1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
LUZIANA RAMALHO RIBEIRO
“... O QUE NÃO TEM GOVERNO...”
ESTUDO SOBRE LINCHAMENTOS
JOÃO PESSOA, 2011
2
“... O QUE NÃO TEM GOVERNO...”
ESTUDO SOBRE LINCHAMENTOS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB- Campus I), em
cumprimento aos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutora em Sociologia.
LUZIANA RAMALHO RIBEIRO
Prof. Dr. ARTUR FRAGOSO DE ALBUQUERQUE PERRUSI
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES- CCHLA
ORIENTADOR DA TESE
JOÃO PESSOA, 2012
3
R484q
Ribeiro, Luziana Ramalho.
“...o que não tem governo...”: estudo sobre
linchamentos / Luziana Ramalho Ribeiro.-- João
Pessoa, 2011.
234p.
Orientador: Artur Fragoso de Albuquerque Perrusi
Tese (Doutorado) – UFPB/CCHLA
1. Sociologia. 2. Violência. 3. Práticas de
Estado.
4. Linchamentos. .
UFPB/BC
CDU: 316(043)
4
“... O QUE NÃO TEM GOVERNO...”
ESTUDO SOBRE LINCHAMENTOS
APROVADA EM: 18 DE MARÇO DE 2011
COMISSÃO EXAMINADORA
JOÃO PESSOA - 2011
5
À minha mãe e a todas as lembranças da
nossa vida em comum...
“E nunca perguntei o caminho sem me
contrariar. Sempre fui contrário a isso.
Sempre preferi interrogar e submeter à
prova os próprios caminhos.” (Assim
Falou Zaratustra – Friedrich Nietzsche).
6
AGRADECIMENTOS
À minha família: meu pai, minhas irmãs e os meus sobrinhos, com os quais
vivencio o sentimento de amor e conflito, mas sempre juntos!
Ao meu companheiro e maior amigo: Ari, que me mostrou algo para além do
niilismo.
Ao meu orientador Perrusi, figura erudita, dialógica e melhor terapeuta que já
tive.
Aos meus amigos: os “velhos e sempre confidentes” (Augusto; Jairo; Zulmira;
Maria Rodrigues; George; Eduardo Jorge), aos novos (Luziana, Anunciada, Brito) e aos
que já se foram... Saudades...
A todos os educadores e funcionários do PPGS com quem muito aprendi,
especialmente ao Professor Adriano de Léon.
Aos componentes da banca examinadora pela disponibilidade e contribuição
com este trabalho.
7
RIBEIRO, Luziana Ramalho. O que não tem governo: estudo sobre linchamentos.
João Pessoa- PB: UFPB, 2011. P. 234.
RESUMO
Nesse trabalho tem-se a pretensão de discutir a relação entre o estabelecimento da
modernidade e a busca para constituir o uso legítimo da violência pelas práticas de
Estado. Tendo como tese a impossibilidade de que a “realidade”, socialmente
construída, possa concretizar a intenção do ideário da “ordem, do bem comum, do
progresso e da vontade geral”, aborda-se o caso dos linchamentos e eles são trazidos à
tona como um exemplo da resiliente e rizomática vontade de potência. Assim, ao
mapear as diferentes técnicas modernas de governamentalidade, realizou-se uma
problematização do paradigma do uno, tentando-se apresentar a sempre reincidente
relação entre desejo de ser uno e o caos. Realizou-se também uma crítica à invenção do
objeto dito científico e ao corolário metodológico que visa “capacitar-nos” a descobrir,
analisar e apresentar resultados científicos. Consultando meios de comunicação de
massa, mapeou-se, na Paraíba de 2001 a 2010, 34 casos de linchamentos e observou-se
que em todos os casos há um “tipo ideal” de vítima que é o homem entre 20 a 40 anos e
que seja promotor dos crimes de violência sexual; roubo e acidente de trânsito. Os
linchamentos são motivados quando acontecem crimes contra a pessoa ou propriedade e
raramente são passíveis de punição. Os linchamentos nos acenam para uma tautologia
entre a relação que se pensava superada entre religião, “Estado” e sociedade, nos
mostrando que “nós linchamos” a vida considerada “impura” e que o linchamento tem
por função social evitar a escalada da violência.
PALAVRAS-CHAVE: Modernidade; Poder; Violência; Linchamento.
8
RIBEIRO, Luziana Ramalho. which has not government: study on lynchings. João
Pessoa- PB: UFPB, 2011. P. 234.
ABSTRACT
In this work one has the intention of discussing the relationship between the Modernity
and the search for instituting the legitimate use of violence by State practices. Starting
from the point of view according to that it is impossible the socially built reality in
materializing the desire for order, welfare, progress and the general will ideal, one
approaches the lynchings case and we light them as an example of the resilient,
ryzomatic wish for power. Therefore, when we map different modern governability
techniques we put into question the Uno Paradigm, trying to associate the recurrent
relation between the desire of being uno and chaos. We also made a critic to the said
scientific object invention and to the methodological corollary which wants to make us
able to discover, analyze and present scientific results. Analyzing press mass media in
Paraíba, from 2001 until 2010, we found out 34 lynching cases. We observed that there
is an “ideal type of victim”, who is a man between 20 and 40 years old, sexual offender
or robbery or traffic accident impetrator. Lynchings happen when there are crimes
against persons or properties and seldom are they punished. Lynchings point out to a
relationship among Religion, State and Society, and they show that we lynch life
considered impure and that they have the social function of avoiding increasing
violence.
KEY WORDS: Modernity; Power; Violence; Lynching.
9
RIBEIRO, Ramalho Luziana. Le gouvernement n'a pas: une étude de lynchages. João
Pessoa: UFPB, 2011. p. 234.
RÉSUMÉ
Ce travail a l'intention de discuter de la relation entre l'établissement de la modernité et
la quête à l'utilisation légitime de la violence par la pratique des États. Prenant comme
la thèse qu'il est impossible que la «réalité» est socialement construite, peut réaliser
l'intention de la notion de «l'ordre, le bien commun, le progrès et la volonté générale»,
couvre les cas de lynchage et ils sont mis en lumière comme un exemple de volonté
rhizome et résilient au pouvoir. Ainsi, par la cartographie des différentes techniques de
gouvernementalité moderne, il ya eu une remise en cause du paradigme de l'un, en
essayant de répéter le désir toujours présent à une relation entre un et le chaos. Il y avait
aussi une critique de l'invention objet appelé corollaire scientifique et méthodologique
qui vise à "nous permettre" de découvrir, analyser et présenter des résultats
scientifiques. Se référant aux médias de masse, il a été cartographié, Paraiba 2001 à
2010, 34 cas de lynchages et a constaté que dans tous les cas, il est un «type idéal» de la
victime est un homme entre 20 à 40 ans et est le promoteur des crimes de violence,
sexuelle et le vol d'accidents de la circulation. Les lynchages sont motivés quand ils ne
les crimes contre des personnes ou des biens et font rarement l'objet de sanctions.
Lynchages dans le vague à une tautologie entre la relation entre la religion a été pensé
pour surmonter, "État et la société, en nous montrant que« nous lyncher "la vie
considéré comme« impur »et que le lynchage est une fonction sociale pour éviter
l'escalade de la violence.
MOTS-CLÉS: Modernité ; De puissance ; La violence ; Les lynchages.
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Atrocidade nos linchamentos no Brasil, conforme a região (Em %) ........... 156
Tabela 2 - Brasil: Distribuição dos índices de participação, conforme o motivo do
linchamento ou tentativa de linchamento (Em %) ...........................................157
Tabela 3 - Cidades onde ocorreram os linchamentos .................................................... 193
Tabela 4 - Cidades onde ocorreram as tentativas de linchamentos ............................... 193
Tabela 5 - Crimes praticados .........................................................................................194
Tabela 6 - Idade do sujeito linchado.............................................................................. 194
Tabela 7 - Sexo do sujeito linchado...............................................................................195
Tabela 8 - Naturalidade do sujeito linchado .................................................................. 195
Tabela 9 - Naturalidade das vítimas .............................................................................. 195
Tabela 10 - Onde ocorreram os linchamentos ............................................................... 195
Tabela 11 - Como ocorreram os linchamentos .............................................................. 196
Tabela 12 - Quantas pessoas participaram? ................................................................... 196
Tabela 13 - Empresas de segurança privada autorizadas no Brasil – 2010 ................... 200
Tabela 14 - Demanda por vigilância na administração pública –..................................201
11
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Linchamento nos Estados Unidos em 1889 .................................................... 15
Figura 2 - Isto não é um cachimbo, René Magritte ......................................................... 31
Figura 3 - O grito, Edvard Munch ................................................................................... 60
Figura 4 - A malvada Vox Populi.................................................................................. 104
Figura 5 - Linchamento Omaha Nebrasca ..................................................................... 126
Figura 6 - Salvador Dali ................................................................................................ 202
Figura 7 - Surrealismo Salvador Dali ............................................................................ 211
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: “...O QUE SERÁ, QUE SERÁ?...” ................................................ 15
1
2
3
CAPÍTULO - “... QUE ANDA NAS CABEÇAS? ANDA NAS BOCAS?...”....31
1.1
ORDEM-DESORDEM?
31
1.2
INVENTAR OBJETOS OU REIFICAR A SI MESMO? ................................ 38
1.3
PENSAR O OBJETO É SEMPRE REPRESENTÁ-LO?.................................40
1.4
A ”INUTILIDADE” TAMBÉM PODE SER “ÚTIL?” ...................................45
1.5
MAS O QUE FAZER QUANDO OS DEUSES FORAM MORTOS? ............49
1.6
FALAR DA “COISA” NÃO É FALAR DE NÓS MESMOS? ........................ 54
CAPÍTULO - “... QUE TODOS OS AVISOS NÃO VÃO EVITAR...” ............60
2.1
QUANDO O PODER SOBRE ALMAS VIRA FORÇA SOBRE CORPOS ... 60
2.2
GOVERNO DAS ALMAS, DOS HOMENS E CONTRA CONDUTAS ....... 62
2.3
“MODERNO E ANTIQUADO”: “PRÁTICAS DE ESTADO” NO BRASIL?83
CAPITULO - “... O QUE ESTÁ NA ROMARIA DOS MUTILADOS; NO
PLANO DOS BANDIDOS, DOS DESVALIDOS...” ........................................ 104
3.1
A MULTIDÃO PERSONIFICA A FÊNIX? .................................................. 104
3.1.1 Dobras e lateralidades da sociedade punitiva contemporânea .................. 106
4
CAPÍTULO - “...O QUE NÃO TEM CERTEZA NEM NUNCA TERÁ...:
QUE NÃO TEM TAMANHO...”. .......................................................................126
4.1
UM POVO “ORDEIRO” ENTRA EM GUERRA: O LINCHAMENTO DE
CHAPECÓ .................................................................................................................126
4.2
LINCHAMENTO EM 17 ATOS: ESPETÁCULO DE SUPLÍCIO E
CONIVÊNCIA...........................................................................................................132
4.2.1 “Os estudos sobre linchamento” ................................................................ 134
4.3
O TEATRO DA “FORÇA DO POVO”: LINCHAMENTOS NA PARAÍBA170
4.3.1 “Esquartejamento em Picuí” ...................................................................... 171
4.3.2 “Em Alhandra, Polícia facilita linchamento” ............................................171
13
4.3.3 “Assaltante de saidinha de banco é linchado” ...........................................172
4.3.4 “Assassino linchado pelos próprios presos” .............................................. 172
4.3.5 “Pedófilo linchado em Cajazeiras” ............................................................172
4.3.6 “Ameaça de linchamento contra pedófilo em Santa Rita” ......................... 172
4.3.7 “Em João Pessoa, população tenta apedrejar acusado” ........................... 173
4.3.8 “População tenta linchar pedófilo na prisão” ........................................... 173
4.3.9 “Maníaco sexual sofre tentativa de linchamento” .....................................173
4.3.10
Em Pocinhos tentativa de linchamento contra pedófilo .......................... 174
4.3.11
“Assassino sofre tentativa de linchamento em Aroeiras” ....................... 174
4.3.12
“Tentativa de linchamento em velório” .................................................. 174
4.3.13
“População tenta linchar pastor pedófilo em Santa Rita” .....................174
4.3.14
“Agressores sofrem tentativa de linchamento”.......................................175
4.3.15
“Em delegacia, estuprador de criança sofre tentativa de linchamento” 175
4.3.16
“Delegacia é invadida por linchadores” ................................................ 175
4.3.17
“Aliados políticos tentam linchar opositor” ........................................... 175
4.3.18
“População de Sumé tenta linchar diretor do DNOCS” ........................ 175
4.3.19
“Atropelamento e tentativa de linchamento” ..........................................176
4.3.20
“Índios revoltados contra atropelamento” ............................................. 176
4.3.21
“Doente mental é linchado e preso” .......................................................177
4.3.22
“Atropelamento incita tentativa de linchamento” .................................. 177
4.3.23
“Atropelamento bárbaro revolta moradores” ........................................177
4.3.24
“Moradores tentam linchar assaltante” .................................................177
4.3.25
“Moradores tentam linchar motorista” ..................................................178
4.3.26
“Ladrões são linchados no bairro de Manaíra” .................................... 178
4.3.27
“Presidiários lincham” ...........................................................................178
4.3.28
“Albergados lincham” ............................................................................ 179
4.3.29
“Acidente de trânsito leva a linchamento” ............................................. 179
4.3.30
“População tenta linchar assassino de mulher” ....................................179
4.3.31
“Linchamento contra pedófilo no sertão” .............................................. 179
4.3.32
“ Padre tarado foge para não ser linchado” .......................................... 179
4.3.33
“Linchador de idosa é linchado” ............................................................180
4.3.34
“População enfurecida contra pai assassino” .......................................180
4.4
“NO ALTAR DA RECONCILIAÇÃO” ........................................................181
14
4.5
DA DIFICULDADE EM COLETAR OS DADOS: “A IMPRECISÃO DAS
FONTES”...................................................................................................................182
4.6
TABELAS: CASOS DE LINCHAMENTO NA PARAÍBA ......................... 193
4.7
“É POSSÍVEL CONFIAR NA JUSTIÇA?” ................................................... 198
5. CONCLUSÕES NÃO! NOVAS INQUIETAÇÕES! ............................................211
“... O QUE SERÁ QUE SERÁ?...” ................................................................ 211
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 217
15
INTRODUÇÃO: “...O QUE SERÁ, QUE SERÁ?...”
Figura 1 - Linchame.nto nos Estados Unidos em 1889
“Os soldados conduziram-no ao interior do pátio, isto é, ao pretório,
onde convocaram toda a corte. Vestiram Jesus de púrpura, teceram
uma coroa de espinhos e a colocaram na sua cabeça. Começaram a
saudá-lo: <salve rei dos judeus!> Davam-lhe na cabeça com uma vara,
cuspiam nele e punham-se de joelhos como para homenageá-lo.
Depois de terem escarnecido dele, tiraram-lhe a púrpura, deram-lhe de
novo as vestes e conduziram-no para o crucificar [...] Deram-lhe de
beber vinho misturado com mirra, mas ele não aceitou. Depois de o
terem crucificado, repartiram as suas vestes, tirando a sorte sobre elas,
para ver o que tocaria a cada um [...] Os que iam passando injuriavamno e abanavam a cabeça, dizendo: <olá! Tu que destróis o templo e o
reedificas em três dias, salva-te a ti mesmo! Desce da Cruz!” (Mc 15:
16, 23, 24).
“O acusado, Antônio Marcos Pereira do Nascimento, conhecido por
Antônio de Geraldo, que faria 37 anos no dia 2 de janeiro, solteiro e
pedreiro, foi preso e morto horas depois no interior de uma cela da
16
delegacia de Itaporanga por populares revoltados com o crime
cometido por ele. A criança e o acusado moravam na mesma rua:
conforme os levantamentos policiais, no começo da noite, a menina
brincava em frente à casa do homem, que vivia sozinho, e foi atraída
pelo maníaco para dentro da casa dele, onde terminou violentada,
torturada por socos e mordidas e estrangulada. Depois do crime, o
homem, que reside na última casa da rua, que se limita com uma área
baldia e com o cemitério da cidade, deixou o corpo da criança a pouco
mais de 150 metros do local e retornou para casa tranquilamente. <A
intenção dele era enterrar a criança, porque já tinha começado até um
buraco, mas como não deu tempo porque o bairro todo já estava à
procura da menina, ele jogou o corpo da criança lá>, disse
emocionado um morador do bairro. A polícia foi acionada e ao
chegar na casa de Antônio Marcos o encontrou, bêbado, dormindo
e no quintal da casa, foi encontrada a calcinha da menina, diante da
evidencia, a polícia deu voz de prisão ao acusado. Temendo o
linchamento do mesmo pela população local, foi recambiado para a
delegacia de polícia civil de Itaporanga, onde por volta da 3h da
madrugada desta terça-feira, 22/12/2009, foi alvejado pro um tiro
de espingarda calibre 12. As primeiras informações dão conta de
que quatro homens, possivelmente da família da menina, em um
Fiat Uno de cor vermelha e placa não identificada, entraram na
delegacia e após darem um tiro de 12 no acusado se evadiram do
local ” (A TRAGÉDIA... 2010).
A princípio, gostaríamos de esclarecer que o texto foi construído a partir de
metáforas retiradas da poesia O que será que será (HOLANDA, 2010), dialogando com
a poética que discute, de modo ímpar, o “teatro das conspirações” 1. Essa escolha devese ao fato de que assim como o poeta versa em todas as estrofes, tentando entender (o
que ao nosso ver) poderia dar forma e coesão à pretensão da ordem na modernidade, o
linchamento nos acena como àquilo que não tem tamanho, não tem controle, que não
pode ser evitado...
1
“Durante toda a segunda metade do século 19, as elites dominantes [...] vivenciaram todo um
imaginário construído a partir do medo ou da insegurança suscitada pelos conflitos reais ou
simplesmente potenciais que a população pobre e sem controle poderia oferecer. O medo das sedições,
o pânico incontrolável das sublevações ficou exemplarmente ilustrado nas imagens construídas pelo
Conde de Assumar sobre o teatro das conspirações nas Minas Gerais: <[...] os dias nunca amanhecem
serenos, o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre
[...] a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdade
os ares; vomitam insolências as nuvens; influem em desordem os astros; o clima é a tumba da paz e o
berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como no inferno”.
(MELO E SOUZA, 1986 apud DINIZ, 1991, p. 338).
17
De outro modo, temos em epígrafe duas descrições de cenas de violêncialinchamento, em momentos bastante distintos, na história do Ocidente, mas que
guardam em si a analogia que sugere que em relação à perseguição e destruição do
“diferente”, a nossa história apresenta uma surpreendente continuidade, ou seja, nós
ainda usamos o linchamento como estratégia de rito sacrificial. Entretanto, os motivos
que levam a turba ao linchamento, hoje, são essencialmente os crimes contra a pessoa,
contra a propriedade e casos de acidentes de trânsito, logo, não mais linchamos
simplesmente por alguém pronunciar discursos “malditos”.
Contudo, vale ressaltar que se no primeiro caso o linchamento foi realizado
pelos dispositivos de segurança das “práticas de Estado”, a partir da modernidade, e
devido à invenção do Judiciário, o uso da violência, como espetáculo público,
promovida pelo Estado sai de cena e o linchamento passa a ser uma ação praticada
essencialmente por populares. No entanto, na maioria dos casos, ele tem a conivência
dos dispositivos de segurança e é de aceitação da média social. Neste trabalho,
discutiremos a relação entre a invenção do Estado moderno; do judiciário; dos
dispositivos de segurança e das contracondutas, especialmente, a chamada justiça
popular, praticada em casos de linchamento. Nesse sentido, os dois casos de
linchamento antes citados apresentam a característica de serem atos de apaziguamento
da fúria coletiva e de serem ações que se consomem nelas mesmas, sem que deixem
margem a processos de culpabilização de seus promotores, especialmente porque
considera-se normal linchar a “vida impura/indesejável”.
A primeira constitui o caso clássico de linchamento, que, ao longo de mais de
dois mil anos, tem sido utilizada como símbolo do ritual de purificação da vida social.
Nessa primeira descrição, o linchamento acontece como um ritual de
purificação, que é realizado pelas “práticas de Estado” e que tem a função social de
apaziguar a cólera pública através do processo de escolha da vítima sacrificial (nesse
caso, um homem que ousou falar, questionar ou silenciar em momentos em que o que
era a ordem do dia, era a legitimação das formas de pensar e dos modos de agir de uma
comunidade dada, ou seja, esse homem aventurou-se para “além do paraíso”, pois
provou do fruto proibido. Ele externou ou silenciou discursos “malditos”.
18
Esse primeiro exemplo, nos mostra o uso de técnicas que mutilam, desonram,
humilham a vítima, mas que têm por escopo fundamental satisfazer o desejo de
vingança/purificação daquela sociedade.
Desse modo, o rito sacrificial do Cristo possibilitou o surgimento de uma nova
ordem social/moral, a saber: a disciplina moral construída através da imagem de que é
preciso tornar-se vítima potencial, ou seja, suportar todas as dores e agruras da
existência para tornar-se digno da salvação. De outro modo, o Cristo sacrificado nos
acena para a arquetípica necessidade de constituição de um bode expiatório, através do
qual as dores, pecados, angústias, medos e crimes sociais são resolvidos numa catarse
de violência coletiva.
Ao final do linchamento a turba se desfaz, a vítima é consagrada à posição de
ídolo e o sangue derramado torna-se o tipo ideal da purificação, mas como um rito
fundante de uma nova sociabilidade, ironicamente àquela da paz, da não violência, a dos
“lírios dos campos”, o rito sacrifical é cristalizado como espetáculo máximo da
revificação e reificação da coesão social, a saber: é preciso “tomar e comer o corpo e o
sangue de Cristo semanalmente”, para que assim a paz possa perpetuar-se.
O segundo caso descreve um linchamento contemporâneo na Paraíba e também
faz jus ao ideário da purificação/vingança social. Nesse caso, o crime foi um estupro
praticado contra uma criança. As variáveis determinantes para a constituição da figura
do monstro ou da ameaça social, nesse segundo caso, são: a condição civil de solteiro;
juventude; função social de pedreiro; vício do alcoolismo; sedução; estupro; lesões
corporais: mordidas, estrangulamento; a calcinha da criança ter sido encontrada,
displicentemente, jogada pela casa; o corpo da criança violentado ter sido
abandonado/descuidado num matagal.
O “monstro” ainda apresenta a peculiaridade de morar na última casa da rua,
próximo a um terreno baldio e ao cemitério local.
O tipo de crime (violência sexual e violência contra a pessoa) aliado às
características existenciais do autor do crime denuncia pelo discurso que noticia o delito
– o nível de “periculosidade” que aquele indivíduo representa à ordem social. Assim,
ser solteiro, jovem, pobre, viciado e encontrar-se habitando um espaço entre o terreno
baldio e o cemitério (metafórica e objetivamente) no limiar/limbo da sociedade faz com
que haja na construção discursiva e imagética do autor do crime um revival a muitos
19
arquétipos que constituirão a diferença entre o normal e o patológico nas sociedades
modernas. Afinal, esse sujeito é, acima de tudo, um liminar, alguém que transita entre o
mundo dos dejetos (terreno baldio) e o que já não mais existe é a imagem arquétipica
perfeita do bode expiatório.
Com a modernidade, vemos nascer a necessidade do controle dos corpos e das
massas, da regulação dos fluxos, dos processos de saúde e doença, da necessidade da
“inclusão”, mas que como biopolítica constrói via estatística e higienização dos
ambientes e das pessoas a possibilidade de uma “sociedade disciplinada e salubre”.
Nessas estratégias, o fundamental é sempre estar alerta aos rizomas disfuncionais, que
possam colocar em risco a saúde coletiva.
Uma vez tendo sido encontrado com provas inegáveis da sua perversão e ato
criminoso, o indivíduo sofre uma primeira tentativa de linchamento e, num segundo
momento, mesmo estando sob a “guarda/proteção” das práticas do Estado, esse
indivíduo é morto dentro da cadeia.
Ainda mais, o número dos envolvidos, as suas identidades, a placa do veículo
que usaram, tudo fica envolto numa nebulosa onda de indefinição, logo, se não há
provas, dificilmente haverá punição.
De todo modo, e foi isto que nos chamou a atenção para estudar os
linchamentos, como um acontecimento 2 ou, melhor, como uma acontecimentalização, o
estudo das ações atuais nos levam muito mais ao exame dos discursos (sobre) do que à
possibilidade de “análise” dos fatos. Ou seja, como não podemos estudar o linchamento
como um fato social, “objetivo-palpável” hoje, pois ele está sempre constituído no
discurso daqueles que contam, mas que não testemunharam. Ele é sempre construído,
publicizado como recorte/agendamento do passado (principalmente agendado pelos
meios de comunicação de massa). Resta ao pesquisador mergulhar na construção dos
discursos, adentrar nas teses sobre as classificações hierárquicas que possibilitam
inventar/reproduzir a ordem, aventurar-se em mares teóricos, metodológicos,
existenciais e morais que clamam à ordem, mas que grosso modo a propõem via
2
“Resumindo, podemos distinguir, no total, quatro sentidos do termo <acontecimento>: ruptura
histórica, regularidade histórica, atualidade, trabalho de acontecimentalização [...] a arqueologia
descreve os enunciados como acontecimentos [...] analisar os acontecimentos segundo os processos
múltiplos que os constituem [...] analisar o acontecimento como um polígono de inteligibilidade, sem
que se possa definir de antemão o número de lados; um polimorfismo crescente de elementos que
entram em relação, das relações descritas, dos domínios de referência” (CASTRO, 2009, p. 25-26).
20
resistências, contracondutas. O linchamento é uma ação rizomática e, portanto,
impossível
de apreensão,
contudo,
aponta
sempre para a necessidade
de
purificação/vingança social.
O fato de o linchamento ser um ato sem legitimidade jurídica, pois não há
nenhum artigo específico que o caracterize como crime, o torne uma força plástica 3, de
ação relâmpago, um acontecimento e, como tal, algo inapreensível senão via discurso.
Os dois casos de linchamento antes retratados nos acenam para aquilo que será
discutido ao longo desse trabalho, tais como, a relação entre violência como ato
fundador, violência vista como ilegalidade, e violência restauradora da ordem, pois que
evita a escalada da violência. Assim, linchar é, antes de mais nada, purificar um ato
inglório/sujo pela terapêutica da homeopatia, ou seja, o sangue que fere é o mesmo que
cura.
Na contemporaneidade, a violência foi naturalizada, devido à sua presença
impositiva. Isto certamente cria dificuldades para que as suas nuances possam ser
tomadas como objeto de estudo ou crítica. Por isso mesmo, a experiência com a
violência foi se constituindo para nós deste trabalho como um objeto ao longo de nossa
trajetória acadêmica.
Antes, porém, de tomá-la como um objeto de estudo, convivemos com a
violência ao meu redor, na sociedade em que estava inserida, o que me fez suspeitar de
que a mesma era um dado constitutivo do social.
Nascida numa pequena cidade do sertão paraibano, na década de 1970, assisti,
desde a infância, a cenas que retratavam o descaso, desconhecimento da população e
3
“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer,
um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da
fraqueza que se expresse como força”. (NIETZSCHE. 2005. p. 36. Afor 13. § 1). “Mnemotécnica – gravase algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’”.
(NIETZSCHE. 2005. p. 50. Afor 3).“Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas
boas’”. (NIETZSCHE. 2005. p. 51. Afor 3).“Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si,
ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo ‘injusto’, na medida em que
essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando,
destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter. [...] Os estados de direito não podem
senão ser estados de exceção, enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder”.
(NIETZSCHE. 2005. p. 64-65. Afor 11). “O que em geral se consegue com o castigo, em homens e
animais, é o acréscimo do medo, a intensificação, o controle dos desejos: assim o castigo doma o
homem, mas não o torna <melhor> – com maior razão se afirmaria o contrário. (<O prejuízo torna
prudente>, diz o povo: tornando prudente, torna também ruim. Mas felizmente torna muitas vezes
tolo.)”. (NIETZSCHE. 2005. p. 72. Afor 15).
21
das práticas do Estado frente às necessidades de muitos atores que compunham aquela
cena da vida social. Desse modo, as questões da fome, salubridade, natalidade,
morbidade, mortandade e segurança pública eram perpassadas por jogos de interesses
que transitavam entre as esferas do religioso, do político e de certa “perversão” do senso
comum.
Personagens como crianças pobres, loucos, prostitutas e migrantes eram tratados
com desdém, desprezo ou violência, dependendo dos comportamentos expressos e do
modo como a sociedade que compunha a faixa da “normalidade” lia os modos de agir e
as formas de pensar daquelas pessoas consideradas “anormais”.
As crianças pobres morriam aos montes, vitimadas pela fome e pela
precariedade dos cuidados de higiene a elas destinados. Os “loucos” eram uma espécie
de brinquedo para o sarcasmo dos adultos e das crianças que interagiam com os
primeiros a partir de provocações e atos violentos, como ateamento de gasolina e água
gelada. As prostitutas eram tratadas como figuras pecadoras e contaminadas, que
deviam ser afastadas do convívio.
Os migrantes eram vistos como pessoas
dissimuladas, potencialmente criminosas e portadoras de desgraças.
Diante de tantas estigmatizações, as personagens acima descritas eram
“assistidas” pela “piedade” da Igreja e dos seus seguidores. As “práticas de Estado”
resguardavam-lhe o direito de doar o caixão aos pobres, mandar prender os migrantes e
bater nas prostitutas.
Eram comuns as cenas de morte violenta, relacionadas a crimes políticos
(tocaias contra adversários); aos crimes passionais (nos quais os homens lavavam a sua
honra com o sangue das esposas ou amantes infiéis ou, simplesmente das mulheres que
queriam a separação); aos crimes relacionados à honra masculina (tal como não
manutenção de uma palavra dada ou, ainda, pela acusação leviana a outrem) que eram
resolvidos em “duelos” com facas peixeiras ou armas de fogo; e aos crimes de
linchamento público nos quais aquela “pacata e religiosa” sociedade agia em causa
própria, como por exemplo, quando das visitas de congregações missionárias
protestantes que, geralmente, eram expulsas da cidade por pedradas e recebiam a
alcunha de “bodes”.
Já na adolescência, na década de 1980, com surpresa, descobri que a sociedade
dita democrática e de direitos também acalentava em seu seio ranços de autoritarismo,
22
corrupção e violência. Foi assim que aos poucos fui me tornando sensível e indignada
com as questões relativas à violência de um modo geral e assim mapeando-a em todos
os atos da vida humana 4. Ironicamente descobrimos a violência como ato fundador da
religião, tanto pré-cristã, quanto cristã, afinal ainda eram o corpo e o sangue de Cristo
(a vítima sacrificial) que revificavam a vida social na celebração dominical.
Nas “práticas de Estado” ainda persistiam a politicagem local e o favoritismo
aos correligionários. Lembramos bem da decepção, quando entre 1980 e 1990, vivi os
períodos inflacionários e os escândalos da corrupção política e das mortes praticadas por
grupos de extermínio.
Quanto à vida cotidiana, percebi que nossa sociedade ainda era cordial entre os
iguais e avessa aos estranhos.
De outro modo, durante o curso de graduação em Serviço Social, na
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), entre os anos de 1998 a 2000,
desenvolvemos pesquisas (PIBIC/CNPQ/CAPES/UEPB) que privilegiaram os seguintes
temas: representações sociais do ato de pedir e da prática delinquente (RIBEIRO, 1998,
1999a), representações machistas dos meninos de rua em relação às meninas
(RIBEIRO, 1998, 1999b), representações sociais dos adolescentes, pais e assistentes
sociais sobre as políticas sociais que atendem aos primeiros (RIBEIRO, 1999, 2000a),
representações dos pais de adolescentes infratores em relação às políticas públicas
(Ribeiro, 1999, 2000b). Também desenvolvi atividades de extensão relativas à mesma
problemática, atuando no Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil
da Universidade Estadual da Paraíba (NUPECIJ/UEPB) e através do Nupecij prestamos
assessoria, durante o estágio supervisionado, ao Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua – Campina Grande (MNMMR-CG). Entre os anos de 2001 a 2003,
4
Numa franca aproximação às teses anarquistas, suspeito que toda forma de socialização, ou seja, de
fabricação humana é violentadora, contudo, ressalto que a ideia seguinte parece ser mais madura e
menos engessada, “então, vocês vêem que eu vos proponho e de onde eu vos falo é claramente
diferente. Primeiramente, não se trata de ter um ponto [palavra inaudível] em termos de projeto de
uma sociedade sem relações de poder; trata-se, ao contrário, de colocar o não a aceitabilidade do
poder, não em termos de empreendimento, mas ao contrário, no início do trabalho sob forma de
questionamento de todos os modos segundo os quais efetivamente se aceita o poder. Segundo, não se
trata de dizer que todo poder é ruim, mas de dizer, ou de partir desse ponto: qualquer poder, qualquer
que seja, não é pleno de direito aceitável ou não é absolutamente e definitivamente inevitável”
(FOUCAULT, in AVELINO, 2011, p. 71).
23
fizemos mestrado em sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia –
UFPB/UFCG, momento em que estudamos o processo de internação a que são
submetidos os adolescentes em conflito com a lei.
Atuando como docente, sempre privilegiei trabalhos de extensão e de pesquisa
que dessem conta do universo da relação entre exclusão e violência, tentando mapear a
intrincada relação entre ser violentado e ser violentador e vice-versa. Fui percebendo
que a violência não é uma ação realizada por poucos que “detêm o poder”, como por
exemplo, a Igreja, o “Estado”, a Escola, a Família. A violência ia se tornando, em minha
percepção e a partir das leituras anarquistas e pós-estruturalistas, uma ação rizomática e
fundadora da própria sociabilidade. Afinal, somos sempre um misto entre o arcabouço
cultural que encontramos postos ao chegarmos ao “mundo” e as bricolagens de
“escolhas” e rupturas que vamos realizando ao longo da nossa existência. Assim, é
sempre entre o agora e o “agora já modificado” que perseguimos na longa jornada que é
nos crermos um, ou seja, alguém diferente de nós ou deles e mais diferente ainda do que
fomos ontem. Nesse sentido, todo processo de humanização é, ao que parece, um ato
violento de negação do outro, inclusive o outro que fomos nós mesmos no passado.
Desse modo, a trajetória acima descrita foi aguçando a minha percepção em
relação à temática da violência. A partir da década de 1980 5, vi com espanto crescerem
os índices que apontavam para uma escalada da violência na sociedade brasileira,
violência entendida aqui no plural e não apenas nesse ou naquele aspecto da vida
social 6. Tinha se constituído em tese um “Estado de direitos”, mas os indivíduos eram
5
“A associação entre homicídio e armas de fogo varia de forma significativa entre as regiões do país. O
impacto do crescimento das armas de fogo no total de homicídios aumentou sistematicamente em
quatro das cinco regiões entre 1980 e 2002. O maior impacto ocorreu nas regiões Sul e Nordeste, onde
houve um aumento de 12% no período. [...] Os homicídios apresentam perfis característicos de
vitimização. Um dos grupos mais vulneráveis a essa violência, seja como agressor, seja como vítima, é
dos jovens. A morte violenta é a principal causa de mortes para jovens entre 15 e 25 anos no Brasil. Na
década de 1980, morriam 33 jovens para cada grupo de 100 mil vítimas por armas de fogo. Hoje, temos
uma taxa de 55 para 100 mil. A análise desagregada dos dados mostra grande concentração em grupos
específicos da população, havendo um padrão de mortalidade extremamente elevado para homens,
jovens, negros que vivem nos municípios com população acima de 25 mil habitantes” (BEATO FILHO;
MARINHO, 2007, p. 185).
6
“Não existe um conceito fechado de violência, ele varia de acordo com cada sociedade. Porém, nas
sociedades ocidentais há uma singularidade em conceituar a violência enquanto perda dos direitos e/ou
quando o cidadão tem sua integridade moral e física ameaçada. A violência pode ser um mecanismo de
defesa, quanto pode ser intencional”. (SANTOS; GOMES, 2008, p. 105).
24
ainda extremamente violentadores. Um exemplo disso está disponível no modo como as
pessoas, “sociedade brasileira”, abrigam e valorizam a espetacularização/publicização
da violência. Um exemplo disso é a variedade de programas jornalísticos que exploram
a temática.
Particularmente, no que concerne às mortes violentas, chamou-me a atenção o
crescimento das estatísticas acerca dos linchamentos públicos, que numa espécie de
revival da não centralidade do uso da violência legítima pelo “Estado”, acenava como
uma nuance de um pretenso projeto de modernidade/racionalidade inconcluso ou
impossível de ser realizado.
A retomada ou a publicização dos casos de linchamento promovida pelos meios
de comunicação de massa acenavam para um modo diferente de justiça. Ora, não era a
justiça legal, como também não era mais somente a ação dos grupos de extermínio,
agora diferentemente eram os populares que tomavam para si o exercício da justiça.
Especialmente, um caso de linchamento chamou-me a atenção em determinado
momento, pois foi praticado dentro de uma instituição carcerária que, de todo modo,
representa, na modernidade, a intenção de conter e reprimir atos ditos “anormais”. Os
que estavam presos deveriam estar constantemente vigiados, pois estavam sob a
disciplina do Estado de direito e punitivo. Como então poderia haver brecha para a
“justiça popular”? 7
7
“Os detentos do presídio do Monte Santo, em Campina Grande, espancaram e queimaram até a
morte, na madrugada deste sábado (08), José de Anchieta Lima, de 23 anos, suspeito de ter estuprado e
assassinado a estudante Daiane Maria da Silva, de 12 anos. Escondeu o corpo na fossa de casa - O corpo
da adolescente, que estava desaparecida desde 12 de junho, foi encontrado esta semana dentro de uma
fossa, nos fundos de uma residência na zona rural de Campina Grande. Um homem que morava de
aluguel na residência foi o acusado de matar a menina e esconder o corpo (os médicos legistas ainda
avaliam se ela foi estuprada). O cadáver foi encontrado pelo proprietário da casa, que iria fazer um
reparo na fossa na ausência do inquilino. Espancado e queimado vivo - Preso, o acusado foi levado para
o presídio e colocado sozinho numa cela. Durante a madrugada, porém, os demais detentos iniciaram
uma revolta, queimaram colchões, conseguiram sair das celas e chegar ao suspeito da morte da menina.
Eles o levaram para o pátio do presídio, onde o lincharam com paus e pedras e o queimaram. Multidão
tenta esquartejar o corpo - Uma multidão tentou invadir a Unidade de Medicina Legal de Campina
Grande no início da tarde deste sábado para resgatar o corpo de José de Anchieta Lima. Do lado de fora
da UML, as pessoas gritavam que queriam levar o corpo de Anchieta para destroçar e espalhar os
pedaços em plena via pública. A situação ficou tensa e a tropa de choque da Polícia Militar foi chamada
para conter os ânimos. Só duas horas após a chegada da multidão à UML, a situação foi contornada,
com a transferência do corpo de José de Anchieta para o Instituto de Medicina Legal, na capital, João
Pessoa”. (ACUSADO DE... 2006).
25
O caso de linchamento mencionado e o modo como as descrições midiáticas do
fato foram construídas deixavam alguns sinais que tornavam possíveis certas perguntas:
como entender a precária vigilância sobre o detento acusado da morte da adolescente e a
possibilidade de os demais detentos arrombarem a cela e matarem o acusado? Por que
já estando na Unidade de Medicina Legal, isto é morto, o corpo do acusado ainda
suscitava a fúria da multidão, que desejava destroçá-lo? Que sede de vingança era
aquela que não se consumia com a morte do acusado? Ainda mais: por que era tão
difícil para os dispositivos de segurança conter a multidão, considerando-se que levaram
duas horas para dissipar a turba?
Assim, passei alguns anos lendo e pensando sobre a justiça popular e constitui
esse fato como objeto de pesquisa. Desse modo, vi o linchamento crescer em índice 8 e
tornar-se um fenômeno que tem ganhado força na sociedade. Assim, entendo o
linchamento como uma “punição não legalizada”, ou seja, um conjunto de reações
sociais punitivas em relação a casos diversos, no qual fica patente a tomada do exercício
do poder punitivo e da função de promoção da segurança social, por parte de grupos
sociais, em contraposição às práticas do Estado. Certamente, essa definição
aproximativa desse evento social não esgota a enorme complexidade desse fenômeno.
8
“O Brasil é o país que mais lincha no mundo? Possivelmente. Isso nos últimos 50 anos, período que
esta pesquisa abrange. Não dá para ter certeza, porque linchamento é o tipo de crime inquantificável.
Mesmo os americanos, quando tentaram numerar seus casos, tiveram fontes precárias. O linchamento
é um crime altruísta, ou seja, um crime social com intenções sociais. O linchador age em nome da
sociedade. É um homem de bem que sabe que está cometendo um delito e não quer visibilidade. Por
outro lado, no Código Penal brasileiro não existe o crime de linchamento, somente o homicídio. Então,
ele não aparece nas estatísticas. Os casos são diluídos. Estima-se que aconteçam de 3 a 4 linchamentos
no País por semana, em média. São Paulo é a cidade que mais lincha. Depois, vêm Salvador e Rio de
Janeiro.
Que análise o senhor faz de um país habituado ao linchamento? As sociedades lincham quando a
estrutura do Estado é débil. Há momentos históricos em que isso acontece. Na França, depois da 2ª
Guerra Mundial, quando não havia uma ordem política, havia a tonsura (a raspagem dos cabelos) de
mulheres que tiveram relações sexuais com nazistas. Era uma forma de estigmatizar, para que ela
ficasse marcada. O linchamento original, nos Estados Unidos, tinha essa característica. O que configura
um linchamento? É uma forma de punição coletiva contra alguém que desenvolveu uma forma de
comportamento anti-social. O anti-social varia de momento para momento e de grupo para grupo. Na
França, ter traído a pátria era um motivo para linchar. No caso da Itália, aconteceu o mesmo. No Brasil,
é o fato de não termos justiça, pelo menos na percepção das pessoas comuns” (MARTINS, 2008). No
tocante aos índices de linchamento na Paraíba, eles aparecerão no quarto capítulo desse trabalho no
qual são mapeados e apresentados os casos ocorridos entre 2000 e 2010.
26
Quanto mais lia e pesquisava o linchamento, mais questionamentos vinham à tona, tais
como:
a) até que ponto a centralização e regulamentação do poder coercitivo moderno
foi eficiente no disciplinamento do “indivíduo desviante”?
b) o exercício de efetivação das normas jurídicas quanto às sanções punitivas
legais satisfaz as demandas por justiça dos diferentes grupos sociais?
c) quais são as variáveis que motivam o indivíduo contemporâneo a constituir, a
partir de grupos específicos, a luta por justiça?
Como consequência dessas questões, foram desenvolvidas algumas hipóteses
explicativas, esboços primários da tentativa de compreender o fenômeno em foco, as
quais são apresentadas a seguir:
a) Atitudes empíricas e estruturas epistemológicas voltadas à constituição de
paradigmas reguladores modernos, os quais se fundamentam em teses do Contrato
social, logo, na crença da existência de uma média consensual, típico-ideal de padrões
de normalidade, trazem em si mesmas o germe da criação/proliferação do desvio como
ponto contrário e indissociável da normalidade, sendo o desvio uma premissa fundante
da atitude “normal”;
b) a punição, considerada racional, por ser legal, construída a partir de uma
média social consensual e amparada/efetivada pelo o manto de instituições sociais
específicas, nascidas ao longo da transição entre modos de produção feudal para o
capitalismo, consequentemente atuando também sobre os padrões de sociabilidade,
trouxe à sociedade moderna a representação da possibilidade de um equilíbrio racional.
O sistema de sanções, coerções e punições, no entanto, não está completamente sob o
controle das “práticas de Estado”, podendo a aplicação de punições extrapolar o poder
legítimo estatal sobre o “desviante”, por exemplo, quando os órgãos e agentes
autorizados erram em seus julgamentos; ou quando esses não exercem com a rigidez
considerada adequada pela sociedade a promoção da punição que o ato infracional
suscita, como por exemplo, em casos de crimes contra a propriedade e crimes contra a
pessoa, em especial o estupro, quando a sociedade toma para si a punição não
legalizada. Portanto, os níveis de racionalidade da aplicabilidade da lei, no tocante à
objetividade, neutralidade e generalidade, têm sido, concomitantemente à sua criação,
27
criticados por diferentes grupos sociais, que sendo “iguais” ou “informados” 9 em
relação aos desvios, mediam o debate acerca do grau de justiça aplicado pelo conjunto
das instituições envolvidas na tarefa de “vigiar e punir”;
c) temos assistido a uma crescente onda de enfrentamentos entre grupos de
indivíduos e as “práticas de Estado”, por justiça imediata. Assim, os grupos, ao que
parece, desencantados e indignados frente ao desamparo, têm forjado eles próprios
ações de reparação e segurança social, como por exemplo, linchamentos públicos.
