PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE RECIFE - PE O Município de Recife, pessoa jurídica de direito público interno, com sede no Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, respeitosamente Recife, perante PE, Vossa CEP: 50030-903, Excelência, por vem seus procuradores signatários, apresentar: Contestação de MANDADO DE SEGURANÇA aforado por Raquel Lyra Lopes, já qualificada no feito em epígrafe, pelos seguintes fatos e fundamentos jurídicos: I. BREVE RELATO DA LIDE A impetrante Raquel Lyra Lopes aforou mandado de segurança contra o Secretário de Saúde do Recife com pedido de antecipação de tutela, alegando que sofre de uma espécie raríssima de anemia que, se não tratada, pode levar o paciente à morte e necessita usar o remédio Lunaris, não fornecido pelo SUS, cujo tratamento totaliza R$ 900.000,00 (novecentos mil reais) por ano. 1 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS II. DA PRELIMINAR Embora se reconheça que a jurisprudência entende que o direito à saúde deve ser prestado pelos entes federados de forma solidária, não se pode entender que os municípios tenham a obrigação de fornecer medicamentos para todo e qualquer paciente, sob pena de falência total do Sistema Único de Saúde, que já sofre com as conhecidas dificuldades no atendimento, conforme é notório. Além de que o medicamento não é registrado pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância e Sanitária). III. DO MÉRITO O conflito que se põe em questão neste caso concreto ocorre entre o direito individual da requerente e o direito coletivo Federal de do uma população. Brasil É estabeleça correto que o que a direito Constituição à saúde seja indisponível e pertencente a todo cidadão, no entanto, há que se perguntar, até onde tal direito pode ir? Princípios constitucionais podem ser tratados como absolutos? De acordo com Habermas, os cidadãos devem reconhecer reciprocamente seus direitos de forma a regular legitimamente o seu viver em sociedade através do direito positivo. Essa formulação já indicaria, segundo o autor, que o sistema de direitos em seu todo é percorrido pela tensão entre validade e facticidade que caracteriza a ambivalência da validade jurídica. Habermas ainda dirá de forma sucinta e perfeitamente aplicável a este caso: [...] o conceito de direito subjetivo exerce papel central na compreensão moderna do Direito. Corresponde ao conceito de liberdade subjetiva: são os direitos subjetivos que fixam os limites no interior dos quais um sujeito encontra-se autorizado a livremente manifestar sua vontade. Sem dúvida, definem as mesmas liberdades 2 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS para todos os indivíduos ou sujeitos jurídicos compreendidos como titulares de direitos subjetivos. No art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, podemos ler: “A liberdade consiste em se poder fazer tudo exercício o que dos encontra apenas membros da não prejudique Direitos os Naturais limites sociedade o o que outro”. de um asseguram gozo dos Assim, o ser humano aos outros mesmos direitos (HABERMAS, 1992, p. ) Nesse excerto é possível perceber os limites do direito à saúde para que a sociedade possa conviver harmonicamente. A decisão favorável em relação a requerente prejudicaria o gozo de tal direito aos demais cidadãos. Não é correto tratar princípios constitucionais de forma absoluta e individualista em detrimento de milhares recifenses. É certo que ao ver de alguns 0,5% do orçamento da saúde municipal pode parecer um número ínfimo, no entanto, para a realidade de uma população que ultrapassa a cifra dos milhões tal quantia é catastrófica. Deve se agregar a isso também o fato de que, no espaço amostral dessa população, se a justiça concedesse o referido medicamente a 200 pessoas, com a mesma doença da requerente, o orçamento se esgotaria; o resto da população não poderia mais contar com o direito à saúde e nessa perspectiva é que podemos perceber a real gravidade da decisão aqui discutida. Estamos falando de uma sociedade e não de um indivíduo apenas. Cabe ainda ressaltar que, ao conceder tal pedido, o judiciário abriria margem para que mais recifenses com doenças raras entrassem na justiça e por um princípio de equidade tais pedidos teriam que ser igualmente concedidos, o que levaria ao caos o orçamento municipal da saúde. A isso devemos somar a total insegurança em relação ao tratamento da doença da requerente. Ou seja, realmente devemos sacrificar uma parte significativa do orçamento, que poderia 3 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS sanar inúmeras doenças de tratamento mais acessível e atingir maior parcela tratamento discussão da população incerto acerca que do municipal, pode não tratamento investindo gerar de tal em resultados? doença um Essa deveria ser discutida no âmbito judiciário? Toda essa discussão deve ser tratada de forma a se buscar uma decisão que consiga um equilíbrio entre o coletivo e o individual, não ocorrendo o privilégio de alguns em detrimento de milhares de outros indivíduos. Neste embate, nos envolvemos igualmente com o conflito entre direito e justiça. No sentido de que não há dúvidas que a requerente tenha direito à saúde, no entanto, devemos nos perguntar se seria justo para com os outros habitantes de Recife conceder tal pedido e deixá-los a mercê de um orçamento deficitário e uma saúde pública precária. Agindo assim, estaríamos priorizando doenças raras, frequentemente parcela minoritária da sem população cura, e que acometem colocando uma enfermidades recorrentes com tratamento e cura eficaz em segundo plano. Resumindo, estaríamos trocando o certo pelo duvidoso, o coletivo pelo individual. Habermas, citando Michelman, afirma: “[...] Um direito, além do mais, não é nem uma arma nem o show de um homem só. É uma relação e uma prática social, e em ambos esses aspectos essenciais é uma expressão de associatividade. Os direitos subjetivos são proposições públicas, que envolvem tanto obrigações para com os outros quanto titularidade contra eles. Pelo menos aparentemente são, indubitavelmente, uma forma de cooperação análise, nível de social, cooperação”. conceitual, indivíduos mais, não atomísticos possessivamente um se e contra ainda Os assim, direitos referem e, modo desunidos que outro. última subjetivos, de o em [...] imediato se ao a postem (HABERMAS, 1992). 4 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Nessa perspectiva, há que se notar o notório aspecto social do direito à saúde. Não permitindo uma atomização do indivíduo, coletivo. seus um apartamento total do mesmo em relação ao Há que se ressaltar a função social do Direito, os valores de justiça e de equidade. Pois, como conclui Habermas: [...] A tensão entre facticidade e validade construída no interior do próprio Direito é dissolvida se a dominação juridicamente constituída, de per se, puder ser retratada como a manutenção de um sistema de egoísmo preferido por todos os participantes. (HABERMAS, 1992). Assim, não podemos individualizar o Direito, que foi pensado e projetado, coletividade. rompimento Ou e também essa e principalmente, individualização afastamento do levaria Direito de para ao seus a próprio preceitos fundamentais. Como explica o referido autor, os fundamentos que legitimam o Direito devem se harmonizar com os princípios morais da justiça tanto quanto com os princípios éticos, assumindo aos indivíduos responsabilidades, e, acrescento aqui, direitos, no nível individual e no coletivo. Afirma Habermas: “Uma vez abalados os fundamentos sagrados dessa tessitura de Direito, moralidade e eticidade instalam-se os processos de diferenciação.” (idem). Tal processo de perspectiva: como ocorrer priorização uma detrimento majoritária das do diferenciação explicar demais a do toda coletivo? E uma orçamento enfermidades o cabe de que direito da população que irá doenças raras em acometem à seguinte saúde a dos parcela demais indivíduos? Eis que se esse Tribunal decidir-se favorável a requerente, a referida diferenciação será consequência imediata, ou seja, os demais pedidos deverão ser concedidos, 5 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS baseados na jurisprudência e em argumentações falhas que tratam princípios constitucionais de formar absolutista e a simples prescrição do medicamento como solução para o caso. Caso esse, como abordado, mais complexo do que aparenta não podendo ser baseado apenas na perspectiva individualista, mas, ressalto, na coletividade. Ademais, a criação do Direito não pode ser tratada de forma absoluta e imutável, mas através da tensão entre a validade e facticidade, em uma constante construção e desconstrução interpretativa se adaptando de acordo com a temporalidade. Uma medida adequada para tomada de decisão no caso concreto é a proporcionalidade. Visto que, segundo Alexy, por exemplo, o princípio da proporcionalidade entra em jogo quando dois ou mais direitos fundamentais estão em conflito ou quando um direito fundamental limita o outro, como no caso exposto. Não obstante, quanto mais grave for a ingerência em certo direito fundamental, maiores serão as justificativas para se aplicar tal interferência. Ainda, para Alexy, esse princípio respeita três