aderência da superfície lisa dos querubins, à superfície relevada das nuvens. Além destes querubins, foi encontrado um outro, caído por trás de Nossa Senhora e do burro, cuja localização original neste presépio não foi possível encontrar, o que aponta para que tenha havido intervenções significativas na representação existente. Nas esculturas em terracota, a argila usada é porosa e de granulometria média11. Em algumas peças a argila apresenta-se bastante homogénea (dois pares de pastores e quatro pastores de maior dimensão), enquanto noutras revela uma presença significativa de grãos de maior dimensão (cerca de 1 mm). Esta diferença pode dever-se a características originais da própria pasta, ou ao tratamento de purificação a que foi sujeita Nas esculturas modeladas foi usado o processo aditivo, que consistiu na aplicação sucessiva de pequenas porções de argila, que aderiram sob pressão dos dedos, até se ter encontrado uma forma próxima da desejada. Esta foi depois trabalhada com as mãos e utensílios, retirando ou juntando ainda pequenas porções de material, e eliminando imperfeições e permitindo um minucioso trabalho na definição de madeixas de cabelo. Contudo, o acabamento não foi tão perfeito em áreas que não eram para ser vistas, como a face inferior, o interior, e o verso de esculturas de meio-vulto12 (dois pares de pastores), observando-se marcas de impressões digitais e de utensílios. Algumas destas esculturas foram ocadas (Virgem, São José e Anjo), de modo a que a menor espessura facilitasse o processo de secagem (sem a abertura de fendas ou fissuras), e diminuísse o risco de fractura durante a cozedura. As imagens modeladas de menor espessura não foram ocadas, como são os quatro pastores de maiores dimensões e a Glória. Nas figuras executadas em moldes, um volume de pasta (em forma de esfera ou de bolacha) é comprimido contra o molde (de uma ou várias peças), com uma pressão regular dos dedos, de modo a preencher todas as reentrâncias e detalhes. Posteriormente, nalgumas destas peças foi removida a pasta 6. Virgem Maria. Figura em erracota modelada e policromia com lantejoulas e pós metálicos dourados. Princípios do século XIX (?). Registo fotográfico depois da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 10 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora em excesso, para diminuir a espessura das paredes, e facilitar a secagem e cozedura. No interior das peças observam-se marcas de impressões digitais e de utensílios de corte. As peças de vulto pleno seriam feitas em duas metades, unidas depois com barbotina13. É característico deste processo de manufactura que os detalhes, como as feições e dedos, tenham uma forma grosseira (pois mãos e feições delicadas só se conseguem obter com modelação), como é visível nas imagens da lavadeira, dos pastores de média dimensão (dois pastores músicos e um pastor com saco a tiracolo), e dos sete pastores de reduzida dimensão. Aliás, neste último grupo, existem dois pares que provêm certamente do mesmo molde. A vaca e o burro também foram elaborados por este processo, existindo um burro muito semelhante no presépio da Casa dos Patudos, em Alpiarça. As esculturas em terracota foram policromadas numa técnica a frio, como a usada por exemplo na escultura de madeira. Esta policromia, simulando tecidos, é considerada uma das características principais das imagens dos presépios portugueses. Habitualmente é aplicada uma camada de preparação branca sobre a terracota, seguida de uma ou mais camadas de cor, numa técnica a têmpera. Apesar de não se terem efectuado análises à policromia das imagens deste presépio, a observação das mesmas permitiu tirar algumas conclusões. Somente as esculturas dos quatro pastores maiores e dos dois pares de namorados apresentam uma preparação branca sobre o suporte. Nas outras peças, esta camada não existe ou é muito fina. Sobre a camada branca, ou sobre o suporte, foram aplicadas camadas coloridas mate (provavelmente têmperas), de modo a diferenciar as várias peças de vestuário, carnações, etc. Na maioria das imagens, as camadas coloridas são homogéneas, sem motivos decorativos, apenas com alguns efeitos de sombras, para realçar os volumes, e com rosetas sobre as carnações. As excepções são as figuras da Virgem, de São José, dos dois Anjos, e do pastor de casaco azul e bolsas. Neste último, a única área decorada é a das bolsas, que apresentam riscas vermelhas e castanhas sobre um fundo branco. No Anjo com nuvem, as várias áreas apresentam uma decoração elaborada: as asas são policromadas de forma realista; e as vestes têm motivos vegetalistas em relevo dourados. As outras três esculturas têm policromias muito semelhantes, ao nível das feições e dos cabelos, e ao nível das vestes. Estas apresentam motivos vegetalistas pintados, e uma técnica decorativa com lantejoulas e pó metálicos dourados, cujas alterações de tonalidade esverdeada nos remete provavelmente para uma liga de cobre. Importa realçar ainda, a presença de um colar de pequenas pérolas na figura da Virgem, composto por contas de vidro ocas nacaradas. 