Negros Heróis: histórias que não estão no gibi Roniel de Jesus Felipe Etimologicamente gibi é substantivo masculino de origem brasileira, que significa molecote negro ou negrinho, incluindo o ranço pejorativo e racista do termo. Mas a história emprestou outro sentido à palavra, que foi associada ao gazeteiro, ou vendedor de jornais, pregando nas esquinas as edições mais recentes com as “últimas notícias”. Como os jornais foram o suporte primeiro das histórias em quadrinhos, gênero primordialmente endereçado às crianças, Gibi (como substantivo próprio) foi escolhido para designar uma das primeiras publicações brasileiras para o público infantil que, um pouco pelo ineditismo, outro tanto pelo sucesso da revista, acabou virando designativo genérico de publicações em quadrinho, forma apropriada, no varejo, pelo idioma popularmente falado, que perdura até agora. Mas o ciclo de transformações não termina aí. A dinâmica que, segundo Ferdinand Saussure é característica intrínseca do idioma, agregou a palavra em tela à expressão “não estar no gibi”, no sentido de indicar aquilo que tem relevância social, é inusitado, especial ou diferenciado, mas nem sempre (re)conhecido ou registrado como tal. Embora longo, esse preâmbulo ao comentário do livro-reportagem de Roniel Felipe aquilata as dimensões mais significativas da obra, plasmadas pela preocupação em divulgar, no sentido jornalístico do termo, aquilo que é socialmente relevante, mas não é (re)conhecido pela parte maior da sociedade. Por isso mesmo, antes de qualquer aspecto, Negros Heróis apresenta-se como trabalho (e resultado) de jornalista, sem deixar de incluir oportunas, convenientes e adequadas inserções emprestadas da sociologia, da história e um pouco da antropologia. Essa formatação jornalística do livro explica-se pela formação em jornalismo do autor e das condições em que a obra foi concebida, enquanto projeto vinculado à conclusão da graduação em comunicação social que o autor completou em dezembro de 2007. Mas se o jornalismo representa o cinzel que dá forma ao livro, conteúdo e tema ultrapassam o mero perfil de notícia (aquilo que a sociedade precisa saber, como querem as teorias sobre opinião pública), para revelarem-se alojados em instâncias mais pessoais, referentes à personalidade social, psíquica e racial do autor. O amalgama entre a formatação racional, norteada pela técnica jornalística, sobre um tema do qual Roniel Felipe não é só observador, mas também agente e com o qual se encontra (e se revela, é importante notar) emocionalmente envolvido, torna Negros Heróis um relato objetivo, equilibrado e bem estruturado, sem o posicionamento frio e distante do tecnicismo puro, uma vez que é permeado também pela paixão e pelo assumido posicionamento do autor. É, portanto, uma obra em que cérebro e coração se encontram, resultando, já nas primeiras páginas, em um processo que aproxima muito o leitor do autor, criando uma positiva empatia norteadora da leitura. A partir desse pacto entre autor e leitor, a obra dá conta plena daquilo que se propõe, quer seja, colocar no gibi, tornar conhecidas e, no entender do autor, reconhecidas, as contribuições política e cultural de personagens que atuaram socialmente, mas permanecem historicamente alijadas dos registros e, portanto, das lembranças e do reconhecimento dessa sociedade em que aturam, especialmente no que se refere à cidade de Campinas, onde centraram sua militância. O caminho escolhido por Felipe para colocar no gibi as personagens e as personalidades militantes de Laudelina de Campos Mello e Antonio Carlos “TC” Santos Silva orienta-se pela questão racial, mais especificamente a questão do negro, misturado mas não integrado a uma sociedade (a brasileira, urbana e contemporânea) que nasceu miscigenada, mas ainda não encontrou a senda da integração racial, insistindo da perpetuação do preconceito, como revela o livro. Trilhando esse caminho, Felipe sugere que uma das razões para que tantas personagens socialmente atuantes e militantes permaneçam fora do gibi é a cor da pele, o que torna muito menor do que deveria ser a presença de representantes da raça negra nos registros formais e oficiais que desenham o panteão da história. Nesses termos, conferir Negros Heróis não é só um exercício de conhecimento de personagens marcantes, mas historicamente desdenhadas, como também um convite à reflexão sobre os critérios que norteiam a inclusão de heróis na galeria da memória social, ou metaforicamente, como sugere o autor, no gibi. ______________ Wagner J. Geribello Jornalista, sociólogo, professor nos cursos de comunicação social da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, atuou profissionalmente na imprensa em televisão, jornalismo impresso e assessoria de comunicação social pública e privada.