Expostas essas questões mais gerais, apresentaremos, agora, os escopos a que
me propus neste trabalho. Seu objetivo geral foi analisar o fenômeno da organização
fragmentária de grupos que têm efetivado a justiça “com as próprias mãos”. Os
objetivos específicos foram verificar as variáveis que constituem o processo de
indignação, organização e efetivação da “punição não legalizada”; compreender as
motivações dos indivíduos envolvidos em atos de “punição não legalizada”; verificar os
impactos das ações de “punição não legalizada”.
A importância deste trabalho se dá a partir da problematização das questões
sociais relativas ao binômio: “práticas de Estado” versus segurança social. Assim, ao
realizar a presente pesquisa, buscamos contribuir para um acréscimo na discussão
acerca da sociedade contemporânea, pensando-a não a partir do primado da ordem, mas
analisando-a sob o prisma da fragmentação, da descontinuidade e dos enfrentamentos
sociais cotidianos.
Desse modo, a narrativa sobre a nossa trajetória existencial e a relação com a
nossa percepção do aumento da violência, teve por escopo discutir a questão de que seu
crescimento foi influenciado pela tríade: sociedade/violência/religião, num misto entre o
ideário judaico-cristão, assim como o corolário do milagre brasileiro.
A violência é para nós questão interacional e transversal a toda e qualquer forma
de relação social. Nesse sentido, pretendemos neste trabalho, mostrá-la como um
instrumento fundante da sociabilidade ocidental, não para naturalizá-la em uma ou mais
das suas nuances, mas na tentativa de problematizar a busca de localismo/ordenação,
períodos históricos ou formas da violência. A violência é, então, “princípio e fim” da
pretensão de ordem/desordem da vida social.
9
Ver: Goffman (1982).
28
Para a realização dessa pesquisa, o recorte constou de casos de linchamento
noticiados via internet e a partir dos mesmos foram construídos quadros referenciais,
por meio de tabelas, que visam (a) mapear as aparições e recorrências dos casos de
linchamento na Paraíba, procurando, assim, fazer uma relação entre norma, desvio e
clamor popular. Tentamos realizar entrevistas, contudo, devido à peculiaridade do
linchamento não constituir um ente jurídico no código penal, não houve disponibilidade
de informantes. Por essa razão, não foi possível realizar tal intento. Essa questão é
problematizada no quarto capítulo deste trabalho.
A presente pesquisa está dividida em cinco capítulos. No primeiro capítulo, é
realizada uma discussão teórica acerca da construção/invenção do objeto científico,
problematizando as aparições/explosões da trajetória de vida do pesquisador, quando da
produção do “fato”, da escolha do referencial teórico-metodológico e, das assertivas
lançadas a tal “fato”. Portanto, pretendemos com esse capítulo questionar o processo de
invenção da ciência e, para tanto, tomei como lastro as discussões que criticam o ideário
de que há realidade em si a partir da qual nos debruçamos e colhemos um objeto dado e,
seguidamente, selecionamos método e técnica de abordagem.
Todo processo de produção científica é, antes de tudo, uma invenção. É óbvio
que como toda instituição social, a ciência, mesmo a pós-estruturalista, constrói certas
regras e nós tentamos segui-las. Entretanto, não precisamos ficar escravos delas, pois,
senão, estaríamos mais uma vez presos à crença de que há caminhos pré-fabricados que
são mais seguros do que a iniciativa experimentalista. Ciência é ou não é uma ação de
ousadia, de descaminho/ruptura?
No segundo, é discutida a questão da formação dos Estados nações e
particularmente a pretensão das práticas do Estado moderno em tomar para si o
monopólio do uso da violência, seja pela via coercitiva, seja pela via da persuasão.
Desse modo, o foco central desta tese é a tentativa de desconstruir, problematizando a
noção da ordem ao questionar as práticas do chamado Estado moderno. Para realizar tal
intento, tentei reconstruir a trajetória de criação da chamada racionalidade ou “razão de
estado” que pautará os discursos dos defensores ou dos críticos da centralidade do uso
da violência pelo “Estado”. Ainda é apresentado nesse capítulo uma descrição do
nascimento da chamada modernidade no Brasil e também nele é discutida a recorrência
dos atos violentos praticados pelas “práticas de Estado”, assim como apresentada a
29
problemática passagem entre a ditadura militar e o chamado “estado de direito”, dando
ênfase à escalada da violência.
Dando prosseguimento, no terceiro capítulo apresentamos uma visão geral dos
temas da multidão e do linchamento, partindo de um viés teórico que tem como pano de
fundo negar a possibilidade de efetividade do controle social pelas “práticas de Estado”
e por suas instituições jurídicas e parajurídicas. A multidão é vista como uma ação
rizomática da população que, ao contrário da pretensa disciplina proposta pelas
“práticas de Estado” modernas, encontra sempre uma estratégia de fuga e de exercício
do poder.
Tendo sido vista ao longo da Idade Média e da chamada modernidade como
uma encenação da brutalidade, irracionalidade ou leviandade, a multidão é tomada por
nós como uma possibilidade de extravasamento e ordem espontâneos para o
restabelecimento da ordem. Não da ordem dita legal, mas da ordem “necessária” a uma
dada correlação de forças sociais.
No quarto capítulo, trazemos uma revisão da literatura acerca do fenômeno do
linchamento, mapeando as suas aparições desde a Antiguidade, passando pela Idade
Média e problematizando-o nos Estados Unidos da América, para em seguida
descrevermos a sua aparição no Brasil. Em último lugar descrevemos casos de
linchamento na Paraíba entre os anos de 2000 e 2010.
Percebemos durante a pesquisa que os linchamentos podem ser vistos como uma
ação espontânea (praticada por populares) ou de vigilantismo (quando realizada por
grupos específicos, podendo estar ligados às “práticas de Estado”) ou, mais comumente,
pode reunir os dois aspectos.
O linchamento é um recorte dentre as nuances da violência que se torna
extremamente difícil de ser “estudado” com estratégias clássicas de “aproximação,
coleta e tratamento de dados”. Assim, foi a partir da utilização de pesquisas em fontes
midiáticas 10 que nos aproximamos junto aos casos de linchamento.
Em geral, os linchamentos aqui apresentados não diferem muito daqueles que os
autores referenciados na pesquisa descrevem. As motivações para os linchamentos
10
“As fontes de informação sobre crimes reconhecidamente falham ao registrar o número total de
eventos, e com os linchamentos ocorre o mesmo. Contudo foi possível constatar que a imprensa noticia
com regularidade esse fenômeno, o que nos permite concluir a recorrência de casos. Ou seja, há uma
recorrência à violência em nosso meio.” (CERQUEIRA; NORONHA, 2006, p. 249).
30
ainda são: descrença na justiça formal; descrença no tempo da justiça formal;
indignação contra os crimes que ferem a propriedade privada e a pessoa;
representação social de que com o linchamento é possível “purificar” a “sujeira” do
ato praticado contra a sociedade.
No quinto capítulo, não pretendemos concluir a discussão, pois, parto do
entendimento de que nenhuma “conclusão” de pesquisa é capaz de bater o martelo da
verdade sobre tese alguma. Como tese, e que se propõe científica, não foi possível
“obter” a verdade 11. Apenas propomos aqui um olhar balizado na problematização da
separação entre os saberes religioso, filosófico e científico, para que se pudesse
argumentar que ainda persiste naquilo que chamamos de real: as relações de bricolagem
entre Deus, razão e pragmática. Assim, os linchamentos não são vistos aqui como um
ato apenas violento e desumano, mas, são antes de mais nada apresentados como
acontecimentalização do primado da ordem e da busca da classificação e diferenciação
entre o normal e o patológico. Não linchamos simplesmente porque estamos
desvairados, mas linchamos antes porque cremos/buscamos a razão.
11
“Entendo por verdade um conjunto dos procedimentos que permitem pronunciar, a cada instante e a
cada um, enunciados que serão considerados verdadeiros. Não há absolutamente uma instância
suprema” (CASTRO, 2009, p. 421).
31
1.
CAPÍTULO - “... QUE ANDA NAS CABEÇAS? ANDA NAS
BOCAS?...”
Figura 2 - Isto não é um cachimbo, René Magritte
1.1.
ORDEM/DESORDEM?
Ora essa vontade de verdade, como os outros sistemas de
exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo
tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto
de práticas (...) (FOUCAULT, 1999, p. 17).
Pensando em problematizar a invenção de um objeto dito científico e os
processos de seleção do método e técnica para abordá-lo, passando ainda pelas fases de
aproximação e afirmação da nossa escolha, temos a pretensão de, nesse capítulo,
realizar-se a crítica e negação às práticas do chamado Estado moderno quanto ao seu
uso legítimo da violência.
Realizamos, num primeiro momento, uma leitura geral acerca da constituição do
objeto de estudo, a saber, a relação entre lei/ordem versus contraconduta e, num
segundo momento, a problematização da temática da “invenção” do objeto científico e
toda a pragmática de “aproximação/apropriação, coleta e tratamento de dados”.
Ao se problematizar o estatuto da ordem social moderna, o seu ideário de paz e
justiça social motiva o desejo de “[...] reinstaurar o diálogo entre a razão e a des-razão,
na tentativa de encontrar entre ambas uma linguagem comum que possa expressar, no
limiar do possível, a experiência trágica do homem moderno” (MORAES, 2004, p. 52).
32
Desse modo, publicizar/discutir os registros midiáticos acerca do linchamento
pôde contribuir para a compreensão mais clara acerca das teias de significações e resignificações que a modernidade construiu para explicar e propor a chamada ordem
social. É, pois, tentar entender qual é a lógica “ética” que mobiliza e fortalece os
sujeitos que se envolvem em ações de punição.
Oliveira (2005), ao discutir o estatuto da democracia moderna, (que dentre
outras coisas prometia universalidade e qualidade das políticas públicas) ironiza a
prestação de segurança pública pelas “práticas de Estado” ao apresentar o seguinte fato
em que a segurança privada agiu devido à inoperância do controle social estatal: “(...)
um juiz em São Paulo, nos dias que correm, ordenou ao UNIBANCO que arme sua
própria milícia para cuidar das terras que são ocupadas pelo (...) MST e, justificou que o
Estado não tem recursos para tanto” (OLIVEIRA, 2005, p. 18).
O discurso moderno, que constrói a regra e a disciplina, é também veículo de
legitimação do desvio e assim:
(...) Na passagem do século XVIII ao XIX, e contra os novos códigos
surge o perigo de um novo ilegalismo popular (...) entrecruzam-se os
conflitos sociais, as luta contra os regimes políticos, a resistência ao
movimento de industrialização, os efeitos das crises econômicas
(FOUCAULT, 1997, p. 240).
Portanto, o “desvio” deve ser entendido a partir de suas múltiplas estratégias de
constituição da diferença (FOUCAULT, 2001). Na tentativa de legitimar o poder das
“práticas de Estado” frente ao desviante e, ao mesmo tempo, ao convencionar que
compete às mesmas punir, a modernidade tinha a intenção de desconstruir a
possibilidade de punição coletiva e praticada por “leigos-populares”. Contudo, é na
contemporaneidade 12 que temos assistido à emergência de ações pulverizadas, ditas
ilegais, mas fortemente construídas sobre as bases da organização social:
(...) Para os grandes, a lei é privilégio; para os populares, repressão
(...) nunca definindo direitos e deveres dos cidadãos porque a tarefa da
lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por esse
motivo, as leis aparecem inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas
para serem transgredidas e não para serem transformadas. O poder
judiciário é claramente percebido como distante, secreto,
12
Ver: Martins (2009).
33
representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da
generalidade social (CHAUÍ, 2005, p. 26).
Essas ações, de transgressão, visam “reconstituir” a ordem; agora a partir de
ativismos de categorias específicas, pois assentadas na descrença da racionalidade
punitiva e de segurança da máquina estatal. As ações de segurança e punição social
estão, ao que parecem, muito próximas às discussões foucaultianas sobre o micropoder.
Desse modo,
(...) Se o poder é em si próprio ativação e desdobramento de uma
relação de força, em vez de analisá-lo em termos de cessão, contrato,
alienação, ou em termos funcionais de reprodução das relações de
produção, não deveríamos analisá-lo acima de tudo em termos de
combate, de confronto e de guerra? (FOUCAULT, 1982, p. 176).
Assim, a falência da ação punitiva legal é ainda mais explorada por Foucault
quando ele apresenta a seguinte afirmativa:
(...) A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da
justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la,
dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior das instituições
características do aparelho de Estado (FOUCAULT, 1982, p. 39).
Nesse sentido, há uma questão central de falência do ideário normativo que se
torna emergente quando da crise, desde a sua invenção, do instrumento disciplinar que é
o aprisionamento. Assim sendo, se a penitenciária não nos acena mais com a
possibilidade da estigmatização total do desviante, pois que esse aprende desde cedo, lá
dentro mesmo a representarem e manipular os seus papéis, logo, ao que parece, a
solução que parte da população dita “normal” encontrou para excluir os diferentes e se
proteger dos mesmos, foi a da justiça pelas próprias mãos.
Na discussão acerca da biopolítica, Foucault (1997) considera duas estratégias a
partir das quais a pretensão da ordem se constituiria, a saber: nos séculos XVII e XVIII,
houve a criação da disciplina aplicada a corpos individualizados (biopoder); na segunda
metade do século XVIII, temos a partir da medicina social a formação de três grandes
modelos higienistas biopolíticos (medicina de Estado alemã medicina da força de
trabalho inglesa e medicina urbana francesa).
Com esse novo paradigma, o que está em jogo é o controle de fluxos/trânsito de
mercadorias e de pessoas, o que seria para Foucault (2008a) o nascimento do modelo
34
liberal na economia e, ao mesmo tempo, os seus desdobramentos para a vida cotidiana.
Controlar território é, antes de tudo, controlar cidades e o controle das cidades é feito
através do assujeitamento das massas àquilo que para as “práticas de Estado” é questão
de ordem e essa vai além do trato estrito da relação saúde/doença em relação ao
biológico, a saúde será doravante uma questão biopsicossocial e ambiental, portanto,
nada pode escapar ao olhar normatizador e normalizador. Inclusive, a segurança social
será um dos índices que caracterizarão uma “sociedade saudável” 13.
Assim, pode-se deduzir que a constituição de um supradireito, o de intervenção
total das “práticas de Estado” sobre a população, levou ao acirramento de ações de
contestação à “legalidade” da ação coercitiva estatal. Nesse sentido, de um poder que a
princípio parecia ter se tornado uma mega-estrutura coercitiva, o que se tem assistido é
a revolta social, motivada pela inoperância daquela estrutura punitiva e, ao mesmo
tempo, vemos nascer/eclodir um poder paralelo/fragmentário, mas que se apresenta
como uma negação do mito da soberania e o estabelecimento/renascimento da
organização social para vigiar e punir, como visto na citação: “(...) qualquer luta é
sempre resistência dentro da própria rede de poder, teia que se alastra por toda a
sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre numa multiplicidade de
relações de forças” (MACHADO, 1982, p. 14-15).
Sendo assim, Foucault (2008a) critica a apologia à organização social e à
superioridade das sociedades modernas europeias, que implicariam stricto sensu no
desenvolvimento/consolidação da racionalidade moderna, que sabidamente, pelo menos
em termos teóricos, levaria à ordem social.
13
Não é tão comum em nossa sociedade que dentre os critérios que medem o IDH, estejam os índices
de segurança pública? Ver: “Distribuição dos Recursos do FNSP (2004 e 2005). Os recursos do FNSP de
2004 e 2005 foram distribuídos com base em um índice construído pela agregação de dez fatores
quantitativos diferentes, sendo cinco específicos da área de segurança pública e cinco relativos a
caracterização urbana e populacional das Unidades da Federação. Para cada um dos indicadores foi
dado um peso específico em função da importância atribuída pela SENASP a estes fatores para a
execução da Política Nacional de Segurança Pública. Assim, por exemplo, os fatores relacionados mais
diretamente a área de segurança pública receberam pesos mais significativos. O índice é resultado de
uma média ponderada da situação apresentada pelos fatores no contexto nacional. Foram utilizados os
seguintes indicadores e os seguintes pesos: Fatores componentes do índice: Homicídios dolosos; Outros
crimes letais e intencionais; Efetivo das polícias civil e militar; Outros crimes violentos” (FUNDO..., 2010)
(Grifos do autor).
35
Em oposição a essa suposta ordem e como crítica a esse EU RACIONAL, ao
cogito, hipostasiado como ente da permanência, Foucault (no conjunto da sua obra)
apresenta um sujeito em construção, aos pedaços, em luta com os poderes vigentes. Um
ser criativo e indócil, alguém que nega a sua “própria” socialização e forja papéis,
regras sociais e sistemas de segurança para além das pretensões do controle
verticalizado.
Outro autor que contribui com a análise acerca dos dispositivos sistêmicos para a
garantia da ordem social é Elias. Em O processo Civilizador – Volume 2, há a discussão
acerca da questão da localização da segurança nas mãos do Estado 14. Assim:
(...) A formação de monopólios mais estáveis de força física e
tributação, dotados de administrações altamente especializadas, a
formação dos Estados no sentido Ocidental, através dos quais a vida
do indivíduo ganhou, aos poucos maior “segurança” (ELIAS, 1993, p.
256).
Contudo, Elias discute que esse suposto controle social e da busca do autocontrole, vivenciado durante os fluxos contínuos dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX,
aparecerão no século 20 como uma queda de braço na qual:
(...) O comportamento deles (camadas inferiores) pode ser mais tosco,
mas é também mais uniforme. Vivem mais vigorosamente em seu
próprio mundo, sem quaisquer reivindicação ao prestígio da classe
superior (...) Em sua consciência, eles e as outras classes têm, para o
que der e vier, claramente definidas as suas posições (ELIAS, 1993, p.
258).
Ainda em Elias (1993), vemos a discussão acerca da constituição, na
modernidade, dos Estados nacionais. O autor mostra que é a partir do século XVI, que
podemos mapear essas formações, entretanto, elas intensificam-se entre os séculos XV e
XVI. Nesse momento, uma das pré-condições dessas formações foi a expropriação dos
instrumentos de uso da força por parte dos reis, destituindo os senhores feudais do uso
daquela.
14
Numa franca filiação à discussão weberiana de uso legítimo da violência pelo Estado. Para tal
consultar: Weber (2003).
36
Assim, para Elias (1993), a constituição do Estado moderno passa pela
centralização da moeda; do poder decisório e, da posse e uso das armas. Isso nos
aponta para uma aliança forjada entre a burguesia nascente e, os reis, visando em última
instância facilitar a disseminação das primeiras estratégias de comércio do que viria a
ser o modo capitalista de produção.
De outro modo, esses eventos também apontam para o que se constituiria numa
das mais fortes marcas da modernidade, a saber: a pretensa centralização nas “práticas
de Estado” das medidas e políticas destinadas a garantir a ordem e o controle social.
Desse modo:
(...) A sociedade que hoje denominamos era moderna caracteriza-se,
acima de tudo no Ocidente, por certo nível de monopolização. O livre
emprego de armas militares é vedado ao indivíduo e reservado a uma
autoridade central (...) (ELIAS, 1993, p. 98).
O não funcionamento, ou um desempenho considerado insuficiente das “práticas
de Estado”, pode ocasionar nos populares que realizem por si sós a justiça imediata.
Desse modo, à fragilidade pode estar associada às visões negativas da regulação social,
no tocante a distribuição de penas e a mobilização de mecanismos referidos à vigilância.
Tenho a intenção, neste trabalho, de estudar essas ações, que são disformes, de
sentido controverso e que apontam para novas configurações das relações entre o
Direito, os seus instrumentos penais e parapenais, assim como sobre a questão da
segurança pública. Nesse sentido, é aqui discutida a questão da administração das
sanções e punições entre a pretensa centralidade do exercício do poder nas mãos do
chamado Estado versus as ações implementadas pela população, que muitas vezes,
sobrepujam o âmbito da legalidade. Dessa maneira, podemos perceber que Durkheim
(1978), ao discutir o crime, a punição e o papel do Estado moderno, quanto às penas
restitutivas e coercitivas, mostra que a função social do crime e a consequente punição
visam: a) punir o culpado que feriu a consciência coletiva, logo, toda a sociedade; b)
intimidar possíveis imitadores, e; c) manter a coesão social, pela compensação social
que a punição pelo crime provoca.
Como já se vem discutindo, percebo que Durkheim (1978) problematiza as
tentativas de implementação da racionalidade moderna, no tocante à organização,
diferenciação e estigmatização das categorias ditas anormais, pois que, “criminosas”,
37
sobre as quais deve recair o poder coercitivo do dito Estado ou, na insuficiência punitiva
desse, tem agido a massa através de cólera pública.
Enfim, diferentemente das teses que apontam para a imprescindível formação de
Estados, como entes autônomos e “reais/concretos em si mesmos”, assim como da
pretensa centralidade do uso da força por esse “ente”, Clastres (1978), ao discutir as
concepções de poder, dominação, subordinação e sociedade sem Estado, apresenta
numa coletânea de 11 artigos, uma crítica à razão ocidental, especialmente, uma crítica
à razão política, no tocante às práticas e conceitos de dominação e subordinação.
Para o autor, a sociedade pode prescindir da figura do Estado, questionando a
concentração do uso da violência pelos chamados Estados modernos. Para ilustrar a sua
tese, ele apresenta os resultados de pesquisas empíricas realizadas em tribos indígenas
na América do Sul, nas quais ele observou que havia uma negação à institucionalização
de um poder estatal, que se responsabilizaria, inclusive, pela gestão cotidiana de
sistemas de regulação da violência, na medida em que teria como base o exercício
arbitrário de coerção e violência.
Portanto, Clastres (1978) defende que as sociedades tribais são sem Estado, não
a partir de uma leitura etnocêntrica que parte de uma visão essencialista que defende
que toda sociedade existe para o Estado numa visão linear e evolucionista. Para ele, ao
contrário, é preciso compreender a modalidade de trabalho, quanto à jornada; ao
conjunto da produção (ausência de excedente) e a forma de organização e controle do
poder, para que não se prejudique a leitura dessas sociedades, pois se pode tomar a
“ausência do estado” como uma característica da “inferioridade” dessas sociedades.
Clastres (1978) mostra que a lógica mercantilista e liberal europeia, quanto à
organização social, à produção de mercadorias e à formação dos ditos Estados
modernos, fez com que os homens brancos, em sua interação/dominação
assimilacionista, injetassem no mundo do índio os valores da economia e, aos poucos,
transformassem a sua relação com os indígenas em economia política, estabelecendo os
primeiros princípios de uma relação entre governo e governados, numa sistemática de
trabalho alienado, pois agora o índio devia produzir para os brancos. Sob esse ponto de
vista, a figura Estado responderia à pretensão do exercício da dominação de uns poucos
sobre muitos.
38
1.2 INVENTAR OBJETOS OU REIFICAR A SI MESMO?
Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e colocou-o no paraíso de
delícias, para que o cultivasse. E deu-lhe este preceito, dizendo-lhe:
Come de todas as árvores do paraíso, mas não comas do fruto da
árvore da ciência do bem e do mal; porque, em qualquer dia que
comeres dele, morrerás indubitavelmente” (BÍBLIA..., 2010a).
A motivação para a escrita desse tópico foi o fato de se relacionar temática da
liberdade ao poder, mais ainda, a instigação à ousadia de se construir uma análise que
aproximasse a discussão desses conceitos vistos como binômios dependentes, na
moderna cultura ocidental. De outro modo, o objetivo desse tópico é problematizar a
perspectiva metodológica de construção de um objeto científico e da sua abordagem.
Para realizar tal intento, fizemos apropriações das discussões heideggerianas,
nietzscheanas, foucaultianas e deleuzianas, dentre outros autores a partir da quais,
aproximamos o olhar daquilo que se constitui problema.
Expomos, na sequência desse texto, as apropriações que realizamos dos autores
supracitados e daqueles com quem dialogamos na busca de (re)significarmos a relação
poder/liberdade.
A partir daí, temos o escopo de problematizar o ato de “produção científica”,
como exatamente o termo sugere, como algo construído/inventado pela figura de quem
escreve 15. Entendemos que não há realidade, sociedade, estado, lei, povo em si, mas
antes nós construímos “o mundo” à nossa ilusão de imagem e semelhança 16. Desse
modo, qualquer campo do cotidiano ou das chamadas ciências, ou mesmo da filosofia
são sempre fruto de uma significação e simbolização do humano, pois que as
“representações/apresentações”, inclusive nas ciências ditas exatas são passíveis, antes
de mais nada, de negações, acréscimos ou reconfigurações. Afinal, essa foi a grande
bandeira da invenção da ciência dita moderna, a partir de meados do século XVI.
15
Consultar: Veyne (1982); Rabinow (1999); Foucault (1996).
Numa aproximação à tese schopenhaueriana do mundo como vontade e representação, mas já
pensando nas contribuições nietzscheanas do mundo como vontade de poder e, também partindo da
crítica heideggeriana a partir da qual a escrita pode gerar o esquecimento do ser, temos então em
Foucault, Derrida e Deleuze a ideia de que criamos e matamos o “mundo” quando inventamos conceitos
e fórmulas para explicar “as coisas” e à medida que explicamos pela escrita matamos aquilo que demos
à luz/parimos, pois o conceito mata a “coisa”. Com exceção de Schopenhauer (2009), todos os demais
autores serão discutidos ao longo desse capítulo, portanto, os citaremos mais à frente.
16
39
De outro modo, se não há objeto em si, também é um ato hipócrita e pedante,
pensar numa perspectiva metodológica específica e correta para tal ou qual fato
estudado. Tanto o “fato” quanto a teoria e o método que se utiliza para construílo/recortá-lo são o resultado de uma escolha e bricolagem entre nós. As teorias
precedentes e as metodologias postas nas possibilidades da pragmática científica, desse
modo, nem quantitativo, nem qualitativo, nos garantem/fornecem bases para
construirmos análises objetivas ou subjetivas stricto sensu. De fato, o emergente na
produção de ciência não nos parece ser o modo como fizemos, ou porque fizemos, mas
antes, como narramos o quê e como fizemos, ou seja, a arte e valor da produção
científica está antes de mais nada na qualidade persuasiva do texto e não em nenhuma
pretensa verdade teórica, metodológica ou empírica dos dados. Os dados são
forjados/construídos, “tratados” pelo pesquisador.
O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como
estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições
aceitáveis cientificamente e, conseqüentemente, susceptíveis de serem
verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. Em suma,
problema de regime, de política do enunciado científico.
(FOUCAULT, 1986, p. 4). (Grifos do autor).
Todo texto representa a intenção de quem escreve que o mesmo seja
visto/compreendido e seja aceito, por quem o lê. É a tentativa de construção da
visibilidade do mundo que para ele é “real”. Nesse sentido, aqui também está sendo
construído o objeto linchamento, a partir do recorte teórico-metodológico nietzscheano
e foucaultiano, ao “mapeá-lo” nos discursos midiáticos, inventando-o como recorrência
da violência, vista como fundante. Afinal, a motivação para escrever este texto
constitui-se razões semelhantes às de Foucault:
O motivo que me impulsionou (a escrever...) foi muito simples. Para
alguns, espero, este motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a
curiosidade – em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a
pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que
procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separarse de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurase apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e
tanto quanto possível o descaminho daquele que conhece? Existem
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se
vê, é indispensável para se continuar a olhar e a refletir. (...) <o
ensaio> - que é necessário entender como experiência modificadora de
40
si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de
outrem para fins de comunicação- é o corpo vivo da filosofia, se, pelos
menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma <ascese>,
um exercício de si, no pensamento. (FOUCAULT, 1984 apud
RIBEIRO, 1985).
Sob esse prisma, podemos dizer que este texto nasceu, cresceu e tem a pretensão
de nunca estar acabado, inclusive por que parto do princípio de que esse é só um dos
olhares possíveis para a temática em questão e que, de todo modo, há uma infindável
possibilidade discursiva e prática que não é abordada aqui, seja por razões de escolha
instrumental, seja por ignorância a tais abordagens... Logo, tem-se a clareza de que o
discurso sobre a relação Sociedade-Estado-Linchamento é só mais uma invenção
política, histórica e cultural, a partir do lugar de amadurecimento/imaturidade, ousadia e
vontade de saber que impulsiona a autora do presente trabalho.
1.2.
PENSAR O OBJETO É SEMPRE REPRESENTÁ-LO?
Mas, para dizer também alguma coisa das ciências e das artes, não foi
a sede de glória que estimulou os homens a inventar e a transmitir à
posteridade todas essas artes, todas essas ciências que vêem como
algo tão maravilhoso (ERASMO, 2007, p. 40).
Heidegger (1999) pensa a constituição da ordem moderna como um
exacerbamento da metafísica do esquecimento do ser. O que teria levado o homem a
uma tecnoburocratização da vida, numa tentativa de nomear/ordenar as coisas pela via
da busca dos porquês? E, ao mesmo tempo, esse homem vê-se constantemente
assomado pela força do acaso-acontecimento, da (des)ordem. Desse modo, persiste a
des-razão, o não enquadramento, ou seja, a dificuldade da efetivação do princípio
normatizador via a busca das origens.
O autor retoma os pensadores pré-socráticos, mas não para tomar esse termo
como regra, senão na tentativa de não cair na linearidade, pois em tal autor eles estão
para além de Sócrates, assim, não seria a tentativa de renascimento do pensamento présocrático, mas de um aprofundamento à discussão acerca da essencialização do ser.
Há na Introdução à Metafísica (HEIDEGGER, 1999), uma questão central,
proposta pelo próprio autor, qual seja: por que há o ente e não o nada? Como possíveis
saídas a esse impasse, Heidegger, propõe as seguintes teses: a) o que ele discutirá não
41
será uma questão cronológica, mas epistemológica; b) não deve haver privilegiamento
de um ente-espécie, mas o ente será tomado como categoria epistemológica; c) os fatos
serão entendidos como acontecimento ou puro acaso da existência, como, por exemplo,
a vida humana; d) deve-se negar a busca dos porquês, como passíveis de descoberta das
origens ou, das causas primárias; e) fazer filosofia é estar além e aquém do presente, é
manter-se suspenso.
Para Heidegger, filosofar é poetar e, assim, o mesmo não separa a noção de
filosofia/ciência. Desse modo, antes de qualquer outra coisa, produzir “conceitos-teses”
é um ato de criação, logo, transcendência e poesia. Assim, podemos ver adiante a poesia
que ironiza a emergência da representação da coisa:
O que nós vemos das coisas são as coisas./ Por que veríamos nós uma
coisa se houvesse outra? / Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
/ Se ver e ouvir são ver e ouvir? / O essencial é saber ver, / Saber ver
sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando
se vê / Nem quando se pensa (CAEIRO, 2007, p. 63).
Nesse sentido, a filosofia/ciência não deve ser exercida como técnica utilitarista
ou como a possibilidade de um constructo de conceitos que possam ser aplicados a
certos fenômenos. Logo, não seria esse o grande problema da modernidade, ou seja,
“criar”, recriar conceitos a partir do princípio do cosmos grego e dispô-los na pretensão
de forjar a ordem? Há aqui uma negação e crítica à essencialização do ser, processo esse
que os modernos retomaram como o grande achado classificatório e hierarquizante do
real, esquecendo-se de que o próprio real será sempre, em última instância, uma
invenção.
A tentativa de investigar o ser do ente (ou a pseudo-essência das coisas, para
representá-la/apresentá-la teoricamente) leva à enunciação de questões, a um querersaber e esse fato é em última instância uma vontade de poder, como se se pudesse
chegar a uma “iluminação” da questão. Sendo assim, não se vê aqui, uma crítica velada
ao racionalismo metafórico platônico quanto ao mito da caverna? Não seria esse
também o caso da pretensão da ciência moderna? Pois, para Heidegger (1999), o saber
não implica necessariamente conhecimento sobre (algo), nem, muito menos, razão
instrumental para a intervenção, pois que a “coisa” sempre ultrapassa a vontade de
42
saber, pois essa vontade é continuamente renovada pelo desejo de mais saber e, assim, a
“coisa” é recriada o tempo todo, a cada novo olhar ou teoria que ousamos lançar.
Assim,
a
investigação
sobre
o
ente
é
sempre
uma
pretensão
de
construção/apreensão/visibilidade, mas como toda pretensão dá-se de modo incompleto,
nunca chegamos ao desvendamento total, uma vez que o total como conceito ou forma,
é também fruto da invenção de quem o pensa/denomina.
Ao contrário da postura relativista, a modernidade retomou com maestria a
sistemática aristotélica (na busca em classificar e diferenciar os seus “objetos”, mas
tendo por fim último distinguir o normal do patológico) num revival que perpassa as
teses positivistas, marxistas e fenomenológicas, nas quais a ordem do dia é o
estabelecimento dos princípios duais tais como: ciência versus senso comum; razão
versus religião; lei versus desordem; Estado versus povo; essência versus aparência,
enfim, a busca de normatizar e “normalizar” a norma e o desvio, ou seja, a norma é tudo
aquilo o que é posto pelas “práticas de Estado”, tais como escola formal, organização
das cidades, organização do mercado de trabalho e do uso da violência, dentre outras.
No caso do desvio, torna-se preciso investigar, reprimir e punir aqueles que não
seguissem a regra geral,
A organização monopolista da violência física geralmente não
controla o indivíduo por ameaça direta. Uma compulsão ou pressão
altamente previsíveis, exercidas de grande variedade de maneiras, são
constantemente aplicadas sobre o indivíduo (...) a monopolização da
violência física, a concentração de armas e homens armados sob uma
única autoridade, torna mais ou menos calculável o seu emprego e
força os homens desarmados (...) a controlarem sua própria violência
mediante precaução e reflexão (ELIAS, 1994, p. 201). (Grifos nossos).
Com base nessa afirmação, Elias (1994), ao mapear a formação dos Estados
modernos e propondo-se compreender o surgimento e consolidação da centralidade do
exercício do poder nas “mãos do Estado”, problematiza a relação entre vida social e
agressividade, mostrando que o controle civilizador extrapola a vida privada e sexual e
resvala também na vida pública.
Descrevendo e comparando os comportamentos em relação à guerra entre a
Idade Média e a modernidade, vê-se o autor defender a tese de que até meados do
século XV, a sociedade europeia valorizava e instrumentalizava os seus filhos (machos)
para a guerra, sendo essa formação um sinal de distinção social positivo. É a partir da
43
consolidação do Estado moderno, urbano, centralizador e classificatório via estatísticas
e censos, que o homem moderno será reeducado para as formas sutis e pacíficas. Assim:
(...) É a estrutura social que exige e gera um padrão específico de
controle emocional. <Nós>, “com nossos costumes e hábitos
pacíficos, com o cuidado e a proteção que o estado moderno
prodigaliza sobre a propriedade e a pessoa”, dificilmente podemos
formar uma idéia dessa outra sociedade (...) (ELIAS, 1994, p. 199).
De outro modo, retomando a discussão da essencialização proposta por
Heidegger, seria então o caso de pensarmos que o ser do ente está para cada povo
constituído na trajetória de formação/formalização da linguagem e daí na tentativa de
normalizar, normatizando os entes, construindo médios consensuais que estabelecem a
ordem e a (des)ordem, que contemplam a phisys e classificam as espécies, inclusive as
relativas aos fenômenos sociais. Assim, é correto pensar que cada sociedade dada, e a
cada momento histórico específico, constitua os seus padrões de normalidade, embora
não signifique que eles serão aplicados e vividos em stricto sensu. Portanto, investigar
um certo “objeto” não é simplesmente repeti-lo, representá-lo. Isso seria pura
essencialização (cf. HEIDEGGER, 1999), ou tentativa de correspondência imediata
entre a “coisa” e a palavra/conceito/apreensor.
No entanto, foi esse movimento de essencialização que vimos proliferar na
Europa a partir do século XIX; foi a fuga para a representação; e, assim, foi a
quantificação enquanto proposta metodológica e pressuposto racional de organização
social que estabeleceu a possibilidade do “contínuo da normalidade”. Nesse sentido, o
uso da violência deixou de ser uma marca de distinção positiva e passou a ser uma
função irremediável do chamado Estado e, se exercida pelos cidadãos, tinha um caráter
de marca negativa, incivilidade, barbárie.
Ocorrerá, assim, um “desvirtuamento do espírito”. Leia-se, um acirramento do
esquecimento do ser, quando realizamos a instrumentalização da razão ao
transformarmos o espírito em inteligência. Numa linguagem poética, vemos em Pessoa
(2003, p.91), uma clara aproximação com as teses antes discutidas:
Contemplo o lago mudo / Que uma brisa estremece, / Não sei se penso
em tudo / Ou se tudo me esquece. / O lago nada me diz,/ Não sinto a
brisa mexê-lo. / Não sei se sou feliz / Nem se desejo sê-lo.
44
O chamado real ou a realidade não nos fala(m) nada, nós é que construímos
discursos sobre algo e inclusive nós mesmos somos frutos de outros discursos.
Portanto o processo de produção do saber é exatamente o de ser uma invençãoconvenção.
Em consonância com as discussões anteriores, Nietzsche (2006), discute em O
crepúsculo dos ídolos, uma crítica à metafísica da representação, que destitui a
historicidade do chamado real e constitui a essencialização das “coisas”, consolidando a
noção de ambiguidade/contradição entre a coisa e o ser.
Assim, na modernidade há uma tendência à negação dos sentidos/instintos, em
detrimento da busca da razão-verdade, como por exemplo, em Platão, no Mito da
Caverna, pois para este último nos enganamos quando estamos presos aos sentidos. De
modo similar, também pensa a moderna ciência, na qual o cogito determinará a
“verdade”, através de movimentos “assépticos” proporcionados pela “terapêutica
metodológica”, que visa, em última instância, a uma negação do corpo/sentidos em
detrimento da razão.
Desse modo, a “guerra moderna” seria aquela contra si mesmo, na busca do
autocontrole, como bem discute Elias; a civilização dos costumes, ou, como satiriza
Nietzsche (2006, p.33): “se teu olho te escandaliza, arranca-o de ti, felizmente nenhum
cristão age conforme este preceito”.
A negação desse corpo instinto, quanto à entrega/crença na força centralizadora
e protetora das “práticas de Estado”, nos levaria, segundo o ideário vigente na
modernidade, ao apaziguamento e ao adestramento da força física.
Portanto, entendemos que há a necessidade de construirmos e retroalimentarmos
a figura dos inimigos, como por exemplo, o pedófilo, o ladrão, o motorista que atropela,
seria uma razão possível para o não sufocamento total das ações de resistência, pois a
sua existência (a do inimigo), leva o outro (a razão, a moral), a uma ação constante
numa cruzada pela ordem, pela universalidade dos deveres/direitos ou, segundo
Nietzsche (2006), a uma vida sacrossanta.
Nesse sentido, Agamben (2002) discute a politização da vida, numa franca
aproximação ao conceito de biopolítica foucaultiano, a partir do qual problematiza os
processos de subjetivação do eu versus o assujeitamento promovido pelos estados
totalitários modernos.
45
Apresenta a tanatopolítica moderna, construída em estados nazistas e
comunistas, como um exacerbamento da pretensão do uso legítimo da violência,
efetivado a partir da centralização do monopólio da força ou do estado de exceção.
Mostra, ainda, que na moderna tradição democrática, o corpo foi fundado para poder ser
negado, controlado, fragmentado e, até ser passível da dispensabilidade/eliminação.
Assim, discute-se a questão do valor da vida ou de que vida merece ser vivida?
Aqui, interessa pensar a violência como o grande projeto moderno de construir
homens civilizados e instituir a ordem. Daí a impossibilidade que vemos em conciliar
liberdade com os fins últimos modernos relativos à defesa da propriedade privada,
através do controle sexual e da vida pública. Nos dois casos, espera-se sempre do
“cidadão” ações que remetam à idílica ovelhinha bíblica, seguindo o seu pastor (família
e estado) e devendo entregar-se a sua proteção, assim a máxima caricatural poderia ser
essa:
Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas. / O
resto é a sombra / De árvores alheias. / A realidade / É sempre mais ou
menos / Do que nós queremos. / Só nós somos sempre / Iguais a nóspróprios. / (...) os deuses são deuses / Porque não se pensam
(PESSOA, 2006, p. 34).
1.3.
A ”INUTILIDADE” TAMBÉM PODE SER “ÚTIL?”
Bauman (2005) trata do mal estar pós-moderno como reflexo da liquidez
moderna, na qual há o desemprego e a angústia geral, pois existe uma total ausência de
previsibilidade e perspectiva positiva frente ao futuro, que tem levado pessoas nascidas
a partir da década de 1970, do século XX portanto, a sofrerem do mal geral por serem
“redundantes-refugos, ou seja, dispensáveis, dejetos...”
De outro modo, esses “refugos” têm demandado as “práticas de Estado” e
filantropia, ações assistenciais que lhes garantam mínimos para a sua sobrevivência,
sendo, de novo, mais um problema! 17 Assim, acrescentamos ainda outra nuance, a da
17
Ver em Wacquant (2008) uma bela e crítica discussão sobre “as duas faces do gueto”, a saber:
dispensabilidade do mercado e, ao mesmo tempo, demanda de política social pública para o Estado ou
tanatopolítica. “O caráter bifacial do gueto - ao mesmo tempo escudo e arma - implica que, na medida
em que mínguam seus graus de completude e de autonomia institucionais, seu papel protetor para o
grupo subordinado diminui e corre o risco de ser engolido por sua modalidade excludente. Nos casos de
figura em que seus habitantes deixam de ter um valor econômico para o grupo dominante, o
encapsulamento etnorracial pode intensificar-se a ponto de o gueto servir apenas como simples
46
des-socialização desses sujeitos, a saber: um desconhecimento e não reconhecimento
das regras postas que os leva de encontro às mesmas, de modo que, “(...) por que os
desempregados subitamente desqualificados deveriam respeitar as regras do jogo
político democrático, se as normas do mundo do trabalho são solenemente ignoradas?”
(BAUMAN, 2005, p. 22).
A educação, o “grande remédio da modernidade”, desde o Iluminismo, já não
nos acena com resultados óbvios e imediatos, ou mesmo mediatos, de inclusão social. O
ensino superior banalizou-se e tornou-se, no mais das vezes, um adorno de status do
saber, mas sem ressaltar inclusão social e econômica. Assim, só crescem as estatísticas
sobre o analfabetismo 18, ou sobre as enormes aglomerações de graduados, submetendose a concursos de garis 19. Esse tema é abordado por Baumann, quando diz:
(...) A lei é um projeto (...) é a lei que dá existência à anarquia, ao
traçar a linha que divide o dentro e o fora. A anarquia não é
meramente a ausência de leis; ela nasce da retirada, da suspensão, da
recusa da lei. O convite à universalidade soaria cínico não fosse a
inclusão que ela faz do excluído por meio da sua própria retirada
(BAUMAN, 2005, p. 43).
O mesmo autor aproxima-se da ideia de Agamben (2002), quando defende que
os redundantes são homo sacer, ou seja, uma vida considerada pela média consensual da
normalidade, como vida inútil que não serve nem para o mundo profano, nem para o
sacrifício em altar. É a vida que simplesmente não merece ser vivida, logo,
(...) Os Estados nações atuais podem não mais governar o esboço do
plano, nem exercer o direito de propriedade de utere et abutere (usar e
abusar) dos sítios de construção da ordem, mas ainda afirmam sua
dispositivo de estocagem do grupo maculado ou para prepará-lo para essa forma derradeira de
ostracização que é a aniquilação física”. (WACQUANT, 2008, p. 90). (Grifos nossos, sic.)
18
Ver: “[...] lista de estados brasileiros por taxa de analfabetismo e, analfabetismo funcional, segundo
dados de 2008 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. De acordo com esses
dados, o Brasil possui 10,0% (cerca de 19,1 milhões) de analfabetos e 21,0% (cerca de 40 milhões) de
analfabetos funcionais” (LISTA..., 2009). A Paraíba ocupa o lugar 25 em número de analfabetos, o que
corresponde a 23,5% e, ocupa o lugar 25 em número de analfabetos funcionais, que corresponde a
34,7%.”