7. São José, figura em terracota modelada. Princípios do século XIX (?). Registo fotográfico depois da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 11 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora O modo de fixação das imagens à arquitectura é também diverso. Observou-se o emprego de um adesivo solúvel em água, provavelmente de uma cola animal, na base das imagens dos pastores modelados, e nas moldadas da lavadeira e do conjunto das sete figuras de pastores de reduzidas dimensões. Na arquitectura, existem também marcas da fixação de imagens com cola animal, que terá sido reforçada com aplicação de gesso (sulfato de cálcio hemi-hidratado). Estas marcas encontram-se no interior das arcadas e nos patamares das escadas, coincidindo com algumas bases de imagens, nomeadamente da lavadeira e de quatro pastores com chapéus de aba larga. De aplicação posterior, foi utilizado um grosseiro betume acastanhado que agregava praticamente todas as figuras, inclusivamente a Glória de anjos, reforçada ainda com arames e gesso, e algumas imagens de pastores que tinham sido fixos com cola proteica anteriormente. Quanto à imagem do Menino nas palhinhas, esta foi fixa sobre uma argamassa porosa, que pretende imitar coral. Para concluir, e tendo em conta as técnicas do suporte e da policromia, podemos juntar as imagens em sete grupos que terão proveniência diversa: - doze figuras em cera: Menino e querubins; - Virgem, S. José e Anjo; - Anjo da Glória; - quatro pastores de maior dimensão: pastor velho, pastor jovem, pastor mendigo e pastor com bolsas; - dois pares de namorados - burro e vaca; - onze pastores: lavadeira, dois pastores músicos, pastor com saco a tiracolo e sete pastores de menor dimensão. ESTADO DE CONSERVAÇÃO O conjunto apresenta problemas distintos de conservação, com alterações que se prendem fundamentalmente com três aspectos: o envelhecimento natural dos materiais; remodelações; e a intervenções de restauro. O envelhecimento natural dos materiais constituintes refere-se à deterioração físico-química dos mesmos, provocado neste caso essencialmente por alterações foto-oxidativas. É o caso da verificada perda de adesividade das massas que fixam as conchas e do evidente desvanecimento de cor dos corantes amarelos das velaturas que se encontram sobre o dourado da cúpula. 8. Vaca. Figura em terracota moldada, segunda metade do século XVIII. Registo fotográfico depois da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 12 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora O desprendimento das inscrustrações de conchas, pela falta de fixação das mesmas às massas, era já bastante significativo. Existia inúmero material solto e, consequentemente, grandes áreas com faltas de elementos, sobretudo de frisos inteiros de pequenos búzios e de aplicações recortadas. Estes encontravam-se aplicados sobre cartão, sendo os seus únicos vestígios, as massas rosadas que os prendiam. Estas perdas estão também associadas à fragilidade do conjunto que por mau manuseamento terão sido alvo de trepidações e impactos, acelarando desprendimentos e a fracturas. Neste seguimento podemos referir a perda de duas colunas, no piso superior, que certamente à semelhança das existentes no plano de fundo, seriam também constituídas por grandes búzios, mas que das quais já só restam os capitéis. Cremos faltarem, ainda, apontamentos de estruturas arquitectónicas que se encontrariam adossadas ao espelho, sobre arcos de cartão, ainda no piso superior da cenografia. Algumas figuras encontravam-se, também, soltas. A ausência de um sistema de fecho da própria maquineta, terá certamente contribuído para a degradação do conjunto, na medida em que fica desprovido de protecção. Já a fractura dos vidros que revestem o fundo da maquineta, parece dever-se, antes, ao facto de estarem colados ao tabuado de madeira e aos movimentos que esta sofre com as variações da humidade relativa. O próprio destacamento e perda do revestimento espelhado denunciam a presença de elevados valores de humidade. INTERVENÇÕES ANTERIORES mia integral da maquineta, de cor