concepções, as quais são a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em strictu sensu. A adequação nada mais é que a conformidade entre a conduta de certa finalidade e a possível condição desejada, ou seja, a tomada de decisão pelo Poder Público precisa ser apta a alcançar o objetivo almejado; a necessidade é o uso da maneira menos custosa, contudo eficaz, para que se obtenha a finalidade esperada; por último, a proporcionalidade em strictu sensu pretende ponderar a execução de um direito com a redução de outro oposto. Contudo, a ponderação apenas é possível no caso concreto, pois não se podem mensurar, em âmbito abstrato, os prováveis conflitos de interesse, isso porque a antinomia de prin6 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS cípios não pode ser resolvida quanto à exclusão de um direito ou de subjugá-lo eternamente a outro. Por conseguinte, ponderar é a busca pela melhor decisão quando no discurso dois princípios de igual valor estão em conflito. Portanto, mediante os acontecimentos do caso concreto, um princípio pode ser mais adequado e relevante em relação a outro. Assim, por consequência, quando uma situação diferente se configure pode haver mudança quanto à aplicação de princípios. Quanto a isso, Alexy desenvolve o raciocínio de que os princípios constitucionais não conferem uma hierarquia sólida, pois possuem igual peso e importância, mas uma hierarquia móvel e com isso podem ser relativizados. Entretanto, o que pode ser questionado é como se pode escolher uma norma mais adequada frente a tantas normas existentes, porém tal questionamento é facilmente refutado ao demonstrar a compatibilidade entre qual norma pode ser mais bem abordada em relação a todas as outras em situação especial. Gunther, nesse sentido, por exemplo, propõe a existência de dois discursos distintos: o de fundamentação e o de aplicação. Com isso, as razões para a explicação do discurso de fundamentação não se confunde com o esclarecimento do discurso de aplicação, visto que a justificação de validade é algo geral e abstrato, já a elucidação de aplicação de uma norma está estritamente ligada ao caso concreto. Por exemplo, a Constituição Federal, em seu artigo 196, afirma que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, no entanto, essa colocação é feita em um plano geral e abstrato. Além de não fazer referência ao modelo de aplicação, pois o discurso de aplicação se refere à adequação de normas válidas a um caso concreto, nos termos do Princípio da Adequabilidade, 7 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS sempre pressupondo diversas concepções paradigmáticas seletivas, a serem discursivamente problematizadas. Segundo Habermas: “O discurso de aplicação não se refere à validade de uma norma, mas à adequabilidade de sua referência a uma situação. Já que cada norma registra somente aspectos específicos de um caso individual, situado no mundo da vida, o discurso de aplicação deve determinar quais são as descrições de fatos relevantes para a interpretação da situação em um caso controverso, bem como determinar qual dentre as normas prima fácies é a adequada, uma vez que todas as características significativas da situação tenham sido possível”. registradas (HABERMAS, de forma Jurgen. tão Direito complexa e quanto democracia: entre facticidade e validade, 2003). Nesse contexto cabe o que Habermas apresenta como a tensão entre validade e a facticidade. Dado também que o Direito não pode pressupor todos os fatos futuros, como, por exemplo, no caso do texto constitucional, geral e abstrato, em que se alude à saúde ser um direito de todos e dever do Estado, não se nota o caráter ambíguo que o texto pode assumir, visto que a requerente Raquel Lyra Lopes faz um pedido de amparo ao tratamento médico por ser dever do Estado o seu direito à saúde, contudo, a saúde também é um direito de todos, o que seria prejudicado caso o pedido de Raquel Lyra Lopes fosse aceito, visto que ambas as demandas não podem ser aludidas pela verba do município. Ou seja, a validade consiste em uma busca pelo ideal, as diretrizes de comportamentos, como no texto constitucional, a qual entra em tensão com a facticidade, o que de fato ocorre. Gunther assegura que, para o estabelecimento de normas válidas, o interesse geral deve ser resvalado, o qual requer a consideração de cada membro da sociedade, portanto a norma é considerada válida mediante o respaldo de todos os cidadãos 8 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS conforme a finalidade que a mesma se destina. No entanto, para que o interesse de todos seja levado em consideração na decisão de uma norma deveriam existir condições ideais de discurso. E essas condições seriam a base para a validade da norma. Além de consistirem em regras de consistência semântica para cada forma de argumentação, para a organização do discurso e para a participação livre e igual de todos os destinatários. Como pretende Habermas, em sua obra Pensamento PósMetafísico sobre o agir comunicativo: “Uma vez que o agir comunicativo depende do uso da linguagem dirigida ao entendimento, ele deve preencher condições mais rigorosas. Os atores participantes tentam definir cooperativamente os seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo de vida compartilhado e na base de interpretações comuns de situação. Além disso, eles estão dispostos a atingir esses objetivos mediatos da definição da situação e da escolha dos fins assumindo o papel de falantes e de ouvintes, que entendimento. funciona ouvem O da e falam através entendimento seguinte de processos através maneira: os da de linguagem participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados. Através das ações de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire força obrigatória quando o falante garante, através de sua pretensão de validez, que está em condições de resgatar essas pretensões, caso seja exigido, empregando o tipo correto de argumentos. O agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na individuais motivadora racionalidade de de ação, atos de mas teleológica na força entendimento, dos planos racionalmente portanto, numa 9 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente”. (HABERMAS, p. 72). Assim, não se pode levar apenas em consideração o agir estratégico da requerente Raquel Lyra Lopes, já que ela visa uma finalidade para o seu interesse particular. O seu pedido não leva em atendimentos consideração ofertados a pela necessidade saúde de pública tantos para outros pessoas em situação de saúde tão frágil quanto à dela, ou mesmo casos graves que o município deve responder. A sua demanda não representa, pois, a consideração dos dissensos constatados, ou seja, o agir comunicativo, que estaria representado pelo acordo alcançado pela fala dos vários participantes envolvidos não está representado, mas apenas uma questão pontual marca o discurso. Mediante o que foi demonstrado, o julgamento extraordinário deve se fundamentar no conjunto das diversas razões pertinentes, para que exista uma interpretação completa do caso. Ao juiz, então, cabe adequar as várias interpretações possíveis. O juiz não pode apenas descrever o aspecto fático, mas precisa relacioná-lo com as normas existentes, o que leva a uma reconstrução interpretativa do Direito. Para Dworkin, por exemplo, os casos práticos utilizam o processo hermenêutico reconstrutivo, abordado na figura do juiz Hércules. Ainda, a interpretação necessita de uma busca pela melhor solução possível, aquela em que o passado esteja inserido, por exemplo, a norma constitucional, mas também o presente esteja delimitado na escolha do juiz, o que Dworkin fala de romance em cadeia. Gadamer ao tratar da interpretação menciona que essa além de consistir em uma atribuição de sentidos vinculada a uma tradição a qual o intérprete faz parte, também, passa a 10 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS significar de outra maneira o ato da interpretação. Assim, o processo de reconstrução hermenêutica do presente nos demonstra o passado, ou seja, a hermenêutica revela que não há como compreender o passado com a exclusão daquilo que é disposto no presente. Portanto, o texto normativo precisa ser lido com o aparecimento do Dasein, revelando o passado como permanente no presente e no futuro, assim o Direito não pode garantir um direito individual em detrimento do direito de uma comunidade, simplesmente pelo fato de a Constituição Brasileira conter em lei o direito de todos à saúde. Ora, o processo hermenêutico reinterpreta o presente e não se vincula aos argumentos de autoridade e aos preconceitos, mas sim a um respaldo pela comunidade. Além de essa oposição entre o direito individual e coletivo ter resposta no próprio ordenamento, visto que um direito fundamental não pode conter uma prática ilícita, ou seja, não é permitido se utilizar o direito à saúde para fazer uso de um remédio que não é reconhecido pela ANVISA, de certa forma, ilegal no Brasil. Cinge-se a controvérsia em determinar se o direito à saúde é absoluto em termos subjetivos, ou se a sua aplicação prática encontra barreiras quanto a sua aplicabilidade e efetividade perante toda a sociedade. Como bem abordado pelos nobres colegas, trataremos