19
Consultar: “Concurso para garis, no Rio de Janeiro, atrai 22 mestres e 45 doutores” (CONCURSO...,
2009).
47
prerrogativa essencial de soberania básica: o direito de excluir
(BAUMAN, 2005, p. 45). (Grifos do autor).
Seria uma versão atualizada da lei do controle da população? Buscando a
racionalização dos gêneros alimentícios, incluindo-se aí a água, ou a guerra pela água.
Bauman (2005) aponta que a retomada das teses malthusianas atestam o fracasso do
ideário moderno da ordem, progresso e prosperidade, desconstruindo teses clássicas
como a smithiana, a durkheimiana e, mesmo a keynesiana. Desse modo,
(...) À diferença do caso dos alvos legítimos da construção da ordem,
ninguém planeja as baixas colaterais do progresso econômico, e muito
menos traça por antecipação a linha que divide o condenado do salvo.
Ninguém dá ordens, ninguém assume a responsabilidade (...)
(BAUMAN, 2005, p. 53).
Nesse sentido, os redundantes “podem muito bem ser desculpados por se
sentirem rejeitados, por serem irritáveis e raivosos, por respirarem vingança e
alimentarem a desforra [...]” (BAUMAN, 2005, p. 54).
Nesse jogo de construção de estigmas, uma bola de neve começa pela associação
à pobreza e vai se somando a ela outras variáveis como: a cor; o sexo; a instrução;
profissão/ocupação, lugar de origem, numa relação imediata que busca qualificar o
igual-estabelecido e distanciar o estranho (estrangeiro/migrante) 20, até o sujeito estar
totalmente envolto em atribuições exteriores pejorativas e demarcadoras da sua
“incapacidade” ou “desumanidade”.
Como visto antes, em Agamben (2002) há a denúncia da “vida nua” como sendo
a vida que regulada ou, autorregulada e desreferencializada do Eu, torna-se uma
existência tomada apenas como um instrumento de ação do Outro e, assim, é uma vida
que pode ser eliminada.
Esse tipo de problema, antes discutido, é vivenciado e defendido como tese
plausível desde os gregos clássicos, quando da estranha, para não dizer perversa
constituição da democracia. Democracia sim! Menos para mulheres, escravos e
estrangeiros. Restam poucos cidadãos, não?
20
Ver: Elias (2000).
48
Vida nua sim! No medievo, o clero e a monarquia versus os súditos. Vida nua
moderna no nazismo, no socialismo, na democracia estadunidense e em todos os
pseudo-direitos do homem que legitimam, antes de mais nada, os não direitos, a não
inalienabilidade desses, a luta, como guerra, para estabelecer a normalidade via políticas
da diferença, como as práticas educacionais multiculturais 21, tão ao estilo da mãe da
democracia moderna à (semiótica) Senhora Liberdade novaiorquina! Ou dito de outra
forma, por Florbela, a condição da existência daqueles considerados como vida nua
pode ser vista como:
Eu sou a que no mundo anda perdida, / Eu sou a que na vida não tem
norte,
Sou a irmã do sonho, e desta sorte / Sou a crucificada... a dolorida.../
Sou talvez a visão que Alguém sonhou, / Alguém que veio ao mundo
pra me ver
E que nunca na vida me encontrou! (ESPANCA, 2003, p. 24).
Ao que parece, a poesia explana a questão da idealização do mundo e do sujeito,
processo esse que se tornou o grande corolário do ideário educacional moderno, crédulo
da capacidade emancipatória da educação. Assim, como resvalará tal crença para todas
as demais intervenções sociais, especialmente aquelas medidas de contenção dos
sujeitos, denominadas como políticas públicas, podendo também ser lidas como
biopoder e biopolíticas.
Agamben (2007), em Profanações, discutirá de modo cômico/sarcástico a
condição desconfortável do ideário moderno, no tocante à positividade da norma
jurídica e da ordem, apresentando a profanação como negação da vida nua.
Os principais temas ali abordados dizem respeito às questões relativas: a) à
descentralidade ou mesmo impossibilidade de um processo identitário, pois o Eu
moderno afasta-se do centro (como centro?); b) a(A)os processos de espetacularização
da vida privada, na qual o que persiste é a fragmentação do sujeito que tenta/pensa ser
um Ser (referencializado e autoreferente); c) ao homem visto como um acontecimento,
talvez um erro, e antes de mais nada, uma pretensão de Ser; d) ao homem ser o conjunto
das máscaras, através das quais apresenta-se como pessoa, escondendo-se, como fazem
as crianças em brincadeiras; e) a que sem o recurso da magia, resta ao homem a
21
Consultar: Torres (2001).
49
ignorância de não saber-se alegre ou triste e de projetar ad infinitum seus desejos; e) à
conceituação do mundo, que tira do homem a capacidade da magia, do inominável,
portanto, o fato de poder ser sedutor, assim nomear (essencializar) a coisa.
Por
isso,
resta
ao
homem
o
apego
aos
traços,
aos
objetos
“significados/significadores”, através dos quais ele realiza, sem ter uma noção clara, a
sua objetificação no mundo. O criador se deixa domar pela criatura, como, por exemplo,
podemos metaforizar, tomando de empréstimo um fragmento do poema Esfinge:
Sou filha da charneca erma e selvagem: / Os gestiais, por entre os
rosmaninhos, / Abrindo os olhos de oiro, p´los caminhos, / Desta
minh`alma ardente são a imagem (ESPANCA, 2003, p. 52).
Parece que tanto na poesia, quanto na discussão de Agamben (2002 e 2008),
assim como em Heidegger (1999), nós podemos encontrar, de modo subliminar, uma
referência à necessidade do humano de projetar-se no mundo e dele extrair aquilo que
nomeamos sentido das coisas, ou como na produção científica moderna a pretensão de
dar sentido às coisas, “trazê-las à luz”.
1.4.
MAS O QUE FAZER QUANDO OS DEUSES FORAM MORTOS?
Agamben (2007) ressuscita a imagem de deus, embora seja um deus muito
próximo do paganismo socrático do daemon. O deus discutido por Agamben é o genius,
uma figura que tutelaria todo recém-nato e o acompanharia em sua existência (aqui
todas as aproximações com a teleologia do anjo da guarda cristão não são mera
coincidência!).
Genius seria o responsável pelas nossas características: é como se nascêssemos
uma lousa em branco e aqui não a educação, mas a mistificação nos preenchesse.
O homem é considerado bipartide: é ele e, ao mesmo tempo, é o seu gênio.
Passamos toda a existência tentando nos afastar do gênio e nos forjar peculiar, encontrar
e nos agarrar a um centro, nosso centro-Eu! Contudo, a necessidade de nomear as
coisas, racionalizando o mundo nos torna vazios, desamparados.
Desse processo advém a ânsia humana em reter, eternizar, estabilizar e se
apropriar do mundo, realizada através da tecnologia que apreende, capturando a imagem
e a tornando imortal, inclusive na sua beleza e salubridade, como, por exemplo, na
50
emergência fotográfica, nas filmagens domésticas e turísticas, na luta desenfreada dos
cientistas sociais em “representar fatos sociais” enfim, na busca de ser um só! De
aprisionarmos o momento presente.
Pensamos também nesse sentido, nas espetacularizações promovidas pela
mídia 22, inclusive nos “grandes pasquins”, construídos das tragédias humanas,
principalmente em “peças” que encenem a violência, os chamados “furos jornalísticos”
que cobrem com “imparcialidade” os crimes mostrados ao vivo ou, mais refinadamente,
as reconstituições de crimes feitas pelo judiciário, ou mesmo, aquelas realizadas pelos
meios de comunicação de massa sobre crimes hediondos, por exemplo:
Na nova fase da televisão, ela é auto-referente. As pessoas não estão
preocupadas com a questão de ser ou não verdadeiro o fato que está
sendo transmitido na televisão. (...) a televisão assumiu o princípio de
tudo o que é montado num telejornal ou na grande reportagem
ficcional. Assim, os eventos que ocorrem na rua, por exemplo, uma
passeata (...) transformam-se, no momento em que as câmeras
aparecem, em eventos exatamente para a televisão. Ela é a razão de
ser desses eventos, acontecimentos e fatos (MARCONDES FILHO,
1993, p. 104).
E por que não pensarmos nas “espetaculares” coberturas dos crimes em tempo
real, quantos sequestros, linchamentos, rebeliões em prisões, dentre outros, são
veiculados como uma novela real? É a morte do fato como pensa Agamben (2007) via
racionalização midiática do mesmo, o que provoca enfim, a banalização do tema
abordado, que pode começar a ser apreendido e representado pelos consumidores
midiáticos como mais um capítulo da trama encenada. Assim, pode-se pensar que esse
recurso leva a um processo de acirramento da substancialização das coisas e, ao mesmo
tempo, a um esquecimento do ser, como se pode notar a partir do poema que se segue:
Por que tenho saudade / de você, no retrato, / ainda que o mais
recente?
E por que um simples retrato, / Mais que você, me comove, / Se você
mesma está presente? (ALVES, 1999, p. 174).
22
Consultar: Bourdieu (1997); Bretton e Proulx (2002).
51
Agamben (2007) propõe que nós instituamos o anjo guardião ou o gênio como
um fetiche. Aquilo que substituirá a ausência flagrante do que não temos/somos?
(Vemos aqui uma aproximação implícita a Freud) 23.
Para Agamben (2007), não temos centro (numa aproximação clara à tese da
castração freudiana). Assim, buscamos conteúdos no consumo, consumo em geral,
inclusive de afetos, de notícias, mesmo que catastróficas, Precisamos preencher nosso
vazio e a desgraça do humano, aquela promovida por ele, é ainda uma fórmula sedutora.
As “práticas de Estado” moderno tentaram forjar a crença na possibilidade do
uno, de que interesses diferentes se atraem, se protegem e se projetam! Vida privada e
vida pública normalizadas pelo princípio da liberdade inclusive, para escolher e acatar a
melhor algema, como, por exemplo, nas regras de defesa da propriedade privada, no
contrato tácito do voto à entrega da representatividade pelo outro e na “tranquilidade da
proteção do dito Estado”.
Mais do que o imediatamente perceptível, a própria experimentação do mito
moderno, na vida privada, na vida pública e na produção científica, mostrou ao homem
a rizomática possibilidade da paródia: na democracia, juntos e dóceis, até que a
morosidade e a corrupção da justiça nos separe! Na ciência, entregues a ela e fiéis, até
que a racionalidade nos escandalize/barbarize!
Retomando Agamben (2007) e Nietzsche (2006), o desejo, essa força que não
tem juízo e nem nunca terá, é aquilo que é do campo da inconfessabilidade, do que não
deve ser dito, para não ser morto. O desejo é imagético, volátil, inapreensível,
multiforme. Talvez resida aí a sua destreza e a “maldição do humano”, pois que tenta de
modo inglório aprisionar a força da vontade de potência.
Como discutido linhas atrás, os modernos tentaram aprisionar, nomeando e
normalizando a sexualidade e a violência, mas como? Se no próprio apogeu moderno e
vitoriano, a voz daquele terapeuta e mago da alma humana gritava: sexo e violência são
as molas propulsoras da ação humana!
A busca pela contenção nos levou á pior forma de barbárie já classificada e
arquivada, como por exemplo, a II Guerra Mundial e os posteriores estados de exceção.
23
Consultar: Freud (1979a; 1979b; 1979c) e Lacan (1979; 2005; 1985).
52
Deleuze e Guattari (1995), em Mil Platôs, criticam as visões cristãs medievais
que tomavam o corpo como um templo (casa que abriga a Deus, portanto, um
empréstimo); também criticam a visão mecanicista, que dessacralizou e propôs ao corpo
a ordem, mostrando que em ambas há a construção de uma visão autodestrutiva do
corpo, não como uma pulsão de morte, que teoricamente se complementaria com um
princípio do prazer, mas pura e simplesmente, uma negação da carne, do instinto, talvez
um neoplatonismo com fins últimos, num devir teleológico.
Ao contrário, para os autores anteriormente citados, o corpo é um fluxo e não há
a possibilidade de organizá-lo (domá-lo, biológico, muito menos, psiquicamente), nem
de nomeá-lo organismo.
O corpo é conexão de desejo, um contínuo de intensidades. Desse modo, é
ilusório tentar as terapêuticas racionais e místicas de procura de um centro. Nem nós
ocidentais e nem os orientais seremos capazes de encontrar esse éden. Se ele existe
mesmo, nos aproximamos dele na forma do desejo, daí a máxima proibitiva: “(...) come
de todas as árvores do paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e
do mal; porque, em qualquer dia que comeres dele, morrerás indubitavelmente”
(BÍBLIA..., 2010a). Em outras palavras: viva feliz, mas não ouse interrogar, não ouse
desejar saber, desejar querer! Desejar e, muito menos, realizar algo que tenha sido
estabelecido como prioridade da religião, da ciência, das “práticas de Estado” ou da Lei.
Esta é a chave da felicidade neste mundo. Desse modo, podemos supor que resta-nos
conformar com o fato de que:
Hay dias que no se lo que me pasa, / Eu abro o meu Neruda e apago o
sol. / Misturo poesia com cachaça e acabo discutindo futebol / Mas
não tem nada, não. Tenho meu violão. / Acordo de manhã pão com
manteiga e muito sangue no jornal, / Ai, a criançada toda chega e, eu
chego a achar Herodes natural. / Depois faço a loteca com a patroa,
quem sabe o nosso dia vai chegar. / E rio porque rico rir à toa, também
não custa nada imaginar. / Aos sábados em casa tomo um porre e
sonho soluções fenomenais. / Mas quando o sono vem e a noite morre,
o dia conta histórias sempre iguais. / Às vezes quero crer, mas não
consigo, é tudo uma total insensatez, / Aí pergunto a Deus, escute
amigo se foi pra desfazer porque é que fez? (MORAES, 2003, p. 150).
Como a poesia aponta, há para Deleuze e Guattari (2005) a fuga do corpo
aprisionado, quando das ações masoquistas, mas masoquismo não é entendido por esses
53
autores sob uma perspectiva moralista e negativa, pelo contrário, eles apontam o corpo
sem órgãos como uma alternativa à disciplina.
Esse corpo sem órgãos nos acena quando da recorrência da “sede” em destroçar
os corpos na realização das “mil mortes”. Nesse sentido, a frágil pretensão moderna em
proteger o corpo do indivíduo e, depois, a população esbarra na vontade de potência em
mutilar o indivíduo tido como anormal, mesmo depois de já ter tirado a sua vida.
Numa perspectiva extremamente nietzscheana, Deleuze e Guattari (2005)
retomam a crítica às figuras do padre e do psicanalista e mostram como ambos buscam
por caminhos bem próximos (a catarse pela fala), racionalizar/aprisionar o desejo. Nós
ousamos dizer que os “cientistas” das ciências humanas (por exemplo, nas vertentes
sociológicas e psicológicas) também têm a pretensão de “analisar” os discursos sobre o
“objeto” que estudam e de entender as suas motivações.
Como está sendo discutido, fica patente que no recorte teórico dessa pesquisa há
uma recorrência ao princípio da vontade de potência, inclusive de dizer algo sobre o
objeto, mesmo que tenhamos a clareza de que ele é uma invenção. Sendo assim, o
estudo do corpo violado remete a pensar que o que marca o ideário da ordem sobre o
corpo, na modernidade, são os critérios normalizadores dos conceitos de: a) organismo,
que estabelece a classificação morfofisiológica, psíquica e socialmente saudável,
podendo ser vista na relação entre o normal e o patológico; b) significância, também
seguindo o corolário da prescrição e conceituação do mundo, estabelece a partir das
categorias anteriormente construídas o campo da regra e do desvio; c) subjetivação, a
partir do dever ser, proposto pela teologia, mas muito radicalmente exercido de modo
eficiente, pois sutil, pela educação moderna via família. Estado e mídia. Aqui
encontramos o campo da normalidade, a possibilidade da aceitação, do reconhecimento
enfim, somos um apêndice desse organismo superior, anterior, generalizante e
“desejado” por nós! O que vemos aqui senão um dos maiores ícones da moderna
sociologia falando? São quase três séculos de domesticação do corpo... Como se pode
ver:
(...) A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara,
fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos,
foi ela mesma apenas uma doença (...) ter de combater os instintos eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, a felicidade é
igual a instinto (NIETZSCHE, 2006, p. 22). (Grifos do autor).
54
Assim, também podemos estender a ironia acima às ações de justiça popular,
através das quais, e para além da pretensa onipotência das “práticas de Estado”, que
agem por conta própria, quando, por exemplo, dos linchamentos, que são fatos
rizomáticos e, por isso mesmo, rápidos, não planejados, sem comando de centro,
devastadores como o fogo, mas também fugazes como esse. Assim, “o desejo vai até ai:
às vezes desejar seu próprio aniquilamento, às vezes desejar aquilo que tem o poder de
aniquilar. (...) desejo de exército, de polícia e de Estado.” (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 55).
Os linchamentos são o extravasamento do instinto da vingança, a busca pela
ordem, uma outra ordem. Mesmo que sejam tidos como ilegalismo, eles se sobressaem
às normas postas, mas, como consumação do desejo, buscam uma nova ordem e
esmaecem no próprio ato de linchar e necessitam do anonimato, do esquecimento! Até
que uma nova força desejante, instale-se.
É oportuno lembrar aquele mito grego da vida humana metaforizada na nau, que
diz em linhas gerais que todo ser humano nasce em meio a um maremoto e é o próprio
humano, um tripulante da nau, que deverá atravessar a tempestade na noite escura.
Assim, cabe a cada um escolher as estratégias, a partir das quais tomará o leme e guiarse-à na turbulência... Enfim, estamos entregues à própria sorte! E parece que o homem
não tem sido muito previdente, ele tem, e muito, ousado desafiar os deuses e guiar a si
mesmo.
1.6. FALAR DA “COISA” NÃO É FALAR DE NÓS MESMOS?
Quantas vezes, amor, te amei sem ver-te e talvez sem lembrança, /
sem reconhecer teu olhar, sem fitar-te, centaura, / em regiões
contrárias, num meio-dia queimante: / era só o aroma dos cereais que
amo. / Te amei sem que eu soubesse, e busquei tua memória./ Nas
casas vazias entrei com lanterna a roubar teu retrato. / Mas eu já não
sabia como eras. De repente,
Enquanto ias comigo te toquei e se deteve minha vida: / Diante de
meus olhos estavas, regendo-me, e reinas. / Como fogueira nos
bosques o fogo é teu reino (NERUDA, 1998, p. 28).
Para Agambem (2007), quem escreve deve ter a consciência de que a sua escrita
tem a pretensão de ser original, de ter estilo próprio, contudo, o autor é um selecionador
criativo (quem sabe um alquimista?).
55
Concordamos com o mesmo quanto à tentativa de dessacralizar o lugar da
autoria de ideias e abordagens em relação aos problemas, a partir dos quais o
pesquisador volta o seu olhar. No entanto, entende-se ser impossível a qualquer
“escritor” não estar efetivamente presente em seu texto. Entende-se que em ciência, na
política ou mesmo na arte, nós (re)elaboramos e (re)significamos símbolos já criados,
como dizia Fernando Pessoa, “nós nos admiramos com a eterna novidade do novo.”
Com base nesse entendimento, o que foi discutido aqui não foi especialmente a
“descoberta” acerca da temática da modernidade e, a partir dela o olhar sobre a
violência, mas repensamos essa temática trans-temporal a partir de um lugar que se
pensa fragmentado, descontínuo e prenhe de diferentes possibilidades interpretativas.
Com isso, se quer propor que o estudo sobre as vidas infames (daqueles que não se
coadunam com a ordem posta, como por exemplo, os promotores da justiça popular e
que portanto, transformam outras vidas em corpos dispensáveis) nos possibilita pensar
na questão que Agamben (2007) coloca ao propor a tese da desconstrução da ordem
jurídica, a partir do fato de que toda tentativa de racionalização/representação da coisa
pela via da linguagem/conceituação mata “o real”.
Pensar nos registros em Boletins de Ocorrência ou pensar nas espetacularizações
que a mídia constrói sobre fatos da vida privada sexual ou de cenas de violência, mais
especificamente o linchamento, pois normalmente reúne na sua motivação o tabu da
agressão ao corpo da vítima e, especialmente, a agressão à sua sexualidade, remete à
questão sobre a presença ou não dos autores desses fatos descritos. Pois, não seria a
ausência do autor (promotor da justiça popular) a peça central do drama do uso da
violência para combater a violência? Dito de outro modo, não seria essa impossibilidade
de precisar quem foram, quantos foram naquele momento, naquele lugar e(,) em tais
condições que realizaram o linchamento daquela “vida infame”?
Partindo dessa discussão, a substancialização (cf. HEIDEGGER, 1999) leva à
morte da coisa escrita e descrita de acordo com Agamben (2007). Esse último ainda
chama a atenção para o fato de que podemos entender que o capitalismo acenaria para a
consolidação de uma passagem/substituição, na qual o mesmo assumiria uma posição
subliminar de religião que espetaculariza a cisão Eu-Genius e, por outro lado, torna
sacro/natural o que era profano, como por exemplo, os reality shows e a banalização dos
56
atos
proibidos,
apresentados
agora
como
“shows
da
vida”,
inclusive,
as
espetacularizações da violência.
Se na primeira fase da modernidade (mais ou menos do século XVI a começo do
XVIII) construímos o sentimento de pudor, de outro modo, do século XX e durante o
XXI, construímos e transformamos em mercadoria valorosa a banalização da vida, ou a
espetacularização do que antes era proibido 24. Comemos o fruto proibido e nos
lambuzamos com a possibilidade do conhecimento, mais ainda da vulgarização da
informação. Será que o preceito estava correto e de fato morremos?
O que percebemos é que todo esse processo tem levado a nossa sociedade à
naturalização e a recorrentes processos de criação/ressignificação das coisas, dos
conceitos. Assim como a estória da colcha de Penélope, costuramos e descosturamos
continuamente o ideário da norma jurídica, seja no direito civil, seja no direito penal.
Entretanto, se ficamos presos a esse círculo de repetição, ainda estamos ligados ao
ideário da norma jurídica, em última instância, crédulos nos princípios ordenadores das
práticas do Estado moderno.
Mas se, ao contrário, nos aproximarmos de Helena, a quela que ousou trair e
desconstruir a norma posta, dizendo não às estruturas e agindo em causa própria,
mesmo que essa causa, como nos linchamentos, tenha um fundo de cólera pública,
ainda assim, ela configura-se um ato de revolta e subversão à ordem posta, pois que vai
de encontro à média consensual vigente, que seria a da submissão e confiança na ação
do Estado.
A partir do momento em que “tomamos” o poder, (nesse caso, assumimos a
dispersão e a usamos em nosso favor), o exercemos pessoal ou em grupo. Mesmo que
de modo ilegal, temporário e “irracionalmente”, nós estamos construindo um espaço de
exceção à norma vigente.
Estamos aqui assumindo os riscos e as vantagens de sermos os construtores do
“nosso real”. Assim, a responsabilidade pela transvaloração, nos torna imoralistas.
Comemos do fruto proibido e podemos experimentar a sensação de degustar as
24
“É verdade, eu tinha dito que a guerra do Golfo não iria acontecer. No nível dos fatos algo ocorreu.
Mas se foi a guerra, penso que não se trata exatamente da guerra [...] Ela não aconteceu realmente, não
teve dramaturgia de guerra nem entradas e enfrentamentos. Houve a guerra eletrônica no espaço. Não
teve guerra no solo, pois os iraquianos não combateram. Desapareceram. Houve uma espécie de
cobertura tecnológica gigantesca”. (BAUDRILLARD, 1991, p. 167).
57
diferentes nuances da ciência/conhecimento das coisas; aquela vivência que foi vetada
ao homem desde o Jardim do Éden. Essa é uma ação para aqueles que ousam
desobedecer ao Senhor e descobrem que além do horizonte não há outro poseidon senão
o da nossa consciência (preferimos aqui o conceito socialização, que também pode ser
lido como disciplina e assujeitamento). Talvez aí resida o maior desafio humano, o de
digladiar-se entre o Eu-Gênio e descobrir que estamos sempre construindo sentidos para
nós e para o mundo e que na ciência, na política, nas artes ou na vida cotidiana, stricto
sensu, o que mais caracteriza a nossa condição é o fato de sermos tal qual o poeta:
O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir
que é dor / A dor que deveras sente. / E os que lêem o que escreve, /
Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que
eles não têm (PESSOA, 2006, p. 21).
Gostaríamos de provocar o pensamento também sobre a possibilidade de nos
vermos como um fingidor e, assim, ousar também construir os nossos próprios
caminhos, e caminhar menos nos seguros “tijolinhos laranjas”. Afinal, quem de nós
sabe o que esse caminho pré-disposto pode nos reservar? Nem sempre nos deparamos
com o coelho e as suas dicas para uma caminhada tranquila. podemos, também, dar de
cara com a “Rainha de Copas” e encaminhados ao julgamento. Assim, como em Alice
no País das Maravilhas, é melhor nos precavermos contra as armadilhas da tão segura
estrada pré-fabricada. Às vezes, o melhor caminho é aquele dos tuaregs sem estradas
prontas e sem deixar rastros, quem sabe o caminho da turba que lincha seja a metáfora
mais próxima do que estamos querendo dizer neste momento.
Nietzsche (2006) diz que para haver arte e escrita (dizemos também direito e
política). É preciso que haja embriaguez – a embriaguez da crueldade –, como na turba,
e no seu poder de revolta e justiça, é preciso o uso da força. Assim, aqui interessa, o uso
da força no linchamento, que destrói para Estabelecer a “ordem-provisória”, fazendo da
desordem a lei, a exceção!
O que está sendo proposto agora é algo como idealizar o objeto, contudo, não se
quer substancializar essa “coisa”, mas torná-la peculiar, tomá-la como típica, ideal.
“Nesse estado, o ser humano transforma as coisas até espelharem o seu poder”
(NIETZSCHE, 2006, p. 68).
58
Essa é uma proposta radical de estética da existência que deve ser construída
pela força criativa, tanto na pena (na ponta do lápis, ou no toque do mouse de quem
cria/apresenta um fato), quanto no “espetáculo” da violência (dos que promovem com
celeridade, a justiça), pois enfim: “o que justifica o ser humano é sua realidade – ela o
justificará eternamente.” (NIETZSCHE, 2006, p. 81).
Gostaríamos de aqui deixar o “manifesto” de Reis (2006, p.150), acerca da
modernidade e, de algum modo, também nos eximir da teimosia em discutir e
apresentar suposições sobre “o que a realidade é”. O que buscamos com o texto que se
segue é mais uma tentativa de catarse e um pedido de desculpas! Até por que para negar
a dita ciência moderna, ela nos obriga a dialogar com o primado da ordem e seus
princípios classificatórios.
Há a plena consciência da invenção do objeto – “práticas de Estado”, sociedade,
lei e justiça popular, da mesma forma que os dados são, também, produtos de uma
invenção. Nesse sentido, o uso do recorte teórico-metodológico reporta o “fato e os
dados” a uma leitura que reúne o conceito de vontade de potência, vivida no
linchamento, à perspectiva de que a violência é um ato fundante na religião e em todas
as demais instituições que criamos. Também é violentadora a presente abordagem e não
deve ser tomada como a verdade sobre o linchamento, mas como uma das versões
possíveis.
Desse modo, esse trabalho está aberto a reformulações e à própria negação total,
pois não fosse assim, estaríamos construindo um dogma e não a pretensão de um
discurso, temporal e ideológico. Nesse momento, entendemos o linchamento pelo viés
aqui exposto, não sabendo se no futuro ele ainda fará sentido. Logo:
Não: não quero nada. / Já disse que não quero nada. / Não me venham
com conclusões! / A única conclusão é morrer. / Não me tragam
estéticas! / Não me falem em moral! / Tirem-me daqui a metafísica! /
Não apregoem sistemas completos / Não me enfileirem conquistas /
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) – / Das ciências,
das artes, da civilização moderna! / Que mal fiz eu aos deuses todos? /
Se têm a verdade, guardem-na para si (...) (PESSOA, 2006, p. 15).
Em outras palavras, o que se quer dizer é que o ato de “fazer ciência” na
contemporaneidade, diferentemente do que foi na modernidade, que trabalhava com o
59
paradigma, segundo o qual verdade era sinônimo de comprovação empírica, nos
aproxima de Nietzsche, que bradava contra os positivistas, os quais acreditavam que só
existiam fatos, quando tudo é uma questão de interpretação. Com isto, aliamo-nos aos
pós-estruturalistas, cuja preocupação central é a de proceder a uma desconstrução de
sentido. É claro que ao desconstruir o sentido de qualquer coisa, estamos sempre lhe
atribuindo outro sentido. E aqui se reconhece a falência de qualquer paradigma que se
reduz a um sentido puramente epistemológico. Afinal, a dita ciência moderna sempre
possuiu razões implícitas ou explícitas que a própria razão científica desconhecia, como,
por exemplo, as relações de poder que infundem ao discurso uma legitimidade ou um
status de verdade ou de erro.
60
2. CAPÍTULO - “... QUE TODOS OS AVISOS NÃO VÃO
EVITAR...”
Figura 3 - O grito, Edvard Munch
2.1.
QUANDO O PODER SOBRE ALMAS VIRA FORÇA SOBRE CORPOS
No Brasil, <linchamentos> ocorrem quando alguém pratica (ou é
suspeito de ter praticado) algum crime odioso (considerado assim
por ser praticado contra alguém indefeso, como uma criança, ou
por se valer de força), como estupro, atentado violento ao pudor ou
sodomia, assassinato ou lesão corporal grave (atropelamento, por
exemplo). Linchamentos são comuns onde a violência é mais
comum e a população não acredita no poder da polícia, resolvendo
fazer <justiça com as próprias mãos>, ignorando por completo o
princípio da proibição da autotutela, o qual garante o direito
exclusivo do Estado como garantidor da lei, da ordem social e da
Justiça.
61
Normalmente, o linchamento acontece antes que a polícia chegue
ao local onde está o acusado, embora possam acontecer tentativas
de linchamento na entrada das delegacias, quando a força policial
não consegue controlar o ódio da população (LINCHAMENTO...
2010).
Neste capítulo, será realizada uma descrição acerca dos conceitos de Estado,
população, território e segurança que se constituem como instrumento fundamentais
para entender o fenômeno da multidão e, mais especificamente, do linchamento.
Percorremos uma trajetória de reconstituição dos conceitos fundamentais, acima
referidos, a partir de uma leitura das obras de Foucault e mais especificamente do seu
livro Segurança, Território e População (2008a), pois essa obra é fundamental para se
entender a pretensão moderna de ordenar, normatizar e normalizar a vida social e, ao
mesmo tempo, se entender como é possível a recorrência da fuga pela multidão, do uso
da violência pelos populares nos casos de linchamento. Pretendemos analisar a invenção
da centralidade do uso da violência pelas “práticas de Estado” moderno e, ao mesmo
tempo, se pensar sobre a recorrência do exercício da violência pela população.
Nos cursos ministrados entre janeiro e abril de 1978, Foucault traz à tona a
temática da tríade Segurança, Território e População, deixando implícita a questão de
que há uma discussão de fundo que é a relação entre segurança, leis, desvio, norma e
punição.
Sendo o objeto ora estudado, um recorte acerca do tema da violência, mais
especificamente quanto às práticas de linchamento, foi tomada a obra antes referendada
e realizada com outras obras de Foucault, assim como outros autores subsidiários, uma
descrição da formação do Estado moderno europeu, realizando por dedução uma
aproximação com a constituição do Estado no Brasil. Foi elaborada uma sistemática de
argumentação que tem por escopo problematizar a criação/normação do Estado versus o
estabelecimento de contracondutas pela população. Com essa construção, entende-se
que é possível compreender um pouco mais claramente a intricada relação entre a
tentativa de estabelecimento da ordem, proposta pelos Estados modernos e, ao mesmo
tempo, problematizar a constância de ações extraoficiais, em relação à busca da
sociedade para promover e garantir a ordem, através de instrumentos tidos como ilegais,
especialmente, o caso dos linchamentos.
62
2.2.
GOVERNO DAS ALMAS, DOS HOMENS E CONTRACONDUTAS
A partir de uma contextualização da formação e dos paradigmas que nortearão o
Estado moderno, na Europa, Foucault (2008a) problematiza ao longo do seu texto a
transição de uma política de biopoder (exercício do poder sobre corpos pela via da
disciplina, do adestramento e da docilização) para uma biopolítica25 (exercício do poder
sobre as massas, que utiliza como instrumento central a estatística e o controle
epidemiológico e as chamadas políticas sociais), procurando descrever e entender os
procedimentos e efeitos do poder sobre o corpo ou massa. Assim, “o poder é um
conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou função e tema
manter, mesmo que não o consigam, justamente o poder.” (FOUCAULT, 2008a, p. 4).
Nesse sentido, o poder está em todas as relações como fluxo, círculos contínuos
construídos/balizados no processo de luta para propor a verdade. Desse modo, a
segurança é um conjunto proibitivo ético/jurídico 26, que constrói sanções e estratégias
preventivas/demarcadoras 27 da potencialidade do indivíduo para a infração e, sendo
assim, ela estabelece a diferenciação entre o lícito e o ilícito, proporcionando aos seus
operadores “diagnosticar e prevenir” a ação desviante, assim como punir o desviante,
buscando corrigi-lo ou excluí-lo 28 do convívio geral.
Uma questão importante a destacar é o fato de que foi e ainda é através de dados
estatísticos que o Estado mensura a relação custo/benefício entre a tolerância ou não de
certos tipos de infração. Não se tem na prática paradigmas específicos de segurança,
mas ao longo da história Ocidental são construídas e implementadas técnicas
diferenciadas de controle, técnicas que perpassam o campo da norma, da vigilância e da
punição.
Os dispositivos de segurança são a possibilidade de instituir a disciplina e a lei
em relação ao sujeito, ao espaço, à ação e, ao tempo; tanto no Direito, quanto na
25
Ver: Foucault (1982, 2008b).
Ver os sistemas proibitivos teológicos, jurídicos e da filosofia clássica como no imperativo categórico
kantiano que remetem à visão negativa da ação humana, pois que esta deve sempre ser construída
tendo em vista um porvir e, não simplesmente, ser uma intencionalidade para o presente.
27
Ver: Goffmavista um porvir e, não simplesmente, ser uma intencionalidade para o presente.
27
Ver: Goffman (1982 apud VELHO, 1985).
28
Consultar: Foucault (1987).
26
63
medicina, na fábrica, escola, convento etc. Sendo assim, é preciso que se entenda o que
é o “espaço de segurança”, pois esse remete a uma discussão acerca da soberania
circunscrita aos limites do território e a disciplina que é exercida sobre o conjunto da
população. Essa é uma questão clássica, mas que, na prática, percebemos que o controle
social não consegue efetivamente dar conta do conjunto da população, como por
exemplo, nos casos em que os indivíduos agem transgredindo as normas e criando,
assim, espaços de exceção 29, como nos casos dos linchamentos.
Portanto, a organização e busca de controle dos espaços têm a ver com a ideia
clássica de organização arquitetônica das cidades, que remete a não constituição de
espaços de exceção.
O ideário que nasce entre os séculos XVII e XVIII, de acordo com Foucault
(2008a), tem a ver com as cidades europeias e são um exemplo de “tratamento
disciplinar das multiplicidades espaciais 30”, ou seja, a distribuição dos serviços, como:
comércio, religião, lazer e das moradias, respeitarão uma estrutura inspirada nos
acampamentos militares romanos e, assim, serão distribuídos por ordem de importância
do serviço ou, nos casos das habitações, através da classificação do poder econômico
dos que as habitam. Dessa forma, moram no centro e têm suas casas voltadas à rua
principal os mais abastados, aos demais, a arquitetura socioeconomicista destina as
periferias.
Contudo, entendemos que nos processos de formação da multidão, essa
fragmentação da arquitetura panóptica da cidade vê-se ameaçada, pois quando dos casos
de linchamento, os alvos principais são aqueles edifícios considerados “sagrados”, pois
29
Tomando como base o conceito de Estado de exceção e, por dedução, usa-se aqui o conceito de
espaço de exceção, essa é uma discussão se realizada de modo amiúde ao longo desse trabalho. Por ora
ver: Agamben (2004).
30
Aqui temos o que Foucault (2008a), chama de espaços vazios, pois são artificiais, sendo totalmente
planejados e, onde antes não existiam edificações. No Brasil, um caso típico é a sua capital Brasília e é lá
que vemos surgir com frequencia um extrapolamento da norma e a constituição de espaços de exceção.
Desse modo, há os espaços utópicos e os heterotópicos: “há, igualmente, e isso provavelmente em
qualquer cultura, (...) lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da
sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas
nas quais (...) todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura
estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis” (FOUCAULT, 2001, p. 415). Ver também:
Machado (1978); Diniz (1998); Ribeiro (2008).
64
em sua maioria, voltados ao controle social e, de outro modo, depredam-se também os
edifícios e espaços destinados ao comércio, sejam eles públicos ou privados 31.
Afora as discussões acima, Foucault (2008a) mostra que é especificamente no
século XVIII que as cidades e sua disciplina de disposição de multiplicidades espaciais
buscarão ordenar quatro funções básicas, a saber: a) de higiene, ao organizar e tornar
assépticos os logradouros públicos; b) de comércio, ao facilitar a circulação das
mercadorias no interior das cidades; c) de comércio, quanto à circulação de mercadorias
para além do seu território; d) de vigilância, que deveria substituir o papel das antigas
muralhas que circundavam as cidades. O importante aqui é controlar o fluxo dos
transeuntes locais e, principalmente, os estrangeiros, com destaque às personas non
gratas, tais como: “vagabundos, pedintes, enfim, os desviantes”,
(...) Tratava-se de organizar a circulação, de eliminar o que era
perigoso nela, de separar a boa circulação da má (...) tratava-se,
portanto, também de planejar os acessos ao exterior, essencialmente
no que concerne ao consumo da cidade e ao seu comércio com o
mundo exterior (FOUCAULT, 2008a, p. 25).
O autor apresenta a tese de que a soberania organiza o espaço em termos de
território; a disciplina pensa os espaços como distribuição de bens e serviços e, a
segurança forja estratégias de vigilância a partir dos fluxos de acontecimentos e
circulações já existentes. Nesse sentido, veja o que diz Foucault: “o espaço próprio da
segurança remete, portanto a uma série de acontecimentos possíveis, remete ao temporal
e ao aleatório” (FOUCAULT, 2008a, p. 27).
Podemos nos remeter aos dispositivos de segurança, quanto às noções de
disciplina e meio ou quanto à questão de como é possível controlar o meio, como por
exemplo, em períodos de escassez alimentar, quanto ao perigo latente que esse
acontecimento pode acarretar ao meio urbano, como os saques e a revolta. Sendo assim,
“a revolta urbana é a grande coisa a evitar para o governo. Flagelo da população,
catástrofe, crise, se preferirem, do lado do governo” (FOUCAULT, 2008a, p. 41).
Para evitar e prevenir a escassez e a revolta, o Estado francês no século XVIII32
desenvolveu dispositivos de controle da produção, do comércio e da estocagem dos
31
Ver: Maior (1985).
Ao contrário do século XVII, em que prevalecia a disciplina nas formações arquitetônicas, aqui no
século XVIII, o eixo será a segurança, ou seja, é preciso modelar a cidade já existente às novas demandas
32
65
alimentos. Contudo, essa pretensão de controle fracassou e tentou-se o paradigma do
livre comércio, que por sua vez caracterizava-se pela diminuição do controle direto do
Estado sobre o indivíduo ou sobre o acontecimento. Mas aqui, o que está nascendo é
uma estratégia de convivência e busca de enfraquecimento do fato anormal, mas que é
em suma circunstancial e desse modo, não será o combate à marca desse novo
dispositivo, mas antes: “a coisa é conhecida, vou simplesmente resumi-la”
(FOUCAULT, 2008a, p. 49).
De outro modo, seguindo, ainda, a linha clássica, tem-se nos estudos durkheime
anos uma saída epistemológica para a disfunção e o desviante, ao saber sobre o desvio e
sua consequente punição, exemplificam/revificam nos honestos o valor de uma vida
dedicada ao cumprimento da ordem. Nesse caso, tanto a vítima do linchamento quanto
os linchadores são em última instância figuras didáticas importantes na construção de
uma população “ordeira e pacífica”.
Foucault (2008a) defende a ideia de que a disciplina age de modo centrípeto e,
de que os dispositivos de segurança atuam de modo centrífugo, nesse caso, o problema
não seria construir estratégias de eliminação do acontecimento, mas permitir a sua
aparição e lidar com ela,
(...) A disciplina tem essencialmente por função impedir tudo,
inclusive e principalmente o detalhe. A segurança tem por função
apoiar-se nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou ruins
em si, que vão ser tomados como necessários, inevitáveis (...)
(FOUCAULT, 2008a, p. 60).
O pano de fundo dessas discussões precedentes é a emergência a partir do século
XVIII, da não ruptura entre as “práticas de Estado” e a teologia, pois a lei e a disciplina
seriam estratagemas prescritivas e punitivas, balizadas em valores moralizantes, como
por exemplo, na explicação de que há escassez, porque o homem é egoísta; há crimes
porque o homem é mau, por isso é prec iso controlá-lo, puni-lo... Assim, legitima-se o
paradigma do contrato social. A lei atuaria a partir de princípios imaginativos que
partiriam da premissa de que sendo o homem mau, em essência, as leis o domesticariam
e a disciplina constituiria continuamente os princípios normalizadores.
de vigilância nascentes que têm por base o cálculo estatístico do controle da população quanto a: o
quê? Quantos? Como e, por onde podem circular.
66
A lei completaria a realidade que é um meio, um espaço vazio. Ela constrói, na
arquitetura e nos comportamentos, um espaço artificial.
De outro modo, os dispositivos de segurança são a laicização do controle do
Estado, a superação do binômio bem e mal, a tentativa de simplesmente aceitar o
inexorável, inominável, mas passível de modelagem. É, em último caso, o liberalismo
nascendo e resvalando para além da economia, pois é, “(...) um poder que se pensa
como regulação que só pode se efetuar através de e apoiando-se na liberdade de cada
um” (FOUCAULT, 2008a, p. 64).
Retomando a discussão entre lei e ordem, ou quanto à pretensão de
normalização, é preciso lembrar que a disciplina normaliza quando esquadrinha o
espaço e, temporalmente os indivíduos e sua ação. Também classifica os indivíduos a
partir dos critérios que proporcionem que a ação seja realizada de modo mais útil e no
menor tempo possível, com o menor dispêndio de energia. Ainda mais, a disciplina
submete-os a sequências e adestra os indivíduos diferenciando-os entre aptos e inaptos.
A norma, que é regra/rotina, é que estabelece a normalidade e “estranha” a
anormalidade, que é, em última instância, o não enquadramento ao tipo ideal proposto.
Para Foucault (2008a), na verdade, o que há é uma “normação”, ou seja, a tentativa de
estabelecer a efetivação da norma e, a consequência disto aí, sim, pode ser chamada de
“normalização”.
Como visto acima, para a formulação de ações normalizadoras eficientes, eram
utilizados no século XVIII os dados estatísticos que remetiam às probabilidades. Esse
processo pode ser encontrado no controle dos problemas de alimentação, saúde e nas
relações sociais gerais, pois em primeiro caso o que está em jogo aqui é a normalização
preventiva aos riscos e esses riscos podem ser acontecimentos que explodam em
qualquer campo da vida. O importante é perceber que pelos estudos estatísticos
pensava-se poder prever e determinar o que é normal, daquilo que poderia não sê-lo e
daquilo que já se sabia anormal. Assim, podia-se, o tempo todo, buscar normalizar a
população e evitar a crise que seria o “exacerbamento da anormalidade” 33.
Então, o problema não é a anormalidade em si, mas se seus graus de aparição
extrapolam certa média possível/tolerável para a sua existência. Assim, retornando ao
33
Ver: Canguilhem (1990); Durkheim (1978b).
67
ponto do linchamento, ou melhor dizendo, da violência, pode-se perguntar: não é muito
“natural” que as “práticas de Estado” e a população em geral aceitem certo índice de
violência e procurem, a partir de suas emanações, formas para anulá-la? Nesse ponto,
teríamos a normalização stricto sensu, pois parte-se do modelo de normalidade e a partir
dele constitui-se a anormalidade, sendo que a norma aparece como consequência desse
processo e não como na disciplina em que ela era o ponto de partida.