castanha escura que renegando a exuberância barroca da obra original, tenta num gosto porventura mais naturalista, a imitação de uma madeira exótica. Assim as superfícies douradas e jaspeadas foram totalmente recobertas por uma tinta monocroma, castanha escura, constituída essencialmente por óxidos de ferro. Não foi possível determinar o aglutinante desta tinta, com os meios disponíveis, contudo verificou-se não se tratar nem de óleo, nem de resina, podendo levantar-se a hipótese de ter sido utilizado um polímero de síntese, remetendo neste caso a intervenção para pós século XIX. As outras causas de alteração observadas no conjunto prendem-se com intervenções anteriores, embora diferençáveis nas suas motivações. Temos, assim, as intervenções com um carácter de remodelação, ou seja, resultantes da adaptação a novos gostos; e as intervenções determinadas por uma concepção de restauro. No primeiro caso, podemos referir o repinte ou a remonocro- Podemos talvez afirmar com alguma segurança que quando a maquineta sofreu o repinte castanho, muito provavelmente, ainda teria os vidros originais ou a estrutura de fecho, na medida em não são visíveis quaisquer escorrências ou pingos de tinta no seu interior. Este facto, não só corrobora a existência de uma estrutura que fechava a maquineta, como nos remete para uma 9. Par de namorados. Terracota moldada, finais do século XVIII. Operação de remoção de massa de fixação. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 13 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora perda relativamente recente da mesma, embora tenham sido posteriormente colocados uns vidros nos lados. Contudo, cremos que os vidros, à semelhança de outros oratórios e maquinetas, estariam encaixilhados numa estrutura de madeira que fechava e selava o conjunto. Pode observar-se alguns vestígios que indiciam a colocação de um sistema de fecho, tais como rebarbas de policromia, o rebaixo na zona inferior da maquineta com perfurações de pregaria e no topo a existência de espigões de madeira. Podemos ainda considerar dentro da mesma lógica de “intervenção de remodelação”, a que promoveu o reposicionamento e possivelmente a introdução de novas figuras no Presépio. Esta hipótese foi levantada, não só pelas diferenças de técnica de produção e estéticas das imagens que as remetem para diferentes épocas de execução, mas sobretudo, pela verificada alteração dos seus locais de origem. Embora nesta intervenção estejam também patentes sinas de uma tentativa de conservação e de restauro, na medida em que, certamente, o presépio já se encontraria em mau estado, necessitando de serem fixos os seus vários elementos. Isto justificaria a presença, não só, de um verniz de gomalaca, actualmente amarelecido, aplicado generalizadamente sobre as superfícies das conchas, bem como, do inestético betume de cor castanha para fixar figuras. Este betume de origem cerosa e resinosa, tendo como carga de sulfato e carbonato de cálcio, foi aplicado a quente, em grandes quantidades para aderir e reposicionar praticamente todas as imagens, sobrepondo-se e aglutinando conchas soltas. No piso inferior serviu para refixar o volumoso torrão de argamassa que imita rochedos, no qual está aplicado o Menino, e as restantes figuras da Natividade. No superior, constituía elevações de massa informe, agregando e dispondo em altura, os vários grupos de imagens, utilizado também, para fixar a glória de anjos que encobria toda a decoração brasonada em conchas da balaustrada. Para dissimular essa massa, cremos terem sido introduzidos nesse momento outros matérias tais como, os ramalhetes de lã e as ramagens de papel recortado, estes aplicados também sobre as fracturas do espelho a formar ramagens, sobre repintes verdes à base de pigmentos de cobre. Verificou-se também o reaproveitamento de composições de conchas no nível térreo, que provavelmente já se encontrariam soltas, para encobrir as intervenções e decorar a argamassa, sobre a qual se encontra o Menino. Quanto às figuras, a da Virgem e do São José, de acordo com a indumentária e penteados, parecem reportar a intervenção para o século XIX, provavelmente para substituir a perda das coevas. Aquelas foram serradas, já depois de policromadas, bem como o burro e a vaca, para conseguirem caber nos exíguos espaços da arquitectura. Foram também introduzidas imagens fracturadas, como um pastor com capuz revelando, provavelmente o reaproveitamento de outros presépios danificados e um grupo figurinhas de miniatura, de manufactura em série, todas, sem excepção fixas com o referido betume resinoso que