Dama do Berlaymont “Hoje todos serão berlinenses” (Manchete do jornal Público, 25 de Março de 2007) Cinquenta anos de integração trouxeram os líderes europeus à mesma cidade onde, cerca de quatro décadas antes, John Kennedy ousara afirmar “Ich bin ein Berliner”. Proferidas no epicentro da Guerra Fria, quando o Muro se erguia como uma profunda cicatriz no coração do Velho Continente, as palavras do então Presidente dos Estados Unidos da América cedo ganharam força de aforismo, metamorfoseando-se ao sabor de capítulos marcantes da nossa História recente. “Somos todos americanos”, garantiu a publicação francesa Le Monde a uma Nova Iorque dilacerada por uma ofensiva terrorista sem precedentes, abrindo caminho a que o diário Público sublinhasse, no rescaldo do 11 de Março de 2004, a vontade de sermos “todos espanhóis”. E não menos sintomática será a ideia, expressa por José Manuel Barroso durante uma visita à Lituânia, de que “agora somos todos novos europeus”, num claro desvio face ao sentido da frase primordial (solidariedade em tempo de conflito), reciclado numa outra mensagem (cooperação em período de paz). Distintos na formulação e no contexto, tais enunciados partilham de uma idêntica dimensão emblemática, sedimentada por sentimentos de pertença a um grupo que não habita mais do que o imaginário de cada um. Tal como a Europa sonhada por alguns em 1957, que se converteu no projecto de todos em 2007. E todos se converteram, por sua vez, em berlinenses. A construção europeia constitui o “fermento” – Jean Monnet, decerto, concordaria – de uma unidade que desde logo extravasou as coordenadas económicas como seu objectivo último. Ora, talvez o corolário deste raciocínio radique na constatação, algo provocatória e paradoxal, de que em inúmeras situações a União Europeia acaba por se tornar imperceptível, de tão presente que está nos nossos esquemas cognitivos, hábitos culturais e redes sociais. Pela força motriz da UE redefiniram-se cartografias geográficas (pensemos na promissora “Política de Vizinhança”), estratégicas (aponte-se o “Eixo francoalemão” ou a dinâmica das “várias velocidades”), económicas (recordemos a inédita “Zona Euro”), ideológicas (com os binómios “Velha” e “Nova Europa” ou “Europeístas” e “Eurocépticos”) e, quiçá, ontológicas (traduzidas nas alegorias do Homo Erasmus, do Homo Comunitarius, em suma, do Homo Europeus). Longe de meras comunidades imaginadas, estes referentes deixam entrever uma vasta e complexa teia de intersecções político-identitárias, enraizadas numa linguagem própria que transborda as páginas de dicionários, glossários e obras técnicas. A simples associação do adjectivo “europeu” a diversos conceitos jurídicos-institucionais (“Parlamento”, “Cidadania” ou “Constituição”) e simbólicos (“Espaço Público”) imprimiu um carácter de urgência à reflexão sobre os horizontes de governação e poder que se rasgam a partir dos arquétipos originários. Nesta linha de pensamento, revela-se igualmente incontornável a emergência de uma miríade de vocábulos – uma espécie de “Europês”, para recorrer a um “metaneologismo” – que encontram no prefixo “euro-“ (“Eurodeputados”, “Eurocracia”, “Eurodivisa”, “Eurolândia” ou “Euronews”, entre outros) a sua mais evidente configuração. Atente-se, a este respeito, no título atribuído pelo semanário Expresso ao artigo dedicado às celebrações na Alemanha: “Eurofesta em Berlim” (24.03.07) [itálico nosso]. Com efeito, “Bruxelas” há muito que deixou de designar uma vulgar capital para se converter numa voz transversal às notícias que invadem o nosso quotidiano. Adicionando-lhe um vasto leque de verbos performativos (como “decidir” ou “permitir”), os jornais, a rádio e a televisão imprimem-lhe os contornos personificados de um verdadeiro actor político. E não devemos esquecer, aliás, a exímia capacidade com que os meios de comunicação dilatam e reinventam o jargão comunitário: bastará descobrir na fotografia conjunta dos líderes da UE, registada pelas lentes mediáticas no encerramento dos Conselhos Europeus, um autêntico prolongamento visual da ideia de “família europeia”, já evocada por Winston Churchill em 1946 e de imediato absorvida e eternizada pelo universo semântico da União. Outrora perseguida e capturada, actualmente é a “princesa” que vem no nosso encalço e – por vezes, de modo tão natural como imprevisível – nos impõe a sua (omni)presença. E se a narrativa mitológica nos dá conta de como foi difícil avistála, na realidade hodierna não existe local onde não a encontremos. Fomos todos europeus por ocasião de comemorações como a adopção do euro ou o cinquentenário da UE. Contudo, fomo-lo também em momentos de franca apreensão; por exemplo, quando o “não” ao Tratado Constitucional tornou imperativo o debate sobre o porvir do continente. Do rapto mitológico ao repto político, talvez ser europeu signifique, afinal, nunca abdicar dessa busca incessante por uma “casa” que, hoje e sempre, representa “o nosso futuro comum” (Declaração de Berlim). O criador confunde-se, pois, com a criação: a Europa une os europeus; os europeus unem a Europa.