A grande mola propulsora desse processo é o controle do território, mais
especificamente, o controle das cidades,
(...) Não mais estabelecer e demarcar o território, mas deixar as
circulações se fazerem, controlar as circulações, separar as boas das
ruins (...) de uma maneira tal que os perigos inerentes a essa
circulação sejam anulados (FOUCAULT, 2008a, p. 85).
Como, por exemplo, tentar prever a ação do povo (leia-se nas revoltas e
linchamentos). Desse modo, “trata-se, de certo modo, de delimitá-los em marcos
aceitáveis, em vez de impor-lhes uma lei que lhes diga não” (FOUCAULT, 2008a, p.
86).
Não pensem que desconhecemos as normas proibitivas às ações extra-oficiais,
ou que não as consideremos como um dispositivo de segurança real. Entretanto, nos
parece que as práticas do Estado fazem “vistas grossas” a certas explosões da multidão.
Como vemos ao longo desse trabalho, muitos linchamentos são realizados dentro das
prisões ou nas vistas da polícia, conforme Vilar (2010) ao discutir os saques na Europa
em razão da fome da multidão:
Sem pão as pessoas não teriam o que comer, e logo a fome mataria a
muitos, e a revolta tomaria a multidão. Para se evitar este futuro
indesejado, o governo tomou várias medidas ao longo dos reinados
dos reis. Desde a criação do Regulamento do Pão, que fixava o preço
da venda de pão, farinha e de grãos a granel. Além de determinar a
hora de abertura e fechamento do mercado (Nesta época quando o
mercado abria, primeiro os ricos e burgueses faziam suas compras,
depois deles comprarem que queriam iam embora, e o mercado estava
livre para o restante do povo). Além deste regulamento, outras leis
foram criadas, como: A Lei do Pão do rei Carlos II e o Modelo de
Smith,
elaborado
pelo
economista
Adam
Smith.
Em si, leis do pão existem há muito tempo na Inglaterra e em outros
países, porém devido à insuficiência destas, isso gerava
constantemente revoltas e por consequência reelaborações nestas leis
68
ou criação de leis novas. No entanto, por mais que na cidade, a
fiscalização dos mercados cresceu, os fazendeiros ainda possuíam
meios de burlar a lei. <Os fazendeiros (reclamavam) passaram a evitar
o mercado e a negociar com intermediários e outros "atravessadores"
na sua própria casa. Outros fazendeiros ainda levavam ao mercado
uma única carga, <para manter as aparências no mercado e conseguir
que o preço fosse estabelecido>, mas, o comércio principal era feito
por meio de <parcelas de cereais num saco ou pano, chamadas
amostras> (THOMPSON, 1998, apud VILAR, 2010, p. s/i). (Grifos
do autor).
Como podemos ver, as “práticas de Estado” não intencionavam/conseguiam
disciplinar completamente a multidão e os fazendeiros, por sua vez, passaram a evitar o
comércio nos mercados. Desse modo, é importante prestar atenção ao fato de que o
controle passa a ser exercido sobre a população e, nesse sentido, o conceito população
ganha um caráter positivo, enquanto possibilidade de exercício de poder via controle
social, diferente daquele que o tinha até o século XVII, quando a população era tomada
como sinônimo de coletivo após catástrofes; quando, nesses momentos, pensava-se na
situação da população e, em como remediar os danos sobre ela; ou população vista
como, simplesmente, o conjunto dos súditos; ou, ainda, população que remetia à noção
de força produtiva, pois pelo trabalho constituiria a riqueza das nações.
A partir do século XVIII, população será uma entidade disforme, mutante, mas
ainda passível de controle. Não será mais simplesmente o corpo do rei, mas
(...) Um dado que depende de toda uma série de variáveis que fazem
que ela não possa ser transparente à ação do soberano (...) que a
relação entre a população e o soberano não possa ser simplesmente de
obediência (...) (FOUCAULT, 2008a, p. 93).
Desse modo, o foco da ação do soberano não é mais dizer não ao desejo nem,
simplesmente, tomar a população de modo negativo, mas descobrir como dizer sim,
respeitar o desejo e trazer para si a população – tornar-se legítimo para ela.
No século XVIII, há um entendimento da naturalidade na existência da
população que extrapola qualquer pretensão racional de controle. Ela é, a princípio,
autoordenadora e reguladora das suas ações. Assim, não cabe ao Estado apenas exercer
soberania sobre o seu território, mas aprender a controlar a população que transita
naquele território e que, “circunstancialmente”, é por ele governada.
69
Quanto ao governo, podemos dizer que do século XVI em diante, a temática
relativa a ele entra em cena de modo mais acentuado e, assim, eclodem as técnicas de
governo de si (estoicismo), governo dos filhos (pedagogia), governo das almas
(evangelismo) e governo do Estado (arte de governar).
Quanto a essa divisão, interessa-nos destacar o último tipo de governo, o de
Estado e, como Foucault (2008a) sugere, é preciso começar a mapear as teorias que
orientavam o seu exercício. Assim, é a partir de O Príncipe de Maquiavel, que podemos
pensar em racionalização/laicização das táticas de governo. Essa obra tem seu auge de
reconhecimento no século XVI, sendo redescoberta no século XIX, na Alemanha e na
Itália, recebendo de novo o estatuto de obra de primeira linha.
No período de tempo transitado entre XVI e XIX, é desenvolvida uma ampla
bibliografia anti-maquiavel, sendo que os principais pontos dessas críticas são: a) o
principado é sempre uma existência de exterioridade e transcendência do príncipe em
relação ao cargo e, este é conquistado por herança, violência ou acordo com outros
príncipes. Logo, ele não detém o poder e precisa defendê-lo/legitimá-lo o tempo todo;
b) em cada sociedade há uma multiplicidade de governos (pai, educador, freira...), de
modo que, o governo de Estado é só mais uma das nuances da arte de governar; c) há
três tipos ideais de governo, o governo de si (moral), o governo da família (economia) e
o governo de Estado (política). O que o faz soberano é buscar aplicar no Estado, no
século XVIII, o governo da economia; d) governar é exercer ação sobre o território, a
população e as coisas, fazendo a proteção deles e buscando a prosperidade. Nesse
ínterim, temos o conceito de bem público, contudo, ele reflete antes de mais nada, a
obediência dos súditos ao governo.
Podemos dizer que é antes adestramento total? Mas, como obtê-lo, se o
principado não tem legitimidade, a priori?
Não se está aqui vendo o velho problema da sociedade contra o Estado? Como
aceitar o que não se reconhece como legítimo?
Porém, críticos de Maquiavel destacam o governo das coisas, contrapondo-o à
razão do Estado para forjar o bem comum. Assim, em detrimento do gerenciamento das
coisas, no qual apenas se aplica a lei, a razão de Estado age enquanto aplicabilidade de
táticas utilitaristas que buscam um fim último, previamente planejado. Será essa a
última perspectiva que alimentará as teorias políticas dos séculos XVII e XVIII? Assim
70
sendo, descobrimos que, “[...] não é certamente pela lei que se pode efetivamente
alcançar as finalidades do governo” (FOUCAULT, 2008a, p. 132).
Ora, como se vê aqui, o gestor percebe que não pode exercer seu poder de modo
simplesmente legalista. Sendo assim, como esperar, então, que os súditos entreguem-se
a esse exercício?
No século XVIII, a emergência da população proporciona também o desbloqueio
da arte de governar que, encontra, enfim, um tipo específico de atuação para além do
governo da família ou econômico, ela será antes de tudo, uma arte...
(...) Até o surgimento da problemática da população a, arte de
governar não podia ser pensada senão a partir do modelo da família
(...) A partir do momento em que, ao contrário, a população vai
aparecer como absolutamente irredutível à família passa para o nível
inferior em relação à população (...) (FOUCAULT, 2008a, p. 139).
Sendo a estatística a estratégia central da relação governo-população, vemos
nascerem no século XVIII as técnicas de biopolítica que, por sua vez, visarão o controle
da natalidade, morbidade e mortandade da população, ou seja, nascem a ideia e as
práticas de uma economia política. Dessa relação tríade, governo, população e economia
política, temos internamente, em cada sociedade dada, circunstâncias de acomodação e
outras de revolta que colocam em evidência a inconstância e arbitrariedade das técnicas
de governo e dos modos/interpretações da população sobre o que lhe é lícito e o que lhe
é arbitrário.
Para Foucault (2008a), o que se discute aqui é o surgimento da
governamentalidade, a saber,
(...) O conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos,
análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa
forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por
alvo principal a população, por principal forma de saber a economia
política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de
segurança (FOUCAULT, 2008a, p. 143).
Ainda em Foucault (2008a), o “Estado” não é um ente a priori, não tem força
por si mesmo e nem a importância dada; ele só o “É”, na medida em que é
consentido/inventado na tríade território-população-governo. Desse modo, a grande
invenção da modernidade foi a governamentalização do Estado, ou seja, torná-lo
71
eficiente/legitimável via técnicas e táticas de ação racional que definem aquilo que é
característico do governo (público), daquilo que lhe é exterior (privado). Portanto, é
importante voltar à discussão precedente que enfatizava a noção de população (como
massa), mas que a singularizava ao propor a tese da não homogeneidade de
interpretação/comportamento
da
mesma.
Assim,
poderíamos
identificar
um
mapeamento dos diferentes Estados a partir de diversos contextos.
(...) Esse Estado administrativo que corresponde a uma sociedade de
regulamentos e disciplinas; e, por fim, um Estado de governo que já
não é essencialmente definido por sua territorialidade, pela superfície
ocupada, mas por uma massa: a massa da população (...)
(FOUCAULT, 2008a, p. 145).
Para constituir a governamentalidade, o Estado moderno seguiu modelos de
gestão tomados de empréstimos dos estudos acerca da disciplina. Para Foucault (2008a),
estudar essa nossa estratégia de poder requer, inicialmente, realizar uma análise
genealógica, que não é gênese (filiação), mas antes, toma o problema a partir “da rede
de aliança e comunicações” que o constitui e alimenta. Portanto, é preciso estar fora do
problema para ver e entender as suas tecnologias de poder.
De outro modo, deve-se analisar o problema não em termos da sua pretensa
funcionalidade, mas, buscar entendê-lo por fora, por exemplo, a partir dos discursos dos
que fazem, noticiam, apóiam ou criticam os eventos.
Em último caso, não tomar o objeto como algo dado, no qual debruço-me, meço,
peso a partir de categorias/formas pré-estabelecidas, mas antes, é preciso ir
acompanhando o movimento do objeto nas suas emergências e observando as táticas
que esse utiliza para manter-se e, aquilo que pode destruí-lo como, por exemplo, quanto
ao Estado. Assim,
(...) O que quero dizer que é perfeitamente possível atingir efeitos
globais não só por enfrentamentos consertados, mas igualmente por
ataques locais, ou laterais, ou diagonais que põem em jogo a economia
geral do conjunto (FOUCAULT, 2008a, p. 161).
Portanto, a pretensão de Foucault é estudar o “Estado moderno” a partir do
exterior. Assim, ele começa a mapear os conceitos que formam essa instituição na
modernidade.
72
Primeiramente, governar com sentido material foi entre os séculos XIII, XIV e
XV, correspondente a “fazer alguém seguir em frente”. Governar podia ser também
utilizado para problematizar a suficiência ou não de garantir a subsistência de outrem.
Além disso, governar também podia ser tomado no sentido moral, como por exemplo,
governo de almas, ter boa conduta, ou, ter condições linguísticas suficientes para
estabelecer um diálogo aprazível.
No século XVI, a palavra governar ganha o sentido especificamente político.
Assim, pode referir-se ao:
(...) Controle que se pode exercer sobre si mesmo e sobre os outros,
sobre seu corpo, mas também sobre sua alma e sua maneira de agir. E,
enfim, refere-se a um comércio, a um processo circular ou um
processo de troca que passa de um indivíduo a outro (FOUCAULT,
2008a, p. 164).
Entretanto, a ideia central aqui é a de que governar é governar a população,
porém, só há razão nesse governo quando se considera que ele é exercido dentro da
cidade. É para proteger a cidade que o Estado governa a população. Assim, cidade não
é, stricto sensu, território, mas o consenso daquilo que pertence às “práticas de Estado”.
Para explicar a dubiedade dessa relação entre cidade e habitante, Foucault
mostra que o governo foi exercido na história ocidental a partir de raízes orientais.
Assim, o primeiro paradigma de governo é pastoral (pré-cristão, por exemplo,
hebraico). Nesse modelo tem-se uma aproximação à metáfora de um Deus pastor que
guia o seu rebanho, não protegendo o território, mas sim, o trânsito das suas ovelhas; o
poder de quem governa é sempre benfazejo, pois protetor, provedor e conquistador.
Logo, nosso paradigma de governo é mais inspirado no Oriente Mediterrâneo do que na
democracia grega, pois nessa, última não há como caracterizar, stricto sensu um pastor
cuidador. antes, aquela democracia era o resultado dos humores de vários deuses que
são temperamentais e não governam seus rebanhos em seus pastos, mas, têm com eles
relações que transitam entre o lúdico e o mórbido.
O poder pastoral é individualizante. Embora protetor do rebanho, ele também
vigia o indivíduo fraco, o desgarrado e pode expulsar aquela ovelha que pode pôr em
risco o rebanho 34; “é, enfim, um poder que visa ao mesmo tempo todos e cada um em
34
Aqui há uma relação direta com a visão durkheimiana da sociedade agindo sobre o indivíduo, ou da
dualidade dos fatos morais, pois como vimos acima, a ovelha dá a vida pelo rebanho, mas o pastor pode
73
sua paradoxal equivalência, e não a unidade superior formada pelo todo” (FOUCAULT,
2008a, p. 173).
Esse fato nos faz pensar na questão da violência vivenciada em sociedades
ocidentais, nas quais o ideário da “ovelha mansa” se contrasta com a realidade de “lobos
sangrentos”. Ora, se estivéssemos tão convictos quanto à eficiência do governo pastoral,
por que nos voltaríamos contra ele e agiríamos em causa própria?
Entendemos o governo pastoral como um tipo ideal de gestão de pessoas que
persistiu por quinze séculos, compreendidos entre os séculos II e III d.C. até o século
XVIII:
(...) Pode-se até mesmo dizer que esse governo pastoral, sua
importância, seu vigor, a própria profundidade da sua implantação se
medem pela intensidade e pela multiplicidade das agitações, revoltas,
descontentamentos, lutas, batalhas, guerras sangrentas travadas em
torno dele, por ele e contra ele (FOUCAULT, 2008a, p. 197).
Logo, como provocávamos anteriormente, além do pastor/provedor, as ovelhas
buscam os seus pastos 35, como por exemplo Joana D´Arc, Lutero, Contestado, Canudos,
dentre outros indivíduos e movimentos que apontam para a descrença com a capacidade
do governo e, ao mesmo tempo, não negam o ideário do rebanho, mas lutam apenas por
formas diferenciadas de pastoreio 36.
Foucault (2008a), entretanto, aponta para uma questão visceral, pois aceita a tese
da preeminência do paradigma pastoral, restando resolver o impasse que aponta para a
dificuldade de determinar/visualizar, com clareza, quem é o pastor stricto sensu.
Conforme o autor, no Ocidente, o modelo de governo é imediatamente inspirado
na teologia hebraica. Contudo, nessa, o título de pastor só é concebido, a princípio, a
Deus, e aos homens ele é remetido quando da necessidade de apontar as falhas dos seus
gestos. No entanto, a partir de Davi, o termo pastor será expandido aos líderes e poderá
ser pronunciado de modo rotineiro.
sacrificar todo o rebanho para salvar uma só ovelha desgarrada. No entanto, parece-nos que nossa
lógica está mais próxima da durkheimiana, pois, sacrificamos, sem nenhuma culpa, as ovelhas
desgarradas em nome do bem estar do rebanho. Agimos a partir de uma lógica biopolítica que permite
ao Estado segregar (loucos), excluir (marginais) e até eliminar (pena de morte declarada ou tácita) a
ovelha doente.
35
Ver a Revolução dos Bichos (1999) e a crítica implícita ao ideário da isonomia e ordem proposta pelos
comunistas versus a revolta dos animais. Também ver: Germinal (1993).
36
Consultar: Monteiro (1977).
74
Mas, como delimitar quem é o pastor stricto sensu? Deus o é e
“escolhe/predestina” homens na terra que cumprirão esse papel em seu nome, porém,
esses terão que delegar poderes a outros, como, por exemplo: o rei governa, mas o padre
também, o pai, o professor, o exército... Quem é o pastor stricto sensu?!
Para Foucault (2008a), apesar de o poder político no Ocidente beber
exaustivamente nas fontes do poder pastoral, havia até o século XVIII, uma separação
clara entre ambos no âmbito das suas atuações. Assim, o pastor é, até aqui,
rigorosamente, Deus e seguindo-o, competia aos altos escalões clericais e ao poder
político inspirar-se no pastorado buscando exercer o seu poder a partir daquele modelo,
que determinava os seguintes princípios: a salvação do rebanho; o zelo pela lei, pois o
cumprimento da mesma mantém a ordem; e enfim, a aceitação dos fatos teológicos
como verdade, submetendo-se à lei sem reservas.
Dessa forma, pode-se notar que ao ser transposto para o Estado e, especialmente,
o moderno Estado Ocidental, os princípios discutidos anteriormente serão vivenciados
em fluxos contínuos de relações, podendo mesmo haver diferenças entre o ideário da
salvação-lei-verdade, pois na vida política, diferentemente da teológica, os indivíduos
exigirão, além do tabu, a compreensão procedimental que instrumentaliza a busca da
ordem. Por sua vez, a ordem fomenta a lei e, enfim, não será essa última tomada como
um fato em si, mas será na prática passível de argumentação e ação contrária, podendo
mesmo ser revista ou anulada.
Contudo, Foucault (2008a) não menospreza as resistências extra-cristãs (por
exemplo, na caça às bruxas), fatos esses que ele denomina como limitadores externos
ou revoltas de conduta, do pastorado cristão.
Desse modo, o que estaria sempre presente na história Ocidental seria o
princípio da resistência, mais especificamente, resistência a tudo o que é criado pelo
homem e, que o leva à auto-destruição e à destruição do mundo e que, dessa forma, o
pastorado busca combater:
(...) toda lei que o mundo ou que as potências do mundo apresentam, é
necessário responder pela infração, pela infração sistematizada. (...)
Tudo o que se pode chamar retrospectivamente de desordem, foi
contra isso que o pastorado cristão, no Oriente e no Ocidente, se
desenvolveu. Pode-se dizer, portanto, que temos uma correlação entre
a conduta e a contraconduta (FOUCAULT, 2008a, p. 258).
75
No entanto, as revoltas de conduta resvalam também no mundo da economia e
da política, como, por exemplo, as revoltas burguesas contra o feudalismo, ou, as
revoltas socialistas contra o capitalismo. Dessa forma, é entre o final do século XVII e
início do XVIII que as revoltas de conduta são efetivadas de modo exacerbado no
mundo político e, por sua vez, a governamentalidade será exercida pautando-se em
princípios bebidos no pastorado cristão. Nesse sentido, salvação-lei-verdade serão
construtores das técnicas de “conduta de alma”, numa busca frenética para refrear os
”maus instintos de ovelhas desgarradas”. Podemos citar, como exemplo, que o ato de
ser guerreiro antes dos séculos XVII e XVIII estava ligado à ideia de nobreza dos fortes,
entretanto, podia haver deserções e esse fato remeteria apenas à fraqueza do indivíduo 37.
Assim sendo, desertar naqueles séculos tornou-se um crime de lesa a pátria e
uma questão ética, um atestado de não cidadania. Isso transposto ao mundo da política,
rigorosamente, poderia ser metaforizado na divisão entre os defensores da ordem e
aqueles contrários a ela, ou, ainda, de modo mais radical, poderia-se pensar numa
terceira via, como a atuação anarquista que, além de qualquer crença em salvação-leiverdade, coloca-se num estágio de limbo, sem tempo passado e sem pretensão de
planejamento utilitário de futuro, mas vivendo cada dia.
É importante destacar que a certa altura do seu texto, Foucault (2008a)
problematiza o uso do conceito “revolta” e, o substitui por contraconduta, pois destaca
o autor que falar em revolta pode soar pejorativo, já que poderia de algum modo nos
remeter à noção de ordem e desvio, como se houvesse de fato uma estrutura ordenadora
a priori.
Destaca ainda Foucault (2008a) as cinco formas básicas de contraconduta, quais
sejam:
• Em primeiro lugar, a ascese, presente na hierarquia entre o sacerdote e os
subordinados que remete à obediência total ao primeiro e renúncia à
vontade. Contudo, o ascetismo como prática, é uma atitude hedonista de
voltar-se a si, como por exemplo, na prática masoquista ele remete a
relação do homem consigo mesmo e, assim, pode ser tomado como
símbolo de contraconduta: “o ascetismo é uma espécie de obediência
37
Para um melhor entendimento dessa questão, ver: Delumeau (1989).
76
exasperada e controvertida, que se tornou domínio de si egoísta”
(FOUCAULT, 2008a, p. 274);
• Em segundo, temos a formação das comunidades, como forma de
contraconduta coletiva e clandestina em relação ao pastorado;
• Em terceiro, a mística, quando a revelação divina faz-se no próprio
indivíduo e não precisa de intermediário;
• Em quarto, a escritura, ou seja, a possibilidade de contato direto com a
escritura versus a interpretação do pastor, como por exemplo, a exegese
protestante.
Enfim, a crença escatológica, o ideário dos fins dos tempos e a crença/espera no
Deus julgador, que prescinde a figura do pastor na terra.
A partir dessas contracondutas, o governo nascente no século XVI, como
governamentalidade, tentará exercer a função pastoral junto às populações, com o
intuito de realizar “a economia das almas” e, de todo modo, garantir a primazia da sua
função de “guia dos destinos”. Não obstante, é interessante notar como essa relação de
normação e contraconduta resvalar continuamente em ações cotidianas e, se nos
aproximarmos dos estudos clássicos e, também contemporâneos de sociologia e
filosofia, veremos as repetições acerca da autonomia ou heteronomia do corpo, em
discussões sobre masoquismo, suicídio, cuidado de si.
Quanto à comunidade, as discussões sobre organização operária, tribos juvenis
(punks, hippies) apontam para alternativas a não reprodução da “ordem posta”.
Em relação às escrituras, temos as teses existencialistas em educação e as
problematizações sobre socialização digital e, enfim, no tocante às crenças
escatológicas, temos os três clássicos da sociologia discutindo a imanência dos
processos dialéticos a degradação moral das sociedades industriais e a tese do
desencantamento do mundo, sem contar, é claro, com toda a discussão pós-moderna, a
partir de meados do século XX, acerca do niilismo frente a sua existência.
Portanto, parece que efetivamente foram transpostos os embates das
contracondutas religiosas para as vivências seculares. Mais ousadamente ainda, houve a
indagação se foi de fato uma transposição ou se, realmente, não fomos forjados a partir
do princípio da luta?
77
Quanto à recorrência histórica das lutas, temos que no século XXI reaparece o
problema da condução de si, dos outros, da família, da escola e, principalmente, das
crianças para que se tornem úteis à cidade 38.
Foucault (2008a) apresenta a tese da emergência do governo sobre a população e
mostra que, além de governá-la, compete ao soberano garantir o bem comum da mesma.
Mais a frente, em seu texto, Foucault mostra que no final do século XVI, (BOTERO
apud FOUCAULT, op. cit.) afirma que o Estado é uma firme dominação sobre os povos
e, nesse ponto, há a ênfase na questão do controle sobre os indivíduos e não sobre o
território. No entanto, entre o final do século XVI e começo do XVII, ainda não estava
clara a chamada “razão de Estado”, porque havia uma cisma entre o modelo de
governamentalidade religioso (universalista) e os paradigmas científicos nascentes que
eram especialistas e, ainda mais, no meio desses dois modelos, restava responder a
questão: o que é a “razão de Estado?”
Para os seus defensores (dessa razão), ela seria a arte procedimental de
racionalização da ação gestora, mas, já para os seus críticos, havia uma fragmentação na
interpretação e nas práticas da “razão do Estado”. Desse modo, a palavra política era
usada de modo pejorativo para determinar uma espécie de heresia.
Outrossim, além da racionalidade das técnicas de governamentalidade da razão
do Estado, podemos visualizar no século XVII, toda uma vasta discussão sobre o
chamado “golpe de Estado” e, esse era entendido não como a usurpação do poder por
um, em detrimento de muitos, mas, simplesmente, por uma “suspensão temporária das
leis e da legalidade”.
Vejamos, a seguir, a clareza, quase cínica, de Chemnitz ao defender a razão de
Estado, que, de todo modo, pode ser utilizada, também, quanto ao golpe de Estado:
(...) De fato, a razão de Estado deve comandar, <não segundo as leis>,
mas, se necessário, <as próprias leis, as quais devem se acomodar ao
presente estado da república>. Logo, o golpe de Estado não é uma
ruptura com a razão de Estado (...) é algo que excede às leis ou, em
todo caso, que não se submete às leis (CHEMNITZ apud
FOUCAULT, 2008a, p. 349).
38
Ver: Lei nº 9.394/20.12.1996.
78
O que interessa nesse ponto da discussão é a reflexão sobre essa relação frágil
entre o estabelecimento das técnicas, táticas e normas de governamentalidade, ao
mesmo tempo em que a possibilidade de contestação e desconsideração desses
dispositivos é tão recorrente.
Assim, os diferentes momentos, os paradigmas e, as exceções tornam-se, no
tocante à política, práticas rotineiras. Então, se pergunta como seria possível que para a
população o ideário do Estado ordenado e ordenador fosse absolvido como verdade
absoluta? E, mais, como esperar que a população acredite/aceite que toda intervenção
deve partir do Estado?
Tanto no golpe de Estado, quanto na constituição de espaços de exceção, a
violência é o instrumento primeiro desses processos. Entretanto, é óbvio que, para o
Estado 39, a violência por ele cometida é justificada pela necessidade de manutenção da
ordem e, outras formas de violência serão consideradas brutalidade, barbárie, logo,
crime! No entanto, essas ações são apoiadas, muitas vezes, por amplos segmentos da
sociedade, que veem nelas a retomada da autonomia pelo coletivo 40.
É importante destacar que o golpe de Estado seria a ruptura radical com a lógica
pastoral, que deve ser exercida com complacência para o bem de todos e a adesão ao
modelo da “razão de Estado” que é, em suma, violento, e que é utilizado desde o século
XVII, até hoje no XXI, para justificar de modo racional a violência do Estado como
dispositivo da ordem.
Foucault (2008a) apresenta uma discussão acerca do critério da obediência para
com o Estado, contrapondo-o às ações de revolta, como por exemplo, nos saques,
sedições e distúrbios 41. Aí Foucault (op. cit.) mostra quais são os indícios que o Estado
deve considerar para identificar a emergência dos distúrbios: a) os sinais que vêm de
39
Ver, por exemplo, o episódio de confronto entre polícia, traficantes, multidão e movimentos sociais,
em Paraisópolis - São Paulo, no dia 02.02.2009, quando através da espetacularização midiática, tivemos
acesso aos discursos conflituosos entre os moradores e os policiais, nos quais o Estado sempre defende
a sua atuação como legítima, pois mesmo que violenta, ela é o “seu instrumento para restabelecer a
ordem”; ao contrário da ação dos populares, que é sempre vista como insurreição, ilegalismo; contudo,
para os moradores, a sua ação não é vândala, mas um grito de socorro, um alerta contra os abusos de
autoridade por eles sofridos.
40
Não se pretende entrar em discussões pretensamente epistemológicas acerca do ideário do que seja
coletividade, como, por exemplo, as discussões marxistas sobre sociedade civil ou da tradição marxista
como o conceito de autonomia. Mais à frente, será discutido o coletivo como sinônimo de multidão.
41
Ver: Hobsbawm (1976).
79
baixo, a saber, a circulação de rumores; panfletos; discursos contra o Estado;
descontentamento com as ações estatais; má circulação das ordens, devido ao fato de
que aqueles que as transmitem o fazem de modo assustado/temeroso, sem passar
credibilidade, acuados diante da realidade e, de outro modo, porque os que as recebem a
ironizam, interpretem-nas e as criticam; b) quanto aos sinais que vêm de cima, temos: a
relação utilitarista e desobediente entre os altos escalões do governo e o não
cumprimento de suas ordens. As atitudes do governo são sempre fruto de barganhas
partidárias, gerando discordâncias com os demais.
Como visto nas ações dos governos, podemos mapear um certo jogo de
interesses, sejam eles, partidários, ideológicos ou, simplesmente, de clientelismo.
Assim, têm-se posto cotidianamente um quadro que aponta, segundo os moldes
clássicos de prenúncio da desordem, para “práticas de Estado” completamente
ameaçadas por distúrbios, sendo que, de modo explícito, os sinais de baixo e de cima
apontam para as “tempestades das revoltas!”
Como está sendo discutido, pode-se notar que aquela formação constituiu o
Estado e que esse tem a sua cara, pois:
(...) O Estado é uma prática. O Estado não pode ser dissociado do
conjunto das práticas que fizeram efetivamente que ele se tornasse
uma maneira de governar, uma maneira de agir, uma maneira também
de se relacionar com o governo (FOUCAULT, 2008a, p. 369).
As “práticas de Estado”, o território e o governo são pensados e plasmados a
partir daquilo que constituímos como população e, assim, criamos e recriamos as
verdades “fundantes” que alimentarão essas estruturas. Sendo assim, escorregando entre
o corolário da salvação e o da razão de Estado, vemos ser escrita/encenada,
continuamente, a nossa realidade e, daí, ser tão tragicômica e peculiar ao Brasil a figura
do anti-herói, especialmente, aqui é remetida àqueles que exercem a justiça pelas
próprias mãos e que são bem vistos pela média da população 42.
Para Foucault (2008a), a razão de Estado justifica-se e torna-se a grande tática
desse, quando da multiplicidade da organização dos Estados.
42
“O IBOPE realizou uma pesquisa, no ano de 1980, onde se constatou que 44% dos entrevistados
apóiam o linchamento, sob a simplória alegação de que <se a justiça não age, o povo tem de agir> “
(BICUDO, 1995, s/i).
80
No século XVII, com a ampliação das “práticas de Estado” e a concorrência dos
mercados, que será doravante uma possibilidade e arma real dessas práticas, há a
consolidação da utilização da razão de Estado.
De outro modo, as “práticas de Estado” modernos tentaram condicionar, ao
extremo, a força como estratégia de governo. Ora, parece que isso não só acontece no
governo, mas tornou-se o tipo ideal de motor da ação humana e, desse modo, a
população “usurpou” das práticas de Estado o direito de fazer justiça.
Contudo, ainda cabe às “práticas de Estado”, pelo menos legalmente, a
constituição das duas grandes técnicas de tipo diplomático-militar, a partir das quais ele
tenta exercer a ordem sobre a população. Essas estratégias foram forjadas no século
XVII, na Europa e, caracterizam-se como a defesa da unidade europeia, em detrimento
da expansão comercial e do consequente aumento dos fluxos de transeuntes nas cidades.
Para tanto, era necessário estabelecer barganhas, vigilância e punição às ameaças de
desestabilização do Estado.
Dito isso, teria-se a guerra como o grande vetor da paz. Parece contraditório,
mas essa é a grande arma da ordem moderna. É preciso guerrear para estabelecer
alianças, dizimar para assimilar e manter a ordem.
Noutra perspectiva, a diplomacia funcionou como uma física do Estado ao reger
e normatizar o princípio da posse do território e normalizar dentro dele, as ações de
exercício da força. O grande desafio desse Estado é diferenciar o que é guerra e o que é
paz, ou, o que é específico ao mundo civil e aquilo que é do mundo militar, já que as
fronteiras entre essas práticas são tênues demais. Para resolver esse impasse, volta-se às
técnicas militares e a polícia será pensada como “(...) conjunto dos meios pelos quais é
possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem
desse Estado (...)” (FOUCAULT, 2008a, p. 421). (Grifos nossos).
A polícia atuará utilizando-se da estatística como instrumento de mensuração da
população quanto ao estabelecimento de índices de periculosidade e anormalidade,
propondo-se, como instituição interventora, a promover a vigilância, a sanção, a coerção
e a punição dos desviantes. Desse modo, ela visa cumprir funções que perpassam a
educação e a profissionalização das crianças e jovens 43, tendo como meta o controle
43
Como é ainda tão comum que policiais sejam arregimentados para dar palestras às crianças e
adolescentes, em escolas públicas e privadas, sobre temas ligados à: saúde; sexualidade; meio
81
social a partir das áreas do higienismo (controle urbano), da assistência social
(atendimento a emergências) e da segurança, pois: “(...) o objetivo da polícia é,
portanto, o controle e a responsabilidade pela atividade dos homens na medida em que
essa atividade possa constituir um elemento diferencial no desenvolvimento das forças
do Estado“ (FOUCAULT, 2008a, p. 433).
Quanto ao objeto da polícia, esse é a “quantidade de homens”, visando torná-la
qualitativa ao Estado, atuando nas chamadas “necessidades da vida”, para que os
homens tenham uma vida “livre e digna”, daí o cuidado com a educação, a saúde etc.
Pode-se dizer disso tudo que a polícia buscaria, através de dispositivos de segurança,
enquadrar a população, constituindo princípios binários de oposição entre: saudável e
insalubre; trabalhador e vagabundo; homem de bem e bandido.
O principal dispositivo de segurança da polícia seria o regulamento e a
imposição da disciplina. Esta atuaria na formação do “Ser Normal” (FOUCAULT,
2001), pois diferenciaria, numa leitura semiótica dos corpos, dos comportamentos e da
linguagem, aquilo que é normal, daquilo que é potencialmente anormal e o que de “fato
é anormal”. Para tanto, ela detém-se numa exegese genética, quanto à morfologia dos
corpo, como, também, numa exegese cultural, no tocante a estigmas, como tatuagens; e,
quanto à linguagem, em relação ao uso de gírias que denotem sinais de
“marginalidade”. Assim, ela age numa tendência contínua de disciplinar e fazer valer
uma economia dos gestos e aparências.
Não obstante a toda essa tentativa de controle, em que há normalização, há
também processos de resistência e parece que essa estaria presente no mundo extrapolicial e intra-policial. Logo, não há surpresas em ações de civis ou militares que
buscam extrapolar o campo da norma posta.
Diante de tantas evidências de contraconduta, já no século XVIII, surgem as
grandes críticas às “práticas de Estado” e aos dispositivos de segurança, como as prisões
e a polícia. Críticas que já anunciavam a sua falência:
ambiente; segurança; cidadania e, etc. Ver: “O 11º BPM/M acredita que a prevenção é a melhor forma
de se combater o tráfico de drogas, por isto tem apresentado diversos Policiais Militares para realizar o
curso de formação de instrutores do PROERD, se você é Professor(a) ou Diretor(a) de Escola de ensino
fundamental, não deixe de ler esta matéria” (POLÍCIA... 2010).
82
[...] Podemos fazer a genealogia do Estado moderno e dos seus
diferentes aparelhos a partir da história da razão governamental.
Sociedade, economia, população, segurança, liberdade: são elementos
da nova governamentalidade, cujas formas, parece-me, ainda
conhecemos em suas modificações contemporâneas (FOUCAULT,
2008a , 476).
Foucault (op. cit.) apresenta as contracondutas como ações que visam extrapolar
os dispositivos de segurança e que ganham fôlego a partir do século XVIII. Denotam
aquelas, uma certa correspondência da sociedade (ao usurpar) às funções que deveriam
ser efetivadas pelo Estado.
Isso posto, entendemos que no caso das práticas dos dispositivos de segurança
serem frágeis e ineficientes, abriu-se uma possibilidade ao exercício de contraconduta,
como os linchamentos, porque, como visto em páginas precedentes deste trabalho, a
escatologia do Estado entre os séculos XVIII, XIX, XX e XXI, aponta para uma
absorção do poder pela população, conformando, assim, contracondutas que vão das
sedições aos saques 44 e, também particularmente, o que interessa ao linchamento.
Tentamos, ao longo desse texto introdutório à temática do Estado, dos
dispositivos de segurança e das contracondutas, tomar a análise do micropoder exercido
nos linchamentos como viés da presente argumentação, para assim, como sugere
Foucault (2008a), se puder) entender como do ponto de vista macroestrutural, as
“práticas de Estado” stricto sensu adequam as suas perspectivas de força às
incomensuráveis ações extralegais da população.
Outrossim, as ações extraoficiais não apontam para um outro tipo de
organização social, como nos moldes de uma revolução social que derrubaria a ordem
vigente e construiria outro modelo, como por exemplo, as teses socialistas. O objetivo
aqui foi simplesmente, tentar apresentar a tese do caos como um paradigma viável,
tentar problematizar o corolário do cosmos e descrever, apenas e, se possível, os traços
de contraconduta percebidos e estudados por nós. Por enquanto, gostaríamos de destacar
a força do dionisíaco em relação ao apolíneo, quando se pensa em “práticas de Estado”
e contracondutas.
44
Ver: Diniz (1985 e 1991).
83
2.3.
“MODERNO E ANTIQUADO”: “PRÁTICAS DE ESTADO” NO BRASIL?
(...) O populismo foi definido como o produto de um longo processo
de transformação da sociedade brasileira, instaurado a partir da
Revolução de 1930 e que se manifestou de uma dupla forma: como
estilo de governo e como política de massas. Assim, o tempo das
<origens> das principais características explicativas do <atraso> de
nossa formação política desloca-se do <período colonial> para os
<tempos> do liberalismo oligárquico da Primeira República e para as
bases do poder do Estado pós 30, postulado como um <Estado de
compromisso> tal compromisso remeteria a duas frentes, que
estabeleceriam, ao mesmo tempo, seus limites e potencialidades
(GOMES, 1998, p. 545-546) 45.
Neste capítulo buscamos mapear as diferentes estratégias das “práticas de
Estado” no Brasil, numa tentativa de construir aproximadamente uma relação entre as
diferentes formas de governamentalidade vivenciadas na Europa, que foram discutidas
por Foucault (cf. 2008a) e que, certamente, mas de modo muito incipiente, foram
transplantadas para as Colônias, como no nosso caso aqui no Brasil. Faremos uma
análise de fluxos contínuos que visaram discutir a formação da “modernidade” e as
estratégias das práticas de governo.
Conforme Santiago (2001), o pensamento social brasileiro variou nos últimos
setenta anos entre o conservadorismo político, o tomismo filosófico e o marxismo
político. Esse pensamento passou por três grandes rupturas, a saber: 1) quanto à noção
de raça, em 1870; 2) em relação à cultura, em 1930 e; 3) quanto à estrutura social em
1950. Nesse sentido (cf. SANTIAGO, 2001, p. 13 et. seq.), as teses explicativas da
chamada nação brasileira e da sua relação com as “práticas de Estado” podem ser vistas
ao se mapear a influência/visão de mundo de sociólogos clássicos como Caio Prado Jr.,
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.
Prado Jr. (cf. 1979, 1981, 1987, 1994) criticou a historiografia brasileira que
valorizava apenas o “aspecto branco”, ou seja, a história oficial dos conquistadores e os
“heróis” aristocratas; destacou o papel das massas e da luta de classes a partir dos
45
Ora, qualquer aproximação com o Brasil de 2002-2010 não é mera coincidência. Principalmente,
quando levamos em conta os índices de aprovação popular do governo Lula. Apontando, assim, para os
fluxos e contrafluxos da história que definitivamente não segue a régua evolutiva proposta pelos
modernos.
84
movimentos sociais da Cabanagem no Pará entre 1833 a 1836; da Balaiada no
Maranhão, entre 1838 a 1841 e da Revolta Praieira, em Pernambuco no ano de 1848.
Portanto, ele “dá” emergência aos chamados conflitos de classe.
A partir do primado materialista dialético, Prado Jr. vê a “história brasileira”
como consequência do fazer cotidiano, a partir do trabalho, da técnica e das forças de
produção aliadas às relações de produção. Assim, agindo sobre a natureza (práxis) o
homem a transforma e se constrói; Prado Jr. não aborda a história “oficial”, mas, a
história das massas, das interações de poder. A história oficial é aquela construída pelos
jesuítas. É cronológica, descritiva dos grandes vultos e balizada no princípio da
verdade/autoridade. Já a história das massas coincide com o olhar sobre a produção
agrícola quanto à exploração do trabalho, à formação do latifúndio e as revoltas
populares.
Nas obras de 1933 e 1942, ao analisar a evolução e a formação do Brasil, e do
Brasil contemporâneo, Prado Jr (1994) pensa os séculos XVII e XIX (Brasil colônia)
quanto ao povoamento; à vida material; e à vida social. Nessa obra, Prado Jr. apresenta
traços preconceituosos quanto ao índio e ao negro, pois associa à questão racial o fato
de que há dolência na ação daqueles, o que gerou uma passividade no “povo brasileiro”.
A economia e a política também são analisadas a partir do colonialismo europeu
– leia-se a necessidade de expansão de mercado entre os séculos XV e XVII e, a
exploração do trabalho escravo. Num segundo momento, no século XIX, a revolução
industrial (inglesa) demanda a abolição do monopólio de mercado, a condenação do
trabalho escravo e o açúcar substitui o café, tornando-se o produto de exportação, tendo
uma mão de obra barata, gerando concentração de riqueza e imigração italiana, assim
como faz aparecerem os primeiros “germens” da organização operária no Brasil.
A nova produção também traz consequências no melhoramento de transportes
(ferrovias para escoar a mercadoria) e na migração dos senhores de terras para as
cidades. Prado Jr. (1994) mostra que a história não deve se ater a descrever o passado,
mas, apresentar as consequências dele para o presente e, também, aponta para a
possibilidade futura, de que caso não corrijamos os erros, nós poderemos continuar a
reproduzi-los. Enfim, Prado Jr. propõe uma revolução educativa. Por conseguinte, esta
tese está denunciando o espírito de subserviência das “práticas de Estado” no Brasil em
relação às demandas europeias do capitalismo ascendente e, ao mesmo tempo, mostra o
85
exercício de poder e tensão entre essas práticas e o “povo brasileiro”. Contudo,
seguindo o ideário iluminista da emancipação, Prado Jr. (1994) aposta na revolução
transformadora pela via educacional.
Ainda em Santiago (2001), ao discutir a importância de Freyre, especialmente na
obra Casa Grande & Senzala (obra de 1933) 46, mostra que Freyre estuda o
patriarcalismo a partir da família; que apresenta a importância do negro e da
mestiçagem na formação da sociedade brasileira e a desintegração da sociedade rural do
Nordeste, dando lugar ao desenvolvimento urbano.
Freyre (1998) analisa questões como: o intercurso sexual (;) – reúne o passado e
o presente: intenciona perscrutar o futuro do povo brasileiro; analisa a relação entre o
indivíduo e o coletivo. Freyre (1998) realizou uma etnografia do Brasil a partir do
contexto sociocultural e histórico. O método que utilizou transita entre o funcionalismo
e o historicismo. Desse modo, é importante reconhecer a contribuição de Freyre para
entendermos o caráter cultural da sociedade brasileira, no tocante à subjetividade
individual do homem branco, na perspectiva mística da tolerância e da convivência
entre as raças. Assim, Freyre escreve utilizando a morfologia social, as figuras e o
sentido figurado, construindo uma ciência poética e estética, narrando aspectos
existenciais da sua trajetória.
A partir de 1930, há uma tendência em estudar o “branqueamento da raça” no
Brasil, mas é com Casa Grande e Senzala (1933) que Freyre prioriza a cultura.
Influenciado por Boas, Freyre defende a cultura no lugar do determinismo biológico e
geográfico. Ele destaca o cotidiano das relações sociais, desnudando: a discriminação da
herança racial e, as de influência social, econômica e cultural brasileira.
Freyre (1998) mostra três categorias: a família, os escravos e os agregados
livres. A casa grande centraliza-se na figura do senhor e retrata a estrutura de poder na
qual se fundamenta a sociedade agrária brasileira. Estuda Freyre (1933) a adaptabilidade
do colonizador português com ênfase na questão do determinismo geográfico, que
critica mostrando que o homem pode vencer a natureza e o clima, assim, discute a
viabilidade e importância do intercurso sexual entre o colonizador, a nativa e o escravo.