do Princípio do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Esse princípio foi incluído no âmbito da seguridade, com status de direito fundamental. Os artigos, 6°, caput e 196 da Constituição Federal fazem referência expressa de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, in verbis: 11 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Esse é, contudo, um direito público subjetivo, que pode ser exigido do Estado, que tem o dever de prestá-lo. Segundo Sérgio Pinto Martins, não existe referência alguma quanto à reserva do financeiramente possível, mesmo sabendo que ela representa incontornável condição de viabilidade de concretização, como tantas outras promessas constitucionais de igual natureza. Nesse aspecto, deve-se analisar o tema com a devida cautela. Nas palavras de José Afonso da Silva: “O direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que em casos de doenças, cada um deve receber tratamento condigno de acordo com o estudo atual da ciência médica independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais.” Contudo, ao verificarmos a viabilidade no que tange a questão orçamentária, observamos que a colocação em prática dessas medidas utópicas, quais sejam, que todos tivessem direito à saúde, independentemente das consequências a que a obtenção de recursos estariam submetidas, a situação deveria tomar outro rumo, no sentido de viabilizar o sistema de saúde como um todo. 12 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS No caso em tela, o medicamento referido é estrangeiro, de altíssimo custo e não conta com o aval da ANVISA, no que tange à comprovação da sua eficácia. No que pese a situação da paciente, nós nos solidarizamos com a sua condição precária de saúde, contudo, ao defendermos a questão do ponto de vista do Município do Recife, tem-se que pensar num quadro mais amplo de modo a viabilizar que o orçamento da saúde não entre em colapso. Ao ser deferi- da a compra desse remédio, haverá serio comprometimento dos recursos alocados para a saúde no Estado. A princípio, a cifra de 0,5% do orçamento pode parecer pequena, mas ao transformarmos esses números em produtos destinados aos hospitais e a quantidades de pessoas que serão afetadas com essa redução, a situação merece profunda reflexão. O CNJ realizou um estudo, depois de verificar o alto número de ações na justiça visando o deferimento da compra de remédios não fornecidos pelo SUS. Foi realizado o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde. O objetivo estatísticos desse para Fórum que foi estes o de possam consolidar subsidiar a os dados adoção de políticas públicas no campo da saúde. Ao observarmos a jurisprudência, constatamos que existem grande conflitos, é muito simples para o juiz, deferir os pedidos que são submetidos ao judiciário, agindo como o próprio Pilatos, lavando as mãos e atribuindo às Secretarias de Saúde, ao difícil tarefa de viabilizar a receita necessária para a compra dos medicamentos sem deixar de atender os demais cidadãos que também gozam dos mesmos direitos à saúde. 13 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Veja-se a seguinte ementa: EMENTA: MEDICAMENTO. NÃO COMERCIALIZADO NO BRASIL. NÃO APROVADO PELA ANVISA. GARANTIA DE FORNECIMENTO. NÃO IMPUGNAÇÃO. MULTA POR DESCUMPRIMENTO. SOPESADA CONFORME O CASO. AQUISIÇÃO INTERNACIONAL. Imprescindível considerar o fato da inexistência do medicamento em território nacional, suficiente para o tratamento do agravado, eis que não aprovado pela ANVISA. Ou seja, a aquisição deve observar as condições orçamentárias temperado o e normas valor da exorbitantemente compra de multa. penalizada internacional compra, A por de merecendo ser União não pode ser cumprir as normas de medicamente sem eficácia comprovada pela ANVISA.Fixo a multa em R$ 50,00, nos termos do pedido. Ademais, afasto o bloqueio na conta da União, eis compra de que de nada medicamento condenação ao adianta garantir inexistente. fornecimento. verba Mantida, AG para assim, 41448 a RS 2009.04.00.041448-0 O CNJ busca, dessa forma, propor medidas e normas que possam aperfeiçoar procedimentos e prevenir conflitos judiciais nessa área. Existe uma divisão nesses dados entre saúde privada e saúde pública, referentes a visando questões de ainda a consumo obtenção e de informações contratuais, ou apenas obtenção de serviços hospitalares. Outro dado importante, agora diretamente ligado ao nosso questionamento, foi a verificação da grande demanda por medicamentos de eficácia não comprovada, cuja comercialização não foi aprovada pela ANVISA (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária). A divulgação dessas informações é de suma importância, uma vez que a orientação do CNJ é no sentido de que a obtenção desses medicamentos não deve ser deferida pelo 14 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Poder Judiciário. Os nobres juízes estão numa situação delicada, onde encontram de um lado um doente necessitando de determinado medicamento e de outro, os argumentos das instituições que lidam com esses problemas diariamente. Ademais, este é apenas um caso, nobres juízes, quem garante a quantidade exata de demandas a que o Município de Recife terá que cumprir ao longo do ano? O direito à saúde, garantido pelo Estado, deve considerar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade para que não se libere remédios antes de o paciente submeterse aos medicamentos, de eficácia comprovada, oferecidos pelo SUS Sistema Único de Saúde. Esse é o entendimento do Tribunal de Justiça, que acolheu tese da AGE Advocacia-Geral do Estado em Apelação (nº 1.0142.07.016973-5/001) na aplicação de direitos fundamentais conflitantes, no caso o direito a saúde da autora e o direito da população em ter o orçamento direcionado a aplicação originariamente prevista, não podemos agir de forma a garantir um em detrimento do outro. Deve-se garantir a saúde da autora, contudo de forma razoável e dentro do limite do possível, de forma a não ceifar os tantos outros habitantes da região, que submetem-se ao sistema de saúde público. Muitos procedimentos simples estarão comprometidos, com a redução das verbas destinadas a saúde. Em tal processo, foi pedido o fornecimento de Exelon, produto recentemente lançado no mercado, em detrimento dos dois medicamentos oferecidos pela SES - Secretaria de Estado de Saúde. Conforme demonstrado pela nota técnica da SES, além de o medicamento ser de alto custo, de acordo com a Anvisa o remédio não se mostra adequado para o tratamento de Mal de 15 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Alzheimer. Na defesa do Estado os procuradores Luiz Francisco de Oliveira e Cristiane de Oliveira Elian também argumentaram que direito fundamental à saúde não é absoluto e está eticamente subordinado ao princípio da reserva da possibilidade social, pois todo tratamento deve ser atendido na medida das a dúvida dos possibilidades financeiras de quem o custeia. Outro fato estarrecedor levantando verdadeiros motivos por trás dessa grande demanda por produtos estrangeiros de alto custo: interesse econômico da indústria farmacêutica. Cogita-se que alguns médicos inescrupulosos estariam recebendo para propina de aproveitar-se Judiciário, no indústrias do sentido recente de que farmacêuticas estrangeiras, posicionamento seria muito do Poder fácil “tirar dinheiro” dos governos por meio da aplicação de golpes como esse. A prática está se tornando um verdadeiro trem da alegria. Sem considerar o rombo nos caixas dos estados e os prejuízos causados a população em geral. Muitas vezes, a prescrição de um remédio nacional de mesma eficácia é tida como impossível, ou inexistente, com vista a obrigar o pedido do fornecimento de remédio estrangeiro, de alto custo e com efeitos indeterminados. Ao analisar o fato isoladamente, conforme já aventado, pode parecer que os valores envolvidos face ao orçamento da saúde sejam ínfimos, contudo temos que lembrar que o direito à saúde, nessa linha de pensamento, é direito de todos, e o número de demandas judiciais vem crescendo exponencialmente. A discussão envolvendo a questão da efetividade dos 16 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS direitos sociais, especialmente aquelas afetas ao direito à saúde, tem atingido grandes proporções entre os estudiosos do Direito. No Barroso mesmo têm sentido, tratado doutrinadores do assunto como com Luiz algumas Roberto reservas, defendendo, em suma, que o Poder Judiciário, por exemplo, em relação ao determinar fornecimento o elaboradas de fornecimento pelo Poder medicamentos, daqueles Público; somente constantes a deve das listas de novos inclusão medicamentos nas referidas listas somente deve ser procedida excepcionalmente competentes e, mesmo assim, avaliações levando-se técnicas, de em conta ordens as médica, administrativa e orçamentária, observadas as competências dos Poderes Legislativo e Executivo, devendo o Judiciário, ainda, atentar-se eficácia fase para o fornecimento comprovada, experimental substâncias e apenas excluídos, os de portanto, alternativos, disponíveis no Brasil, medicamentos aqueles sempre ainda optando fornecidas por de em por agentes situados em território nacional, e privilegiando os de menor custo, como os genéricos. Essas como base emocionais, tratamentos considerações, a para proliferação que condenam irrazoáveis, essencialidade, ou porque de a Luiz Roberto decisões Barroso, tem extravagantes ou Administração ou porque são ao custeio desconstituídos medicamentos de de de eficácia duvidosa. Estamos vivenciando uma verdadeira usurpação de Poderes. O Poder Judiciário está se infiltrando na esfera do Poder Legislativo e Executivo, à medida que decide a aplicação do orçamento da saúde, comprometendo as políticas públicas previamente determinadas. 