parece ter pautado toda a intervenção. INTERVENÇÃO EFECTUADA O trabalho de conservação e restauro efectuado no Presépio, constituído pela maquineta, decoração do interior e das figuras, pretendeu promover não só a sua estabilização material, mas ainda, uma reposição mais próxima dos valores cromáticos originais da maquineta, bem como a devolução de uma lógica de conjunto mais coerente com os presépios da época. Tendo sido alvo de várias intervenções e de perdas, que se reflectiram sobretudo na alteração da disposição das imagens, foi largamente discutido e decidido entre os vários profissionais envolvidos no trabalho, conservadores-restauradores e historiadores da arte, um reposicionamento das imagens no CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 14 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora conjunto, que permitisse a devolução de valores de escala e de profundidade, perdidos aquando da sua remodelação provavelmente no século XIX. Estes aspectos fundamentais para a leitura do Presépio foram, contudo, conduzidos pela presença inestética do betume castanho introduzido sobretudo para fixar imagens novas e de outras provenientes, provavelmente, de outros presépios arruinados. A remoção deste betume obrigou a um desmonte total das imagens. Esta intervenção de desrestauro permitiu revelar aspectos que ajudaram a uma melhor compreensão da manufactura do presépio. Temos o caso da Glória de anjos que encobria a decoração brasonada em conchas e a percepção da existência de um lago, com conchas nacaradas a imitar água, sob o local onde se encontra o torrão com Menino. Estas revelações foram determinantes, na medida em que, parece fazer-nos crer que a estrutura arquitectónica nada teria que ver com toda a encenação da Natividade e que possivelmente a maquineta com seu conteúdo de conchas terá sido adaptado para receber um Presépio, uma vez que se encontrou a representação de um lago sob a zona central onde se desenvolve a Natividade. Maquineta Na maquineta foi efectuada essencialmente a intervenção de desrestauro que consistiu na remoção da camada remonocroma castanha que encobria todo o revestimento decorativo coevo. O método empregue foi exclusivamente mecânico, com a utilização da lâmina de bisturi fazendo descolar e remover as camadas de tinta que se encontravam aderidas às superfícies douradas e jaspeadas. A utilização de métodos químicos através de solventes orgânicos foi totalmente inviabilizada pelo o facto de os produtos que dissolviam a tinta de origem sintética, actuarem também sobre as camadas coevas, de velaturas amarelas e verdes, estas de resinato de cobre. Após o levantamento verificou-se, ainda, a necessidade de proceder à fixação das camadas de preparação do douramento, tendo sido utilizado cola animal, de acordo com a técnica de produção de origem. As lacunas, desse revestimento dourado, foram ainda reintegradas, respeitando as técnicas de douramento das superfícies, com aplicação de folha de ouro de lei. Para o preenchimento e nivelamento das lacunas foi utilizada um preparo de cola animal, com gesso hemihidratado, aplicado por camadas, seguido de bolus,o que permitiu a brunidura da folha metálica, fixa com o referido adesivo natural. No topo foi reconstituído o elemento de remate em falta, em madeira de mogno entalhada, e depois dourada, segundo o recorte de fundo existente e à semelhança das formas da restante talha, através da realização prévia de um modelo em plasticina. Na parte de trás foi também removida a tinta castanha, com a utilização de um gel de diclorometano e metanol. 10. Camponês de casaco com capuz, com uma abóbora e um cântaro. Terracota modelada, finais do século XVIII. A parte inferior é um acréscimo da actual intervenção para permitir a colocação da escultura no presépio. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 15 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora Revestimento decorativo do interior O revestimento de verniz (provavelmente de goma-laca) alterado que revestia toda a decoração com conchas foi parcialmente removido com etanol, o que em permitiu devolver a cor natural dos materiais. betume teria sido aplicado já sobre material decorativo destacado, o que denuncia o mau estado em que já se encontraria a decoração de conchas. As superfícies das figuras foram limpas com água destilada e detergente não iónico e reintegradas as lacunas de policromia, directamente sobre o suporte, a Simultaneamente foi necessário proceder à fixação das conchas do interior que se encontravam em destacamento. Para o efeito foi utilizada uma resina