46
Ver: Freyre, 1998.
86
Freyre ainda ressalva a relação entre o autoritarismo patriarcal e as práticas
democráticas (mestiçagem). Percebe a família como uma estrutura harmônica de
constituição da mestiçagem, dando maior ênfase à relação branco-negro. Assim, o
catolicismo e o sexo serão os instrumentos de controle e inclusão social do negro e do
índio. O colonizador português também é visto como uma bricolagem da cultura árabe e
judaica.
Freyre (1933) apresenta o negro como o responsável pelas seguintes tendências
que forjaram a chamada nação brasileira, a saber: afetiva; alegre e espontânea. Quanto
ao índio, ele destaca as seguintes características: arredio, triste e sonso.
Freyre (1933) mostra que a “corrupção do negro” é fruto da escravidão e não
uma tendência inata.
Para Santiago (2001), Freyre discute enfim a relação sado-
masoquista entre o branco e o negro, apontando para a violência contra o escravo, a
mulher e a criança.
Por fim, Holanda (1936) 47 vê a burocracia brasileira como um conluio de
“amigos cordiais”. Defende a tese de que não será o retorno à sociedade tradicional
(rural) que resolverá os problemas atuais (para a década de 1930), mas, em Raízes do
Brasil (1936), obra modernista que visava “(re)descobrir” o Brasil, não a partir de
regionalismos, mas numa perspectiva comparada e universalista. Holanda (1936) critica
o intelectualismo formal e abstrato e propõe trazer à tona o “inconsciente brasileiro”.
Portanto, ele quer compreender a identidade, o sentido da cordialidade e a relação entre
o público e o privado. Para tal, critica Freyre quanto à ideia da harmonia da constituição
das relações sociais. Holanda (1936) estuda o comportamento (ação social), os agentes e
a motivação desses para a ação. Para o mesmo, era difícil estudar a “identidade” do
brasileiro, pois ainda éramos uma sociedade em processo de devir. O trabalho é outra
categoria problemática, pois como ação social racional, ele era objetivo em relação a
fins limitados. Holanda estuda também o espírito “aventureiro” e “cordial” que
remontam à colonização ibérica, caracterizada pela bricolagem cultural dos povos
espanhóis e portugueses em relação ao mundo arábico-cristão.
Em Raízes do Brasil (1936), Holanda busca compreender a transição
sociopolítica entre as décadas de 1930 e 1940 e empreende o entendimento acerca do
47
Ver: Holanda (1964).
87
que possibilitou ao Brasil tornar-se um país. Ele aponta os seguintes conceitos e ações
sociais como estruturas complementares e fundantes do Brasil, a saber: duas éticas do
trabalho, a do aventureiro e a do trabalhador; no ibérico português, uma tendência à
dolência, diferentemente, do protestante que valoriza o trabalho manual e a
concentração, que são importantes instrumentos da racionalidade capitalista. Quanto ao
espanhol, esse colonizará civilizações que possuem alto nível de desenvolvimento
arquitetônico e social (Astecas, Maias e Incas). Já, nós, seremos vistos como uma
civilização litorânea, com arquitetura assimétrica, logo “mal urbanizada”.
O cordialismo brasileiro é visto por Holanda (1936) 48 como fruto do
patrimonialismo que se fundou numa relação desigual de poder, pois há a verticalização
e o escamoteamento da dominação pelo sistema personalista favorecido pelo
bacharelismo, que se sobressai no “jeitinho brasileiro” e na referência à titulação (você
sabe com quem está falando?). Sendo assim, a “democracia brasileira” para Holanda
(1936) é construída como uma doação e não como resultado do binômio
concessão/conquista.
A decadência do patriarcalismo (cf. HOLANDA, 1936) se dará pela necessidade
de substituição do conjunto cultural ibérico, por formas modernas (racionais e
burocráticas) das relações sociais, como, por exemplo, o modelo americano em que
prevalecem os valores coletivos versus o personalismo. Assim, para Holanda, é preciso
resolver a questão da exclusão das camadas pobres e criar um ambiente de política
participativa.
Ao beber em Weber (1985), Holanda (1994) apresenta o quanto distantes
estamos da pretensa racionalização do chamado Estado e apresenta o cordialismo como
o instrumento da impossibilidade de separação entre o público e o privado no Brasil.
Desse modo, é nas relações de clientelismo que exacerbamos o particularismo e o
favoritismo. O homem cordial é a antítese do homem formal (racional) e é, também,
uma estratégia de dominação através do exercício do protecionismo das “classes altas”
em “favor” das camadas pobres. Para Holanda (1979, 1994), a sociedade brasileira não
compreendeu ainda a impessoalidade das leis e comporta-se à sua revelia.
48
Para um entendimento mais claro dessa prática, consultar a belíssima obra de DaMatta (1979).
88
De acordo com Gomes (1998), a política brasileira sempre esteve na fronteira
entre o público e o privado, mais precisamente entre o projeto de “modernização” 49,
vivenciado a partir de 1822, quando bebemos no ideário liberal e, por outro lado, temos
uma tendência em reproduzir, para além de qualquer tese racionalista e laica sobre a
relação Estado-sociedade, padrões de práticas que seguem a ritualística do
conservadorismo, tutela e patriarcalismo. Desse modo, Gomes destaca alguns contextos
e atores que são emblemáticos do impasse antes mencionado.
Num primeiro momento, começo do século XX, vê-se Rui Barbosa
representando a ala liberal e Pinheiro Machado representando as oligarquias. No
entanto, ambos estão acima de tudo, intencionados em evitar o “esfacelamento” do
poder e cada um, ao seu modo, visa à proteção/consolidação de um Estado forte, ou
seja, centralizado e vertical, acima das massas e dos partidos.
Num segundo momento, na era Vargas, vemos o projeto do nacionalismo pelo
“Estado Novo”, que propunha a ruptura com o mundo rural e a ascensão do urbanoindustrial. Contudo, as práticas governamentais são, nesse momento, exaustivamente
centralistas e cooptadoras, logo, não podemos ver nas “práticas de Estado” uma
relação/intenção de favorecer a vivência da forma Estado-cidadão. Antes, o que temos
são práticas de clientelismo/coronelismo e peleguismo que, segundo Gomes, (1998)
tutelam/coagem as massas a aderirem às práticas assistencialistas e o Estado assume a
mitificação do personalismo do ocupante do “poder”. Assim, qualquer intenção de
constituição do ideário democrático dilui-se no espetáculo da persona presidente, ou
seja, o Estado é Vargas, desse modo:
É bom ressaltar que uma das imagens mais freqüentes a que os
discursos estado-novistas recorriam para caracterizar o processo de
construção do Estado nacional, era a da formação de uma grande
família. Nela, as lideranças sindicais eram como irmãos mais velhos e
o presidente, o pai de um povo nobre e trabalhador-,<o pai dos
pobres> (GOMES, 1998, p. 527-528).
Assim, doação e reciprocidade (obediência, manutenção e reprodução da
ordem) são as chaves-mestras desse modelo de governamentalidade, no qual “razão e
sensibilidade” “caminham juntas”, construindo, antevendo e “corrigindo” problemas
49
Ver também: Domingues (1999); Tavorolo (1986).
89
que dificultam a coesão social. Portanto, é “a figura do chefe de estado, como
materialização do poder político apoiado pelo povo (...) e, paradoxalmente, como uma
negação da cidadania política expressa pelas eleições e pelo voto” (GOMES, 1998, p.
533), ou seja, é preciso ser legítimo, mas não necessariamente legal; melhor mesmo é
ser “QUERIDO”. Tem-se, então, no Brasil, nesse contexto, a prática do governo
pastoral, pois “protetor e ordenador do rebanho”, buscando “sempre” a pacificação das
suas ovelhas.
Seguindo o viés populista, seguem-se os governos de JK, Quadros e Jango, todos
encenando, a seu modo, o mito do salvador, “o presidente redentor”, “(...) em inícios
dos anos 60 (...) esgotavam-se as condições históricas que possibilitavam a
<manipulação populista>” (GOMES, 1998, p. 551).
Num terceiro momento, a análise do período ditatorial, especialmente a partir da
década de 1970, aponta como características ao exercício de governo as seguintes
questões: endurecimento militar; insatisfação de políticos e intelectuais à chamada
ordem posta; descrédito do milagre brasileiro; emergência dos novos movimentos
sociais. Nesse sentido, buscava-se a “modernidade”, num misto entre o estado nacional
e o paradigma europeu.
Assim, a partir de uma aproximação à abordagem foucaultiana, pode haver a
seguinte trajetória de análise: em primeiro lugar, a utilização da genealogia do vigiar e
punir, quanto ao controle de fluxos de pessoas e mercadorias nas técnicas de biopoder e
biopolítica; em segundo lugar, a consolidação do ideário liberal, quanto às práticas de
mercado, estado e sociedade no mapeamento dos micropoderes, dando ênfase ao
controle demográfico, como por exemplo: exílios; mortes; migração para o norte; o
controle higienista-curativo, favorecendo os grandes investimentos hospitalocêntricos
internacionais; o investimento da industrialização, (realizando “parcerias/dívidas” com
órgãos mundiais; o controle da população, resolvendo pelo exercício do uso legítimo da
violência, pelas “práticas de Estado”, os casos de insurreição social); enfim, do controle
de território e provimento de obras públicas, que remetem à facilitação da livre
importação e da acanhada exportação nacional, mas o estado provia o Brasil de
“grandes obras” no campo siderúrgico e de escoamento das mercadorias assim como
facilitava a entrada do capital estrangeiro.
90
De modo irônico, esse estado-nacional “dito moderno” não se coadunava com o
paradigma europeu, num “irrelevante” aspecto, no tocante à modernização das práticas
democráticas; Ele não era representativo/participativo, ele era um estado de exceção,
mas, tudo pode se resolver, se mapearmos na nossa história o primado patriarcal e
percebermos que geralmente as mães são dialógicas/afetuosas e os pais são a
autoridade/obediência. Logo, os militares podem representar a “força do masculino”
versus a “frouxidão” do populismo. Acima de tudo, esse “Estado forte” tinha como seu
padrinho o centro e tipo ideal democrático moderno, a saber, os EUA. Nesse contexto, o
tragicômico era a intenção de ter um “Estado forte”, pois que, guardião da lei e ordem,
que eram suas metas maiores e ideologia fundante.
Não obstante à “força da lei”, o novo cenário de crise estrutural emergente em
1970 e contínuo nos meados de 1980, apontam para a desconstrução de dois mitos dos
teóricos da esquerda e da direita, a saber: a massa-povo-população-operários são uma
forma “protocívica” que precisa ser incitada a sair da condição de classe em si e tornarse classe para si; ou, esse sujeito o povo-massa-multidão é simplesmente ingênuo,
despolitizado, logo manipulável, ora entre “emancipação” e “docilização”. A sociedade
brasileira não pode ser conceituada nos paradigmas da apatia/passividade frente às
situações, nem ovelha, nem lobos, mas um misto entre os dois.
Enfim, num quarto momento, ao discutir a década de 1990, Gomes (1998)
mostra que o ideário neoliberal ou a chamada globalização 50 da economia aponta para
outro impasse teórico-político e econômico, a saber: modernizar o Brasil é satanizar as
“práticas de Estado”, associando-as ao público-populista e varguista, em relação ao
Estado protetor, portanto, enxugá-las é a meta; de outro lado, realizar a saída do Estado
e priorizar o privatismo é um revival do “neopopulismo”, que descortina uma estratégia
de manipulação/dispensabilidade das massas versus a centralidade dos ditames das
“práticas de Estado” e do mercado. Desse modo, o que se vê nesse contexto nos mostra:
(...) Que mais uma vez, o país presencia a renovação de quadros
mentais e projetos políticos, agora emoldurados intencionalmente,
pela <globalização>, e talvez esteja assistindo (...) à construção de
<outro> mito de estado que, modificado de maneira radical, seria
50
Para uma discussão mais amiúde dessa questão, ver: Giddens (1991); Bauman (1999; 1999b e 2000);
Montaño (2008).
91
capaz de conduzir a sociedade rumo à <modernidade> (...) a novidade
do fato está em que, desta feita, a idéia de modernizar pela
minimização do tamanho (o que é diferente de poder) do estado e pela
franca explicitação da crença nas qualidades positivas do mercadoprivado (GOMES, 1998, p. 556). (Grifo da autora).
Portanto, as práticas de governamentalidade no Brasil apontam para um quadro
surreal de continuidade e afastamentos esporádicos de teses que se querem duais, quais
sejam moderno versus obsoleto, mas que em síntese são complementares e engendram,
grosso modo, a marca indelével da história, a saber: O NÃO SER, o não presente, mas o
ontem e o porvir, ou seja na metáfora poética de Caetano Veloso “quereres”, que nunca
mata/satisfaz o desejo do uno-centro.
De outro modo, Zaluar (1998) 51, ao discutir a questão do Estado em relação ao
processo da chamada (re)democratização na década de 80 e, logo, a relação do Estado
com a população no que concerne ao binômio ordem/desordem, mostra que a questão da
violência está intrinsecamente ligada a uma espetacularização midiática que, devido às
ocorrências contínuas de cenas de violência tornam tal fato um tema corriqueiro e
“natural”, junto à sociedade brasileira e, assim, é um tema transversal e resiliente em
todas as suas instituições, sejam elas legais ou, simplesmente, as do cotidiano. “As
notícias de violência tornaram-se mercadorias. Elas vendem bem o vernáculo, quanto
mais sensacionalistas e impactantes forem” (ZALUAR, 1998, p. 247). Inclusive, a
mídia tem sido um agente de consolidação do status quo dos envolvidos em atos ditos
infracionais. Assim, é de algum modo “gratificante” ter seu rosto nas manchetes 52.
A violência (cf. ZALUAR, 1985), então, toma a conotação do perigo do
estrangeiro, o “outro”, tudo o que não é nós e não sou eu, o conhecido, o “normal”.
Crescem, então, as estatísticas sobre crimes globais, tais como, o tráfico de drogas,
armas e também crescem os índices sobre os crimes micros, como em relação aos
domésticos (violência dentro dos lares) e a violência institucional, como, por exemplo, a
51
Consultar: Azevedo (2005), que discorre sobre o processo de redemocratização na América latina e a
justiça penal; Alvarez (1989), que aborda a questão das novas formas de punição ao crime; PaesMachado (2006), sobre violência criminalidade e justiça. Em todos eles, há a discussão sobre a década
de 1980 do século 20 e a temática da violência.
52
Ver, por exemplo, o documentário Ônibus 174 (2002), em que o “protagonista” diz: “a senhora ainda
vai me ver fazendo sucesso na televisão”. Mostrando que o crime e a espetacularização dele tem
acenado para a busca de visibilidade no mundo do crime. Ver também: o filme o Cárcere e a rua (2004).
92
policial. De outro modo, empobrecem-se as políticas de prevenção ao crime e, quando
realizadas, têm um caráter curativo/coercitivo, ou seja, defende-se mais policiamento,
armas e tecnologia e, cada vez menos, garantia de geração de emprego/renda; qualidade
de vida no tocante à saúde; educação; cultura e lazer. Restando uma mitificação do
medo/repúdio ao outro e, logo, a “endêmica sensação nacional” de insegurança, que
estimula o SALVE-SE QUEM PUDER! Leia-se: QUEM PUDER PAGAR PELA
SEGURANÇA PRIVADA.
A violência tem, a partir de 1980, para Zaluar, (1998) uma escalada em relação
às taxas de mortes violentas, ocorridas em grandes cidades e, durante a década de 90 53,
ela se espraia nas cidades interioranas, especialmente naquelas que fazem parte da rota
do tráfego de drogas.
Zaluar (1998) mostra que as áreas mais afetadas são os subúrbios das grandes
metrópoles; os homens entre 15 e 39 anos são, também, os mais atingidos pela
violência. Assim, de 9% de morte violenta na década de 1980, nós passamos para 12%
na década de 1990. E hoje, contabilizam-se 54 taxas que apontam para a grandeza
numérica de 40.000 pessoas 55.
53
Ver: “ÀS MARGENS... (2007)” que discute e mapeia as plantações de maconha às margens do Rio São
Francisco. Ver também: “A GEOGRAFIA... (2009)”: “Divulgado em janeiro de 2008, com dados até 2006,
o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros é ainda hoje o levantamento de abrangência nacional
mais recente sobre segurança nas cidades. Reúne os números, município por município e Estado por
Estado, de homicídios; taxa de homicídios por 100 mil habitantes; homicídios juvenis; mortes por arma
de fogo; e mortes no trânsito.“
54
“Por incrível que possa parecer nos últimos 20 anos o número de assassinatos em nosso país cresceu
237%. Recente pesquisa divulgada pela ONU indicou que todos os anos 40.000 pessoas perdem suas
vidas no Brasil vítimas da violência, isso representa 11% das vítimas de todo o planeta. Segundo dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS) o Brasil registra a segunda maior taxa de mortalidade por
agressão do mundo, estando atrás apenas da Colômbia, nação mergulhada numa guerra civil há mais de
30 anos.” (OS NÚMEROS... 2010).
55
“A violência urbana diz respeito a uma multiplicidade de eventos (que nem sempre apontam para o
significado mais forte da expressão violência) (...) Esses eventos podem reunir na mesma denominação
geral (...) desde vandalismos, desordens públicas, motins e saques e até ações criminosas individuais e
de diferentes tipos (...)”. (MISSE, 2006, p. XI). De outro modo: “o Índice de Homicídios na Adolescência
(IHA) foi desenvolvido para medir o impacto da violência nesse grupo social, monitorar o fenômeno e
avaliar a aplicação de políticas públicas. Brasília, 21 de julho – Foi divulgado, nesta terça-feira (21/7), o
Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), que apresenta o risco sofrido por adolescentes, entre 12 e
18 anos, de ser vítimas de assassinato nas grandes cidades brasileiras. Segundo a análise, os homicídios
representam 46% de todas as causas de mortes dos cidadãos brasileiros nesse faixa etária. O IHA foi
desenvolvido no âmbito do Programa Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens, uma
iniciativa coordenada pelo Observatório de Favelas e realizada em conjunto com o Fundo das Nações
93
A vida social tornou-se uma difícil tarefa de sobreviver num território de guerra
civil, não declarada. Nesse campo de batalha, tornam-se “classe perigosa” os pobres, os
migrantes, imigrantes e os negros, todos vítimas e vitimizados pelo primado da parceria
conceitual estigma/estereótipo 56. Logo, o que mais nos amedronta é a diferença, a não
inclusão, o desvio da regra, ou mais claramente a posição “marginal-anormal”.
Portanto, “os que mais padecem enquanto vítimas da violência difusa e
privatizada são também os mais apontados como seus agentes. A pobreza é
determinante, ora da vitimização, ora da ação violenta” (ZALUAR, 1998, p. 252). Nesse
sentido, é um equívoco tentar compreender/explicar a violência pelo viés da
causalidade, que juntando X + Y dará= XY, ou seja, pobreza mais ação violenta é igual
a crime, ou, pobreza mais desrespeito gera resistência por vias ilegais (crime). Zaluar
(1998) defende a perspectiva teórico-metodológica, que pensa o estudo de um fato a
partir da pretensão de ver as bordas, o centro e a periferia do objeto
construído/recortado, ou seja, é preciso dar ênfase ao princípio interacional das
Unidas para a Infância (UNICEF), a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
(SEDH/PR) e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAVUerj). O estudo avaliou 267 municípios do Brasil com mais de 100 mil habitantes e chegou a um
prognóstico alarmante: estima-se que o número de adolescentes assassinados entre 2006 e 2012
ultrapasse a 33 mil se não mudarem as condições que prevaleciam nessas cidades. O IHA revela ainda
que raça, gênero, idade e territórios são fatores que aumentam as chances de um adolescente ser
vítima de homicídios. Segundo o índice, os meninos entre 12 a 18 anos têm quase 12 vezes mais
probabilidade de ser assassinados do que as meninas dessa mesma faixa etária. Já os adolescentes
negros têm quase três vezes mais chance de morrer assassinados do que os brancos. Outro fator
apontado é que a maioria dos homicídios é cometida com arma de fogo. A análise do IHA mostrou
também os municípios em que os adolescentes estão mais vulneráveis a esse tipo de violência.
Enquanto a média da análise foi de 2 homicídios para cada 1.000 adolescentes, identificou-se 20
municípios onde este número foi igual ou maior a 5. Os resultados do estudo só reforçam a necessidade
de implementação e expansão de programas e ações para a educação e promoção dos direitos de
crianças e adolescentes em todo o País, avaliam os órgãos parceiros na elaboração e criação do IHA”
(INDICADOR... 2009).
56
Em uma brilhante discussão e crítica às teses explicativas sobre criminalidade urbana no Brasil, Misse
(2006, p. 29, passim) aponta como equivocadas as seguintes teses: a pobreza é a causa da
criminalidade, ou do aumento da violência; o bandido das áreas urbanas (favelas, conjuntos
habitacionais) é um herói; criminalidade urbana tem relação direta com movimento da etnia negra [...];
os migrantes nordestinos e nortistas, por sua pouca qualificação ficam subempregados em serviços
braçais e são um elemento propenso à violência urbana; o aumento da criminalidade violenta tem
relação com a luta de classes. Misse chama a atenção tanto para a abordagem teórica quanto à
metodológica e defende o corolário da realização de pesquisas mistas que não busquem mapear causas,
mas que tentem compreender variáveis e extensão da criminalidade violenta.
94
confluências de variáveis distintas, que não fatalmente, mas, perspectivamente podem
ocasionar certos desmembramentos violentos. Assim, se tira do foco o estereótipo:
pobre+necessidade=crime.
Para Zaluar (1998), a violência global 57 tem suas variáveis concomitantes ao
barbarismo vivido na II Guerra Mundial e como decorrência da reformulação da visão
Eu-Mundo, que aponta para o niilismo, o hiper-realismo, a desterritorialização e
fragmentação, vividos na condição pós-moderna 58. Distribuídos entre apocalípticos ou
apologetas do vazio, os teóricos, militantes ou críticos desse contexto, apontam, todos,
para uma profunda transformação existencial, política, econômica, ambiental, social,
cultural, estética e ética. Essa mudança é definidora da condição do homem de meados
do século XX e durante o XXI.
Portanto, a banalização das “mil mortes” 59 nos acena para a total descrença em
qualquer conteúdo ético/teológico e teleológico do “direito à vida” e do corpo, como
lugar do sagrado. Antes, a morte violenta e violentadora mostra a derrocada de qualquer
pretensão dos princípios humanistas que forjaram ao longo dos séculos XVI, XVII,
XVIII, XIX e meados dos XX, a imagem do homem como centro. Essa tese cai por terra
e mostra que, podendo ser uma ação além do bem e do mal, inclusive, quando pensamos
numa metáfora ao divino, a morte violenta tem sido usada/justificada como mecanismo
57 57
Ver: Bauman (2004 e 2008).
Ver: Rouanet (1987); Kumar (1997); Eagleton (1998 e 1993); Featherstone (1997); Lemert (2000);
Lyotard (1998).
59
Ver os casos do goleiro Bruno e a morte de Elisa Samudio; também o caso das mortes em acerto de
conta nas favelas em que se mata, se queima e se enterram os ossos em cemitérios clandestinos. Como
vemos, não basta matar. Tem crescido a freqüência de destroçamento dos corpos. Desse modo: “[...] os
assassinos cada vez mais se tornam mestres em destruir o corpo de suas vitimas, já que simplesmente
ocultá-los pode não ser eficaz para escaparem da lei. No entanto, a solução está na nossa lei penal, que
é expressa em poder haver processo e condenação nesses casos. A certeza da morte pode vir de outras
provas, como a indiciária e a testemunhal. A qualquer crime que deixe vestígios que desapareçam antes
do exame pericial, incluindo homicídios, a lei autoriza - artigo 167 do Código de Processo Penal - o
suprimento dessa prova através da audição de testemunhas. Então, o exame pericial indireto tem o
mesmo valor probatório do direto realizado no corpo da vitima. A polícia, aliada ao Ministério Público,
deve levar ao juiz provas suficientes da existência do crime - qualquer que seja ele - bem como do seu
autor, a fim de formar seu convencimento para condenação ou pronúncia, conforme o caso.”
(HOMICÍDIOS SEM... 2010). (Grifos nossos). Nesse sentido, a punição que visa destroçar o corpo acena
para mais uma impossibilidade do ideário moderno, pois ao apregoar a individualidade do corpo, ele
não criou as condições efetivas para que todos pudessem proteger o seu corpo. O corpo ainda acena
hoje como o lugar do castigo, da reparação, logo do suplício e das mil mortes.
58
95
para evitar a escalada da violência, ou seja, usam-se métodos violentos numa tentativa,
talvez homeopática, de curar o mal pelo próprio mal.
Caldeira (2000), ao analisar a fala do crime, destaca o período da década de
1980, do século XX, como um demarcador da escalada da violência no Brasil e
apresenta, também, uma problematização acerca da reação da sociedade a tal violência.
De um modo geral, há a explicitação do maniqueísmo bem e mal que ajudará a
consolidar padrões de distanciamento e separação (via segurança privada, condomínios
e centros de compra para os ricos e; aprisionamento, para os pobres) entre os diferentes
estratos sociais. Sendo assim, são característicos desse processo: descrédito nas
instituições policiais e jurídicas (tanto em relação às práticas de abuso do poder e
autoridade, quanto às práticas de negligência); disseminação de práticas de vigilantismo
e justiceiros, inclusive envolvendo os dispositivos de segurança; violação dos direitos
humanos e “naturalização” desse fato, já que se dá em nome da segurança; de outro
modo, assistiu-se também a uma “abertura política”, ou à redemocratização que, por
outro lado, mostrava/denunciava as ainda recorrentes práticas de abuso de poder na
violação dos direitos humanos.
Assim, a autora mostra que a organização, distribuição e proibições de trânsito e
fixação em espaços públicos obedecerão, cada vez mais, a critérios que geram
classificações e distanciamentos sociais, ou seja: a circulação está condicionada ao
controle dos dispositivos de segurança. Como exemplo, se pode ver o caso da
normatização do comércio; da prestação de serviços ou mais drasticamente dos espaços
destinados/proibidos a pessoas pobres, tais como, shoppings; museus; teatros e até
praças públicas de onde são retiradas crianças, adolescentes e pedintes. Como exemplo,
tem-se a chacina da Candelária 60.
Há para Caldeira (2000), uma disseminação da fortificação (segurança privada) e
da discriminação dos pobres, o que tem fortalecido a criminalização e punição dos
pobres versus o enclausuramento dos ricos em fortificações domésticas e de consumo.
Há, ainda, um marco recorrente na fala do crime, que aponta o processo de
migração, principalmente durante o “milagre brasileiro”, para o Sul e Sudeste, como
marco da escalada da violência e, desse modo, o migrante nordestino aparece como
60
(CHACINA DA... 2010).
96
alguém perigoso, logo desejável de ser afastado, sendo o seu espaço “natural”
representado como a favela, ou seja, o espaço desordenado e perigoso.
Aliado ao processo da grande migração, Caldeira (2000) analisa as passagens
paradigmáticas dos planos de gestão econômica governamentais, como por exemplo: a
inflação do começo dos anos 80; a estabilização iniciada em meados dos anos 80 e a
consolidação do plano real em 90, movimentos esses que, além de grandes impactos
econômicos geraram também problemas de sociabilidade que, por sua vez, marcaram o
tom da aceitação, expulsão ou invisibilidade dos indesejáveis – leia-se “pobres e
perigosos” que são vistos como potenciais criminosos, ou seja, a “encarnação do
crime”. Desse modo,
(...) O medo que ele provoca, o simbolismo que gera e as reações de
proteção que ele promove (...)Ao contrário, significa expor em toda a
sua complexidade os processos que criam obstáculos à
democratização e apresentam severos desafios para a sua consolidação
para além do sistema político. Para que possa criar raízes na sociedade
brasileira, a democracia terá de enfrentar e neutralizar os processos de
violência, discriminação e segregação que o universo do crime
articula. A violência e o crime não existem isoladamente na sociedade
brasileira, mas sim num tenso diálogo com a consolidação
democrática (CALDEIRA, 2000, p. 45).
Como visto, a autora defende o ideário da democracia e percebe que os fatos,
vistos antes levam a uma dificuldade de vivência democrática. Contudo, parece que
qualquer ideário, seja ele democrático ou autocrático, não dá conta da impossibilidade
de representar e exercer um poder vertical, mesmo que negociativo, sobre o conjunto da
população. Mas, antes, se entende serem as contracondutas ou resistências algo
recorrente nas práticas de qualquer Estado, assim como a violência.
Enfim, Caldeira (2000) discute o aumento dos crimes violentos, destacando-se
os crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Esses crimes podem ser praticados
tanto por cidadãos comuns quanto pelos representantes dos dispositivos de segurança,
notadamente os policiais. Portanto, há uma tese implícita de que a sociedade brasileira
carrega um traço violento. Contudo, Caldeira (op. cit.) apresenta em suas análises um
viés um tanto quanto iluminista, ao pensar na saída pela via democrática de construção
de novas possibilidades de governamentalidade e sociabilidade que sejam pacíficas e
representativas.
97
Ora, como mostrado antes, a sociedade brasileira do século XXI tem a
descrença, a ironia, os conchavos; os escândalos de corrupção e a apatia das práticas do
Estado frente às demandas sociais, grosso modo, como sinais de que o ideário da
“união”, o mito da ordem e os sonhos iluministas de progresso/prosperidade ruíram.
O que se vê são cidadãos comuns comprando privadamente “segurança” 61.
Veem-se os meios de comunicação de massa (mdcms) realizando o trabalho da polícia e
do ministério público, pois os “grandes inimigos da nação” são identificados, vigiados e
julgados pelos “furos jornalísticos” no viés intitulado jornalismo investigativo 62. Vemos
a massa tramar processos de punição e executá-los em detrimento das “práticas de
Estado” e do seu aparato. Vemos policiais (nos três níveis), assustados perante a
virulência das formas de violência e, mais ainda, os vemos confusos, perdidos quanto ao
seu papel social 63 e aos recursos disponíveis para executar a sua função 64. Vemo-los,
sendo perseguidos, mortos – quando identificados; vemo-los também, envolvidos em
sistemas de corrupção e, o mais terrivelmente, vemo-los, em alguns casos, enfim,
61
Para um melhor entendimento dessa questão, ver: Segurança... (2010).
Ver: DINÂMICA DA... (2010).
63
“Seria interminável a enumeração das deficiências e dos problemas que hoje caracterizam grande
parte, se não a totalidade, das polícias brasileiras. Destacamos apenas os mais evidentes - começando
pelo parco investimento em tecnologia e capital humano, que resulta numa capacidade cronicamente
baixa de investigação e resolução de crimes, aí incluídos os delitos graves” (LEMGRUBER; MUSUMECI;
CANO, 2003, p. 35).
64
É comum em entrevistas nos meios de comunicação de massa, os policiais militares e civis,
queixarem-se da insegurança que sentem no trabalho de combate ao crime. Relatam medo quanto à
obsolescência dos equipamentos que utilizam e da perspicácia dos bandidos que combatem... Ver por
exemplo: “Desde o dia 3, quando bandidos atacaram um posto da Polícia Militar, em Irajá, matando um
sargento, e metralharam a 27 DP (Vicente de Carvalho), foram dez investidas contra policiais. O último
ataque ocorreu na terça-feira passada, quando bandidos dispararam contra um carro da polícia na Vila
dos Pinheiros e atiraram num posto da PM no Presídio Evaristo de Moraes, em São Cristóvão. Os
ataques já resultaram na morte de dois policiais e em pelo menos uma baixa por estresse. Numa
madrugada da semana passada, repórteres do GLOBO percorreram as ruas — cada vez mais vazias
durante a noite — e constataram que a tensão tomou conta de unidades das polícias Civil e Militar. Em
alguns batalhões, como o 1 (Estácio), os PMs de guarda já não ficam mais dentro do quartel, mas na
entrada, fuzil em punho. A delegacia de Vicente de Carvalho recebeu o reforço de quatro policiais de
outras unidades nos plantões noturnos. Eles passam a noite armados com pistolas e fuzis M-16. Na
porta, foi feito um bloqueio de carros para reduzir a sensação de insegurança. Mesmo assim, diante da
possibilidade de novos confrontos, os policiais estavam em desvantagem naquela madrugada: pelo
menos dois se sentiam cansados porque estavam dobrando. Na 22 DP (Penha), que sofreu ameaça de
invasão de bandidos no início do mês, o reforço é voluntário. Policiais da própria delegacia tomaram a
iniciativa de se revezar no reforço dos plantões” (GOULART, 2010, s/i).
62
98
sucumbir ao trabalho terceirizado de venda de segurança privada, nos quais usam
fardamento e armas da corporação.
A polícia, aquele dispositivo de segurança constituído a partir do paradigma
biopolítico, sucumbiu, ela própria, “à metástase do carcinoma da desordem?”. Então,
resta aos leigos promover a justiça com as próprias mãos? O poema Desordem
(BRITTO, 2003), que aparece a seguir, é sintomático do diagnóstico e prognóstico que
jovens, na década de 80, do século XX faziam acerca da relação entre Estadodispositivos de segurança-população, vejamos:
(...) Os presos fogem do presídio, imagens na televisão (...) Termina
tudo em confusão. A multidão enfurecida, queimou os carros da
polícia. Quando estão fora de controle, não são as regras exceção (...)
Quem quer manter a ordem? Quem quer criar desordem? Não sei se
existe uma justiça, nem quando é pelas próprias mãos. Nas invasões,
nos linchamentos como não ver contradição? (...) Mas o que é criar
desordem, quem é que diz o que é ou não?
O interessante entre os sinais apontados antes e a letra da poesia acima, é
pontuar, no Brasil, a recorrência da chamada sublevação desde a sua invasão pelos
colonizadores, quando das lutas dos indígenas, passando pela escravidão. Nos primeiros
suspiros do trabalho assalariado, e a “germinal organização operária”; nas lutas
messiânicas e campesinas, entre outros processos, que demonstram que para além da
idílica concepção moderna, bebida por nós no slogan ordem e progresso, as práticas do
Estado no Brasil apresentam-se capengas, frágeis e ineficazes.
De outro modo, Adorno (2003) mapeia a relação violência-Estado-população
nos dois governos FHC e aponta as seguintes características da relação entre lei e
ordem: 1) crise do sistema criminal de justiça; 2) obsolescência do paradigma de
segurança pública; 3) ranço burocrático e autoritário das instituições sociais voltadas ao
controle social; 4) desqualificação das agências de segurança, ou seja, não
investimentos em pessoas e materiais; 5) contínuo desrespeito aos direitos humanos.
A violência em larga escala tem tomado como principal vítima os homens,
mortos com armas de fogo, em grandes metrópoles. Contudo:
A escalada da violência e do crime urbanos, desde meados dos anos
1970, não é como talvez se pudesse supor, um fenômeno restrito às
grandes metrópoles brasileiras (...) Cidades de porte médio, com
população de mais de 500 mil habitantes, também vêm conhecendo
99
um acentuado crescimento da criminalidade violenta. A interiorização
do crime violento vem sendo observada com maior intensidade desde
o início da década de 1990 (...) Ao que tudo indica, a rota do crime
urbano segue na esteira da rota da riqueza. Como se sabe, na década
passada (do século 20), verificou-se grande expansão da riqueza,
pública e privada, para o interior do país (...) (ADORNO, 2003, p.
107-108).
Para Adorno, é preciso investir mais em qualificação de pessoas; geração de
emprego/renda; qualidade de vida urbana/periférica; maior visibilidade aos agentes dos
direitos humanos; expansão das políticas participativas; maior controle sobre a
corrupção pública; maior e melhor interação entre os três poderes. Como se pode ver,
trabalhando numa perspectiva (que parece iluminista, pois crédula, num processo de
emancipação e participação) o autor não traz nenhuma grande novidade ao tema 65.
Contudo, a recorrência da saudade de um tempo nunca vivido aponta para a não
vivência dos princípios do corolário moderno em nosso país. Então, fechamos esse
tópico relembrando a trajetória entre “moderno e arcaico” ou, como estamos nos
organizando e sendo uma nação, e, a recorrência do primado de como deveríamos ser.
Olhando para trás para negar (a tradição, o atraso) ou lamentar (o que não somos mais)
e, por outro lado, mirando o futuro e projetando nele como deveríamos ser, os séculos
se arrastam desde XVI a XXI e ficamos sempre entre o impasse: modernos ou arcaicos,
sem nos ater, entretanto, de que para que toda a história, inclusive a nossa, há uma trama
de epistemes e não exatamente uma régua evolutiva.
Portando, devemos ainda discutir uma análise importante acerca dos dois
mandatos do governo FHC e Lula. Esse estudo foi realizado por Soares (2010). O autor
começa dizendo que o governo FHC realizou uma “tímida gestação de programas em
segurança pública” e, faltava a esses programas uma visão sistêmica, assim como
processos contínuos de diagnóstico, efetivação e avaliação/monitoramento. Contudo,
Soares (2010) admite que a segurança pública no governo FHC deu passos importantes
ao racionalizar a ação estatal, priorizando a: prevenção e a integração inter-setorial.
Exemplo maior da atenção tardia e modesta do segundo governo
Fernando Henrique Cardoso à segurança foi a criação do Fundo
Nacional de Segurança Pública, que ficaria sob responsabilidade da
65
Sobre um mapeamento geral da discussão em torno da temática teórica e metodológica dos estudos
da violência no Brasil, consultar: Miceli (1999).
100
Senasp e que, supostamente, serviria de instrumento indutor de
políticas adequadas. No entanto, ante a ausência de uma política
nacional sistêmica, com prioridades claramente postuladas, dada a
dispersão varejista e reativa das decisões, que se refletia e inspirava no
caráter dispersivo e assistemático do plano nacional do ano 2000, o
Fundo acabou limitado a reiterar velhos procedimentos, antigas
obsessões, hábitos tradicionais: o repasse de recursos, ao invés de
servir de ferramenta política voltada para a indução de reformas
estruturais, na prática destinou-se, sobretudo, à compra de armas e
viaturas. Ou seja: o Fundo foi absorvido pela força da inércia e
rendeu-se ao impulso voluntarista que se resume a fazer mais do
mesmo. Alimentaram-se estruturas esgotadas, beneficiando políticas
equivocadas e tolerando o convívio com organizações policiais
refratárias à gestão racional, à avaliação, ao monitoramento, ao
controle externo e até mesmo a um controle interno minimamente
efetivo e não-corporativista (SOARES, 2010, p. s//i).
Ao analisar o governo Lula, Soares (2010), mostra que as ações voltadas à
segurança pública trazem a marca do Programa Nacional de Segurança com Cidadania
(Pronasci).
No primeiro mandato, Lula desenvolveu ações a partir do diálogo democrático
com a sociedade. Ele priorizou o Plano Nacional de Segurança Pública, o qual previa:
1) construir consenso entre os governadores; 2) normatizar e efetivar o Sistema Único
de Segurança Pública ou desconstitucionalizar as polícias; 3) que governos estaduais e
federal deveriam instalar gabinetes de gestão integrada em segurança pública; 4)
aumentar os recursos para o Fundo Nacional de Segurança Pública; 5) o governo envia
ao Congresso Nacional Emenda de desconstitucionalização do Sistema Único de
Segurança Pública; 6) firmar o Pacto pela Paz.
Apesar de todo esse planejamento, visto antes, o processo foi abortado, pois o
governo Lula, em seu conjunto, entendeu que efetivar tal plano traria “desgastes” no seu
nível de avaliação, considerando que, se concretizado, iria “prejudicar” as eleições
futuras por “mexer” em questões polêmicas como, por exemplo: orçamento da união e
hierarquização dos níveis dos dispositivos de segurança, civil e militar.
No segundo governo Lula 66, o destaque foi o Pronasci, que previa a classificação
e efetivação de ações a partir da divisão entre “ações estruturais”, relativas ao caráter
66
“Iniciando o último ano de Luiz Inácio Lula da Silva, como Presidente da República, precisamos
examinar quanto daquela urgente preocupação se tornou ação transformadora da dramática realidade
da violência no País. O Tribunal de Contas da União ao examinar as contas do Governo Federal relativas
ao ano de 2005 considerou que a área da segurança pública foi o terceiro pior setor da administração
101
coercitivo, e “ações locais”, relativas ao caráter social de prevenção à violência e ao
controle social. Não obstante, vale pensar nos resultados da pesquisa do IBGE (2010), o
qual avalia que 70% da população brasileira têm medo de andar na rua. O interessante é
que essa pesquisa saiu já depois do “grande espetáculo da caça às bruxas”, a chamada
invasão dos morros no Rio de Janeiro (cf. INSEGURANÇA, 2010...) 67.
federal, depois de comunicação e habitação. A segurança pública, conforme observou o TCU, respondeu
por apenas 0,27 % do orçamento (contra 0,30 % em 2004), executou apenas 57% da dotação
orçamentária e realizou 32% das metas. A constatação do TCU revela claramente a baixa prioridade e o
desinteresse do Governo Federal para com os problemas de segurança da população. Mas há outros
fatores a considerar. A Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão de coordenação e
implementação da política e programas de segurança pública do Ministério da Justiça, gastou boa parte
de suas ações iniciais para obter adesão dos governadores ao SUSP. Quase não houve resistência nos
estados, principalmente porque essa adesão seria necessária para pleitear os recursos financeiros do
Fundo Nacional de Segurança Pública. Mas o tempo logo mostraria que era apenas mais uma inútil carta
de intenções. O SUSP, sem prioridade e com pouco recurso, era uma marca que deveria pegar para
demonstrar a diferença das ações do novo governo no setor. Mas suas ideias não tinham normas claras
de como seriam implantadas, nem havia argumentos persuasivos para convencer secretários da
segurança, comandantes de polícias militares e chefes de polícias civis de 27 unidades federativas a
aderir ao SUSP. Nos sucessivos contatos que tivemos nos estados e com policiais em seminários, ao
longo dos últimos dois anos, ficou evidente a incompreensão sobre o significado do Susp e a rejeição de
suas principais ideias, principalmente às que pretendiam impor modificações unilaterais. Com os cortes
orçamentários impostos essas pretensões de mudanças acabaram inviabilizadas porque os recursos
financeiros do Fundo Nacional de Segurança Pública sempre funcionaram como instrumentos de
promoção de melhorias pelo direcionamento dos recursos financeiros a projetos indutores de mudança
(por exemplo, só liberar recurso de telecomunicação para sistemas integrados de operações ou recurso
de treinamento priorizado para treinamento conjunto)” (VICENTE, 2010, s/i...).
67
“Pela primeira vez, a segurança pública destacou-se com aprovação: 49% dos entrevistados disseram
que aprovam as políticas adotadas na área, contra 46% que desaprovam. Em relação à pesquisa
anterior, a aprovação subiu nove pontos percentuais nessa área; 53% dos entrevistados desaprovavam
o desempenho do governo na área de segurança pública contra uma parcela de 40% que aprovavam.
Um dos motivos que alavancou o índice foi à atuação das Forças Armadas na retomada do Complexo do
Alemão e da Vila Cruzeiro. Quando questionados sobre quais os assuntos mais lembrados pelos
eleitores sobre o governo Lula, 32% relataram a ação das Forças Armadas no Rio no combate ao tráfico
e 11% disseram que a formação do novo governo da presidente eleita teve mais destaque. A pesquisa
CNI/Ibope mostra ainda quais são as principais expectativas da população sobre o futuro governo de
Dilma Roussef. Na ordem, são saúde, educação, segurança pública, combate à fome e à pobreza,
combate às drogas, geração de empregos e combate à corrupção. Segundo o gerente executivo de
pesquisas da CNI, Renato Fonseca, a operação do governo federal em parceria com o governo do Rio de
Janeiro, na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, contribuiu para elevar o índice de aprovação do
governo Lula na política de segurança pública. - As notícias influenciaram diretamente na opinião dos
entrevistados já que coincide com o período de realização da pesquisa - afirma Fonseca (GOIS, 2010,
s/i...).
102
Nesse sentido, podemos ver que a população brasileira, constante dos índices da
pesquisa do IBGE (2010) 68, mostra-se totalmente descrente no aparato dos dispositivos
de segurança pública. Assim, é só no âmbito privado que ela entende haver segurança.
Esse dado se remete, às camadas abastadas que se sentem seguras pois, protegidas por
segurança privada como, por exemplo, os condomínios fechados com seus sistemas de
segurança eletrônica, com câmera, alarme, etc. Ora, os dados apresentados mostram que
o governo Lula não realizou minimamente, nenhuma ação de grande impacto na
prevenção da violência.