17 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Obviamente em situações onde haja omissão do poder público, existe a justificação da intervenção do Judiciário, contudo no caso dos autos, trata-se de situação diversa, onde o deferimento do medicamento de que teoricamente necessita a paciente será de irreparável prejuízo aos cofres públicos. Sendo assim, não há razão para que prevaleça o argumento de que para garantir a vida ou a saúde de um único indivíduo, sejam comprometidas as políticas de acesso á saúde de uma coletividade. A problemática abordada no caso exposto do tratamento de alto custo da doença rara de Raquel Lyra Lopes reveste-se de tensões hermenêuticas relevantes ao estudo do Direito. O plano concreto apresentado perpassa pela normatividade estruturante do ordenamento jurídico brasileiro, bem como um de seus princípios constitucionais mais caros, o direito subjetivo coletivo à saúde da sociedade. Dentro encontra-se dessa bem adaptada. metodológico das critérios decisão de perspectiva, ciências Pois a utilitarista convertido sociais, formal teoria o em princípio utilitarismo caracterizado pela propõe atenção aos aspectos práticos da filosofia. Dessa forma, Jeremy Bentham, consagrado como o pai dessa doutrina, concebe que “a maior felicidade possível para o maior número de pessoas”, ou seja, é preciso estabelecer uma ordem de valores, de acordo com o critério da utilidade, se constrói uma hierarquia de prioridades que irá atingir o maior número de pessoas. O filósofo John Stuart Mill perpetuou sua doutrina pelo século XIX. Ligado a Hume e ao empirismo do século XIX. Aprofundou-se e analisou teorias clássicas do setor econômico. O conceito pouco de de seu maior felicidade precursor porque para se Mill baseia diferencia-se em uma um felicidade 18 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS coletiva, isto é, está ligada entre as pessoas que convivem entre si. É um valor moral coletivo, que não existe por si só, ou na independência. Ele desenvolve assim um particular valor de igualdade, isto é, “cada qual vale por um, ninguém por mais de um”. Dessa forma, interdependência sociedade como dos um o utilitarismo indivíduos todo. entre Esses si reconhece a compõem uma que indivíduos são iguais, no sentido que ninguém possui maior importância frente ao outro na sua convivência social. Assim, com o critério do utilitarismo conforme essa igualdade particular desenvolvida por Mill desenvolve-se a busca de felicidade pelo maior número de pessoas. Já que se trata de um direito coletivo e não individual. É uma doutrina que visa não apenas um agente particular, mas o conjunto social em questão naquela ação e situação. O ato justo é, então, aquele que atinge o bem-estar para o maior número de pessoas. O utilitarismo foca-se não no propósito da ação ou da natureza a resultados que dessa se destina, ação. De mas modo, a que avaliação ao dá-se determinar pelos que o tratamento de alto custo seja fornecido a Raquel, quais as consequências desse ato, não somente para a ela, mas principalmente para o conjunto de pessoas que também dependem do financiamento público de saúde do Município de Recife, e consequentemente para o país. Ou seja, analisar a qualidade da ação pelos resultados dela no conjunto da sociedade e não somente de um particular. O pragmatismo encontra-se em meio aos princípios quantitativos do empirismo, como a densidade e o alcance, isto é, o número de pessoas afetadas. Em vista disso, percebe- se como se dá a hierarquização das prioridades para a otimização do resultado. O utilitarismo caracteriza-se então por uma utilidade social e não privada, sob a perspectiva de um social 19 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS construído coletivamente. Configura-se como uma medida de minorar as contradições do sistema, atingindo beneficamente o maior número que se pode beneficiar. Sendo de tal maneira importante o utilitarismo se embasa no século XXI com as teorias de Richard Posner, jurista norte-americano de grande notoriedade. Ele desenvolveu um movimento chamado de Law and Economics. Esse movimento segue as bases utilitaristas iniciadas ainda por Bentham, aprofundadas por Mill, e lhe dá um novo aspecto concentrado no princípio da eficiência. Para Posner, o direito se caracteriza como uma forma de se conseguir fins sociais que lhe é inerente. Estes fins se alcançam com maior facilidade através da eficiência econômica. Para se pensar a normatividade do ordenamento jurídico, devese pensar o contexto econômico e seus conceitos para conseguir efetivar o que o direito prescreve. O direito efetivamente funciona se tiver maximizado a riqueza da sociedade a qual está inserido. O movimento de direito e economia foca na importância da eficiência como instrumento para o ordenamento jurídico conseguir alcançar os fins que suas normas prescrevem. Para conseguir uma decisão jurídica que se execute em seu potencial de alcance máximo é necessário uma eficiência alocativa. Isto é, uma decisão do Estado por priorizar alocações de recursos onde serão melhor aproveitados por um maior número de cidadãos. Desse ínterim se retira a lógica das políticas públicas em saúde. Percebe-se atingir a maior densidade da população, chegando o mais próximo possível dos fins sociais aos quais os preceitos normativos do direito prescrevem para o maior número de pessoas. públicas Hierarquizam-se exatamente para prioridades assegurar que mais para políticas pessoas tenham acesso ao gozo do direito à saúde na praticidade da realidade 20 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS social do país. Nesse sentido é possível visualizar o significado de a saúde ser um direito subjetivo coletivo da sociedade. O indivíduo enquanto parte integrante de um coletivo social, de um todo, iguala-se em importância aos outros. Coletivo se constrói então sob uma base de interdependência construída por todos e cada um em contraposição a um interesse individual e que só beneficiará a uma pessoa. Subjetivo como passível de se acionar o aparelho estatal do Estado para a proteção desse direito. E sociedade tomando-se em conta a ação e situação ao qual o conjunto de pessoas está inserido, ou seja, se perceber a importância dessa ação frente todos os pernambucanos, e brasileiros. O pedido de Raquel Lyra Lopes se contrapõe então ao direito da saúde entendido como um direto subjetivo coletivo da sociedade. Fornecer pelo tratamento de alto propósitos da ação, deve-se É pedido consequências. custo um a Município ela, focar de um longe ao de de Recife esse analisar seus estabelecimento particular de das interesse individual frente a uma coletividade de todo o estado-membro da Nação. Democrático Como o Social Estado e de brasileiro Direito, por preza ser pelo um Estado critério de utilidade dentre os contornos constitucionais. Deve-se atentar ao caráter democrático necessário, que não se realizaria privando todas as outras em detrimento de apenas um particular. Nessa linha de raciocínio, observa-se que o direito a saúde configura-se de fato em um direito constitucional, mas sua efetivação é feita por meio da interdependência com os outros indivíduos que compõem o Estado brasileiro. A saúde é um direito coletivo e não individual. Feito por escolhas do Estado em maximar sua ação e seus recursos, a fim de atingir uma função social básica. Dentro da política jurídico-estatal, 21 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS é necessário fazer escolhas, priorizar valores, e hierarquizar os destinos dos recursos para que sejam melhor aproveitados pelo maior número de cidadãos brasileiros. Assim que entende o ordenamento jurídico brasileiro com o disposto no “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido [...]”