DO TRÁFICO OCEÂNICO DE ESCRAVOS AO ÓDIO QUE HOJE CRESCE NO BRASIL: UM RETRATO HISTÓRICO Um pouco de História sempre é importante para uma compreensão mais profunda sobre que Brasil é este em que nos encontramos e o porquê, de tempos em tempos, do crescimento da VISIBILIDADE de uma realidade de ódio, preconceito, manipulação, violência contra a comunidade negra, contra o direito de igualdade das mulheres, de perseguição a minorias sexuais ou contra os direitos sociais. Falamos em "visibilidade" por entender que este ódio presente é histórico, faz parte da formação das elites econômicas que dominam o país, mas muitas vezes não se expõe de forma tão explícita devido a correlação de forças políticas lhe ser desfavorável. Pretendemos, na medida em que isto se torne possível, apresentar mais análises de cunho histórico (será que alguma não o foi?) que permitam uma compreensão mais profunda dos dilemas e interesses que se colocam no cenário atual, para a sociedade brasileira, e que apontam para soluções ou retrocessos frente à necessidade permanente de avanços sociais e políticos. O texto que segue se divide em dois momentos, o de contextualização do objeto de que tratamos aqui: a sociedade brasileira enquanto uma formação histórica, isto é, enquanto uma coletividade formada e condicionada por fatores históricos que a explicam, atualmente. E a análise de algumas destas condições históricas (fatores) que determinaram a maneira como a sociedade brasileira foi sendo determinada a assumir os aspectos que hoje nos ajudam a compreendê-la e, se possível, transformá-la. O CONTEXTO HISTÓRICO Como sociedade, nascemos de uma condição baseada e dominada pela violência coletiva e pela desigualdade social, praticadas e defendidas por uma elite econômica que sempre se julgou como proprietária exclusiva da terra (latifúndio), da população (escravidão e coronelismo rural), das mulheres (o patriarcalismo que via e ainda vê à mulher como uma propriedade da vontade masculina) e da justiça (controlada e utilizada diretamente pelos mesmos senhores e coronéis ou para atender exclusivamente aos interesses destes que são, na verdade, a mesma elite social, mas retratada de forma diferente em acordo com as condições históricas onde atuaram). Ambas elites, senhores de escravos e coronéis, enquanto sujeitos históricos que sempre exerceram seu poder atreladas e associadas a grandes interesses internacionais, coexistem atualmente na figura das elites retrógradas e atrasadas que dominam ao país. Coexistem, portanto, na herança de um poder político e cultural conservador e intolerante que, neste momento, mobiliza-se novamente contra avanços coletivos, sociais e políticos de caráter progressista e transformador reivindicados nos últimos anos. A extraordinária e bela obra cinematográfica "Uma História de Amor e Fúria" retrata de forma sublime a esta sociedade brasileira aqui descrita na sua condição de vítima permanente destas elites retrógradas e dependentes dos grandes interesses internacionais. Uma cópia em excelente qualidade desse filme pode ser baixada aqui (via torrent): https://thepiratebay.se/…/Uma_Hist_oacute_ria_de_Amor_e_F_u… Esse modelo social baseado na violência, na exclusão, no preconceito e na intolerância nasce da decisão portuguesa de aqui estabelecer um empreendimento econômico que assegurasse, ao mesmo tempo, uma atividade lucrativa e o controle político, militar e territorial sobre as terras que, na América, foram ocupadas por Portugal. Este empreendimento empresarial visando ao lucro e ao enriquecimento de uma elite adotou, por sua vez, como modelo à escravidão e ao extermínio de milhões e milhões de pessoas, por mais de trezentos anos consecutivos, sequestradas e retiradas da África para aqui se tornarem recurso econômico e força de trabalho escrava. Além da perseguição e extermínio da maioria das comunidades locais (tribais) que aqui se encontravam quando da invasão europeia, a violência histórica que explica ao Brasil, a formação histórica de nossa sociedade, portanto, é o tráfico de escravos e o genocídio permanente (ininterrupto) de milhões de pessoas mortas nas plantações de cana-de-açúcar e nos cafezais, ou devido as condições surgidas ao redor destas atividades. ALGUNS FATORES HISTÓRICOS DETERMINANTES Esta semana nos chegou às mãos um importante estudo sobre as embarcações utilizadas para atravessar ao oceano Atlântico transportando, em porões ou no convés de navios abarrotados, às pessoas que terminariam por ter suas vidas consumidas sob a escravidão. Para facilitar a compreensão das premissas ou das informações tratadas adiante, disponibilizamos aqui o texto referido: https://medium.com/…/al%C3%A9m-de-tudo-dissimulados-f5292eb… Os dados do estudo em anexo são valiosos para compreendermos com profundidade toda a tragédia que a escravidão representou não apenas nas fazendas americanas (Brasil, América Espanhola, Caribe e EUA), mas também o papel terrível cumprido pelo tráfico em si mesmo. A situação nestes quase quatro séculos de tráfico de pessoas submetidas à escravidão foi tão brutal que é impossível compreender à África de hoje, a sua condição trágica e atual de subdesenvolvimento, sem compreender ao papel do tráfico de escravos na História da África. Mas embora as informações da matéria citada anteriormente sejam importantíssimas para se compreender o papel do tráfico de pessoas submetidas à escravidão, a quantidade de vítimas fatais durante os longos translados oceânicos está subdimensionada naquele estudo. Em geral, a quantidade de mortos durante estas viagens era ainda maior do que os dados apurados por