Eis alguns pontos do Pronasci que representam retrocesso,
relativamente ao Plano de Segurança com o qual o presidente Lula
venceu a eleição de 2002: (a) em vez de unidade sistêmica, fruto de
diagnóstico que identifica prioridades e revela as interconexões entre
os tópicos contemplados pelo plano, tem-se a listagem de propostas,
organizadas por categorias descritivas (em si mesmas discutíveis),
mas essencialmente fragmentárias e inorgânicas, isto é, desprovidas da
vertebração de uma política; (b) O envolvimento de um número
excessivo de ministérios lembra o Piaps, com seus méritos e suas
dificuldades. A intenção é excelente, mas o arranjo não parece muito
realista, sabendo-se quão atomizada é nossa máquina pública, e quão
burocráticos e departamentalizados são os mecanismos de gestão; (c)
A única referência à regulamentação do Sistema Único de Segurança
Pública (Susp) é brevíssima, superficial, pouco clara, e sugere uma
compreensão restrita, reduzindo-o à dimensão operacional: "O
Pronasci irá regulamentar o Sistema Único de Segurança Pública
(SUSP), já pactuado entre estados e União, mas ainda não instituído
por lei. O SUSP dispõe sobre o funcionamento dos órgãos de
segurança pública. Seu objetivo é articular as ações federais, estaduais
e municipais na área da Segurança Pública e da Justiça Criminal"
(Documento do Ministério da Justiça, intitulado Pronasci); (d) O tema
decisivo, as reformas institucionais, não é sequer mencionado –
provavelmente por conta de seu caráter politicamente controvertido
(dada a indefinição das lideranças governamentais a respeito do
68
“Quase metade (47,2%) da população com dez anos ou mais de idade se sente insegura nas cidades
onde vive, indica o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no estudo Características da
Vitimização e do Acesso à Justiça, com dados de 2009. São 77 milhões de pessoas com medo de andar
pelas ruas por causa da violência. A pesquisa mostra que a sensação de insegurança aumenta à medida
que a população se afasta do local onde mora. Mas mesmo em casa um em cada cinco brasileiros
(21,4%) se sentia inseguro. Nos bairros de residência, a proporção era de 32,9% [...] O estudo indica que
quanto maior é a renda das famílias, maior é a sensação de segurança nos domicílios. Já para os bairros
e as cidades, a relação se inverte, com maior sentimento de segurança entre as famílias com menores
rendimentos. Moradores de áreas rurais se sentem mais seguros.Quando a referência é a cidade onde
vivem, a diferença chega a quase vinte pontos porcentuais em relação a moradores de áreas urbanas:
69,3% se sentem seguros em áreas rurais, ante 49,7%, segundo o IBGE”.
103
melhor modelo a adotar) e de seu potencial desagregador, derivado
das inevitáveis reações corporativas que suscitaria. Assim, com o Susp
anêmico e sem o seu complemento institucional – a
desconstitucionalização ou alguma fórmula reformista, ao nível das
estruturas organizacionais –, o status quo policial e, mais amplamente,
o quadro fragmentário das instituições da segurança pública acabam
sendo assimilados. Desse modo, naturaliza-se o legado da ditadura,
chancelando-se a transição incompleta como a transição possível. O
Pronasci resigna-se a ser apenas um bom Plano destinado a prover
contribuições tópicas (SOARES, 2010, p. s/i).
Como podemos perceber, os governos FHC e Lula foram muito arrojados e
“inovadores” nos discursos e, bastantes conservadores e inócuos nas ações. Como visto
em Caldeira (2000), a segurança pública avançou quando foi ofertada e consumida
privadamente. Logo, conforme Zaluar (1989) crescem vertiginosamente os índices de
violência e de insatisfação/medo da população em detrimento das práticas autocráticas
dos dispositivos de segurança. O que resta? O “espetáculo” da Invasão dos bolsões de
pobreza!
Portanto, quando se observa o caleidoscópio da chamada “nação brasileira”, se
vê que, além da metáfora linear e evolucionista, existem formas esfaceladas e
descontínuas, que têm sido, na realidade, as características marcantes da chamada
sociedade brasileira e das “práticas de Estado” que “aquela” forjou para si. Assim, é
numa gradação de matizes não harmônicos que a nossa relação com as “práticas de
Estado” tem sido construída e, que enfim, não se coaduna à pastoral jesuítica (governo
de almas), aqui implantada pelos colonizadores e, muito menos, quando essa foi
transposta para o governo da população, na pretensa instauração do reino da razão de
Estado. Nesse sentido, tem sido a razão de Estado e a constituição de espaços de
exceção os dois paradigmas formadores da assim denominada nação brasileira e é claro
que com a forte aliança no ideário populista.
A “razão de Estado” tenta se impor com os discursos de modernização e
racionalização, conforme visto na discussão de Gomes (1998) e Santiago (2001) ao
mostrarem os diferentes paradigmas de governamentalidade no Brasil. De outro modo,
Caldeira (2000), Zaluar (1998) e Adorno (2003) mostram que os espaços de exceção,
especialmente quando dos “tumultos”, acenam para uma “desordem” da “ordem
moderna” e Soares (2010) mostra como as estratégias populistas ainda estão em voga no
Brasil do século XXI.
104
3. CAPITULO - “... O QUE ESTÁ NA ROMARIA DOS MUTILADOS; NO
PLANO DOS BANDIDOS, DOS DESVALIDOS...”
4.
Figura 4 - A malvada Vox Populi
4.1.
A MULTIDÃO PERSONIFICA A FÊNIX?
Nesse capítulo, será discutido o fenômeno da multidão, um conceito central
nesse trabalho, uma vez que é a partir dele que há a aproximação com o recorte do
mesmo, a saber, o linchamento público, que é, via de regra, realizado por uma formação
social que foi denominada de multidão.
Dentre os inúmeros estudos realizados sobre esse tema 69, serão destacados, a
princípio, alguns clássicos, como, primeiramente, Le Bon (1908), que ao estudar a
69
Especialmente no campo da Comunicação Social, vemos explodir no século XIX, estudos acerca do
conceito de massa, que será entendida a partir de três concepções básicas, a saber, embasada nas teses
marxistas, a massa será entendida como uma formação homogênea que pode ser manipulada pelos
meios de comunicação de massa, ou, mdcm e, que portanto, cabe aos mesmos conscientizá-las do seu
papel social e da negação ao consumo alienado; de outro modo, para os conservadores, a massa será
105
Psicologia das multidões, as apresenta como uma alma coletiva. Contudo, o autor a
representa de modo preconceituoso, caracterizando-a pela feminilidade e impulsividade.
Ainda mais, defende a ideia de que ela seria influenciável e seduzida por sentimentos
simples e exagerados.
Em segundo lugar, temos Ortega y Gasset (apud HOHLFELDT, 2001) que
caracteriza a multidão a partir do caráter ontológico, constituído pela metáfora do
homem-massa. Assim, para esse autor, a multidão ou massa, é composta por indivíduos
abrutalhados, violentos e promotores do esgarçamento social, existindo desde que haja
revolta e subversão do diferente e do singular.
Em terceiro lugar, Canetti (1995) problematiza a massa a partir do medo
primitivo do toque, na relação imediata entre dois ou mais indivíduos, passando pela
concepção de massa aberta que seria a característica apriorística desse fenômeno e que
acontece sempre que, de modo espontâneo e fragmentário, pessoas afluem para
determinado ponto.
Outras duas características apontadas por Canetti (1995), e, que são importantes
para entendermos a multidão/massa, seriam as seguintes: a descarga e a ânsia. A
primeira, mostra-se pelo fato de a união gerar uma descarga de tensão e, ao mesmo
tempo, equalizar as forças de todos os envolvidos. No tocante à ânsia, seria a
responsável pela destruição a partir da constituição do “barulho” (quem sabe se não há
aqui um arquétipo tribal em relação aos gritos de guerra, presentes ainda na multidão
linchadora e em jogos de futebol?), o que implicaria que, ao destruir, intenciona-se,
através da produção dos sons, o fortalecimento do grupo e age-se, preferencialmente,
em relação às imagens e estruturas físicas de instituições que representam o poder.
Desse modo, o meio mais figurativo da destruição seria o fogo.
Afora essa discussão, serão apresentadas a seguir outras teorizações acerca do
tema da multidão.
entendida como um objeto passível de manipulação via informação tendo em vistas a massificação de
visões de mundo e comportamentos que levem ao consumo e, finalmente, para os radicais, a massa é
vista como desprezível e perigosa devendo ser controlada a todo custo. Ver: Mattelart (1999).
106
3.3.1. Dobras e lateralidades da sociedade punitiva contemporânea
Ao se propor estudar a multidão no tocante ao fenômeno do linchamento,
enquanto mobilização extra-oficial de punição, uma questão torna-se mister, qual seja,
entender, antes de mais nada, a pretensão paradigmática da modernidade ao propor um
tipo ideal de “práticas de Estado” e governamentalidade. Desse modo, a princípio, será
analisada a construção da pseudo-democracia moderna (discordamos de qualquer
ideário de democracia representativa) e, concomitante a ela, as sempre presentes
estratégias de confrontamento do poder constituinte, pelas mãos de sujeitos comuns que
são rotulados como desviantes.
A modernidade, vista aqui como o longo processo histórico que perpassou o
período de tempo compreendido entre meados do século XVI a meados do XX, pode ser
analisada sob muitos aspectos, a saber: cultura, religião, vida privada, educação,
política, dentre outras possibilidades. Contudo, aqui interessa observá-la a partir do
enfoque da vida política, seja institucional ou cotidiana. Sendo assim, a primeira
questão para pensar é relativa ao pretenso estabelecimento dos princípios
universalizantes que nortearam os debates acerca da liberdade e igualdade entre os
homens.
Estabeleceu-se uma instância de poder, instituída com dispositivos de
emitir sanções e punições, encarregada de manter as regras, normas e
leis criadas por aquela sociedade de modo a garantir a sua preservação
e continuidade. Essa instância, quando direcionada para as questões
do coletivo ou da dimensão pública, na maioria das sociedades toma a
forma de estado. (AMORIM, 2003, p. 130).
É sabido que a partir do Renascimento, os ocidentais têm perseguido a meta da
isonomia social e política. Para tanto, se forja ou re-configura o modelo clássico de
democracia grega, seja nos moldes contratualistas 70, seja nas tentativas de estados
populistas. Ao longo dos séculos, tenta-se constituir um sistema representativo que dê
conta de demandas desiguais, às vezes contraditórias e contrastantes e, ao mesmo
tempo, vivenciando o embate permanente entre formas utópicas de pensar a organização
e ordem social versus a brutalidade/coerção do chamado estado de direito.
70
Ver: Rojo (2005).
107
De acordo com Habermas (2002), podemos pensar em três modelos normativos
de democracia: a) a concepção liberal, individualista, representada por teóricos como
Locke e que propõem a divisão entre o estado (que é pensado como poder vertical),
visto como aparato da administração pública; a sociedade, vista como sistema de
circulação de pessoas em particular e do seu trabalho social; o mercado, visto como
estruturante do fluxo da circulação de mercadorias e; a política, tida como estratégia de
congregar e impor os interesses sociais; b) a concepção republicana, comunitarista,
representada por teóricos como Aristóteles e Marx, que propõem uma sociedade
centrada no Estado, mas auto-organizada politicamente.
Assim, a política
corresponderia não a uma simples estratégia de mediação, mas a um processo de
coletivização que agregaria a tríade entre o estado como poder regulador, o mercado
como regulador descentralizado e a solidariedade entre os cidadãos como amálgama da
integração social. Desse modo, seria possível o consenso via possibilidade da
comunicação que estabeleceria, em última instância, a horizontalidade da vontade
política.
Ainda para Habermas (2002), o terceiro modelo normativo é aquele cunhado
pelo próprio autor e que prevê por via da teoria da ação comunicativa a junção das
perspectivas anteriores, na busca de construir uma alternativa de coesão interna numa
sociedade dada, ou entre grupos específicos e aptos para o debate e que culminaria em
processos negociativos/procedimentais, que abarcariam as dimensões dos discursos de
autoentendimento acerca do que seja justiça. Tal modelo proporcionaria resultados
racionais, justos e honestos – um quadro idílico de uma tela renascentista perdida.
Assim:
(...) O caráter demagógico e a intenção de influir sobre as massas são
comuns a todos os partidos políticos atuais: por causa dessa intenção,
todos são obrigados a transformar seus princípios em grandes afrescos
de estupidez, pintando-os nas paredes (NIETZSCHE, 2004, p.214).
De outro modo, Negri (2002) aponta para a questão da violência implícita e
explicitamente presente no Estado moderno e que lança seus tentáculos na relação de
mercado ao polarizar a condição de trabalhador livre versus as condições de trabalho;
também ao colocar em questão o Direito, que, para o autor, é sempre fruto da violência
e não exatamente a constituição de relações equânimes e equilibradas, mas antes,
expressa as relações materiais de produção. Portanto, é imanente ao direito a
108
desigualdade, pois que forjado numa sociedade capitalista, de modo geral se pode
entender que: “esquecer que a violência e a dominação são as forças constitutivas da
ordem é ilusório e hipócrita, é confiar no pomposo catálogo dos direitos inalienáveis do
homem” (NEGRI, 2002, p. 360).
Assim, ao contrário de algumas teses modernas e contemporâneas sobre a
pseudo-harmonia estabelecida pelo estado de direito, o último autor aponta para a
problemática da coerção e do confrontamento às regras postas e torna bastante clara a
sua tese de que o poder é sempre exercido via violência, violência esta presente no
estado, mas também possível de ser exercida pelas pessoas comuns quando dos seus
enfrentamentos à “ordem”.
Negri (2002), ao discutir a democracia e o fenômeno da multidão, realiza uma
crítica sine qua non quanto à tese que sustenta de que da metade do século XX, no pósguerra e durante o XXI, estamos vivendo num modelo de guerra global. Sendo assim,
Negri (2002) destaca que as sociedades contemporâneas vivenciam uma acirrada crise
democrática e que há a possibilidade de pensarmos esse contexto a partir das seguintes
premissas: primeiramente, teríamos os sociais-democratas, que pensam a democracia
como ameaçada pela globalização e a economia. Esses denunciam os processos
neoliberais de privatizações e destruição do estado de bem-estar social, defendendo
mais autonomia e poder para os estados-nações; em segundo lugar, teríamos os
cosmopolitas-liberais que argumentam a favor da globalização como instrumento que
propicia a democracia econômica e política. Nesse sentido, são a favor dos ideais de
liberdade do mercado em relação ao estado e das propostas multiculturalistas versus o
unilateralismo dos EUA; e, em terceiro lugar, temos os conservadores calcados em
valores tradicionais que contestam o argumento de que o capitalismo neoliberal e a
hegemonia dos EUA trazem prejuízo à democracia. Esses últimos, defendem, portanto,
a social-democracia, mas alertam para o fato de que a globalização ameaça a tradição.
Para Negri (2002), a democracia só pode existir quando construída de baixo e,
nunca como processo verticalizante.
O referido autor, ainda na mesma obra, realiza um resgate histórico dos diversos
momentos, na modernidade, de tentativas de constituição de um paradigma
democrático. Desse modo, ele mapeia a partir do século XVIII, na Europa, as
(re)leituras da democracia grega e as estratégias de construção de processos
109
representativos. Mostra, ainda, que entre os séculos XVII e XVIII, estudava-se a guerra
civil como instância negativa que se opunha contra a noção moderna de ordem política
e, assim, a modernidade enquanto proposta de soberania propunha-se pôr fim à guerra
civil. O Leviatã seria a obra emblemática dessa defesa à centralidade do uso legítimo da
violência pelo estado.
Ao analisar o século XIX, o autor evidencia três grandes propostas democráticas
de representatividade, quais sejam: a) representação por apropriação, na qual há uma
separação radical entre representante e representado e o representante tem autonomia
total; b) representação livre – nessa, há uma relação mais dialógica entre representante
e representados, sendo emblemático desse paradigma o parlamentarismo; c)
representação instruída – nessa forma, há o controle direto dos representados sobre
seus representantes, de modo participativo e deliberativo.
Nos séculos XX e XXI, Negri (2002) destaca que o sentimento de medo devido
ao estado de guerra globalizada tem desafiado a coesão/coerção do Estado e que, assim,
é preciso (re)inventar de novo a democracia e o modo de lidar com a
resistência/dissidência a esse projeto.
Há uma crítica visceral na análise de Negri (2005), a saber: àquela que denuncia
os princípios filosóficos e práticos que sustentam as estruturas epistemológicas relativas
aos conceitos de soberania e democracia, conceitos esses muito caros à modernidade e
que, para o autor, apenas escondem os processos de coerção do gestor político sobre
seus administrados. Mais uma vez, ele recorre ao Leviatã e aponta a capa dessa obra
como metáfora perfeita da força do chefe de estado sobre seus comandados: o corpo do
rei sobressai-se acima dos corpos dos súditos!
Na mesma perspectiva de análise crítica, Negri (2005) mostra que o conceito e
prática da soberania têm dois lados: o lado do governante, que falsamente protege, e o
lado dos governados que devem obediência. Assim, esse é um sistema de poder dual e
qualquer tentativa de estabelecimento da ordem via violência é inócua, uma vez que
sempre gerará um contrapoder/resistência: “a força não é capaz de assegurar a
estabilidade do governo e da soberania. Exatamente por ser tão unilateral, a força militar
é na realidade a forma mais débil de poder; é dura, mas quebradiça” (NEGRI, 2005, p.
415).
110
Essa citação incita claramente a retomada das teses weberianas e, mais
contemporaneamente, as eliasianas quanto ao arbítrio legítimo do Estado ao monopólio
da força e da violência, inclusive, a sua pretensão de controle total de armas e do
exército. Negri, descerra, assim, um universo que aponta para movimentos extraoficiais
que forjam e aplicam leis paralelas:
(...) Constitui um ato elementar de libertação e uma ameaça que toda
forma de soberania deve estar constantemente gerindo, contendo,
deslocando. Se o poder soberano fosse uma substância autônoma, a
rejeição, a retirada ou o êxodo dos subordinados não passaria de uma
ajuda ao soberano: quem não está presente não pode causar
problemas. Como o poder soberano não é autônomo, como a
soberania é uma relação, esses atos de recusa constituem efetivamente
uma ameaça. Sem a participação dos subordinados, a soberania
desmorona (NEGRI, 2005, p. 418).
Como se nota, Negri (2005) nega a premissa de que o uno governa, pelo
contrário, ele sustenta a tese de que numa organização social e biopolítica, há sempre a
relação de contra-força entre governante e governados e a multidão seria a forma por
excelência desse conflito.
Na multidão, contudo, nunca, existe qualquer obrigação em princípio
em relação ao poder. Pelo contrário, na multidão o direito de
desobediência e o direito à diferença são fundamentais e baseiam-se
na constante possibilidade legítima de desobediência. Quando a
multidão finalmente se torna capaz de governar a si mesma, a
democracia é possível (sic.) (NEGRI, 2005, p.426).
Desse modo, o autor ousa mais ao afirmar que: “a guerra já não é um
instrumento à disposição dos poderes políticos para ser usado em casos limitados, mas
tende ela própria a definir as bases do sistema político. A guerra torna-se uma forma de
governo.” (NEGRI, 2005, p.427).
Assim sendo, a violência ultrapassa na contemporaneidade o limite do uso
“legítimo” e “racional” via “práticas de Estado”, daí o conceito de guerra global, que
passa a ser vista como um instrumento não só para perseguir fins políticos, como
também pode ser usada como defesa. Logo, justifica-se como “violência democrática”,
podendo ser exercida pelo Estado versus seus subordinados (por exemplo, na busca de
contenção de motins carcerários; grevistas; movimentos sociais); por Estados
111
rivalizantes (por exemplo, os EUA frente alguns estados orientais), ou mesmo, no
contexto de resistência dos subordinados contra as forças postas (linchamentos públicos,
invasões a prédios, rebeliões em prisões).
A multidão seria, então, a nova perspectiva ou (re)invenção democrática. Assim,
a partir dela, poderíamos nos organizar não apenas como resistência, mas como poder
constituinte, pois ela é uma estratégia rizomática de ação e, através da mesma, podemos
aliar cooperação e comunicação. Sendo assim:
Podemos reconhecer, contudo, que existe o abismo intransponível que
separa o desejo de democracia, a produção do comum e os
comportamentos rebeldes que os expressam do sistema global de
soberania. Depois dessa longa temporada de violência e contradições,
de guerra civil e global, corrupção do biopoder imperial e infinita
labuta da multidão biopolítica, os extraordinários acúmulos de queixas
e propostas de reforma devem em dado momento ser transformados
por um evento de impacto, uma radical exigência insurrecional. Já
podemos reconhecer que hoje o tempo se divide entre um presente que
já está morto e um futuro que já nasceu- e o abismo entre os dois vaise tornando enorme. Com o tempo, algum evento haverá de nos
proporcionar como uma flecha para esse futuro vivo. Será este o
verdadeiro ato de amor político (NEGRI, 2005, p. 447).
Negri (2005) traz para a sua discussão algo inóspito e inusitado ao defender que,
em última instância, deveríamos substituir a guerra global pelo amor. Parece, além de
estranho, também muito exótico, que após uma análise tão pertinente acerca do uso da
violência generalizada e “racional”, o autor tenha caído na armadilha romântica e
extremamente cristã da pregação do amor como fundante de uma sociedade tolerante e
harmoniosa. Aqui, ao contrário, interessa destacar o “conteúdo belicoso e ousado” da
sua discussão. Que se deixe o amor para os profetas!
Ainda discutindo o uso da violência de modo geral e não apenas vinculado às
“práticas de Estado”, Foucault (2005), realiza um amplo estudo mapeando a trajetória
de constituição dos processos de biopoder e biopolítica. Para tanto, destaca o
surgimento do que denomina “guerra das raças” no século XX, que se caracteriza como
o racismo praticado pelo estado. Essa estratégia acirra-se no século XIX e, assume
feições de estatização do biológico a partir da qual caberá ao estado decidir fazer viver e
deixar morrer ou fazer morrer e deixar viver. São emblemáticos desses dispositivos de
112
poder o controle social via políticas públicas, a princípio as relativas à saúde,
expandindo-se depois a toda ordem de controle higienista.
Desse modo, como visto nos dois primeiros capítulos, as políticas de controle
começam como dispositivos sobre os indivíduos (biopoder), efetivadas por instituições
específicas como a escola, o quartel, o hospital e, depois, transformando-se em controle
sobre as massas (biopolítica), utilizando-se de estratagemas como os controles
estatísticos e censitários que perscrutavam, registravam e arquivavam informações
relativas às taxas de: natalidade, morbidade, mortantade e/ou longevidade das massas.
A emergência de controlar as massas, inclusive, como forma de evitar/coibir o
fenômeno da multidão, por que ameaçadora da ordem posta, leva as modernas práticas
de Estados ocidentais e capitalistas às técnicas de urbanização, sanitarismo e
disciplinarização dos usos e hábitos possíveis nos espaços públicos.
O modelo central da biopolítica são as cidades operárias, nas quais serão
aplicados dispositivos de controle sobre os corpos individuais e sobre a arquitetura das
casas e das demais instalações coletivas, como a fábrica, a escola, a igreja, as praças. O
que se pretende é a individuação, via esquadrinhamento, e a vigilância constante dos
indivíduos; num segundo momento, a medicina social agirá sobre o corpo da população.
Vê-se em tais perspectivas uma aproximação às teses darwinistas quanto a um certo
darwinismo social que naturaliza os processos de classificação, hierarquização e
dispensabilidade de indivíduos considerados inaptos, por que fracos e potencialmente
perigosos para a vida social em seu conjunto.
Visto nesse contexto, nada mais “natural” do que a produção da morte
legitimada e praticada pelas “práticas de Estado”, como por exemplo, no século XX
agiram em nome da racionalidade a Alemanha nazista, mas também a União Soviética.
Nesse sentido, podemos destacar aqui a revolta da vacina 71 no começo do século
XX, no Brasil, movimento no qual multidões foram para as ruas numa luta em
71
“Durante o mês de novembro de 1904, o Rio de Janeiro, então capital federal, foi palco de uma das
maiores revoltas urbanas ocorridas no país: a Revolta da Vacina. Milhares de habitantes tomaram as
ruas da cidade em violentos conflitos com a polícia. O motivo era uma polêmica medida adotada pelo
governo de então: a vacinação obrigatória. Contando com uma população de mais de 800 mil
habitantes, a cidade era constantemente vitimada por surtos de febre amarela, varíola, peste bubônica,
malária, tifo e tuberculose. Na tentativa de pôr fim a esse triste quadro epidemiológico, o presidente
Rodrigues Alves convocou o médico sanitarista Oswaldo Cruz, que, de imediato, pôs em marcha um
ambicioso plano de saneamento e higienização da cidade. Seu projeto, porém, envolvia controvertidas
113
medidas de controle da população e de seus hábitos de higiene. Exército de mata-mosquitos: por ter um
caráter autoritário e invasivo, adentrando lares e desrespeitando privacidades, sobretudo da população
mais pobre, a nova política sanitária foi alvo da mais hostil reação popular. Para o combate da febre
amarela, organizou-se uma grande equipe de "mata-mosquitos", incumbida de perseguir os insetos nos
lugares mais recônditos do Rio de Janeiro. Os funcionários tinham o poder de invadir as casas e quebrar
a inviolabilidade dos lares cariocas. Com a meta de controlar a peste bubônica, a prefeitura promoveu
uma declarada guerra aos ratos na cidade. E chegou a comprar os animais mortos de quem se
dispusesse a caçá-los. Aproveitadores e oportunistas não demoraram a entrar em ação. Há relatos de
que moradores partiam de Niterói para vender roedores do outro lado da Baía de Guanabara. Além
deles, havia os habituais esquadrões municipais, sempre truculentos, que invadiam cortiços, sobrados e
casas de cômodos com a finalidade de exterminar aquela praga urbana. A vacina e o "bota-abaixo": no
entanto, a medida sanitária mais polêmica foi tornar obrigatória a vacinação contra varíola, o que
descontentou grande parte da população. A obrigatoriedade da vacina era garantida por uma rede de
compulsão social. A apresentação dos comprovantes de vacinação passaria a ser condição para
matrículas em escolas, admissões em empresas e oficinas, casamentos e outras tantas atividades, de
maneira que a vida social daquele que se recusasse a ser vacinado tornar-se-ia impossível. Em paralelo,
a tônica modernizadora da gestão do prefeito Pereira Passos já se fazia sentir desde 1903, quando da
inauguração da Avenida Passos. Em março de 1904, com a demolição de dezenas de casarões e
sobrados, tiveram início as obras da Avenida Central. Os objetivos de enquadrar a cidade nos preceitos
recomendados pela higiene custaram a remoção de centenas de famílias pobres, transfigurando por
completo a paisagem do centro. Essa política ficou popularmente conhecida como "bota abaixo". A
vacinação obrigatória era, portanto, uma entre várias medidas que visavam disciplinar a população mais
pobre, erradicando-a das áreas centrais. Praças de guerra: tão logo a nova lei foi anunciada, a
insatisfação popular tomou forma de protesto. Os confrontos - que se iniciaram a partir da prisão de um
estudante, numa manifestação no Largo de São Francisco - em pouco tempo se generalizaram, opondo
os populares e as forças policiais. As cargas de cavalaria tentavam a todo custo conter a insatisfação dos
amotinados, enquanto a massa popular não parava de crescer. Em poucos dias, os conflitos atingiam
diversos bairros pela cidade. As áreas compreendidas entre o Largo de São Francisco e a Praça
Tiradentes converteram-se em verdadeiros campos de batalha. Barricadas eram erguidas na tentativa
de conter as investidas da polícia. Muitas ruas tiveram seus calçamentos transformados em munição
pelos populares que, escondidos por detrás dos bondes, alvejavam como podiam as forças policiais.
Lima Barreto: em meio ao caos gerado pelos conflitos, as autoridades passaram a efetuar prisões de
forma generalizada. Testemunha ocular das agitações que marcavam as ruas cariocas naquele tempo, o
escritor Lima Barreto registrou em seu "Diário Íntimo" as inúmeras violências e arbitrariedades de que
foram vítimas os populares revoltosos: "A polícia arrepanhava a torto e a direito pessoas que
encontrava na rua. Recolhia-as às delegacias, depois juntavam na Polícia Central. Aí, violentamente,
humilhantemente, arrebentava-lhes os cós das calças e as empurrava num grande pátio. Juntadas que
fossem algumas dezenas, remetia-as à Ilha das Cobras, onde eram surradas desapiedadamente". Em 16
de novembro de 1904 a revolta foi sufocada pela polícia. O saldo da agitação que sacudiu as ruas do Rio
de Janeiro foi trágico. Cerca de 110 feridos e 30 pessoas mortas. A ação policial resultou na prisão de
945 pessoas, das quais 461 foram deportadas para o Acre. Truculência do poder público: Num regime
republicano recém instaurado, onde a participação política da maior parte da população era nula, o
levante representou uma reação legítima frente ao tratamento autoritário que o governo dispensava ao
povo. Mais que um levante dos cariocas contra as medidas sanitárias do Estado, a Revolta da Vacina
simboliza a resistência popular frente à truculência que historicamente permeia o contato do poder
público com o povo. Anos mais tarde, o político paulista Washington Luís diria que no Brasil "a questão
social é questão de polícia", reforçando a ideia de que a força e a arbitrariedade são os mecanismos
114
barricadas contra as propostas higienistas da vacinação das massas. De outro modo, as
resistências em saques, motins e linchamentos têm, ao longo daquilo que chamamos
modernidade, suscitado a negação da pretensa centralidade das “práticas de Estado”, em
ações praticadas de modo extra-oficial. Pois, ao que parece, quando tentamos
compreender as ações extraoficiais, vemos que seria o horror, a descrença e a busca de
celeridade ou de não adesão às normas postas, o motor da ação da multidão contra as
“práticas de Estado” que se lhes apresentam como frias (porque distantes), parciais
(como na clássica divisão entre direito civil e penal) e impiedosas (quando da pseudoracionalidade do júri popular, que em nenhum momento da sua história questiona a
variável defensoria, ou seja, quando essa pode ser paga e quando é realizada como
política pública pela via da defensoria pública). Ora, saúde e justiça são cada vez mais
representadas e procuradas como uma das razões da busca de “justiça pelas próprias
mãos”, ou, de qualidade em saúde e segurança: PAGUE POR ELAS E AS REALIZE
VOCÊ MESMO!
Assim sendo, mas ainda discutindo a questão da pretensão da manutenção da
“ordem”, Bauman (1999) segue a análise foucaultiana acerca das prisões como
dispositivo de disciplinamento e, ao mesmo tempo, de constituição de uma ética do
valor trabalho.
Contudo, Bauman (1999), ao analisar as sociedades ocidentais e
capitalistas contemporâneas, levanta a tese de que entre meados do século XX e no
decorrer do XXI, o controle sobre os indivíduos e as massas perdeu a característica de
ser correcional (por exemplo, as prisões), ou preventivo (como no caso das escolas,
centros de lazer, políticas de saúde) e tem assumido cada vez mais a roupagem inspirada
no darwinismo social, acirrando os processos de aprisionamento, estigmatização e
descartabilidade/eliminação do diferente, leia-se: daqueles que não fazem e,
provavelmente nunca farão parte do “pacto social da chamada sociedade do trabalho”.
Desse modo, o autor nos chama a atenção para os processos crescentes de
encarceramento e endurecimento das políticas de controle social, inclusive, da crescente
espetacularização midiática sobre as condutas indesejáveis e, ao mesmo tempo, o
corretos para conter os anseios populares. A vacinação, em suma, foi mais uma medida para disciplinar
a população pobre, vista sempre como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento. Sua revolta
representou o protesto ampliado contra o projeto de modernização excludente que estava em marcha
naquele momento” (SANTOS, s/i...). Consultar também: Sevcenko (1993) e Meihy (1995).
115
marketing eleitoreiro e positivo (pois que rende muitos votos à defesa pelo
“endurecimento” 72), daqueles gestores e, potenciais gestores públicos, na defesa do
recrudescimento dos dispositivos de controle e punição sociais.
Seguindo essa lógica, que mapeia o neo-darwinismo social vivenciado na
contemporaneidade, temos a contribuição de Wacquant (2001), que ao problematizar as
prisões da miséria, denuncia a chamada punição neoliberal, que tem as seguintes
características centrais: a) o acirramento do estado policial; b) a estigmatização de
jovens e de certos bairros pobres; c) a espetacularização do crime e da punição; d) a
hierarquização etnoracial de jovens; d) a ausência do estado versus o crescimento da
segurança pública privada; e) o enxugamento do estado versus o enfraquecimento do
estado de bem-estar social, que em último caso tem gerado o fortalecimento do estado
penal. O que dito de outro modo, redundaria em franco processo de criminalização da
miséria.
Wacquant (2005) apresenta noutra obra, uma discussão que esclarece as teses
antes expostas. Para o mesmo, foi a partir de meados do século XX que o dito processo
civilizatório, estudado por Elias e, já citado nos capítulos anteriores, apontará para
questões relativas à reestruturação das relações sociais na busca de diminuir os padrões
de violência social, constituindo a etiqueta. Essas estratégias resvalarão em constituição
de redes interpessoais e em tentativas de organizações pacifistas, ao mesmo tempo em
que assistiremos a uma crescente onda de violência praticada pelo Estado em nome da
lei e da ordem. Nesse sentido, o autor destaca que há em síntese dois tipos de violência:
aquela praticada pelos de baixo, como por exemplo: distúrbios da fome (saques,
invasões); distúrbios pela estigmatização de classe ou racial (greves, protestos). Esses
eventos violentos são apontados como praticados por jovens pobres, moradores de áreas
dilapidadas e, são, em sua maioria, motivados por demandas de justiça praticada pelas
próprias mãos.
Por outro lado, se tem a violência praticada pelos de cima, que diz respeito,
efetivamente, às camadas abastadas e, ao próprio estado, quando age em benefício
próprio de seus gestores, como em casos de corrupção econômica e jurídica e, nesses
72
Consultar: Rubin (2010).
116
casos, abre margem aos processos de indignação e confrontamento social, conforme se
pode ver a seguir:
(...) O abismo cada vez maior entre ricos e pobres, o crescente
autocercamento das elites políticas, a distância cada vez maior entre as
instituições dominantes e a sociedade, tudo isso alimenta a hostilidade
e a desconfiança. Tais fatores convergem para minar a legitimidade da
ordem social e a da autoridade, que passou a simbolizar sua
irresponsabilidade e seu caráter nitidamente repressivo: a polícia. No
vácuo criado pela ausência de laços políticos (...) não é de espantar
que as relações com a polícia tenham se tornado não só belicosas e
que os incidentes com as forças da ordem sejam invariavelmente o
detonador de explosões de violência popular na cidade.
(WACQUANT, 2005, p. 34-35).
Uma outra contribuição a essa discussão está presente em Kahn (2005). Ao
analisar a questão da segurança pública, apresenta a tese de que na contemporaneidade a
mesma está cada vez mais associada não só à política pública, mas à política de
autodefesa que é geralmente comprada da iniciativa privada. Esse fato ocorre devido a
alguns fatores específicos, tais como: a ausência do estado, ou ineficiência das políticas
públicas de segurança; ao aumento dos índices criminais; ao crescente aumento da
sensação de medo e insegurança da população, assim como a emergente onda de descrença no poder do Estado de legislar equanimamente as demandas sociais por justiça.
Não obstante a discussão acima, Kahn (2005) é otimista quanto às novas
propostas de aplicação de medidas em segurança pública que têm sido ensaiadas aqui no
Brasil, tais como: os municípios responsabilizando-se pela suas circunscrições; o estado
tem implementando políticas de pluriagencialidade no trato da segurança pública, em
detrimento das políticas tipicamente repressivas e penais. Assim, a sociedade tem sido
incitada a participar da construção de novos paradigmas de segurança pública, via
conselhos, movimentos sociais, orçamentos participativos.
A discussão anterior traz uma visão que em muito se distancia da tese que ora
nos propomos sustentar, que é, a da crise radical do paradigma moderno da política
democrática e da capacidade/vontade das “práticas de Estado” em gerir de modo
isonômico as demandas sociais, ficando assim um lapso que tem sido preenchido por
ações “revoltosas” e contestatórias da “ordem” e, que representam em última instância o
espírito indomável e a vontade de poder presentes no humano, que dentre outras coisas
desacredita
na
possibilidade
de
verticalização
do
poder
ou
mesmo
de
negociação/representação paritária. Contudo, salientamos que essa é a tese aqui
117
sustentada; essa foi a invenção objetal que foi construída. Obviamente, como em
qualquer outro trabalho que se pensa científico, ela está antes de mais nada, posta à
refutação, à crítica, a outros olhares que, numa relação de eterno retorno, também será
um paroxismo, ou a explicação plausível a quem a defende.
Outrossim, entendemos ser imprescindível o diálogo com fontes destoantes da
nossa visão, inclusive para enriquecer e solidificar ou colocar em xeque nossas
concepções. Assim:
(...) Quanto mais os homens se entregam à sabedoria, mais se
distanciam da felicidade. Mais loucos que os loucos, eles esquecem
então que são apenas homens e querem ser vistos como deuses;
amontoam, a exemplo dos Titãs, ciências sobre ciências (...) e servemse delas como outras tantas máquinas para fazer guerra à natureza.
Portanto, é aproximando-se o quanto puderem da ignorância e da
loucura dos brutos, é jamais empreendendo algo que esteja acima de
sua condição e de sua natureza, que os homens verão diminuir
sensivelmente as misérias inumeráveis que os atormentam e os
oprimem (DESIDÉRIO, 2007, p. 53).
Portanto, não se tem nenhuma pretensão de ter/conter a “Verdade”. Dentre uma
gama infindável de explicações possíveis, trabalhamos com a dispersão do poder e, com
o consequente entendimento de que todo objeto é invenção, logo, o que é verdadeiro
nessa trajetória de invenção de uma tese é o desejo de ser ouvida/reconhecida.
De outra forma, gostaríamos de expor algumas visões que, a partir da obra
foucaultiana, concordando ou não com àquelas teses, também discutem as relações de
poder.
Assim, Dosse (2007) realiza uma discussão acerca da obra foucaultiana,
explicitando as influências e contribuições do mesmo para a análise do poder.
Primeiramente, o autor traz à tona a influência nietzscheana sobre a obra de Foucault,
mostrando como a genealogia é retomada por esse último autor ao analisar o carnaval
da história. Ainda destaca Dosse (2007) a aproximação teórica de Foucault a Althusser.
Contudo, a primazia é dada à problemática da relação entre desejo e confronto à lei,
discussão esta que nos remete imediatamente à influência nietzscheana no tocante à
vontade de poder.
Destaca ainda a contribuição foucaultiana à crítica à modernidade, quanto ao
primado da continuidade histórica, assim como, as críticas ao terror que o humanismo
trouxe e, assinala à discussão sobre o poder exercido pela produção científica.
118
Foucault permanece, pois, na perspectiva de uma crítica ácida à
modernidade ocidental, ao reino da razão a que opõe o carnaval da
história. A noção de poder, onipresente, dispersa, diluída, por toda
parte ressurgente, vai servir, nessa qualidade, de instrumento para
desconstruir as categorias da razão ocidental (DOSSE, 2005, p. 307).
Percebemos, então, que a contribuição foucaultiana é ímpar ao retomar as
discussões de Nietzsche quanto a sua descrença e indignação aos mitos fundadores da
modernidade, que propunham ordem e progresso. Ao contrário, o que se observa ao
longo do período de tempo aqui destacado são os constantes processos de
desconstrução, descontinuidade e dispersão do exercício do poder.
De outro modo, uma contribuição teórica muito perspicaz e bem construída é
encontrada na obra de Agamben (2004). Ao analisar o chamado estado de exceção, o
autor propõe a tese de que vivenciamos, desde meados do século XX, uma suspensão
parcial e às vezes total do ordenamento jurídico. Como exemplos dessa premissa,
podem-se tomar os casos da Alemanha nazista e dos EUA, Estados em que,
momentaneamente ou como regra, tentou-se/tenta-se a imobilização ou eliminação dos
seus adversários, constituindo formas de governo totalitárias. Ainda se pode tomar
como exemplo de estado de exceção o caso dos estados de sítio.
Em todos os casos apontados anteriormente, a característica central seria o fato
de que no estado de exceção o ilícito, como exercício violento e arbitrário do poder,
torna-se lícito e, portanto, necessário. Sendo assim, o poder do soberano dispensa a lei e
essa passa a ser vista como um instrumento frágil, manipulável, transitório, não mais
vista como princípio universal, mas como algo autorregulável, subordinado a situações
específicas.
É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o
estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só
pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se
uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal,
permanece em vigor (AGAMBEN, 2004, p. 49).
O “estado moderno”, para Agamben (2004), visa enquadrar na ordem o que é
por “natureza” des-ordenado. Daí, a conclusão óbvia é a tese da resistência. Contudo, o
autor explora muito pouco as estratégias de resistência. Entretanto, ousa-se propor como
resistência o fenômeno da multidão anteriormente discutido, como exemplo ímpar de
micropoderes exercidos por indivíduos não portadores do arbítrio legítimo da violência.
119
Partindo da discussão precedente que problematizava a questão dos chamados
estados totalitários modernos, Foucault (2004) discute estratégias teórico-práticas que
podem levar alguém a não cair em posturas fascistas. A partir de uma leitura da Ética, o
autor propõe questionar ações que nos distanciem do fascismo, tais como: libertação de
paranoias unitárias e totalizantes; dar vida à ação/pensamento e desejo; afastamento da
castração das teorias negativas; a militância deve ser vivenciada não com tristeza, mas
com prazer e alegria; negação da verdade universal e conceitual; desindividualização da
pessoa, pois que entendido como um sujeito de poder, múltiplo e descentrado; enfim,
não amar o poder.
Como vem sendo discutido, o primado da democracia moderna tal como o
sufrágio universal e toda a estruturação de uma consciência política e politicamente
crítica passa por uma re-leitura da condição do sujeito que, não obstante os processos de
assujeitamento construídos pela via do biopoder ou biopolítica, pode realizar uma
estética de si mesmo nos moldes pensados na tradição nietzscheana do culto ao
dionisíaco.
Portanto, Foucault (2004) nos acena com a possibilidade de tomarmos de modo
efetivo o curso de nossas escolhas e, assim, o voto deve ser pensado como ato
consciente e não só manipulável. Desse modo, os socialistas têm para o autor, uma
contribuição imprescindível a nos oferecer, qual seja, nos proporcionam pensar a
chamada realidade como algo a mais do que simples movimento de apreensão e
significação.
A postura política madura seria aquela que não se coloca a priori contra ou a
favor do que quer que seja, mas, que consegue construir uma teia interpretativa e prática
que agrega posturas diferentes, mas passíveis de serem complementares. A crítica não
seria então mero exercício verborrágico, porém a busca de uma reforma que vise o
confronto, à luta e à resistência à ordem posta. Com isso, o intelectual teria um papel
sine qua non, pois não estaria apenas para dizer o que é a verdade, contudo e acima de
tudo, para reconstruir-se na cátedra e na vida pessoal. “O jogo vale a pena na medida em
que não se sabe como vai terminar. Mudar algo no espírito das pessoas esse é o papel do
intelectual. Dar voz ao marginal e estranhar o normal como construção histórica”
(FOUCAULT, 2004, p. 51).
120
O que chama a atenção nessa problematização é a temática da desconstrução dos
princípios universalizantes de verdade, que estão presentes na vida política, institucional
e cotidiana. O autor provoca a reflexão acerca do estatuto do estado de natureza
irracional e inacabado do humano e das instituições que esse forja ao longo da sua
existência e que tanto o criador quanto a coisa criada estão em processo contínuo de
desconstrução e reconstrução. Sendo assim, é impossível nessa perspectiva, tomar nós e
as nossas ações como algo transcendente e imutável. Especialmente a política, como um
campo de forças e luta por poder, seria irremediavelmente perpassada por jogos de força
e de descontinuidades. Nesse sentido, não há a primazia a uma voz, como por exemplo,
o estado ou a ciência, mas há uma tolerância e incitação à polifonia, inclusive, ao
discurso do marginal, que se aproxima da voz tumultuada, disforme, violenta e potente
da multidão enfurecida.