acrílica, Paraloid B72, dado o seu bom comportamento como adesivo, e sendo dentro dos materiais disponíveis, a que comprova apresentar melhores características de reversibilidade estabilidade. Utilizou-se a mesma resina pontualmente, mais concentrada (50% em acetona), para a re-adesão de búzios e de outras conchas de maiores dimensões, bem como, mais diluída (5% em xileno) pincelada, em construções florais e noutras zonas, igualmente delicadas e muito fragilizadas. Os excessos foram retirados com xileno e papel absorvente. O material decorativo solto que se encontrava depositado, foi recolhido por aspiração de baixa sucção, seleccionado e separado consoante as suas tipologias e dimensões. Removido o verniz de goma laca e limpo com água destilada, foi recolocado e refixo de acordo com as sequências e motivos decorativos existentes. Os repintes esverdeados aplicados nas zonas de fractura do espelho foram também removidos, assumindo-se os danos sofridos ao longo do tempo. Figuras As figuras foram descoladas, à excepção do torrão onde se encontra o Menino, pela aguarela. O adesivo utilizado para a fixação das figuras foi, novamente, a resina acrílica, Pb 72 (50% em acetona). As imagens que apresentavam marcas de colocação na arquitectura, voltaram a ser fixas nesses locais, como a figura de lavadeira e a dos quatro pastores com chapéus de abas. As únicas figuras, embora refixas com novo adesivo, permaneceram nas posições iniciais foram as que constituem a Natividade. Apenas o burro que embora tenha mantido o local, foi posicionado virado para a frente e ligeiramente elevado sobre um socalco, executado em barro sintético. A Glória de anjos, manteve o local mas, também, foi sobre-elevada, com o emprego de um socalco, deixando visualizar a decoração brasonada de conchas que encima a arcada central. O restante grupo de figuras foi colocado segundo as suas dimensões, de forma a respeitar uma lógica de escala de profundidade, dispondo-se as maiores à frente, num primeiro plano, e as de menor dimensão, num plano posterior. Assim, foram alteradas significativamente as posições de um grupo de namorados que passou para o piso inferior, e no piso superior dada a exiguidade de espaço, e mantendo a mesma lógica de planos, promoveram-se pequenas trocas de forma a caberem todas as imagens. ar quente, e com o auxílio de espátulas. Na figura fracturada do rapaz de capuz, foram-lhe acrescentadas pernas, em apontamento sumário, também executadas em barro sintético, permitindo assim a sua Durante a operação verificou-se que este fixação. remoção do betume ceroso/resinoso. Para o efeito foi aplicado calor, com uma fonte CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 16 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora 11. Presépio. Registo fotográfico depois da intervenção de conservação e restauro. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 17 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora CONCLUSÃO O processo de intervenção de conservação restauro efectuado no presépio do Museu de Évora permitiu-nos concluir que a maquineta, com o seu interior arquitectónico ornamentado com conchas, terá sido, muito provavelmente uma peça arte decorativa de meados do século XVIII, que a dado momento foi adaptada para constituir um presépio. Este juízo prende-se sobretudo, com a existência da representação de um lago, coevo da arquitectura, sob o local onde se encontra o Menino. Em boa verdade, toda a cena da Natividade desenvolve-se, sobrepondo-se a um recinto originalmente destinado a um espaço de exterior, ocupado por pequenas escadarias e a um lago circular, formado por madrepérola. Se observarmos atentamente, verificamos, também, que dada a pouca profundidade da maquineta, é com dificuldade que as imagens se articulam no conjunto. Este facto não inviabiliza, porém, que outros presépios decorados com conchas tenham sido construídos de raiz, como é o caso do existente nas reservas do IPCR/IMC, mas antes, torna entendível a invulgaridade do presépio de conchas do Museu de Évora. Assim, este presépio propriamente dito, será de concepção posterior, com a introdução das imagens e do torrão de argamassa, decorado com motivos de conchas, material reaproveitado da ornamentação da arquitectura. Não se conseguiu determinar uma data para esta adaptação, contudo, foi possível constatar ter havido uma intervenção pós século XVIII que terá modificado profundamente toda concepção inicial do presépio. Nessa intervenção foi empregue um betume de base cero/resinosa de forma pouco cuidada para a fixação de imagens, tanto das já existentes, como de novas. Estas novas imagens poderão ter sido introduzidas não só para ampliar o número de personagens existentes, como para substituir as de origem, como é o caso das figuras da Virgem e de São José, em que as indumentária as remete para uma execução mais recente. Desta forma, podemos talvez levantar a hipótese de o conjunto formado pelo presépio de conchas de Évora ser um dos pioneiros desta tipologia. Uma vez que parece ter havido o aproveitamento de uma peça de cariz decorativo, de execução anterior, cuja singularidade no tratamento ornamental com material marinho, possa ter suscitado o gosto para a execução cenográfica de presépios. 