funcionários alfandegários da época, de onde os dados são extraídos, chegando a até 30% das pessoas acorrentadas e em péssimas condições de acomodação e alimentação. A lógica do sistema de tráfico e seu alto lucro estão por trás desta enorme quantidade de vítimas em alto mar. Pois quanto mais pessoas em condição de escravidão fossem embarcadas, maior o número das que terminariam por chegar vivas ao seu destino. Assim, ao invés dos traficantes acomodarem 120 pessoas e transportá-las em condições menos agressivas a sua sobrevivência, embarcavam 400 ou 500 no mesmo espaço destinado inicialmente para as 120. Com isso, havia a certeza de que não menos do que 280 ou 300 destas pessoas chegariam vivas. Ao longo da viagem as perdas de vida, nessas condições, eram elevadas. Mas eram compensadas pelo preço imposto aos sobreviventes na hora da venda. E o traficante pagava relativamente pouco pela pessoa escravizada adquirida na África, quando comparado ao preço que ele impunha ao vender a essa na América. O capitalismo brasileiro, ao contrário do europeu que surgiu da Revolução Industrial, nasce desta lógica de compra e venda de pessoas e do cálculo de lucro sobre a quantidade de pessoas que poderiam morrer durante a travessia do Atlântico. E imprime sua lógica sobre a vida econômica da sociedade que aqui se ergue ao longo dos séculos seguintes. Além disso, os números de mortos nunca informam a quantidade alta de mulheres que eram embarcadas exclusivamente para serem abusadas durante a viagem, que em média ficavam entre 50 e 70 pessoas. Estas meninas e moças sofriam vários abusos por dia, de todos os membros da tripulação, e devido as longas viagens, de mais de cinquenta dias, acabavam por "correr o risco" chegarem ao fim da viagem grávidas. Ocorre que não havia mercado no Brasil, por exemplos, para escravas que chegassem grávidas. Nenhum "senhor" queria "perder seu tempo de trabalho" (comprado de traficantes) devido a uma gravidez que "atrapalharia o rendimento da escrava" (e que poderia levá-lo ao "prejuízo" de uma morte prematura, devido ao trabalho duro e pesado em confronto com a situação física mais frágil da pessoa devido à gravidez). Por isso, mulheres eram bem menos procuradas nos mercados de escravos na América portuguesa e espanhola (nos EUA, contudo, havia mercado para mulheres). E também porque o escravo mais cobiçado era do sexo masculino e jovem, capaz de render lucro através de seu trabalho por muito mais tempo, devido a sua condição física e jovialidade. E em geral morriam muito jovens, por volta dos 28 ou 30 anos, consumidos pela violência permanente do trabalho, da "disciplina" e do controle imposto a eles (ironia e tragédia histórica ao mesmo tempo, os Racionais MC's, chamando a atenção para a altíssima taxa de mortes violentas entre jovens negros nas periferias brasileiras, observam que "cheguei aos 27, sou mais um sobrevivente"). Assim, devido a situação de provável gravidez, as moças e meninas embarcadas eram simplesmente lançadas ao mar, acorrentadas umas as outras num assassinato em massa e a sangue frio, quando os navios negreiros começavam a se aproximar das costas americanas. Estes números, entretanto, sequer aparecem nos registros das vítimas das longas viagens e das condições impostas nessas, por exemplo, pois estas garotas não eram vistas como "carga", como "mercadoria" a ser vendida, mas como propriedade pessoal da tripulação, adquiridas por preços módicos, armas e outros produtos na África. E descartadas para morrerem afogadas quando os traficantes (a tripulação dos navios negreiros) não via mais necessidade das mesmas. A origem histórica da violência política contra os mais pobres, da exclusão e da desigualdade social, do patriarcalismo que se transforma em machismo, da intolerância, do preconceito racial, da forma como a propriedade é constituída contra os interesses coletivos de toda a sociedade e o sentimento das elites que o país não pertence, de fato, ao seu povo (daí o "vai para Cuba" ou o desinteresse pela educação pública) são todos elementos constituídos historicamente e tem por base o tráfico e a escravidão humana, na origem da sociedade brasileira. Para a pessoa escravizada, a violência era a pedagogia, a forma como era ensinada a ser um escravo produtivo. A violência, portanto, em todos os seus formatos, é o principal elemento de constituição histórica da sociedade brasileira. E esta violência tem por base o tráfico e a escravidão humana, que são adotadas a partir do formato original adquirido pela ocupação portuguesa e pela decisão de aqui construir uma empresa que assegurasse, ao mesmo tempo, uma atividade lucrativa e o controle político, militar e territorial sobre as terras. Para isto foi utilizado um sistema de raptos, submissão e extermínio de milhões e milhões de pessoas, por mais de trezentos anos, o qual determinou historicamente que a sociedade brasileira daí surgida trouxesse em si mesma um modelo social baseado na violência, na exclusão, no preconceito e na intolerância pela parte daquelas que são consideradas, até hoje, as elites mais retrógradas e atrasadas de todo o continente americano. E é através da presença destas elites historicamente retrógradas e atrasadas que, de tempos em tempos, assistimos ao crescimento da VISIBILIDADE de uma realidade baseada no ódio, no preconceito, na manipulação, na violência contra a comunidade negra, contra o direito de igualdade das mulheres, na perseguição a minorias sexuais ou contra os direitos sociais coletivos, como no caso atual da terceirização da força de trabalho. Publicado em https://www.facebook.com/monopolio.informacao