É notória nessa discussão a interligação ética de uma consciência de si que
relacionalmente permeia o mundo da vida privada e da ação pública, ou seja, o
indivíduo não é visto aqui apenas como uma estrutura pragmática que,
sistematicamente, vivencia diferentes papéis 73, sendo que todos estão racionalmente
dispostos e organizados e o indivíduo os acessa de acordo com as cenas a serem
desempenhadas. Ao contrário, esse indivíduo dionisíaco é antes de tudo, uma
bricolagem de justaposições composta de desejos, frustrações, vontade de poder e,
sendo assim, age não obstante a sua fragmentação. Pois:
Com que vida encherei os poucos breves / Dias que me são dados?
Será minha / A minha vida ou dada / A outros ou as sombras? / À
sombra de nós mesmos quantas vezes / Inconscientes nos
sacrificamos, / E um destino cumprimos / Nem nosso nem alheio. //
Porém nosso destino é o que for nosso / Quem nos deu o acaso, ou,
alheio fado, / Anónimo a um anônimo,
Não arrasta a corrente (PESSOA, 2006, p.115).
Por isso, é excepcionalmente no acaso da multidão que vemos com maior força a
vontade de potência e a impotência do primado da lei/ordem propostos de cima para
baixo. Ora, não são os anônimos do “poder governamental” que arrastam a corrente da
vida cotidiana, nas lutas e na tentativa de ser um Ser. O que não tem nome, o que é
rotulado de balbúrdia, descalabro, selvageria, ou seja, a multidão é quem assume
73
Para uma melhor visualização dessa discussão consultar: Goffman (1982, 1974).
121
provisória, anonimamente e fugazmente o ideário da lei-ordem, mesmo que praticada
num espetáculo da desordem.
Laclau (2005) pode contribuir com essa discussão ao abordar a temática da
democracia e da representatividade, pois, como está sendo sustentado ao longo deste
trabalho, desconfia-se sobremaneira da possibilidade de que se possa ser governado ou
representado pela via indireta, ou seja, diferente daquela que, de acordo com Foucault,
remete ao próprio indivíduo o cuidado de si. Para Laclau (2005), a democracia ou
representa os interesses dos súditos ou representa os interesses do líder, não havendo a
possibilidade de um meio termo. Em Laclau (2005), há uma crítica visceral a toda e
qualquer forma de representatividade e, especialmente, há a denúncia de que toda
democracia é construída num jogo de acomodações que dá aos governados a falsa
impressão de serem representados, mas que, na íntegra, ou são manipulados via
populismo ou é o representante apenas um fantoche dos desejos de poder dos súditos.
Portanto, ou a liderança é exercida via coerção ou carisma, ou, o povo a exerce
pela via das demandas/resistências. Então, de novo, aparece aqui a questão da dualidade
de forças entre “práticas de Estado” que se pensam fortes e querem comandar e as
resistências de grupos que se opõem ao julgo. Uma questão dual como esta nos remete à
problematização entre duas formas clássicas de governo, a saber, a monarquia versus o
estado moderno e, entre ambas, a sempre presente tendência humana de vontade de
potência que não se permite subsumir à ordem, assim:
El poder estaba encarnado en el príncipe, y por lo tanto daba a la
sociedad um cuerpo. Y a causa de esto, um conocimiento latente e
efectivo de lo que uno significaba para el otro existía em el conjunto
social. Este modelo muestra el rasgo revolucionario y sin precedentes
de la democracia. El lugar del poder se convierte em um lugar vacio
(...). El ejercicio del poder está sujeito a procedimientos de
redistribuiciones periódicas (...). El fenómeno implica uma
institucionalización del conflicto(...). Em mi opinión, el punto es que
la democracia es institucionalizada y sostenida por la dissolución de
los indiadores de la certeza. Inaugura uma historia em la cual la gente
experimenta uma inderteminación fundamental em cuanto a la base
del poder, la ley y el conocimiento, y em cuanto a la base de lãs
relaciones entre yo y el otro, em todos os niveles da vida social
(LEFORT apud LACLAU, 2005, p. 207-208).
Apesar de Laclau citar Lefort e esse último anunciar que na modernidade o lugar
do poder está vazio, Laclau defende que é impossível não perceber os ocupantes do
122
poder, pois que eles existem e estão lá, ou, estão intentando chegar. Contudo, a grande
questão em Laclau é: sermos capazes de descobrir quais são os elementos simbólicos
que possibilitam numa dada sociedade capacitar os líderes a exercerem o poder e, ao
mesmo tempo, forjarem nos comandados o espírito de aceitação.
Portanto, preocupa a Laclau (2005) a temática dos direitos humanos, pois parece
que há uma dúvida e desconfiança do autor quanto a esse primado moderno, que pode
ser utilizado pelo governante como instrumento tipicamente persuasivo de poder, como
se pode perceber na citação que segue:
La defensa de los derechos humanos y de lãs libertades civiles pueden
convertirse em lãs demandas populares más apremiantes. Pero las
demandas populares también pueden cristalizar em configuraciones
totalmente diferentes, como nos muestra el análisis del totalitarismo
de Lefort (LACLAU, 2004, p. 216).
Considerando toda a discussão que foi realizada até agora, podemos sintetizá-la
ao especificar que o intento argumentativo ora apresentado tem sido no sentido de
levantar e sustentar a tese de que longe da pretensa firmeza e veracidade das estratégias
modernas de exercício do poder, na prática as suas tentativas de comandar, organizar e
efetivar o “bem comum”, pela via da gestão representativa, o que se deu na verdade, foi
à constituição de processos diferenciadores e excludentes de amplas camadas da
população que, por sua vez, geraram e, cada vez mais, geram convulsões sociais que
têm como escopo a crítica e a tentativa de desorganizar e desmontar as estruturas ditas
fundantes da ordem social. Portanto, têm-se como exemplos desse confrontamento,
desde grandes revoluções sociais, até resistências na vida privada. O que não quer dizer
que se partiu de uma visão binária que separa “práticas de Estado” e resistência do
povo. Ao contrário disso, estamos mapeando esse binarismo conceitual e tentativa de
prática construída no Ocidente, desde os gregos clássicos, e denunciando antes de mais
nada, a sua impossibilidade de ser, já que durante o tempo todo os conceitos de vontade
de potência e dispersão do poder dão o tônus da discussão, foi realizada ao mostrar que
o “humano demasiado humano” é a busca do poder-saber, logo do impossível
assujeitamento ao mundo dito exterior. Senão uma luta constante entre Eu-Gênio.
Para Renault (2005), a modernidade não conseguiu efetivamente resolver as
questões duais que transpassam instituições sociais fundantes para ela, como por
123
exemplo: no Estado, no Poder Judiciário e, mesmo nas relações, em instituições de base
como na família e na escola.
Renault (2005) explicita, ainda, a tese de que a modernidade e a
contemporaneidade são atravessadas pela crise da autoridade e essa problematização é
extremamente oportuna para que se entenda a sua tese:
(...) Os mais duradouros destes conflitos não são, na época
contemporânea de qualquer maneira, aqueles que estão inscritos no
plano propriamente político. Para além das grandes utopias do século
XIX, que por vezes acreditaram que dever tirar de tal conflito
intrínseco entre liberdade e poder a perspectiva necessária “morte do
estado”, os conflitos que opõem poder e liberdade concentram-se mais
nos espaços sociais como os, por exemplo, da família e da escola
(RENAULT, 2005, p. 46).
Apesar de enfatizar a relação desigual de poder na família e na escola, Renault
abre para os leitores uma perspectiva, através da qual e por meio dedutivo, se reflita
sobre os conflitos mais conjunturais dentro de uma sociedade dada, como por exemplo,
a nossa, na qual desde meados dos anos 1960, portanto, século XX, se tem assistido e ao
mesmo tempo, sido atores das lutas por transformação. Não é irrelevante o fato de que
nasce concomitantemente à tomada do poder pelo exército (no caso das ditaduras latinoamericanas e orientais), como forma de governo de exceção, o nascimento e emergência
de resistências, sejam elas politicamente organizadas, como foram os casos das
guerrilhas urbanas e rurais; seja no caso da guerra civil, disseminada em todo o Brasil
excepcionalmente a partir da década de 1980, do século XX, e o cada vez mais
crescente fenômeno da multidão, que desafia e subsume, mesmo que temporariamente,
o poder das “práticas de Estado” 74.
74
“Em outros tempos, dávamos graças a Deus por vivermos num país sem guerra. Hoje isso não é mais
possível. A violência nos grandes centros brasileiros, particularmente no interior de São Paulo, região de
Campinas e adjacências e sul de Minas Gerais ultrapassa em larga margem o nível em que se encontram
as nações mais conflagradas do Oriente Médio. Se somarmos todas as vítimas do terrorismo em Israel,
Palestina, Egito, Arábia Saudita, Irã e Iraque não chegaremos, sequer, à metade do número de vítimas
da violência criminosa em nosso país (...) Assaltos, seqüestros, assassinatos, guerras entre quadrilhas,
corrupção policial, morosidade e corrupção no Judiciário, crimes passionais e contra o patrimônio...
Estas coisas, que outrora freqüentavam as páginas policiais dos jornais, hoje estampam primeiras
páginas de toda a imprensa brasileira. Cabe o truísmo: trata-se da agudização do desnível, da
disparidade socioeconômica, da mais grave crise da história do Brasil, somada a um descaso e falta de
liderança que ultrapassa as raias da má-fé (...) Ao criar uma camada de brasileiros multibiliardários e
legar à maioria a mais dramática miséria de todos os tempos a que se soma uma propaganda maciça
124
São essas formas de mobilização que levam a pensar na fragilidade e
inoperância das “práticas de Estado” moderno e, de todo e qualquer ideário de ordem
social.
Além do contrato social e da suposta passividade às regras postas, a realidade
socialmente e constantemente construída/desconstruída nos aponta para um cenário de
fragmentação, dispersão e indeterminação do poder, no qual a única permanência seria o
querer poder transmutado nas ações de resistência.
Essa é uma discussão inacabada e instigante que pode provocar e mobilizar a
novas investidas teóricas, mas, por ora, basta.
Gostaríamos de fazer uma provocação que, com certeza, fala de modo
inequívoco do intrincado universo de sensações que nos motiva a sentir angústia,
curiosidade e paixão pelo objeto inventado/estudado.
Do direito do mais fraco.- Quando alguém se sujeita sob condições a
um outro mais poderoso, o caso de uma cidade sitiada, por exemplo, a
condição que opõe a isso é poder destruir a si mesmo, incendiar a
cidade, causando assim ao poderoso uma grande perda. Por isso
ocorre uma espécie de paridade, com base na qual se podem
estabelecer direitos. O inimigo enxerga vantagem na conservação
(NIETZSCHE, 2005, p.66).
Por fim, podemos concluir que todo processo de assujeitamento, mesmo pela via
da biopolítica, realizada em “práticas de Estado” ditas democráticas, tende em última
instância a configurar-se como processo de totalitarismo pois, que há imanente a elas o
desejo dos “representantes” em controlar a vontade de querer e de fazer dos seus
“representados”. Sendo assim, ainda parece mais acertada a metáfora da guerra, como
além de absolutamente descolada da realidade e enfiam-nos na situação gravíssima de guerra civil em
que nos encontramos. Estado [práticas de estado] Assassino ameaça praticar mais violência. No meio
desta loucura toda há ainda aqueles que pregam uma ampliação na repressão estatal, ou seja,
implantação da “Pena de Morte”, da “Prisão Perpétua”, “Colocar o Exército nas Ruas”, “Fuzilar
sumariamente criminosos”, etc. O desespero leva muitos a desejar que o Estado, responsável maior
pelo aumento da violência e do desespero da população, responsabilize-se ainda pela montagem de
uma “máquina de extermínio” ao final do processo produtivo. Fica assim: o Estado [as práticas de
estado] falha na formação do cidadão, falha a não criar para todos condições de trabalho e emprego,
falha a não permitir a todos oportunidades iguais, falha no atendimento médico, dentário, hospitalar e
educacional e, ao criar “monstros” deve incumbir-se de “exterminá-los” (CHAVES, 2002, s/i). (Grifos
nossos).
125
bem coloca Nietzsche, ou seja, nem “práticas de Estado”, nem multidão enfurecida num
jogo de representações de uma luta de cabo de guerra, mas, antes, numa força contínua,
fragmentada e rizomática que molda e desconstrói o que chamamos de homem,
sociedade, estado... Ou, “aquilo que não tem governo nem nunca terá o que não tem
juízo, não tem tamanho...” Apenas, como na esfinge grega: “decifra-me ou devoro-te”,
descobrimos que a resposta é o próprio homem na sua infância (aurora), maturidade
(meio dia) e velhice (pôr do sol, noite) leia-se, antes de tudo: a metáfora é constituída de
uma tríade e não de dúbios ou, de modo mais abrangente, cada fruto comido, cada
“verdade revelada” nos leva a outros desafios, ou, como queriam os gregos, à “luz
versus as sombras”, mas, felizmente, como nos diziam Nietzsche e Foucault, o eterno
retorno e a fuga da representação/apresentação nos faz escapar continuamente do dever
ser e nos aproxima do não SER. Nós, enquanto nosso próprio genius ou inimigo,
encontramos vantagem na conservação dos desafios, do não Sermos. Assim:
Minha práxis na guerra pode ser resumida em quatro sentenças:
primeiro: eu apenas ataco coisas que são vitoriosas. Segundo: eu
apenas ataco coisas contra as quais jamais encontraria aliados (...)
jamais eu dei um passo em público que não me comprometesse (...)
Terceiro: eu jamais ataco pessoas- eu apenas me sirvo da pessoa como
uma poderosa lente de aumento (...) Quarto: eu apenas ataco coisas
contra as quais todo tipo de diferença pessoal é excluído contra as
quais não existe qualquer segundo plano relativo a más intenções.
Pelo contrário, atacar é uma prova de bem-querer em mim e,
conforme a circunstância, de agradecimento (...) É própria de mim
uma sensibilidade completa e sinistra do instinto de limpeza, de modo
que eu percebo fisicamente - farejo - a proximidade ou – o que estou
dizendo?- as partes internas, as “entranhas” de todas as almas...
(NIETZSCHE, 2006, p. 38-39). (Grifos nossos).
Como se pôde notar, objetivamos deixar clara a concepção sobre o que seja a
noção do eu e do outro, ou, nós e o outro. De um modo muito explícito, no próximo
capítulo, será visto que nós atacamos/linchamos/destruímos o que nos ameaça como
indivíduo/corpo/sexualidade e como indivíduo/propriedade/território. Assim, a guerra
não é uma exceção, mas a arte de nos manter vivos. Guerra não é destruição
simplesmente, mas luta pela manutenção da vida.
126
3. CAPÍTULO - “...O QUE NÃO TEM CERTEZA NEM NUNCA
TERÁ...: QUE NÃO TEM TAMANHO...”
Figura 5 - Linchamento Omaha Nebrasca
4.1.
UM POVO “ORDEIRO” ENTRA EM GUERRA: O LINCHAMENTO DE
CHAPECÓ
“Chapecó é uma típica cidade madeireira do oeste de Santa Catarina que faz
fronteira com o Paraná, o Rio Grande do Sul e a Argentina. Tem 5 mil habitantes, um
grande movimento comercial e sua população cem por cento católica além de
<pacífica e ordeira> como me garantiu o Juiz de Direito local Dr. José Pedro Mendes
de Almeida logo depois que ali desembarquei do Beechcraft-Bonnanza da empresa
<Taxi Aéreo Guarani> de Porto Alegre.
Até o dia 17 de outubro último (1950), entretanto pouco se conhecia dessa
distante localidade brasileira. Mas nessa data o nome de Chapecó entrou para a
história em virtude dos bárbaros acontecimentos que culminaram com a morte de
127
quatro rapazes que estavam presos como acusados do crime de terem incendiado a
igreja da cidade, fato este levado a efeito por uma multidão de fanáticos com a
cumplicidade do próprio delegado responsável pela ordem, Sr. Artur Argeu Lajus, exbalseiro no Rio Uruguai, que já se encontra preso depois de ficar apurado que ele não
só facilitou a realização do linchamento como também mandou que homens de sua
confiança
orientassem
o
movimento
e
executassem
o
crime.
Embora tenha tido uma ampla repercussão em toda parte, a história é curta e pode ser
resumida assim - há algum tempo estava vivendo na cidade de Chapecó um rapaz
chamado Orlando Lima, da cidade de Iraí, no Rio Grande do Sul. Moço ainda,
trabalhador e simpático, fez boas relações de amizade com todos e finalmente
conseguiu tornar-se ecônomo do clube local. Mas na última noite de carnaval deste ano
o clube incendiou-se - ou foi incendiado - e Orlando, apesar disso continuou em
Chapecó, ultimamente sem exercer nenhuma atividade. Foi instaurado um inquérito,
logo arquivado a pedido do promotor, apurando-se que o incêndio fora um
acontecimento puramente acidental. No dia primeiro de outubro apareceram em
Chapecó dois rapazes vindo do Rio Grande do Sul: Romano Ruani e Ivo de Oliveira
Paim. A presença de ambos não despertou maiores atenções e tanto Romano como Ivo,
ligaram-se a Orlando, fazendo com que todos presumissem que se tratava de uma velha
amizade. Orlando e Ivo passaram a morar no mesmo quarto de mesmo hotel. Dois dias
depois houve um incêndio na Serraria Baldisseira, desaparecendo nessa ocasião uma
faca e um revólver completamente novo. Seus proprietários queixaram-se á polícia e as
autoridades passaram a desconfiar dos recém chegados, porque Romano estivera lá
nesse dia. Na noite de 4 para 5, a população foi despertada pelo badalar dos sinos da
igreja e por vários disparos: eram o vigário e o povo dando o sinal de alarma: a igreja
acabava de ser incendiada. O delegado Lajus procurou Orlando e pediu-lhe
informações sobre Ivo e Romano. -"São rapazes direitos e Ruani foi meu colega de
colégio" - teria dito Orlando ao delegado, acrescentando: -<Se o senhor está
desconfiado porque não revista o quarto deles? Talvez encontre alguma pista>.
O delegado apreciou o conselho: revistou o quarto e as maletas de Ivo e
Romano, encontrando ali a faca e o revólver roubados da Serraria Baldisseira na noite
do seu incêndio. Imediatamente os dois foram presos. Começaram nessa ocasião as
mais primitivas torturas praticadas pelo delegado e seus auxiliares. À noite eles eram
128
conduzidos para matas das vizinhanças ficando ao sabor das violências de uma
capangada analfabeta e criminosa. Ficaram sem unhas e tiveram seus corpos
queimados a ferro quente. Por fim confessaram não só que tinham de fato incendiado a
Serraria e a Igreja, com a intenção de roubar casas comerciais enquanto o povo
estivesse distraído observando as chamas, como também acusaram Orlando Lima como
chefe do plano para uma série de incêndios com o mesmo objetivo. Adiantaram que
Orlando os fora buscar em Iraí, Rio Grande do Sul, e lhes pediu para trazer também
gasolina pois se comprassem em Chapecó seriam facilmente descobertos. Ivo por sua
vez acusou o irmão de Orlando, Armando, como o segundo chefe do plano. Diante
dessas acusações o delegado manteve Orlando sob vigilância vindo a saber que ele
tentava conseguir um <habeas corpus> para Ivo e Ruani. Prendeu-o imediatamente e
fez o possível para arrancar sua confissão. Submetido às mesmas torturas por que
passaram Ivo e Ruani, Orlando porém nada confessou, limitando-se a falar sobre o
incêndio do clube local dizendo que, após o baile, vira uma chama e para apagá-la
jogara um balde de água sobre a mesma. Adiantou que o fizera com a melhor das
intenções, mas que, infelizmente, horas depois viu o clube desaparecer totalmente, o
que lhe causou prejuízos. O irmão de Orlando, Armando, ao saber que aquele estava
preso tomou um ônibus em Iraí e se dirigiu para Chapecó. Ao desembarcar, foi
igualmente trancafiado porque também fora acusado por Romano e Ivo Paim. Como
medida de segurança o delegado pediu a prisão preventiva dos quatro. Entrego agora a
palavra ao Juiz Dr. José Pedro: - No dia 16 o delegado Lajus avisou-me que o povo
estava indignado com os presos mesmo porque nessa altura dos acontecimentos Ivo e
Romano retiraram as acusações que haviam feito contra os irmãos Lima. Disse-me o
Senhor Lajus que a população exigia castigo e que certos grupos estavam dispostos a
fazer justiça com as próprias mãos. Diante disso, resolvemos transportar os presos
para Joaçaba. Comuniquei-me com a Secretaria de Segurança de Florianópolis e o
Secretário prometeu-me transportá-los imediatamente pela linha regular de ônibus. No
mesmo dia fui visitado pelo Dr. Roberto Machado dizendo-me ele que tinha procuração
para defender Orlando e Armando. Estava temeroso em virtude de certos rumores que
corriam na cidade e fazia questão que Ruani e Ivo ficassem aqui para maior
esclarecimento da defesa que iria fazer de seus constituintes. Desejava ouvi-los uma vez
que os presos ficariam como era de seu desejo. Entretanto, essa história me pareceu
129
mal contada, porque o defensor autorizado dos irmãos Lima não era o Dr. Roberto
Gonsalves e sim o Dr. Wilson Weber, advogado na cidade de Erechim, como prova a
procuração que ilustra essa reportagem. Logo que cheguei a Erechim entrevistei o Dr.
Webber. Tomando um chimarrão ele começou sua palestra: - no sábado 14 de outubro
às 11 horas da manhã bateram em minha porta: eram Luis Lima, sua esposa e um
companheiro. Disse-me Luis que viera a Erechim à procura de um advogado para
patrocinar uma questão na qual estavam envolvidos dois dos seus irmãos - Orlando e
Armando. Perguntei-lhe porque estavam presos e ele me respondeu: <Por causa do
incêndio da igreja de Chapecó>. Alegou que necessitava de um advogado pois soubera
das violências praticadas pela polícia contra seus irmãos. À noite, combinamos que
iríamos juntos para Chapecó no domingo 15 o que fizemos em auto de praça.
Chegamos às 20 horas. Procurei sentir o ambiente e no dia seguinte, segunda-feira, fui
falar com o Juiz. Disse o Dr. José Pedro que o processo estava ainda na fase policial e
que tinha recebido o inquérito com o pedido de prisão preventiva formulado pelo
delegado Lajus. Disse-me ainda que deferira o pedido decretando logo a prisão
preventiva dos quatro rapazes. Luis Lima perguntou então ao Juiz se havia despachado
o seu requerimento no qual solicitava um exame de lesões corporais na pessoa de seus
irmãos. <Sim> - respondeu o Juiz - <e os peritos não foram nomeados porque eu
estava preocupado com as apurações eleitorais>. Deixamos o juiz e procuramos o
delegado. Recebeu-nos bem e nos autorizou a visitar na cadeia os irmãos Lima.
Orlando e Armando encontravam-se apreensivos, barbados e feridos - sinais de
espancamentos recentíssimos. Avisei-lhes que mais tarde mandaria a procuração para
que eles assinassem. Solicitei ao juiz autorização para ler os autos. Vi então que
Armando nada confessara e que Orlando apenas fizera referências ao incêndio do
clube local dizendo que depois do baile carnavalesco foi desligar a chave geral para
apagar as luzes e viu um clarão. Jogou um copo d’água e saiu sem ver mais nada.
Momentos depois o clube era um montão de ruínas. Pedi ao juiz para enviar os presos
para Joaçaba. <Vou mandá-los e o Luis pode ir com eles. Não há impedimento> respondeu-me. Na terça-feira estávamos em frente ao hotel quando chegou o delegado.
Convidei-o a sentar-se. Aceitou o convite e confessou-me: - Olha doutor eu conheço
Chapecó, essa gente, esses colonos, e sei que isso aqui não é brincadeira. Sei como
andam as coisas por aí em relação aos presos: estão graves. Ainda ontem eu fui visitar
130
a minha mãe que está doente e ao atravessar uma picada encontrei umas quarenta
pessoas armadas. Até fiquei com medo. Perguntei-lhes o que havia: Eles queriam saber
a respeito dos presos. Me contaram que estavam certos de que não iria haver justiça e
que os incendiários da igreja seriam soltos. Estavam dispostos a fazer justiça eles
mesmos. Mandei-os embora. Mas tudo pode acontecer... - Eis mais um motivo para que
o senhor mande os presos para Joaçaba - disse o Dr. Wilson para o delegado,
continuando - O Juiz prometeu enviá-los hoje e até agora nada: são 11 horas. Ponha
todos os quatro num ônibus Sr. Lajus! O delegado respondeu ao defensor dos irmãos
Lima que isso seria perigoso, pois o ônibus poderia ser atacado na estrada. Quando
Luis Lima falou-lhe sobre violências, Lajus respondeu que apenas queria esclarecer a
verdade, uma palavra apenas, pois sabia que o povo estava revoltado. Na mesma tarde
de terça-feira 17 de outubro voltou para Erechim o advogado Weber, para saber no
outro dia da matança praticada por um grupo de revoltados contra os quatro presos,
dois inocentes, dois culpados. Mais tarde soube-se que Ivo era um conhecido ladrão
que cumpria pena na Penitenciária de Porto Alegre e que estava com livramento
condicional. Romano era criminoso de morte e fora absolvido pelo Juiz de Iraí.
À 1 hora da manhã do dia 18 de outubro foi consumada a mais bárbara de
todas as chacinas já cometida no Brasil. Não havia segurança na cadeia, apenas um
cabo e três soldados do destacamento local. Durante o dia, os auxiliares de Lajus, civis
residentes na cidade. Durante a noite, apenas dois homens. Pareceu que tudo estava
planejado, Orlando estava preso no cubículo número 1, Ivo e Romano no 5.
Um bando armado composto por umas 50 pessoas (e não 200 ou 80 como se
disse a princípio) invadiu a velha e insegura cadeia de tábuas, fazendo antes um cerco
para evitar a aproximação de pessoas alheias ao caso. Arrombaram todos os cubículos
como despistamento, (alguns presos aproveitaram a oportunidade e fugiram. Mas
ficaram três - testemunhas oculares do acontecimento, graças os quais os maiores
responsáveis já estão presos) e, Armando, Orlando, Ivo e Romano, foram mortos a
tiros de revólver. Em seguida, arrastaram os quatro para o pátio interno da cadeia,
reiniciando um forte tiroteio sobre os corpos, despejaram gasolina sobre os mesmos e
riscaram um fósforo. Antes disso, furiosos espancaram as vítimas e com facões
abriram pernas e braços dos quatro rapazes. Em caminhões, retiraram-se do local,
deixando os corpos ardendo. O senhor Otávio Régis Junior, funcionário do Serviço de
131
Colonização em Chapecó que tem sua residência junto à cadeia ouviu todo o tiroteio,
mas ninguém ousou se aproximar.
O próprio Juiz contou o seguinte: - Eu estava dormindo quando dois soldados
do destacamento vieram avisar-me de que a cadeia estava cercada. Era 1 hora da
madrugada. Logo em seguida ouvi um tiroteio. Disse aos soldados que tivessem
cuidado, pois não era conveniente que eles ou eu fôssemos até lá. Voltei a dormir
quando chegaram o cabo e os mesmos soldados contando-me que um grande grupo de
pessoas havia morto a tiros os presos Ivo, Romano, Orlando e Armando.
No dia seguinte os médicos Darcy de Camargo e Chaim Welczer procederam
um exame nos cadáveres e apesar da deformação que todos apresentavam puderam
constatar alguma coisa. Orlando recebeu 8 tiros. Ivo mais de 12. Armando estava com
cortes de facão na coxa esquerda e o corpo todo furado de balas, o mesmo se
verificando com Romano. Os criminosos utilizaram-se de revólveres 32 e 38.
Com a chegada do Capitão José Carlos Veloso, comandante da Cia. Isolada da
Polícia Militar de Santa Catarina em Joaçaba (grande sujeito, enérgico e honesto)
para presidir o inquérito, foi afastado o delegado Lajus. Efetuadas várias prisões
começaram os depoimentos. No dia em que estive lá, o Capitão Veloso confessou-me:
<Todos os culpados serão punidos. É incrível, mas o próprio Lajus foi o maior deles>.
O que se deu foi um barbarismo. Essa gente reuniu-se e fez aquilo. E assim a
ventilada e simples cidade de Chapecó entrou para a história” (O LINCHAMENTO...
2009).
132
4.2.
LINCHAMENTO EM 17 ATOS: ESPETÁCULO DE SUPLÍCIO E
CONIVÊNCIA 75
Como podemos observar no Linchamento de Chapecó, há um certo “roteiro
teatral” que estabelece a fatalidade das mil mortes (a tragédia) 76. Vemos que, enquanto
modelo típico ideal, a tragédia grega é revisitada nos atos de linchamento, pois esses
envolvem um misto de culto ao sagrado e relação com o profano. A clássica tragédia
grega, inspirada nas festas primaveris do Deus Baco, misturava os rituais de uma
multidão em transe espiritual e/ou drogadício numa crescente de três atos que previam,
canto, dança e destruição de corpos – tudo isso embalado numa busca frenética de
punir/expurgar/purificar por meio da dramatização e da busca pela sensibilização da
multidão para a compaixão e o temor, desferindo o sofrimento contra aqueles que
orgulhosamente se rebelaram contra o destino. Ora, o que se vê aqui senão todos os
ingredientes dos atos de violência linchadora, a saber: a turba, o erro, o “bode
expiatório”; no final, a desagregação, o silêncio, a proibição-esquecimento? Em relação
ao ato praticado, mas que por ser ritual e sagrado passível de redenção! Contudo, ainda
é mister destacar o papel ímpar das mulheres [bacantes] na tragédia clássica e nos atos
de linchamento atuais, pois em ambos, elas são responsáveis pela consumação do ato
75
Nada mais chocante e atual do que a descrição do suplício em Foucault (1987), ao descrever o corpo
dos condenados. O interessante é que entre àquela narrativa (1757, logo, no século XVIII) e a narrativa
de Chapecó (1950, no século XX) houve um ínterim de dois séculos de tentativa de “racionalização e
civilização da vida moderna”. Seria cômico se não fosse trágico ver tanta coincidência entre os fatos.
Desse modo, vejamos a maestria com que Nietzsche nos brinda ao desconstruir o ideário da ordem:” a
segunda extemporânea (1874) traz à luz o aspecto perigoso, que corrói e envenena a vida no modo
através do qual operamos a ciência: a vida enferma por causa dessas roldanas e mecanismos
desumanizados, por causa da <impessoalidade> do trabalhador, por causa da falsa economia da
<divisão do trabalho>. A finalidade se perde, a cultura – o meio, a operação moderna da ciência se
barbariza... Nesse ensaio o <sentido histórico>, pelo o qual esse século se orgulha, foi reconhecido pela
primeira vez como uma doença, como um sinal típico de ocaso... Na terceira e quarta extemporâneas
são erigidas duas imagens do mais duro egoísmo, da mais dura auto disciplina em oposição a isso, na
condição de sinal para um conceito mais alto de cultura, para a restauração do conceito <cultura>; essas
imagens são tipos extemporâneos, cheios de desprezo soberano contra tudo que em volta deles se
chame império, formação, cristianismo [...]” (2006, p. 89-90).
76
Ver: Nietzsche (2006).
133
violento, seja quando disseminam os rumores ou quando “devoram” ou, ainda, instigam
os homens a “pecar” 77.
O Linchamento de Chapecó foi “encenado” a partir dos seguintes atos que
retomam a construção/reprodução da “típica e útil” imagem do “bandido”: 1) situa o
lugar: fronteiriço; pequeno; pacato; ordeiro, além de católico, a cidade onde o
mesmo ocorreu; 2) as personagens: homens estrangeiros, desempregados e
solteiros (orgulhosos, inconformados com o seu destino, pois que invejosos e
sediciosos em tomar àquilo que é de outrem); 3) os crimes cometidos: contra a
propriedade privada e fomentados a partir do ateamento de fogo e roubo; 4) os
lugares vitimados: o clube (lugar do lúdico-profano), a igreja (sagrado) e a serraria
(trabalho); 5) inquérito: pela prisão e tortura que levaram dois dos acusados a
assumirem a autoria dos crimes e, entregarem o terceiro e quarto envolvidos; 6) a
prisão dos chefes: os irmãos Lima e seu passado criminoso, a ficha policial
confirmando a trajetória infracional; 7) os torturadores (polícia): capangada
analfabeta e criminosa; 8) os linchadores: uma multidão fanática e disposta a fazer
justiça com as próprias mãos, pois que descrentes da punição legal; 9) os sinais da
tragédia: os murmurinhos pelas ruas; as pessoas se reunindo nas matas e, o
delegado preocupado e, informando ao advogado das vítimas; 10) a falta de
segurança: apenas três policiais na cadeia, assim a multidão a cerca e evita
qualquer possibilidade de intervenção, além do que, liberam todos os detidos e
rendem os policiais; 11) o
delegado Lajus: dizendo que ouviu os tiros mas,
aconselhou aos demais policiais que não fossem à cadeia pois não seria conveniente
e, depois voltou a dormir; 12) o ritual do linchamento: mortes a tiro de revólver
ainda dentro da cadeia, os corpos arrastados para fora, onde deram mais tiros,
esfaquearam-repartindo pernas e braços e, ao final jogaram gasolina e atearam
fogo; 13) a dispersão: num caminhão; 14) a perícia: médicos constatam perfuração
a tiros, facão e carbonização de corpos, além é claro do calibre das armas usadas,
ou seja, revólveres 32 e 38; 15) o discurso da polícia: todos os culpados serão
punidos, contudo, o texto jornalístico diz que o maior culpado foi o delegado Lajus,
que facilitou o linchamento; 16) a ventilada e pacífica Chapecó volta a sua calma
77
Ver: Euripedes (2002).
134
habitual! 17) no final, o delegado organizou um abaixo-assinado junto à população
local, que pedia a soltura dos acusados de envolvimento (leia-se ele próprio) e
argumentou dizendo: “o que deu-se foi uma barbárie, o povo reuniu-se e fez
aquilo!” FIM DE ESPETÁCULO: APLAUSOS!!!
A tragédia corre o seu curso normal: o estranho; o desviante; o “bode expiatório”
possibilitou com a sua morte a retomada da paz, os deuses foram aplacados em sua fúria
e, sobre aquele evento bacante nada melhor do que o esquecimento. A sociedade evitou
a escalada da violência!
4.2.1.
OS ESTUDOS SOBRE LINCHAMENTO
Neste capítulo, será realizada uma revisão bibliográfica acerca da temática do
linchamento, para que sejam mapeados, num segundo momento, os estudos que no
exterior e, no Brasil, têm sido desenvolvidos. A intenção é a de proporcionarmos ao
leitor uma visão geral das pesquisas, contudo, a segunda parte desse capítulo destina-se
a apresentar dados sobre linchamentos na Paraíba, entre os anos de 2001 e 2010.
Girard (1990), em A violência e o sagrado, aponta para a tese central de que a
violência é uma marca indelével do homem e, de outro modo, ele constituiu o sacrifício
como forma de amenizar essa “natureza” violenta.
A violência, por sua vez, nasce do desejo, ou seja, o desejo nos impulsiona a
“tomar” o objeto ideal e, ao mesmo tempo, nos coloca em contato/confronto com o
outro, que é um “empecilho”.
A violência terá maior vivência sacrificial em sociedades ditas primitivas, pois
que desprovidas das regras “racionais” do direito. Em sociedades “civilizadas”, a forma
mais comum de violência é praticada por, em nome de e, pelas “práticas de Estado”, via
sistema judiciário e demais dispositivos de segurança. Assim, é no combate à violência
que ela é, continuamente, alimentada 78, como, por exemplo, as estratégias belicosas que
têm dado o tônus das “práticas de Estado”s modernos, desde a sua invenção, passando
78
Ver: Brutalidade... (2010).
135
pela contemporaneidade da política norteamericana de “guerra preventiva” para
combater Estados e nações “violentas e anti-democráticas” 79.
De outro modo, Girard (1990) aponta na religião a matriz do princípio da
violência. Numa perspectiva próxima, contudo, não explícita a Maquiavel, mostra que
entre política e religião há uma ligação visceral, entretanto, não divina, mas, antes de
tudo, humana e mesquinha ao extremo. Política e “práticas de Estado” nasceriam da
necessidade catártica de controle, assim, o poder centralizado seria sempre negado em
resistências violentas, direcionadas àqueles que o exercem ou, violenta, mas,
mimetizada na figura do “bode expiatório”.
A ação social violenta, motivada no seio religioso, não tem nada de passiva e
ordeira; é antes, uma arte de forjar guerreiros, “soldados construtores do reino de Deus”
na terra. Para tanto, vejam-se os exemplos das cruzadas cristãs; dos homens bomba
mulçumanos e, mesmo, das recentes lutas dos budistas, ou seja, as já clássicas “guerras
santas”.
Portanto, é no seio religioso que nasce a figura da vítima do sacrifício – alguém
que se torna sagrado ao ser morto, pois a morte purifica-o e purifica a sociedade, ao
apaziguar a ira dos deuses. Desse modo, o crime de morte terá uma ambivalência
valorativa, ou seja, transforma a vítima do sacrifício em criatura sagrada e, assim, torna
inimputável o ato de matar.
Um dado interessante é a forma comparativa com que a ação violenta humana e
animal é assemelhada na discussão girardiana. Para ele, ela teria a mesma dimensão de
fúria e “irracionalidade” ao atingir o agente detonador de tal desequilíbrio, mas na
ausência ou impossibilidade de tê-lo nas mãos, a fúria buscará qualquer outro alvo que
tenha proximidade com ele. No caso dos linchamentos, temos muitas vezes a
depredação da casa ou do prédio público, ou mais, a caça aos parentes do agente do
ódio 80.
79
Como por exemplo, as guerras do Golfo Pérsico; Afeganistão; Iraque, dentre outras. Ver: Da Guerra...
(2010).
80
Como, por exemplo: “Populares destroem casa onde mora casal acusado de praticar chacina. A casa
onde mora o casal acusado de cometer a chacina em que morreram cinco pessoas de uma só família além de dois gêmeos no quarto mês de gestação - nesta quinta-feira (9), em João Pessoa, foi
parcialmente destruída por populares revoltados, por volta das 16h30m desta sexta-feira (10), no Bairro
do Rangel. A destruição, segundo apurou o Portal Correio, começou com dois homens desconhecidos,
de aproximadamente 35 anos, que chegaram ao local numa moto. Imediatamente após os dois homens
136
(...) Todas as qualidades que tornam a violência terrificante (...) não
existem sem contrapartida: elas são inseparáveis de sua estranha
tendência para arremessar-se sobre vítimas substitutas, o que permite
ludibriar esta inimiga e lançar-lhe, no momento oportuno, a presa
derrisória que irá satisfazê-la. Os contos de fada que mostram o lobo,
o ogro ou o leão engolindo gulosamente uma grande pedra no lugar da
criança que cobiçam, talvez possuam um caráter sacrificial (GIRARD,
1990, p. 14).
Nesse sentido, o sacrifício alivia a tensão do coletivo que foi ameaçado. O
sacrifício é uma válvula de escape da sociedade para evitar que a violência transborde.
Ele visa canalizar a violência, apaziguando a fúria coletiva. Para tanto, cada sociedade
seleciona as suas vítimas potenciais:
(...) Encontramos em primeiro lugar os indivíduos que apresentam um
vínculo muito frágil ou nulo com a sociedade: os prisioneiros de
guerra, os escravos, pharmakós. Na maioria das sociedades primitivas,
as crianças e os adolescentes ainda não iniciados também não
pertencem à comunidade seus direitos e deveres são praticamente
inexistentes. Algumas vezes é o estatuto de estrangeiro ou marginal,
outras a idade ou a condição servil que impedem às futuras vítimas a
plena integração na comunidade (GIRARD, 1990, p. 24).
Essas vítimas não suscitam nos “iguais” (os seus amigos, parentes) a
necessidade de vingança. São por “natureza” sacrificáveis e dispensáveis. De outro
modo, o autor destaca que em sociedades modernas o sacrifício foi abolido, o que causa
estranheza, pois vê-se no ato de linchamento uma ritualística que, embora tida como
pagã (pré-cristã), (cf. GIRARD, 1990) também traz como fim último a necessidade de
apaziguar, senão a fúria de um deus, mas a da própria sociedade ofendida. E assim, ele
acena como ato de purificação/reparação e, higienização, livrando o rebanho da “ovelha
desgarrada e patológica”.
Por outro lado Girard (1990, p. 28), defende que:
(...) É o sistema judiciário que afasta a ameaça da vingança. Ele não a
suprime, mas limita-a efetivamente a uma represália única, cujo
exercício é confiado a uma autoridade soberana e especializada em
darem início à destruição da casa, de padrões muito modestos, moradores do bairro revoltados com o
assassinato de várias pessoas aderiram à destruição da casa de Edileuza Oliveira dos Santos, de 26 anos,
e Carlos José dos Santos, de 25 anos, os dois acusados de terem cometido o crime. A chacina aconteceu
na madrugada de quinta-feira: quatro membros da mesma família, três crianças e um homem, foram
assassinados a golpes de facão e faca no bairro do Rangel, Capital” (POPULARES..., 2010).
137
seu domínio. As decisões da autoridade judiciária afirmam-se como a
última palavra da vingança.
As discussões acerca dos linchamentos mostram que é justamente a partir da
fragilidade do exercício dessa autoridade que se fiam os linchadores e vingam-se por si
mesmos, e imediatamente. Sendo assim, aquilo que o autor denomina de vingança
pessoal, como no sacrifício em sociedades primitivas, diferenciando-o da vingança
pública, encontrada em sociedades civilizadas, se assemelha a uma espécie de “mimese
moderna”, já que ao travestir-se em linchamento no qual sem ser um sacrifício stricto
sensu, que é realizado em público e pelo público, ele demonstra a rejeição/descrença no
sistema judiciário. Contudo, a grande semelhança entre o sacrifício e o linchamento é
que a vítima não suscita vingança. Em ambos os casos, ela é parte de uma estrutura
vitimária “normal” para o consenso da sociedade dada.
Girard (1990) discute a tese de que a ausência de um sistema judiciário leva aos
atos de sacrifício e esse visa, portanto, a partir de uma visão religiosa do mundo, evitar a
escalada da violência, das vinganças pessoais. Nesse sentido, o autor critica o ideário
que pensa que as sociedades desenvolveram uma trajetória metodológica, que as ajuda a
controlar a escalada da violência, a saber: em sociedades primitivas, encontramos a
função preventiva realizada pela religião; em sociedades intermediárias, teríamos a
regulação e entraves às vinganças pessoais, por meio dos duelos e; em sociedades
civilizadas, constituímos o sistema judiciário. Ora, essa é uma visão simplista e
evolucionista demais! Nem Girard (1990) e nem a autora deste trabalho concordam com
ela, pois no caso dos linchamentos, entende-se que eles ocorrem em detrimento das lei e
do sistema judiciário, logo, não basta inventá-los e impô-los. Há um lapso entre essas
duas fases que permanece ao longo da história das sociedades e, que permitem a elas
burlar essa “autoridade”.
Religião, violência e vingança, portanto, caminham juntas. Para Girard (1990),
mesmo quando anunciada a morte de Deus, é ele na teologia sacrificial que estará
fomentando a “racionalidade curativa” do sistema judiciário moderno. Sendo assim,
podemos supor que o linchamento é “admitido” por esse “racional” paradigma, o
moderno, assim como o sacrifício, tendo em vista evitar um mal maior, ou seja, a
escalada da violência, pois se a turba quer vingar-se de um agressor é melhor “permitir”
do que supô-la em barricadas contra o “Estado”. Afinal, o que é perder uma vida
138
“impura” perto da ameaça de “contágio” que ela pode trazer ao organismo social?
Assim, Girard (1990) mostra que mesmo nós “modernos” continuamos a organizar a
realidade social a partir de uma assepsia teológica e moral.
O sagrado é tudo o que domina o homem, e com tanta mais certeza
quanto mais o homem considere-se capaz de dominá-lo (...) é a
violência que constitui o verdadeiro coração e a alma secreta do
sagrado. Ainda não sabemos como os homens conseguem colocar a
sua própria violência para fora deles mesmos. No entanto, uma vez
que isto acontece, uma vez que o sagrado tenha se tornado esta
substância misteriosa que vagueia ao redor deles, investindo-os de
fora sem se identificar verdadeiramente com eles próprios,
atormentando-os e brutalizando-os, um pouco como as epidemias ou
as catástrofes naturais (GIRARD, 1990, p. 54-46).