12. Registo dos trabalhos de limpeza e fixação das conchas recortadas da arquitectura do presépio. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 18 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora NOTAS 1 - “Aglomerado de barro e/ou cortiça normalmente colocado sobre uma estrutura de madeira, simulando um cenário no qual se organiza o presépio “ in Presépio da Estrela. Lisboa: IPCR, 2004, p. 52. 2 - Embora não tenha sido detectada a presença de aglutinante proteico com corantes fluorescentes a folha de ouro apresenta-se brunida o que só acontece com técnicas de têmpera, pelo que poderá eventualmente tratar-se de um adesivo de natureza vegetal (ex. goma arábica). 3 - O tratado de Jean-Felix Watin, L’art du peintre, doreur, vernisseur, publicado em Paris em 1772, descreve a utilização destes corantes amarelos que eram normalmente incorporados em vernizes à base de resina ou óleo, sendo estas velaturas designados como “vernizes de dourado”. 4 - Normalmente a existência de um bolus está relacionado com a brunidura da folha metálica, o que implica o emprego de uma técnica a têmpera, pelo o que neste caso trata-se-á de uma imitação de bolus. 5 - Resultados obtidos por análise de microespectrometria de FTIR. Veja-se o relatório de exames em anexo. 6 - Apesar de não ser fácil identificar uma concha, sobretudo quando não se observa o molusco vivo, foi possível encontrar a família de algumas. Algumas conchas encontram-se no nordeste do Oceano Atlântico, da Noruega ao noroeste de África, enquanto outras se distribuem do sudoes- te da Europa até ao Mediterrâneo e Adriático. As duas zonas geográficas têm em comum a área do Oceano Atlântico junto à Península Ibérica e ao norte de África. 7 - Identificado por microespectroscopia de fluorescência de raio-X . 8 - Estas massas foram analisadas somente com microespectroscopia de fluorescência de raio-X, que permite identificar os pigmentos que fazem parte da sua composição, mas não permite identificar aglutinantes e corantes, de natureza orgânica. 9 - Esta massa também foi analisadas com microespectroscopia de fluorescência de raio-X, que permite identificar , neste caso, a carga que faz parte da sua composição, mas não permite identificar aglutinantes e corantes ou qualquer outra substância de natureza orgânica. 10 - Para se obter este tom terão sido usados pigmentos branco, vermelho e amarelado, possivelmente branco de chumbo, vermelhão e ocre, tal como o identificado pelo IJF num alto-relevo de cera da Imaculada Conceição, pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga. 11 - A granulometria de uma argila tem em consideração a dimensão predominante das partículas que a compõem. 12 - Esculturas escavadas na parte posterior, modeladas para serem vistas só de frente. 13 - Pasta de argila líquida, usada para unir várias partes de objectos de cerâmica. 13. Remoção da camada pictórica que cobria o douramento da maquineta. Foto dos autores CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 3 | Setembro 2008 | página 19 aNA ANDRADE E CONCEIÇÃO RIBEIRO. Estudo, Conservação e Restauro do Presépio do Museu de Évora BIBLIOGRAFIA AAVV, 2002 - A escultura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII, Estudo comparativo das técnicas, alterações e conservação em Portugal, Espanha e Bélgica. Actas do Congresso internacional. Lisboa: Instituto Português de Conservação e Restauro, 2002. Andrade, 1989, Sérgio de Guimarães – “Presépios”, in Dicionário da arte Barroca em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1989, pp. 381 a 386. Boot, 1999, Ria De, Scientia Artis I. Brussels: Institut Royal Du Patrimoine Artistique, 1999. Braudy, 2000, Marie Thérèse, Sculpture, méthode et vocabulaire. Paris: Éditions du patrimoine, 2000. Pais, 2004, Alexandre (coor.) - Presépio da Basílica da Estrela. Lisboa: Instituto Português de Conservação, 2004. 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