. Por mediante conseguinte, entendido como particular em um políticas a direito saúde tensão com é coletivo. a sociais um e direito Não o coletividade. econômicas de direito E sua todos, de um forma de efetivação na realidade social brasileira é condicionando por valores, políticas públicas e econômicas. Isto é, a hierarquização de prioridades para alocar os recursos a um determinado fim que alcance o maior número de pessoas. Políticas públicas se focam sobre um grupo de pessoas e não somente a um sujeito. Em vista disso, entende-se que, como o direito à saúde é um direito subjetivo coletivo da sociedade brasileira, o pedido de Raquel Lyra Lopes para o tratamento de alto custo pelo Município de Recife é improcedente. Dispõe a Constituição Federal de 1988, no Capítulo II, art. 6º, que “são direitos sociais a educação, a saúde [...]” (BRASIL, 1988). Ademais, segue a Carta Magna, no art. 196, estabelecendo: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988) Em análise dos aspectos mais importantes para o caso concreto em tela tem-se: (1) A saúde; (2) direito de todos; (3) dever do Estado; (4) garantido mediante políticas sociais e 22 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS econômicas. A saúde: preliminarmente, indaga-se: O que é saúde? A Organização Mundial de Saúde (OMS) (1948 apud SEGRE e FERRAZ, 1997, p. 539) define que “saúde não apenas a ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social”. Rebatendo tal conceito, Segre e Ferraz (1997) afirmam que o conceito dado pela OMS é inatingível e demasiadamente positivista. Eles argumentam que, partindo de uma visão antipositivista e mais humana das atividades dos profissionais de saúde, poder-se-ia sintônico, mais “contribuir empático e, para um contato consequentemente, mais mais ético, entre eles e a população assistida”; sugerindo que saúde seria “um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade” (grifo nosso) (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 542). Scliar (2008 p. 30), em seu estudo – História do Conceito de Saúde – afirma que “saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas”, o que aguarda semelhança com o que é defendido por aqueles autores. Ademais, o autor ressalta o subjetivismo da conceituação do termo saúde quando esclarece que este “dependerá da época, do lugar, da classe social, dos valores individuais, das concepções cientificas, religiosas, filosóficas”, indo de encontro ao positivismo da OMS (SCLIAR, 1998, p. 30). Direito garantia de expressa todos: no a art. parte 196 impetrante [direito à alega que saúde], a da Constituição Federal de 1988, trata-se de um direito subjetivo. Tal afirmação, além de ignorar o dispositivo constitucional taxado no art. 6º, demonstra irresponsabilidade social restando nítido o viés individualista e antidemocrático. 23 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Não obstante o art. 6º, da Carta Máxima, taxar que o direito à saúde é um direito social, corrobora com isso o fato de tal direito ser destinatário da Seguridade Social juntamente com a previdência social e a assistência social, consoante art. 194 indigitado: “Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.” Num impetrante exercício prospere mental, e que suponha-se de fato que seja a alegação verdadeira. do Como demonstrado acima na tentativa de conceituar o termo saúde, percebe-se que tal definição é totalmente dependente da temporariedade e ligada à autonomia do ser, não sendo estática nem definível garantia externamente. constitucional certamente se instalará Sendo assim, social expressa o jurídico. caos caso atribua-se caráter Uma à subjetivo, vez que cada cidadão, valendo-se do seu direito subjetivo de saúde, poderia acionar o Poder Judiciário com o intuito de compelir o Poder Executivo a fornecer o que ele [cidadão] julga autonomamente ser necessário para viver com saúde e qualidade de vida. Neste contexto, poder-se-ia trazer à baila a teoria utilitarista Bentham que, segundo (1748-1832), seguidores como John do Stuart precursor Jeremy Mill (1806-1873), é definida como: “... uma teoria teleológica e consequencialista. Defende que o fim de nossas ações é a felicidade e que o correto é definido em função das melhores consequências, que são definidas em felicidade dos função da afetados maximização por nossas imparcial ações. da Maximizar imparcialmente a felicidade significa promover a maior soma de felicidade possível para todos aqueles que sofrem de alguma maneira as consequências do que fazemos, independente de serem pessoas por quem temos afetos ou 24 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS laços consanguíneos. Entre salvar um parente próximo de um incêndio e salvar quatro estranhos, dado que salvar quatro estranhos maximiza a felicidade, o padrão moral utilitarista defende que o certo é salvar os quatro estranhos ao invés de um parente próximo” (grifo nosso) (GONTIJO, 2010). Dever do Estado: o art. 1º da CF88 afirma que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. A doutrina também atribui ao Brasil características de Estado Social, que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, o que o obriga garantir vários direitos, dentre eles, o da saúde. Nesse aspecto doutrinário, o Estado assume nova postura: a de agente assim, um do desenvolvimento Estado características do que e pretende Estado de da justiça ser social, Direito para social. depende atingir Sendo das seus objetivos. Como já abordado acima, embora o Estado tenha o dever de garantir direitos ao cidadão é inviável que o faça individualmente, devendo promover escolhas alocativas de forma a amparar o maior número de cidadãos. Políticas distributivas invariavelmente, pelo caráter limitado dos recursos, não amparam todos os cidadãos. Corrobora com tal conclusão Canotilho (2004 apud Gilmar Mendes, 2008): "havemos de convir que a problemática jurídica dos direitos sociais se encontra hoje numa posição desconfortável", ou ainda: “a inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatizase que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Tais escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‘escolhas 25 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS trágicas’ pautadas por critérios de macrojustiça.” (MENDES, 2008) Nesse ínterim, toma-se como fundamento a Teoria da Reserva do Possível, que na célebre lição de Andreas Krell apud Sarlet (2003) afirma que “o direito à prestação positiva encontrava-se dependente da reserva do possível, firmando posicionamento de que o cidadão só poderia exigir do Estado aquilo que razoavelmente se pudesse esperar”. Dessa maneira, tal teoria encontra respaldo na razoabilidade da pretensão frente as necessidade da sociedade. O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto na Suspensão de Tutela Antecipada n.º 175, reconhece que: “a garantia judicial da prestação individual de saúde, prima facie, estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), o que, por certo, deve ser sempre demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta, caso a caso.” (Brasil, 2010) Passa-se, portanto, à análise orçamentária detalhada do Município do Recife das cifras repassadas nos últimos anos 3 (três) anos pela Lei Orçamentária Anual (LOA) à Secretaria Municipal de Saúde do Recife – SMSRec (Tabela 1). LOA 2013 LOA 2012 LOA 2011 R$ 337.000.000,00 R$ 310.500.000,00 R$ 251.000.000,00 LOA 2010 MÉDIA R$ 215.500.000,00 R$ 278.500.000,00 Tabela 1 – Total destinado à SMSRec. Fonte: http://www.recife.pe.gov.br/sefin/loa/ Verifica-se que anualmente a Prefeitura do Município do Recife tem implementado o orçamento na Pasta Saúde, com acréscimos superiores a 10% com relação ao ano anterior, com a finalidade de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), mitigar as mazelas que atingem o município e atender da melhor 26 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS forma o cidadão recifense. Considera-se Instituto que Brasileiro no de censo realizado Geografia e em 2010 Estatística pelo (IBGE) contabilizou-se em Recife 1.537.704 habitantes. Desse modo, ao correlacionar o total de verba destina à SMSRec anualmente pelo nº de habitantes, tem-se que cada cidadão recifense recebeu de serviços de saúde a média anual de R$ 181,11 (cento e oitenta e um reais e onze centavos), conforme explicita a Tabela 2. 2013 2012 2011 2010 MÉDIA R$ 219,16 R$ 201,92 R$ 163,23 R$ 140,14 R$ 181,11 Tabela 2 – Correlação: Total destinado à SMSRec (R$) x Nº de habitantes do Recife. Numa breve análise, constata-se que o valor anual do tratamento ora solicitado (R$ 900.000,00) corresponde ao acesso à saúde de 4969 (quatro mil novecentos e sessenta e nove) cidadãos recifenses que contribuem para a Seguridade Social da mesma forma que a impetrante. A detalhar situação a torna-se destinação imprescindíveis para do ainda orçamento atender as mais por insustentável áreas demandas de se consideradas saúde de uma população, como: (a) o Controle Ambiental – intervenção no ambiente, a fim de diminuir/eliminar pragas transmissoras de doenças (roedores, insetos, aracnídeos, aedes aegypti); (b) a Rede Básica – é uma porta de entrada do usuário no sistema, onde o simples atendimento ao intervenções primário é encaminhamento, de média e realizado pela alta rede desde curativos referenciada, complexidade e; (c) a de Rede Especializada – é o atendimento ambulatorial e hospitalar de média e alta complexidade, os quais o SUS é referência. Verifica-se a Tabela 3. 27 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Tabela 3 – Total anual destinado às áreas de saúde dentro da SMSRec. Constata-se que o valor anual do tratamento corresponde, 2013 2012 2011 2010 MÉDIA Controle Ambiental R$ 7,97 R$ 7,87 R$ 5,85 R$ 4,23 R$ 6,48 Rede Básica R$ 58,85 R$ 38,30 R$ 11,71 R$ 52,71 R$ 40,39 Rede Especializada R$ 91,04 R$ 95,34 R$ 95,60 R$ 43,40 R$ 81,35 em média, a 9,03% da cifra empenhada no Controle Ambiental, a 1,45% da verba destinada à Rede Básica e a 0,72% do gasto com a Rede Especializada (Tabela 4). Caso se trace um paralelo do valor anual que é, em média, empenhado a cada cidadão municipal tem-se as seguintes cifras: no Controle Ambiental R$ 6,48 (seis reais e quarenta e oito centavos), na Rede Básica R$ 40,39 (quarenta reais e trinta e nove centavos) e na Rede Especializada R$ 81,35 (oitenta e um reais e trinta em cinco centavos) (Tabela 5). Tabela 4 – Percentual anual destinado às áreas de saúde dentro da SMSRec. 2013 2012 2011 2010 MÉDIA Controle Ambiental 7,35% 7,44% 10,00% 13,85% 9,03% Rede Básica 0,99% 1,53% 5,00% 1,11% 1,45% Rede Especializada 0,64% 0,61% 0,61% 1,35% 0,72% 28 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS LOA 2013 LOA 2012 LOA 2011 LOA 2010 MÉDIA Controle Ambiental R$ 12.25 mi R$ 12.10 mi R$ 9 mi R$ 6.50 mi R$ 9.96 mi Rede Básica R$ 90.50 mi R$ 58.90 mi R$ 18 mi R$ 81.05 mi R$ 62.11 mi Rede Especializada R$ 140 mi R$ 146.60 mi R$ 147 mi R$ 66.74 mi R$ 125.08 mi Tabela 5 – Valor anual destinado às áreas x habitantes recifenses. Aprofundando a análise distributiva do orçamento destinado à Secretaria de Saúde, conclui-se que a população terá um alarmante impacto caso o tratamento pleiteado seja concedido, instalando-se o caos no Recife. Nota-se que 138914 (cento e trinta e oito mil novecentos e quatorze) habitantes seriam postos em situação de risco pela ausência de Controle Ambiental; que 22281 (vinte e duas mil duzentas e oitenta e uma) pessoas ficariam amontoadas em filas de hospitais em busca de acesso à Rede Básica e, por fim, que 11064 (onze mil e sessenta e quatro) necessitando de complexidade seriam indivíduos em estado tratamento/atendimento lançados à sorte crítico e de média e alta sem acesso à Rede Especializada (Tabela 6). 2013 2012 2011 2010 MÉDIA Controle Ambiental 112974 114375 153770 212913 138914 Rede Básica 15292 23496 76885 17075 22281 Rede Especializada 9885 9440 9415 20736 11064 Tabela 6 – Nº de habitantes desamparados caso conceda-se o tratamento. Não obstante ao apresentado acima, tem-se que o valor de R$ 900.000,00 (novecentos mil reais) solicitado para tratamento da requerente equivaleria à aquisição de 6 (seis) ambulâncias totalmente equipadas com Unidade de Terapia Intensiva – UTI, para atendimento de toda população do Recife (Foto 1). 29 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Foto 1 – Ambulância Uti Sprinter 415 Cdi - R$ 150.000,00. Ademais, na licitação Concorrencial nº 008/2008 – Secretaria de Saúde, para reforma e ampliação do Centro de Saúde Dr. Luiz Wilson, que atende no Distrito de Saúde II, custou ao erário municipal R$ 638.928,84 (seiscentos e trinta e oito mil e novecentos e vinte e oito reais e oitenta e quatro centavos), solicitado, com imediatamente os ou o seja, agravante habitantes 70% do deque dos valor tal do tratamento reforma beneficiou seguintes bairros: Arruda, Campina do Barreto, Encruzilhada, Hipódromo, Peixinhos, Ponto de Parada, Rosarinho, Torreão, Água Fria, Alto Santa Terezinha, Bomba do Hemetério, Cajueiro, Fundão, Porto da Madeira, Beberibe, Dois Unidos, Linha do Tiro. Deve-se levar em consideração, nesse conflito concreto, o princípio da Reserva do Possível, uma vez que seria demasiadamente desarrazoada a alocação financeira desta monta para atendimento de uma única pessoa, levando em consideração que bastariam 374 (trezentos e setenta e quatro) pacientes com demandas idênticas, para corroer a totalidade do orçamento 30 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS previsto em 2013 à SMSRec. Ou ainda, atendendo ao pleito, estar-se-ia limitando o Controle Ambiental em 10 meses e 28 dias por ano, aumentando consideravelmente o risco de antropozoonoses. Por fim, embora o desejo das autoridades municipais seja atender plenamente as demandas dos cidadãos, restou evidenciado que a Prefeitura do Recife não pode arcar com os custos do tratamento função da limitação pleiteado sem orçamentária desmantelar acima o exposta. SUS, em Retoma-se, portanto, o voto do Excelentíssimo Ministro da Suprema Corte, Gilmar Mendes, prestação que asseverou individual condicionada ao não de que “a saúde, garantia prima comprometimento do judicial facie, da estaria funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS)” corroborando totalmente com a posição ora defendida. Garantido Carlos Ari Direito mediante Sundfeld Público, que políticas sustenta, “a em sociais sua Separação dos obra e econômicas: Fundamentos Poderes estatais de é elemento lógico essencial do Estado de Direito” tal qual nosso Estado pátrio. A Carta Magna explicita em seu art. 2º que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A separação dos poderes funciona como um sistema de freios e contrapesos (checksand balances), onde cada poder é autônomo e deve exercer determinada função, porém, este poder deve ser controlado pelos outros poderes, sendo então independentes e harmônicos entre si. Sundfeld oferece brilhante lição a respeito: “Os Poderes exercem suas funções com independência em relação aos demais. Cada um tem suas autoridades, que não devem respeito hierárquico às autoridades do outro Poder. [...] 31 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS A cada função corresponde uma espécie de ato (de norma) estatal: a lei administrativo (função (função legislativa), administrativa) e o a ato sentença (função jurisdicional). A lei se submete à Constituição. O ato administrativo e a sentença são inferiores à lei. A sentença pode anular o ato administrativo ilegal. (grifo nosso) (SUNDFELD, 2013)” É notório que cabe precipuamente ao Poder Legislativo a função de legislar, editando normas gerais e abstratas, para regular os demais atos estatais. Ao Poder Executivo, cabe a função de administrar, isto é, aplicação da lei anteriormente aplicada, cobrar tributos, gerir o orçamento, ordenar a vida privada mediante Judiciário políticas cabe a públicas. função E, por fim, jurisdicional ao Poder julgando, sob provocação, os conflitos entre indivíduos ou entre indivíduos e Estado. Passa-se novamente à análise do caso concreto ora discutido. A impetrante acionou o judiciário para que este impusesse ao executivo, na pessoa do Secretário Municipal de Saúde do Recife, a oferta de medicamento não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Está-se diante de um exemplo do denominado problema da “judicialização do direito à saúde”, o qual o Ministro Gilmar Mendes esclarece: [...] que envolve não a penas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania, por outro, as decisões tensão judiciais entre os têm significado elaboradores e um forte ponto os executores de das políticas públicas, que se veem compelidos a garantir 32 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades orçamentárias. (grifo nosso) (BRASIL, 2010) Observe-se que o art. 196 é taxativo ao afirmar que o direito a saúde será “garantido mediante políticas sociais e econômicas”. Ora, é flagrantemente nítido que tal ação está na esfera de atuação do Poder Executivo. Ademais, consolidando tal vertente constitucional o § 2º, art. 195 é claro ao estabelecer que: “§ 2º - A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde [...] assegurada a cada área a gestão de seus recursos.” (grifo nosso) (BRASIL, 1988) Ressalta-se que o município do Recife tem cumprido fielmente suas atribuições constitucionais e legais, propondo e implementando políticas de saúde, gerindo seus recursos como responsabilidade e eficiência, atendendo as demandas prioritárias da Saúde em ações conjuntas com outras Pastas. Nota-se, ainda, que planejamento e execução orçamentária estão aprovados pelo Poder Legislativo municipal por meio da Lei Orçamentária Anual e a destinação das cifras orçamentárias é realizada como base em estudos epidemiológicos, levado a cabo pelos servidores municipais, conforme o princípio elencado no art. 7º, VII, da Lei nº 8.080/1990: “Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados integram o desenvolvidos contratados Sistema de Único acordo com ou de as conveniados Saúde (SUS), diretrizes que são previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação 33 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS programática.” (BRASIL, 1990). Depreende-se do sistema de freios de contrapesos que a função do Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo é expurgar do ordenamento jurídico atos administrativos ilegais e expedir sentenças atribuições que previstas obriguem em lei o para gestor a cumprir satisfação do suas interesse público, caso se detecte violação de direito por omissão da Administração. Como demonstrado acima, o município do Recife tem agido dentro dos ditames legais, não se encontrando qualquer ato ilegal no planejamento, implementação e execução das políticas públicas de saúde, afastando assim qualquer intervenção do Poder Judiciário no sentido de combater ilegalidades. Não há omissão também: a Lei nº 8.080/1990 que “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização correspondentes regulamenta o e SUS, e dá em o funcionamento outras seu dos providências”, art. 19-T veda serviços ou seja, expressamente em todas as esferas de gestão do SUS: Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa. (grifo nosso) (BRASIL, 1990) Em complementação, alerta-se que há instituído pelo Decreto nº 7.508/2011, que regulamenta a Lei nº 8.080/1990, em seu art. 25, Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – 34 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS RENAME que “compreende medicamentos indicados a para seleção e a atendimento padronização de doenças ou de de agravos no âmbito do SUS”. Segue o Decreto no art. 29 reafirmando que: “Art. 29. A RENAME e a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos somente poderão conter produtos com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA.” (BRASIL, 2011) Ora, poder-se-ia falar em omissão do gestor municipal? Como poderia haver omissão, se há vedação legal expressa em sentido contrário? Mesmo que o Secretário de Saúde munido da mais pura benevolência resolvesse fornecer o medicamento pleiteado, estaria aqui, como hoje, sentado no banco dos réus enfrentando como parte autora o Ministério Público. Desse modo, não há sustentação para que os magistrados desse Tribunal atuem dentro de suas atribuições, uma vez que não há comprovado nos autos que a Secretaria de Saúde agiu ilegalmente e, muito menos, que houve qualquer tipo de omissão. Caso usurpando deferida a funções do as solicitação, Poder este Executivo, Tribunal além de estaria atuar em total ilegalidade ignorando de forma sorrateira as produções do Poder Legislativo. Afrontando veementemente o primado de separação dos poderes, primado este essencial para existência de um Estado de Direito. Cumpre apontar que, nesta contestação, não se faz defensável qualquer postura que vá de encontro ao direito à saúde e à vida, muito pelo contrário, ambos compreendidos enquanto direitos fundamentais. Há de se realizar, porém, um cotejo entre a universalidade das leis e as possibilidades orçamentárias no gerir do erário. Fica a pergunta: saúde para 35 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS quem? Nesse sentido, postula Derrida que a interferência do direito se faz por meio de atos de violência que buscam incluir, mas geram exclusão. Haveria, pois, formas de exclusão legítimas operadas pelo próprio Estado. O Município Recife, como explicitado nesta contestação, sob nenhuma circunstância, adota postura omissa ou insensível aos direitos supracitados. É necessário que haja, contudo, um juízo de adequação e de proporcionalidade. Este douto Juízo pretende priorizar o todo ou a parte? O individual ou o coletivo? O acesso de Raquel Lyra Lopes a um medicamento exacerbadamente oneroso e não regulamentado pela agência reguladora brasileira (ANVISA) ou a promoção controle de um ambiental, Sistema Único de Saúde manutenção da rede que básica contemple e da rede especializada de saúde voltados à prevenção e tratamento de mais doenças e pessoas? O Município do Recife apresenta nestes autos suas possibilidades orçamentárias e fomenta a necessidade de adotar-se uma noção comunitarista de justiça na análise no caso concreto – já que o todo é superior à parte, tendo a comunidade supremacia perante o indivíduo, conforme insere em debate Aristóteles: “[...] o Estado está na ordem da natureza e antes do indivíduo; porque, se cada indivíduo isolado não se basta a si mesmo, assim também se dará com as partes em relação ao todo. Ora, aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte do Estado; é um bruto ou um deus. A natureza compele assim todos os homens a se associarem.” (grifo nosso) (ARISTÓTELES, 1997 §11, p.15) Decorre daí a ideia desenvolvida por Aristóteles de que o local propício à atualização do homem seria a pólis. Tendo em vista que, é na experiência política, que o homem vai de 36 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS existência potencial a existência atual. A pólis, enquanto comunidade natural, seria uma espécie de tecido social que direciona os homens uns aos outros. É nela que o indivíduo vem a viver e a existir, permitindo o bem viver em decorrência de ocorrer, na pólis, a atualização, feita pelo próprio homem, da sua natureza política. Nesse sentido, pontua Michael J. Sandel, em “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, que: “Se uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade, ela precisa encontrar uma forma de incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem comum [...] precisa encontrar meios de se afastar das noções da boa vida puramente egoístas e cultivar a virtude cívica.” (grifo nosso) (SANDEL, 2012, p. 325) No comunitarismo, há de haver a primazia do “bem” sobre o “justo”. Aristóteles aponta que o bem seria o aspecto central da ética e que, se através das virtudes tornamo-nos virtuosos, é possível traçar o seguinte paralelo: é praticando atos justos, que os próprios homens serão justos. O local dessa prática seria a própria comunidade política. A ideia de justo para Aristóteles, sabiamente, reside na proporcionalidade – como se evidencia no seguinte trecho de Ética a Nicômaco: “O justo nesta acepção é, portanto, o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade”. (ARISTÓTELES, 1992, 1331b). Imbuído desenvolve um apresentando-nos, de forte caráter no cerne influência aristotélica, comunitarista desta, uma em sua concepção Hegel teoria, de Estado bastante elucidativa ao caso em questão. O Estado faria do indivíduo um cidadão, à medida que, dialeticamente, devolve os indivíduos à unidade, retirando-os da dispersão de interesses privados presentes na sociedade civil, superando o 37 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS individualismo e o liberalismo. Concomitantemente, imprimiria o Estado, de forma dialética, a liberdade do indivíduo e sua singularidade, garantindo, através da lei, a realização de cada indivíduo. Tem-se, em Princípios da Filosofia do Direito, que: “O Estado como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo.” (grifo nosso) (HEGEL, §258, Princípios da Filosofia do Direito) Hegel Estado. Vai enquanto não ao espaço concebe encontro de uma separação da ideia realização da entre indivíduo aristotélica liberdade. da Para e polis ele, a dimensão humana é pública e a unidade do ético e do político reside na positividade do direito, de tal forma que, garantido pelo Estado, o Direito representa a racionalidade capaz de situar a vida comunitária como saída da vontade livre. Para Hegel, “A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade, e sim conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim conteúdo universal”. (HEGEL, 1976, p.263) O autor desenvolve um conceito de liberdade que é compreendido na relação com a totalidade. No entanto, embora a liberdade do indivíduo venha a ser limitada pelo Estado, este, por sua vez, realia aquele de forma ética, demonstrando que só se concebe a liberdade do indivíduo no “social”. Dessa forma, toda e qualquer pretensão de análise que atomize o caso relegue ao médica sem individual Estado, por indícios em detrimento simples de da apresentação eficácia coletividade de e prescrição medicamentosa e/ou apresentação clara do quadro clínico em questão, a imposição 38 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS da prestação Estado, ao garantir, medicamentosa realizar a é descabida. devolução simultaneamente, a do Tampouco individuo realização de à cada poderia o unidade e indivíduo, furtar-se ao que consta no DECRETO Nº 7508, DE 28 DE JUNHO DE 2011, em seu art. 28 o seguinte: “Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente: I - estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS; II - ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS; III - estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e IV - ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.” A parte impetrante alega ter direito ao acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica, no entanto, o fármaco solicitado de nome Lunaris não só não consta no RENAME, como também não consta na lista de medicamentos excepcionais – tal lista engloba doenças que acometem menor número de pacientes, como mal de Parkinson, Alzheimer e hepatites B e C, para os quais também há fornecimento gratuito de medicamentos. Para além disso, diferentemente do ocorrido em caso citado no sítio Conjur, em 9 de setembro de 2009, intitulado “Pacientes têm direito a remédios não listados pelo governo”, em que determinado medicamento não constava em listas oficiais, mas não possuía restrições expressas ao uso e comercialização, vide transcrição abaixo: “Apesar de o Lioresal 10 mg não constar de nenhuma das listas oficiais, destacou o juiz da 4ª Vara Federal, é descabida a negativa de fornecimento, pois não foram apontadas restrições quanto ao seu uso ou comercializa- 39 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS ção, além de o remédio estar registrado na Vigilância Sanitária e no Ministério da Saúde.” (http://www.conjur.com.br/2005-set09/pacientes_direito_remedios_fora_lista_oficial) O medicamento requerido por Raquel Lyra Lopes tampouco é registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, tornando o pedido de todo improcedente em função de lei que proíbe a compra. Não pretende a Secretaria de Saúde do Recife sob nenhuma hipótese rescindir compromissos firmados internacionalmente pelo Estado brasileiro acerca de conquistas em relação ao direito à saúde. Enquanto signatários do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e da então Declaração de Alma-Ata, países da América Latina e da América Central reconheceram o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde, destacando o acesso da população a medicamentos. O reconhecimento desse direito nas constituições federais acarretou o enfrentamento de uma série de ações judiciais contra os governos, requerendo fornecimento de medicamentos não previstos na lista de medicamentos essenciais dos respectivos sistemas públicos de saúde. É necessário pontuar que são muitas e bastante onerosas ao Erário ações como a de Raquel Lyra Lopes, que são impetradas anualmente no Brasil. “O número de ações judiciais contra os governos locaispode chegar perto de sete mil ao ano no Brasil, representando gastos milhões.3,4,11,21 A anuais concessão considerada uma forma de de até R$ 60,4 de medicamentos é judicialização da política de saúde” À luz das pertinentes ponderações lançadas por Stephen Holmes e Cass Sunstein, autores que reconhecem que todas as 40 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS dimensões de direitos fundamentais têm custos públicos, tem-se que é necessário operar escolhas alocativas e, a partir das finanças públicas, “levar a sério os direitos significa levar a sério a escassez”. (HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights: Why Libert Depends on Taxes. W.W. Norton &Company: Nova Iorque, 19). Gustavo Amaral, em Direito, Escassez e Escolha, aponta, ainda, que, sendo responsável por promover a justiça no caso concreto, o Poder Judiciário, não raro, não possui condições para analisar determinada pretensão em relação à prestação de direito social, inviabilizando a análise de consequências globais de destinação de recursos públicos em benefício da parte, com invariável prejuízo para o todo. Corrobora com essa ideia o então comunitarista Walzer ao identificar que: “A justiça é relativa aos significados sociais. Desta forma, a relatividade da justiça de desprende da clássica definição não relativa: dar a cada qual o seu devido, como minha proposta: distribuir os bens por razões “internas”. Trata-se de definições formais que requerem um complemento histórico, como me empenhei em mostrar. Não podemos dizer que isso deve ser dado a tal ou qual pessoa até que saibamos como estas pessoas se relacionam entre si por meio das coisas que fazem e distribuem; essencial modifica. o adjetivo das Há configuradas justo sociedades um número por um não que descreve, infinito número determina de vidas infinito de a vida somente a possíveis, culturas, religiões, visões políticas, condições geográficas, etc., possíveis. Uma determinada sociedade é justa se sua vida essencial é vivida de certa maneira fiel às noções compartilhadas de seus membros.” (grifo nosso) (WALZER, 1997, p.322, tradução nossa) 41 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Recorrendo-se a uma análise luhmanniana simplificada, é possível avaliar pormenorizadamente a relação entre acesso a medicamentos, direito, política e economia. Tendo a comunicação por base, a teoria social de Luhmann defende que esta é o elemento social responsável por produzir e reproduzir a sociedade. Imbuídos de caráter autopoiético, os sistemas sociais estabeleceriam ora fechamentos operacionais entre si, ora espécies de acoplamentos estruturais – por meio dos quais podem selecionar estímulos externos advindos do ambiente, sem que se arrisque a própria identidade do sistema dito. Em trabalho realizado acerca de decisões judiciais sobre o acesso aos medicamentos em Pernambuco, concluem Artur Stamford e Maísa Cavalcanti, conforme publicado na Revista de Saúde Pública, que: “O sistema do direito recusou a comunicação proveniente do sistema político sobre os recursos financeiros limitados do orçamento da saúde (ideias centrais 1 e 2). À luz da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, observou-se a seletividade do sistema do direito, que operou com o código binário exclusivo legal/ilegal, em relação ao seu cognitiva entorno. desse Não sistema se constatou social no a abertura processo de comunicaçãosobre os recursos financeiros limitados para realização do direito à saúde. Essa abertura cognitiva é importante porque interfere na realização do direito à saúde, especialmente no acesso aos medicamentos(grifo nosso) (STAMFORD, Artur; CAVALCANTI, Maísa, 2012) Deve-se, esfera do pois, Direito superar que, nas a pretensão decisões totalizante judiciais de da casos similares, ocorre. Isto é, sob pena de tornarem-se decisões teoréticas sem o mínimo de conexão com a realidade orçamentária de um município e mesmo com a concepção de bem comum desenvolvida pela comunidade, é preciso que se leve em 42 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS conta as pressões dos outros sistemas, como o econômico, por exemplo. Fica a indagação, senhores Juízes: estariam dispostos a atentar-se única e exclusivamente à prescrição médica da parte impetrante, abdicando da sua posição de julgadores em função de um médico/a? Segue citação de parágrafo: "Senhor Presidente, o debate é bastante criativo e a dificuldade é imensa. Na linha desse raciocínio, quem estará julgando é o médico que prescreveu a medicação . Estamos em mandado de segurança e, no caso concreto, o impetrante é o advogado. Não estamos sabendo se ele tem condições ou não de suportar o ônus das três medicações. Não sabemos se esta medicação é a mais indicada e, mesmo assim, estamos a conceder a ordem. Não posso concordar com isso, Excelências, porque senão, todas as vezes em que vier uma prescrição, já estará decidido qual é o Estaria abdicando caminho da da minha jurisdição: posição de conceder. julgador. Então, acompanho a Relatora, colocando esses aspectos para reflexão, porque se a simples prescrição significa o acolhimento temos mais o da jurisdição que julgar, para fazer porque nem cumprir, sequer não estamos examinando dentro de um cotejo de experts, de pessoas técnicas da área, simplesmente o que dizendo é e o que “alguém não é; estamos prescreveu, então concedemos”. Não vejo situação que possa ser concebida em mandado de segurança, e interpretação esse mais esforço de consentânea tentar aos dar uma ditames constitucionais, com a criação de grupos de apoio para o magistrado poder se localizar nesse clima, haja vista o magistrado não ser médico e nem conhecer a situação de saúde pela qual o impetrante passa. 43 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Conceder sempre, no meu entendimento, data máxima venia, seria não julgar. Acompanho a eminente Relatora." A Secretaria de Saúde do Recife, enfim, sugere a necessidade de se ater – conforme nos apresenta o estudo de Artur Stamford e Maísa Cavalcanti –, gradativamente, a que deve: “o sistema do direito utilize o “ganho terapêutico” do fármaco como critério de decisão, em substituição ao critério da prescrição médica, para garantir benefícios comprovados cientificamente ao tratamento dos cidadãos e mitigar a judicialização da política de saúde.” IV. DO REQUERIMENTO Diante dos questionamentos apresentados, que possibilitam a abertura hermenêutica, além de conceitos afetos a questão e tendo em vista fatos concretos, como alto valor do medicamento e consequente impacto ao orçamento municipal, afetando a saúde de uma parcela imensamente maior da população, requerse o recebimento da presente Contestação e seja julgado improcedente o pedido apresentado no Mandado de Segurança. Nestes Termos, Pede Deferimento. Recife-PE, 20 de novembro de 2013. Advogados da Prefeitura Ingrid Gomes Martins OAB 12/0120691 Thalita Najara da Silva Santos OAB 12/0136546 44 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS Francisco de Assis de Sousa Silva Rodrigo José Viana Ottoni OAB 12/0117991 OAB 12/0041481 Maria Letícia de Araújo Madeira Cantuário Pedro Paulo Menezes de Macêdo OAB 12/0128276 OAB 10/0019307 Letícia Bettina Granados Goulart GeisaToller Correia Romão OAB 12/0124980 OAB 10/005961-9 45 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Brasília: UNB, 1992. ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Brasília: UNB, 1997. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação: referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002. 24 p. 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Saúde 46 Av. Cais do Apolo, 925, 3º andar, Bairro do Recife, Recife / PE CEP: 50030-903 PREFEITURA MUNICIPAL DE RECIFE – PE SECRETARIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS pública. Suspensão de Tutela Antecipada nº 245. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 22 de outubro de 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurispruden cia.asp?s1=%28%28IRAI+CASTRO+DA+ROSA%29%29+E+S%2EPRES%2E&base= basePresidencia&url=http://tinyurl.com/ohq393z>. Acesso em: 31 out. 2013. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Saúde pública. Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175. União e Clarice Abreu de Castro Neves. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 17 de março de 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta 175.pdf>. Acesso em: 28 out. 2013. COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2010. GONTIJO, Fernanda Belo. Para desfazer equívocos. 12 de Julho de 2010. 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