Desse modo, se quisermos ficar “saudáveis”, devemos evitar o contato, ou,
eliminar a vida dos “agentes infectados”, seja um doente bio ou um doente psicossocial;
micróbio ou perversão, eis o terror do homem “são e pacífico”. Nesse sentido, a
sexualidade seria o maior gérmen contagioso e fator de risco à vida humana, pois:
(...) A estreita relação entre sexualidade e violência, herança comum
de todas as religiões, apóia-se em um conjunto bastante
impressionante de convergências. A sexualidade alia-se
frequentemente à violência, seja em suas manifestações imediatas rapto, violação, defloração, sadismo - seja em suas mais longíquas
conseqüências. Ela causa diversas doenças, reais e imaginárias;
conduz às sangrentas dores do partos (...) até no interior do próprio
quadro ritual, quando todas as prescrições matrimoniais e as outras
proibições são respeitadas, a sexualidade é acompanhada de violência;
quando escapa deste quadro- nos amores ilegítimos, no adultério, no
incesto (...) a sexualidade provoca inúmeras desavenças, ciúmes,
rancores e lutas (...) Recusando admitir a associação, no entanto, tão
pouco problemática, que há milênios os homens sempre reconheceram
entre a sexualidade e a violência, os modernos tentam provar sua
“largueza de espírito”; esta é uma fonte de desconhecimento que
deveria ser levada em conta (GIRARD, 1990. p. 50-51).
Como será visto em estudos sobre linchamentos, são exatamente os crimes
contra a pessoa e, dentre eles, os sexuais e os crimes contra a propriedade, que levam
com maior recorrência, ao linchamento. Logo, essas são agressões diretamente voltadas
ao Eu-Posse, que tornam o ato uma violação direta ao sagrado, ao meu corpo, à minha
propriedade, à minha individualidade e ao meu mundo.
139
Sublimação, canalização, autocontrole, eis os antídotos propostos pelos
modernos para evitar ou curar as “perversões” sexuais e as sociais. Mas, caso isso não
seja suficiente, então que se lave o sangue da vítima, frio e coagulado, com o sangue do
algoz quente e fluído, como apresentado na citação que se segue e que relata um dos
diálogos da tragédia de Eurípedes, Íon, em que a rainha Creusa explica ao seu servo
como o sangue da Górgona pode matar ou curar, dependendo do uso que se dê a ele.
Nada mais diferente do que estas duas gotas de sangue, e no entanto,
nada mais semelhante. Assim, torna-se fácil e talvez tentador
confundir e misturar os dois sangues. Quando esta mistura ocorre,
apaga-se qualquer distinção entre o puro e o impuro. Não há mais
diferença entre a boa e a má violência. De fato, enquanto o puro e o
impuro permanecem distintos, pode-se limpar mesmo as maiores
máculas (GIRARD, 1990, p. 54).
Nos linchamentos, a morte do agressor é constituída de várias fases: bater,
depredar, enforcar, queimar... Matar mil vezes! Matar deixando a vida esvair-se nos
fluxos de sangue que jorram até consumi-la nas chamas... Porém não basta matar! Na
maioria das vezes, é preciso extingui-la no vento em fumaça e cinza. Daí a discussão tão
apropriada e recorrente em estudos sobre linchamento que dão conta da ritualística do
fogo, aquele que consome indubitavelmente o impuro.
A cena clássica do suplício, como Foucault (1987) abre seu livro, demonstra a
recorrência do espetáculo da morte pública. Seja em nome do “Estado”, ou realizado
pelos cidadãos comuns, o que está sempre em jogo é a necessidade de saciar a sede de
vingança da coletividade ofendida e quanto mais esquadrinhada forem as estratégias de
matar, mais haverá saciedade dos que foram ofendidos. Assim, “o sacrifício perde então
seu caráter de violência santa, para se “misturar” à violência impura, tornando-se seu
cúmplice escandaloso” (GIRARD, 1990, p. 56).
Nesse sentido, o sacrifício ou a violência não são puros, eles podem ser
purificadores, mas os agentes da eliminação tornam-se, eles próprios, passíveis de
limpeza, pois de algum modo contaminaram-se ao extinguir a vida impura.
Essa
discussão remete ao arrependimento ou à dificuldade de qualificação criminal dos
agentes linchadores. A essa ambivalência, matar e contaminar-se Girard (1990)
denomina de crise sacrificial, quando o sacrifício leva o algoz à perda da razão e gera
uma escalada de violência.
140
Para Girard (1990), o sacrifício fica claro ao problematizar o canibalismo ritual
Tupinambá, no qual a vítima é capturada viva e inserida no seio da sociedade que a
devorará. Entretanto, entre a captura e o sacrifício há um espaço de tempo no qual a
vítima deve ser transformada em bode expiatório. Para tanto, ela terá direito a entrar nos
ritos cotidianos da tribo, podendo inclusive, casar-se; será ainda estimulada a cometer
todo tipo de atos de ilícitos, inclusive a fuga, sendo recapturada e daí em diante
passando a ser tratada como um “monstro” que se tornará “divino” pelo sacrifício e que
através deste poderá ser devorada pela tribo, exercendo então a função de purificá-la de
todos os seus malefícios.
Com essa descrição, Girard (1990) expõe a sua tese geral, a saber, que o
sacrifício não deve ser explicado apenas como um ato psicológico ou moral, mas é antes
uma ação sagrada-religiosa de purificação geral da sociedade, logo, ela desfaz a crise
sacrificial.
Nos linchamentos modernos, não se come a carne da vítima, contudo, é muito
comum que se reparta o seu corpo e que os pedaços sejam distribuídos entre a
multidão 81. Nesse sentido, talvez se tenha aqui uma resignificação-sublimação do
canibalismo. Nos linchamentos, as vítimas personificam também, se assim se pode
dizer, todo o mal, mas também é através dele que a multidão conseguirá expurgar esse
mal ao lavar de sangue esse bode expiatório. Ele resume então as duas forças de
composição do humano: a maldade e a possibilidade de purificação. Assim, o mito
fundante da violência (judaico-cristã) está explícito na morte sacrificial. Nesse sentido,
o bode expiatório pode ser um estrangeiro, como no caso dos Tupinambás ou um
membro da própria sociedade como, por exemplo, em certas monarquias africanas, ou,
no nosso caso, um Abel ou Cristo, ou tantas outras vítimas de linchamento que embora
81
“Linchar não é só torturar e desfigurar o corpo do supliciado. Quando uma multidão lincha, ela
rechaça a camada de modernidade e passa a se comportar segundo códigos penais antiquíssimos.
Assim, mais do que desfigurar o corpo da vítima, a multidão executora objetiva apagar todos os seus
sinais de humanidade, para que a alma seja também impactada. Isto nos remete aos suplícios medievais
aplicados aos condenados pela Santa Inquisição. Longe de apenas eliminar a vida do herege, as
autoridades eclesiásticas visavam produzir marcas profundas na consciência do sujeito para que ele
levasse tais lembranças ao além e não viesse a incorrer futuramente nos mesmos erros. Para tanto,
verdugo excelente era aquele que, mesmo infligindo severas torturas, até mesmo o empalamento, tinha
a “sutileza” de manter o condenado vivo por dias, ou semanas, evitando assim que o condenado
usufruísse o prêmio do passamento rápido e menos doloroso” (MALTA, 2010). Ver também: Neto e
Rudge (2010).
141
pertencentes à sociedade dada são tomadas em determinado momento como estranhas e
impuras.
Para Girard (1990), não haveria uma distância real entre o objetivo do sacrifício
ritual e o espírito moderno do nacionalismo guerreiro. Pensa-se, por exemplo, no fato de
que os maiores registros e os primeiros estudos sobre linchamentos surgiram nos EUA.
Esses linchamentos eram praticados contra os negros ou contra os brancos que os
defendiam, logo, está explícita aqui a ideia do Outro perigoso e da purificação pela sua
morte. Assim, como até os dias atuais têm sido os EUA, no Ocidente, a nação que se
arvora detentora da função de purificação, seja econômica, cultural ou belicosa – “está
sempre a postos para livrar o mundo do inimigo da democracia”, principalmente, pela
guerra e extermínio desse inimigo.
Como sempre, transformar a violência numa espécie de “impureza”,
de “sujeira”, que se concentraria de preferência sobre um katharma
humano ou material, sobre um ser que sentiria por ela, e vice-versa,
uma afinidade particular, significa reificar esta mesma violência
(GIRARD, 1990, p. 360).
É preciso inocular um pouco do veneno para combater o próprio veneno. Logo,
violência deve ser curada com violência. O mal encarnado no bode expiatório deve ser
eliminado com a sua morte e purificação. Nessa mesma linha de raciocínio, o autor nos
leva a pensar na biopolítica higienista das vacinações modernas.
De outro modo, a violência, stricto sensu, realizada na pena capital (exercida por
Estados como Roma, Grécia, EUA, em que há um formalismo) ou a pena capital
(exercida pela população e, imediatamente sem nenhum formalismo) pode ser entendida
como:
(...) Unanimidade fundadora que funciona nos dois casos; no primeiro,
ela cria a pena capital através de formas rituais; no segundo, ela
própria aparece de um modo necessariamente enfraquecido e
degradado - sem o que ela não pareceria de forma alguma- mas
mesmo assim selvagem e espontânea. Este modo pode ser definido
como uma espécie de linchamento pouco a pouco sistematizado e
legalizado (GIRARD, 1990, p. 375).
O autor destaca, entretanto, que em qualquer sociedade na qual haja um poder
central, essa mesma sociedade encontra mimeticamente uma saída de resistência.
Assim, “sacrifica-se uma vítima humana que representa o rei e que é frequentemente
142
escolhida entre os delinquentes, os desadaptados, os párias, como o pharmakós grego”
(GIRARD, 1990, p. 379). Desse modo, para o autor, é através do rito sacrificial que o
humano constrói a sua humanidade. Ao afastar-se da violência intestina, ele dramatiza
no sacrifício a sua irracionalidade:
O religioso é em primeiro lugar a suspensão do obstáculo que a
violência opõe à criação de qualquer sociedade humana (...) para
concluir a intuição de Durkheim é preciso compreender que o
religioso coincide com a vítima expiatória, aquela que funda a unidade
do grupo ao mesmo tempo contra e em torno dela, Apenas a vítima
expiatória pode propiciar aos homens esta unidade diferenciada, ali
onde ela é simultaneamente indispensável e humanamente impossível,
no seio de uma violência recíproca que não pode ser concluída por
nenhuma relação de controle estável, por nenhuma verdadeira
reconciliação (GIRARD, 1990, p. 385).
Numa comparação entre a negação hegeliana da violência no sagrado e uma
reafirmação da tese de Anaximandro da reificação da violência pelo sagrado, pois que o
próprio sagrado nasce como tentativa de apaziguamento da violência intestina, Girard
(1990) nos mostra que essas são faces de uma mesma moeda e não opostos, como
tentou normatizar o pensamento moderno. O que seria o ápice dos ritos cristãos
metaforizado no sangue e corpo de Cristo, os quais são repartidos e consumidos por
toda a comunidade, senão a revificação do mito fundador do sacrifício ritual “Comei,
tomai, é meu corpo, é sangue que dou... Eu vou preparar a ceia na casa do Pai! 82” A
impureza desse mundo é lavada no sacrifício e este constrói no mundo divino O Reino
da Virtude!
Fato comum às justificativas das “guerras santas” ou das “racionais e
humanísticas“ intervenções norte-americanas em Estados antidemocráticos, ou, a turba
enfurecida despedaçando e dividindo os restos do seu bode expiatório. Construindo
todos, um mundo diferente... A paz pela espada!
Aos seus possíveis críticos, que porventura considerem sua tese apenas um
ensaio, e não um epíteto científico, o autor compara a teoria da evolução, mostrando que
ela é também extremamente ficcional e literária, assim, o que poderia distanciar a sua
tese da de Darwin, não seria apenas uma mera composição consensual, que diria: isto é
82
Cântico comum em tradições católicas e protestantes no momento da santa ceia.
143
ciência, é verdade! Mas, aquilo é literatura, ficção, ou para nós uma resposta séria e
mordaz estaria na máxima foucaultiana: isto não é um cachimbo! (FOUCAULT, 2002).
O próprio Girard atesta a viabilidade da sua tese:
(...) Portanto, a única maneira de tratar a presente tese é considerá-la
como uma hipótese científica como tantas outras, perguntando se ela
dá realmente conta daquilo que pretende dar conta, se é possível,
graças a ela, atribuir às instituições primitivas uma gênese, uma
função e uma estrutura tão satisfatórias umas em relação às outras
quanto em relação ao contexto, se ela permite organizar e totalizar a
enorme massa de fatos etnológicos com uma real economia de meios,
e isto sem nunca recorrer às muletas tradicionais da “exceção” e da
“aberração” (...) O sistema funciona, não apenas aqui ou ali, mas na
sua totalidade? A vítima expiatória é a pedra rejeitada pelos
construtores e que se transforma em pedra angular, o verdadeiro ponto
capital de todo o edifício mítico, a chave que abre qualquer texto
religioso para revelá-lo naquilo que tem de mais secreto, tornando-o
inteligível para sempre? (GIRARD, 1990, 399).
Numa comparação entre Frazer e Freud, Girard (1990) discute como, na
modernidade, o sacrifício ritual foi negado e colocado em segundo plano, especialmente
em Frazer que buscou ridicularizá-lo por realizar uma construção contraditória entre
ciência e religião. Quanto a Freud, o sacrifício ritual será resignificado conceitualmente
na noção de transferência. Em ambos, há a pretensão de racionalizar e explicar com
conceitos racionalizantes aquilo que é fundamentalmente mítico e talvez por isso
mesmo tão recorrente, mas perigoso e, portanto, passível de negação, uma vez que
admitir o sagrado seria perder o estatuto de racionalidade conquistado desde o
Iluminismo e, assim, estaríamos nos igualando às “bárbaras comunidades tribais”.
Nesse ponto, a discussão de Girard (1990) é fundamental para pensarmos a contradição
entre selvagem e civilizado construída na modernidade, pois ele satiriza em todo o seu
texto os fundamentos dessa separação e nos mostra que a distância entre ambos é muito
mais tênue do que pensamos.
A tendência para apagar o sagrado, para eliminá-lo completamente,
prepara o retorno sub-reptício do sagrado sob uma forma não
transcendente mas imanente, sob a forma de violência e do saber da
violência. O pensamento que se afasta indefinidamente da origem
violenta, novamente aproxima-se dela, mas sem o saber, pois este
pensamento não tem nunca consciência de mudar de direção.
Qualquer pensamento descreve um círculo em torno da violência e,
especialmente etnológico (...) (GIRARD, 1990, p. 403).
144
Enfim, para o autor, a fuga da modernidade na negação do sagrado gerou no
saber e na vida cotidiana uma crise sacrificial a partir da qual a violência emerge de
modo ímpar e aponta para a necessidade de sacrifícios rituais que a apaziguem. Logo, é
no seio da ciência moderna que a noção de sagrado tem apontado como um objeto sine
qua non para compreendermos a possibilidade de nos organizarmos como sociedade e
não nos matarmos mutuamente. Ainda é através do sacrifício ritual que evitamos a
escalada da violência!
Girard (2008) sustenta a tese de que, desde Lévi-Strauss, já há implicitamente a
discussão acerca do linchamento como o mito fundador. Entretanto, ele percebe uma
diferença clara entre o linchamento visto como ato sacrificial, tipicamente encontrado
em sociedades ditas arcaicas e o linchamento como mecanismo vitimário, aquele
praticado em sociedades modernas e ditas racionais.
Para fins didáticos, ele apresenta os mitos dos Ojibwa e Tikopia, destacando que
em ambos a punição será o linchamento, pois: “no primeiro mito, é a morte súbita de
um índio que teria sido causada apenas pelo olhar da futura vítima. No segundo mito, é
pelo roubo de todo o sistema cultural que a vítima (...) será responsabilizada”
(GIRARD, 2008, p. 131). De outro modo, o autor resgata em As Bacantes o caso Penteu
como sendo outra evidência de linchamento, assim como, enfatiza que Édipo também
remete a uma ação linchadora e todo linchamento traz uma conotação negativa
(estigmatiza a vítima) e uma conotação positiva (em relação à eliminação coletiva):
(...) Ao nosso ver, a qualificação negativa não passa de uma acusação
da qual a vítima é alvo. Como ninguém coloca em dúvida sua verdade,
como a comunidade inteira adota essa acusação, vê-se ai um motivo
legítimo e urgente para se matar a vítima (GIRARD, 2008, p. 138).
Como poderá ser visto a seguir, para Girard (2008, p. 140-141), essa tese fica
mais clara ao defender que “(...) há uma perspectiva, e só uma, que pode fazer do
linchamento uma ação positiva, pois ela vê na vítima uma ameaça real da qual é
importante se desfazer por todos os meios, e essa é a perspectiva dos próprios
linchadores (...)”.
Portanto, em Girard (2008), a eliminação realiza ao mesmo tempo uma
divinização da vítima, pois em sendo uma ameaça presente e futura para a comunidade,
quando da sua expulsão, a vítima promove a unanimidade coletiva, proporciona o
145
fortalecimento dos laços de coesão e permite que a paz e a ordem voltem a reinar, assim
como fica implícita a ideia de que o futuro da comunidade e mais especificamente dos
meus (parentes) estará garantido: “o mal foi eliminado!”.
Dentre as principais acusações que podem culminar num linchamento, temos em
sociedades ditas arcaicas o mau-olhado. Os mitos de Ojibwa (mata um homem com o
olhar), Milomaqui (envenena a comida com o olhar), Penteu (espiona as bacantes) e
Édipo (contamina Tebas), remetem imediatamente à representação de serem as vítimas
pessoas “invejosas, perversas e indiscretas”, assim:
(...) Em todas as sociedades em que as propensões à violência coletiva
continuam a fermentar, o terror do <mau-olhado> está presente, e
aparece com freqüência sob a forma de um temor, aparentemente
racional, dos olhares indiscretos, temor de que faz parte é claro a
<espionite> dos tempos de guerra (GIRARD, 2008, p. 142).
Consideramos extremamente profícua essa observação, pois como visto em
outros autores, são recorrentes em casos de linchamento os crimes praticados contra a
propriedade e o corpo, de tal sorte que parece mesmo haver nos casos de linchamento
um horror à “inveja e perversão da vítima”.
De outro modo, vemos também recorrência nos mitos citados, da condição de
cegueira da vítima, apontando para o fato de que “se o olho é motivo de escândalo,
melhor arrancá-lo 83...”. Essa frase que remete ao Novo Testamento, nos faz ver como é
provocante a tese que se tem sustentado ao longo deste trabalho e que encontra em
Girard (2008) um embasamento mais elaborado. Sendo assim, parece ser de fato
proibido ao humano ver, desejar ou provar do fruto proibido, seja na mitologia, na
teologia ou na “moderna legislação racional”. É sempre o “ – Não proves!”, “ – Não
queiras!” e, “ – Não toques!” que normalizam as sociedades, especialmente, quando
essas proibições remetem aos crimes de latrocínio, crimes sexuais ou lesão ao
patrimônio. O que vemos aqui senão o imperativo categórico kantiano: “quero? posso?
devo?”
Para Girard (2008), há outro ponto central nos linchamentos míticos, que seria o
fato de que toda vítima apresenta um “defeito”, um estigma que a diferencia e que
ameaça o coletivo dito normal. Desse modo:
83
“E se vosso olho é motivo de escândalo, arrancai-o e lançai-o longe de vós [...]” (BÍBLIA..., 2010b).
146
(...) Para compreender os mitos basta observar o comportamento dos
grupos infantis. Sua perseguição tem por alvo preferencial - como
aliás, entre os adultos, mais visivelmente- os estrangeiros, os recémchegados, ou na falta desses, um membro do grupo que um defeito
qualquer ou signo físico distintivo tenha chamado a atenção de todos
os membros (GIRARD, 2008, p. 149).
Em Girard, para além das explicações estruturalistas e psicanalíticas, acerca da
“escolha da vítima a ser rechaçada”, devemos buscar metáforas na “própria natureza”,
na qual a diferença que aponte para a fraqueza suscita a perseguição dos predadores.
Têm-se nessa hipótese uma proximidade com as discussões do darwinismo social e da
eugenia nazista 84. Elas nos apontam também para as discussões foucaultinas acerca da
biopolítica, assim como para a tese de Agamben sobre a vida que não merece ser vivida.
São todas elas teses ousadas, que não podem ser vistas numa perspectiva evolucionista
de progressão de descobertas, mas que de todo modo, em menor ou maior grau,
apontam para a constituição do que seja normal e anormal, tão discutidos por Durkheim
e tão mal compreendidos pelos pseudos intérpretes de Nietzsche, tais como os
“intelectuais nazistas” e o uso que deram à tese da vontade de potência e do super
homem.
A “fraqueza” em Nietzsche não determinaria, em última instância, a necessidade
de eliminação do diferente, mas apontaria para a vontade de potência na busca pela
superação de si mesmo:
(...) Eu ando entre os homens como entre fragmentos do futuro: desse
futuro que os meus olhares aprofundam (...) E como havia eu de
suportar ser homem, se o homem não fosse também poeta, adivinho
de enigmas e redentor de azar?! Redimir os passados e transformar
todo ‘foi’ num ‘assim o quis’: só isto é redenção para mim
(NIETZSCHE, 2009, p. 126).
84
“No que diz respeito às situações em que o homicídio não é reprovado, pelo contrário, aprovado,
registramos as seguintes justificativas: 1) o homicídio do assassino de alguém que tem ficha na polícia
por ter cometido outros assassinatos, em ocasiões nas quais, nem a família da vítima condena o crime
do parente; 2) morte em defesa própria durante briga. Até a polícia absolve o algoz nestes casos; 3)
problemas de saúde da pessoa, surgidos desde a infância, manifestos em surtos de agressividade
recorrentes. É inocentada, então, a pessoa que tem um temperamento violento por natureza biológica;
4) o homicídio do protagonista de estupro de uma parente próxima, a irmã, por exemplo. Nestas
circunstâncias, o assassinato também recebe o aval da polícia. Quase sempre a polícia libera o algoz,
argumentando que a vítima tinha ficha na polícia. Vale a pena frisar ainda que, conforme a descrição da
situação, até a família do estuprador aprova seu assassinato” (GAVIRIA, 2007, p. 91). (Grifos nossos).
147
Girard (2008) está, se podemos dizer assim, muito mais próximo de Nietzsche
do que do pensamento de Lévi-Strauss, pois esse último coloca sempre a “fragilidade”
como sinônimo de eliminação radical e não percebe que a fragilidade pode ser
provocadora de superação.
Outrossim, Girard (2008) esclarece que há uma omissão ou, talvez, uma
estigmatização racional que aponta a fraqueza como passível de eliminação. Essa
conduta está presente nos mitos, mas também nos contextos societais contemporâneos,
sendo assim, parece muito viável as teses de controle/eliminação que apontam para uma
escolha racional da vida que merece ser vivida, senão vejamos:
(...) A situação trágica da humanidade coloca-se hoje não somente em
termos de destruição total a ser evitada, mas também da destruição
seletiva a ser promovida (...) em suma, a questão consiste em reduzir a
população sem aniquilá-la inteiramente (...) em nossa época, a questão
do bode expiatório dissimula-se facilmente por trás das estatísticas e
das angústias especificamente modernas que seu inchaço suscita
(GIRARD, 2008, p. 151).
Sendo assim, o autor destaca que: “a multidão lança sobre as vítimas impotentes
a responsabilidade de seu próprio desatino (...) assim, a coletividade cria a ilusão de
reconquistar uma espécie de controle sobre seu próprio destino” (GIRARD, 2008, p.
158).
Contudo, o autor acrescenta que ao longo da história do Ocidente, nós tentamos
subsumir os casos de linchamento, caracterizando-os como crimes diversos ou, negando
a sua existência, daí a dificuldade em mapeá-los, registrá-los. Isto seria, grosso modo,
uma manobra para evitar a compreensão de que a violência promovida pelo linchamento
seria o grande mito fundante da razão da governabilidade e da organização societária.
Pois, se de todo modo, as vítimas de linchamento são sempre ao longo da história,
“minorias étnicas e raciais” que são escolhidas para “bode expiatório”, para que
contabilizar perdas necessárias?
Portanto, essa lógica faz afluir à postura vitimária que revestirá certas categorias
sociais, as quais serão “naturalmente vistas e, autoidentificadas” como vítimas
potenciais. Nesse sentido, a ciência dita moderna tornou-se um instrumento ímpar de
constituição do processo vitimário, tanto ao classificar e hierarquizar o normal e o
patológico, quanto por ela ser uma ameaça potencial de destruição e extinção da
148
humanidade. Para tanto, vejam-se os casos de perigo de armas nucleares, guerras
bacteriológicas, dentre outras ameaças do chamado avanço tecnológico.
Para Girard (2008), só há uma saída esse estado de destruição latente, ou seja, a
criação e consolidação de uma cultura da não-violência. Porém, ele não discute de modo
específico e claro como realizar tal projeto, ficando apenas um indicativo da sua
necessidade, como sendo um contraponto à tese nietzscheana de vontade de potência.
Mas, como discutido linhas atrás, entender a vontade de potência simplesmente como
uma “tendência à violência” é uma visão por demais simplista e, equivocada desse
conceito.
De outro modo, a segunda tese central de Girard (2008) propõe que há uma
semelhança visceral entre os mitos vitimários bíblicos (judaico-cristãos) e a mitologia
mundial. Ele destaca que tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento, a dissolução da
comunidade, a violência de todos contra um e a elaboração de interditos e rituais
marcam o processo vitimário. Portanto, desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso,
passando pelas histórias de José, Esaú e Jacó, dentre outras, até a Paixão de Cristo, o
que vemos é a violência como o mecanismo principal de “racionalização” da anomia
social. Disse Girard, 2008, p. 207: “coisa estranha: é preciso matar, e matar sempre,
para não saber que se mata. (...) O homem nada mais é do que uma negação mais ou
menos violenta de sua violência”.
Se consideramos viável e, portanto, aceita a tese da violência purificadora, vista
antes, para realizar os atos de linchamento, percebemos que no entanto, há a
preocupação em não se contaminar com a vítima poluidora. Então as técnicas de
apedrejamento, ateamento de fogo, dentre outras, possibilitam “extinguir a vida impura,
mas preservar a pureza do coletivo”, assim como garante, também, que ninguém possa
ser culpabilizado individualmente por tal ato, pois a extinção passa a ser um ato do
coletivo, sem nome, sem cara, apenas a fúria popular.
Essas considerações são extremamente pertinentes quando se pensa na
dificuldade em estudar os linchamentos, como será visto adiante. É raro o caso em que
há um registro claro acerca do número de envolvidos e, principalmente, de quem são
eles. Entretanto, há uma recorrência às técnicas de apedrejamento, ateamento de fogo ou
pauladas.
149
Outro teórico importante para essa discussão é Delumeau (1989). Ele sustenta a
tese de que a sociedade europeia pré-industrial é caracterizada pelas revoltas de sedição,
especialmente, porque há o destaque para o fenômeno da multidão e suas características
de provisoriedade, violência e não planejamento. “[...] as sedições na Europa dos
séculos XIV-XVIII eram reações defensivas motivadas por medo de um perigo real, ou
parcialmente imaginário (...)” (DELUMEAU, 1989, p. 153). Portanto, seriam os
rumores um dos responsáveis diretos pelo evento da formação da multidão e da sua
atitude de revolta. Já Delumeau (1989) chama a atenção para a recorrência do fenômeno
do milenarismo, mostrando como esse traz à tona o medo da população sobre as
inovações ou, como projetam um mundo melhor a partir da destruição do mundo atual
que lhes parece impuro e desigual, buscando assim a construção da salvação. Isso
explicaria explosões violentas para forjar um mundo novo. Nesse sentido, a massa que
compunha a multidão “revoltosa” é recorrentemente advinda das camadas mais pobres.
Logo,
(...) Esses seres <deslocados> que não tinham nada a perder desejam,
sem dúvida, no mais profundo de si mesmos, um estatuto social graças
ao qual já não seriam criaturas abandonadas. E toda ocasião lhes era
boa para vingar-se dessa frustração (DELUMEAU, 1989, p. 163).
Há ainda a tese que sugere que as revoltas tenham uma relação direta com a
vacância de poder, ou seja, quando o poder está ausente, ou fraco, a população toma
para si as rédeas do controle social.
Todas as variáveis de medo antes vistas podem ser classificadas como medo
impreciso, mas Delumeau (1989) também destaca os medos precisos e mostra como
esses também geram as revoltas ao longo da história.
Portanto, podemos destacar as lutas dos colonizados contra os colonizadores;
medo dos estrangeiros; medo dos soldados que eram vistos como pertencentes à mesma
categoria dos vagabundos; medo de morrer de fome (devido ao aumento populacional e,
a precária e insuficiente dieta à base de cereais); medo do fisco, que gerou as revoltas
fiscais 85.
Ao considermos que em todos os medos precisos e imprecisos a variável do
rumor é a tônica para revolta, as mulheres são para Delumeau (1989) grandes
85
Ver: Revolta de quebra-quilos em Campina Grande-PB (SOUSA, 2001).
150
protagonistas da sublevação, pois elas seriam as responsáveis diretas pela disseminação
dos rumores e por incitar os homens à defesa da sociedade. Assim as palavras de ordem
derivariam do imaginário feminino, contudo, “essas frases são, no mais das vezes,
pronunciadas por homens. Mas, refletem claramente palavras femininas repetidas de lar
em lar: esposas e filhos ver-se-ão sem defesa; sua vida está em perigo” (DELUMEAU,
1989, p. 189).
Diniz (1991) discute a questão do Cotidiano, poder e sedição no Nordeste entre
1850-1900. Para ele, partindo da tese de Delumeau acima vista, os pobres não inseridos
no mercado de trabalho (tidos como mendigos ou vagabundos) serão na passagem do
modo de produção feudal para o capitalista transformados em classe perigosa,
promotores do medo no imaginário das elites e, ao mesmo tempo, esses pobres
constituirão seus próprios medos em relação a sua dispensabilidade no mercado e,
talvez até quanto ao direito à vida. Nesse sentido, passou-se a aplicar aos trabalhadores
e sobrantes a disciplina dos espaços, tempo e movimento – uma estratégia que visava
prevenir as sedições 86.
Durante a segunda metade do século XIX as elites dominantes (...)
vivenciam todo um imaginário construído a partir do medo ou da
insegurança suscitada pelos conflitos reais ou imaginários de que a
população pobre e sem controle poderia oferecer (DINIZ, 1991, p.
338).
Thompson (1984) realiza um estudo sobre os motins em nome da subsistência na
Inglaterra no século XVIII. Assim ele tem o escopo de retificar a imagem de que os
pobres só se envolvem em motins de fome, e que só na Revolução Francesa é que se
pode observar os pobres agindo em nome de uma causa política.
De modo diferente, para Thompson (1984, p. 65), há como mapear em todos os
motins na Inglaterra, no século XVIII, a presença de legitimidade e de uma “economia
moral dos pobres” (da multidão) em relação a sua ação, pois:
(...) Con el concepto de legitimización quiero decir el que los hombres
y las mujeres que constituían el tropel creían estar defendiendo
derechos o costumbres tradicionales; y, em general, que estaban
86
Ver: Diniz (2004), onde discute a invenção de uma nova ética do valor do trabalho (positiva) e novas
estratégias de disciplinamento da mão de obra e dos sobrantes, a quem restava a política do
confinamento. Esses eventos geraram, por sua vez, muitas sublevações por parte da população.
151
apoyados por el amplio consenso de la comunidad. Em ocasiones este
consenso popular era confirmado por uma cierta tolerancia por parte
de las autoridades, pero em la mayoría de los casos, el consenso era
tan marcado y enérgico que anulaba las motivaciones de temor e
respeto.
Essa economia moral era acionada nos momentos de crise em relação ao
desemprego, aos preços praticados ou à escassez e baixa qualidade dos alimentos
devido a fatores climáticos ou, jogos de interesse do mercado. Nesses momentos, é que
assiste à multidão agir em causa própria. “La acción central en este modelo no es el
saqueo de graneros ni el robo de grano o harina sino el acto de <fijar el precio>”
(THOMPSON, 1984, p. 100).
O autor destaca, assim como vemos na tese de Delumeau (1999), que as
mulheres têm um papel central nos motins, pois elas, através do apedrejamento dos
pontos de comércio, agiam com a consciência de que sofreriam menos represália do que
os homens já que eram consideradas imunes devido à fragilidade da sua condição de
gênero.
De todo modo, a multidão envolvida nos motins era sempre formada por pessoas
pobres e, com pouco conhecimento dito formal. Assim, mesmo não agindo em nome de
uma causa política, os motins apresentam-se como uma estratégia organizada, racional
e, teleológica, que permitia aos envolvidos “(...) la gente, por razón de su número, sentia
por um momento que era furte” (THOMPSON, 1984, p. 132).
Davis (1990) realiza uma análise dos levantes religiosos na França (século XVI)
e defende a tese de que assim como os motins de combate à fome e ao mercado, os
levantes religiosos têm por objetivo restituir a ordem na relação entre o homem e o
sagrado, punindo com a morte os blasfemadores e hereges que agridem o nome de Deus
(leia-se o cristão), propondo o culto a deuses “estranhos”. Esses levantes são em sua
maioria, motivados pelas diferenças de visão entre católicos e protestantes. Contudo, a
multidão é vista por Davis (1990, p. 131), da seguinte forma:
(...) Não como uma massa miserável, instável e sem raízes, mas como
homens e mulheres que frequentemente têm uma certa posição em sua
comunidade, que podem ser artesãos ou algo melhor e que, mesmo
quando pobres e não qualificados, podem parecer respeitáveis para
seus vizinhos (...) a sua violência, não importa o quão cruel ela seja,
não como casual e sem limites, mas dirigida a alvos definidos e
152
escolhida dentre um repertório de punições e formas destruidoras
tradicionais.
A multidão agia visando extinguir o perigo da poluição latente presente no
blasfemador e herege. Nesse sentido, essa “ovelha negra” precisava ser destruída em
nome do bem-estar da população, pois, “a poluição era perigosa numa comunidade,
fosse do ponto de vista de um católico, fosse de um protestante, porque seguramente
provocaria a ira de Deus”. (DAVIS, 1990, p.134).
O fundamental nesses levantes era purificar pela destruição e permitir que o bem
voltasse a reinar, apaziguando a fúria de Deus, que se sentindo agredido, vingar-se-ia de
toda a comunidade.
Tanto para os católicos, quanto nos protestantes, os piores sinais de impureza
estavam ligados à blasfêmia, a negação de Deus e aos comportamentos sexuais.
No entanto, era pela descrença na capacidade punitiva do governo (tanto em
julgar rápido, quanto em julgar com severidade exagerada, como também em ser
conivente com alguns crimes) que a multidão tomava para si a responsabilidade de
julgar e punir os desviantes. Contudo, havia tanto na ação das “práticas de Estado”,
quanto na ação da multidão a prevalência da execução pública, que se constituía um
espetáculo “punitivo/educativo”. Portanto, “a imagem da punição real, exemplar,
permanecia visível por semanas, mesmo anos, enquanto os cadáveres dos assassinos
permanecessem expostos” (DAVIS, 1990, p. 137).
Assim, Davis (1990) sustenta que, em todos os levantes, a multidão entendia que
a sua ação era legítima. De acordo com Delumeau (1999), Davis também ratifica que os
boatos são a primeira chama a acender o imaginário do medo e a desencadear os
processos de destruição.
Um dado interessante que se encontra em Davis (1990), é o registro de que as
mulheres marchavam, cantando salmos, com seus maridos, no trajeto para a destruição
do “impuro” e, normalmente eram elas as apedrejadoras dos templos inimigos, de outro
modo, também os adolescentes masculinos, faziam parte desses rituais.
Enfim, Davis (1990, p. 155) entende que:
(...) O conflito é permanente na vida social, embora as formas e o
impacto da violência que o acompanhem variem (...) a violência não é
explicada em termos de quão loucos, famintos ou sexualmente
frustrados são os violentos (...) mas sim em termos dos objetivos de
153
seus atos e em termos dos papéis e padrões de comportamento
possibilitado por sua cultura.
Outro estudo importante foi realizado por Souza (1999), ao analisar
linchamentos no Brasil e, mostra que os nossos estudos sobre linchamentos remetem,
em maior número, aos fenômenos de saques e sedições. Desse modo, é a partir da
primeira metade do século XIX, que podemos encontrar registros de linchamentos no
Brasil.
A expressão linchamento deriva da história de um fazendeiro norteamericano da Virgínia, Charles Lynch, que dirigia uma pequena
organização destinada a julgar e punir bandidos e simpatizantes dos
colonizadores ingleses, durante as lutas da independência americana
(...) Tal método prosperou na expansão norte-americana para o Oeste,
como forma de justiça sem formalidades, rápida e direta e, mais tarde,
como forma de intimidação aos negros libertos, para mantê-los
submissos. No Brasil, os linchamentos já apresentaram, sobretudo no
século XIX, uma conotação diretamente racial, como nos EUA;
contudo, sua motivação foi modificada ao longo do tempo (...)
Atualmente, em nosso país, essas ações violentas aparecem,
sobretudo, como uma atitude de combate ao crime e à criminalidade.
O linchamento constitui um fenômeno de difícil conceituação, pela
multiplicidade dos aspectos envolvidos; sendo assim, sua definição
tem gerado muitas controvérsias; contudo, algumas características do
linchamento são comuns em diversos estudos e podem ser descritas
sem grande ambivalência. (CERQUEIRA; NORONHA, 2004, 159).
Como é nos EUA que se encontra abundância nos estudos acerca de
linchamentos, Souza (1999) faz uma análise comparativa entre as práticas ali
encontradas e aquelas características do nosso país.
Há na discussão de Souza (1999), uma problematização quanto à dificuldade da
realização dos estudos sobre linchamento, uma vez que os próprios dispositivos de
segurança não têm stricto sensu registros atualizados acerca desses fenômenos. Assim,
como, muitas vezes, o processo pericial no corpo da vítima não é realizado de modo
ideal e, também, há a dificuldade no processo de investigação dos envolvidos no ato,
devido à imprecisão em reconhecê-los e enquadrá-los na “Lei”.
Os estudos sobre linchamento, em sua maioria, são estudos de caso, devido aos
fatos que foram apontados acima, pois se há escassez de dados, o pesquisador acaba
tendo que se debruçar sobre um caso excepcional em que houve registro. Souza (1999)
alerta que os meios de comunicação de massa ainda são a melhor fonte de divulgação
154
dos linchamentos. Muitos dos fatos que eles noticiam não chegam a se constituir um
processo, devendo assim o pesquisador estar atento a tais veículos de comunicação.
Nos EUA, foi a partir do século XVIII que se registraram os primeiros casos de
linchamento. Esses tinham a característica de atingir prioritariamente os negros e
aqueles que fossem considerados seus protetores. Os linchamentos eram praticados por
brancos puritanos que visavam defender a sociedade contra qualquer ameaça de
mudança. Logo, os linchamentos tinham um “caráter pedagógico”.
Registros indicam que historicamente o país que abrigou o maior
número de ocorrências de linchamentos foi os Estados Unidos. Um
levantamento dos linchamentos norte-americanos realizado por
Chesnais (1981), no período compreendido entre 1882 e 1980, acusou
a existência de um total de 4755 vítimas de linchamentos, onde é
bastante visível o componente racial dos conflitos desencadeadores
das ocorrências. [...] No Brasil, embora não existam levantamentos
oficiais a respeito, os dados fornecidos por Meandro e Souza (1991)
apontam a ocorrência de 533 episódios, incluindo tentativas de
linchamento, no período entre 1853 e 1990, que vitimaram 753
pessoas (434 fatais). Pela frequência com que são noticiados em
jornais e na TV, supõe-se que o volume de ocorrências deste tipo
tenha crescido de maneira significativa durante esta década (SOUZA,
1999, p.327).
Numa discussão mais recente, Martins (2010) mostra que a partir do século XVI
já encontramos registros de linchamento no Brasil, pois ele considera ações de
linchamento o caso da queima dos corpos em fogueira e praça pública quando da
Inquisição. Depois vieram os linchamentos como atos de vingança aos crimes de honra
ou por disputas de terras entre famílias divergentes ou, numa mesma família entre os
herdeiros.
Martins (2010) mostra que é recorrente em nossa sociedade a prática do
linchamento e esse corresponde às seguintes variáveis: difícil acesso à justiça;
burocracia jurídica; altos custos judiciários; elitismo jurídico que afasta a massa dos
meios legais. Por outro lado, esses problemas geram uma descrença e a busca de
autodefesa das massas, assim os linchamentos seriam: “justiça substitutiva da justiça
faltante”.
Para Martins (2010), a sociedade brasileira tornou-se tolerante ao linchamento,
desse modo, ele não está circunscrito apenas às camadas pobres, mas à
espetacularização e aprovação da sociedade em geral.
155
De outro modo, para Sousa (1999):
A primeira ocorrência de linchamento no Brasil de que se tem notícia,
data de 1853, numa fazenda de Café nos arredores da cidade de
Campinas, no interior de São Paulo. Ainda no final do século passado
pode-se identificar também algumas ocorrências no estado do Rio de
Janeiro. Após a ebulição do final do século identifica-se um longo
período em que linchamentos aparentemente não ocorreram, iniciando
um novo ciclo com força surpreendente a partir de 1970. É somente
neste momento que os linchamentos adquiriram visibilidade através da
mídia, chamando a atenção de autoridades, intelectuais e estudiosos
(SOUSA, 1999, p. 328).
Uma outra discussão necessária acerca do tema da multidão e da violência, que
essa possa vir a praticar, remete à análise do fenômeno do linchamento.
De acordo com Cerqueira (2004), o linchamento nasceu nos EUA, ainda na sua
fase de colônia, e respondia às punições efetivadas pela sociedade contra àqueles que
defendessem os colonizadores ingleses. No Brasil, foi durante o século XIX que
começamos a utilizar os linchamentos com caráter de perseguição racial e, também,
como forma de combate à criminalidade. Segundo Cerqueira, as características gerais
dos linchamentos são:
(...) Crimes cometidos por cidadãos comuns em estado de multidão,
contra uma pessoa ou grupos menores que romperam uma norma
social preestabelecida. São ações motivadas por mentes
conservadoras, de indivíduos descrentes do poder dos aparelhos
judiciais que tentam, pela morte dos “expurgos sociais,” restabelecer a
ordem perdida. (...) Se as massas possuírem essa cultura da violência,
o que quer dizer, um certo conhecimento dos modos apropriados de
sua manifestação (CERQUEIRA; NORONHA, 2004, p. 159-160).
Os autores ainda destacam que o perfil típico das vítimas de violência é
composto por sujeitos advindos das camadas menos abastadas, o que implicaria numa
cultura ainda muito presente no Brasil, a qual associa criminalidade às classes pobres
vistas como anormais. De outro modo, como motivação principal para o linchamento
podemos considerar que:
(...) Não é a gravidade do delito que impulsiona a vindita popular. Na
realidade, o que motivaria seria a descrença nas instituições de
controle social (polícia, justiça, prisão), aliada à falta de transporte, à
falta de saneamento, entre outras causas. (...) seria a experiência direta
156
ou indireta de vitimização criminal ampliada e reproduzida pelo
discurso do crime (CERQUEIRA; NORONHA, 2004, p. 168).
As técnicas utilizadas nos linchamentos dos EUA incluem mutilação do cadáver
(registro em fotos) e esquartejamento com divisão entre os linchadores das partes do
corpo linchado. No Brasil não vemos esse ritual com frequência.
Para Martins (2010), no nosso país, os linchamentos têm a característica de
“serem punitivos” (sic) e com a peculiaridade de que não só negros são linchados, mas
eles próprios participam de ações desse tipo, sendo que os linchamentos acontecem de
modo mais frequente nas cidades e, dentro dessas, nas periferias. Assim:
(...) Seria pobre a interpretação que se limita a vê-los (os
linchamentos) como manifestação de conservadorismo ou, ao
contrário, a neles ver indicação de uma conduta cidadã e
inovadora; antes, é necessário neles resgatar a dimensão
propriamente dramática do medo e da busca, ingredientes que
muitas vezes acompanham os processos de mudança social
(MARTINS, 2009).
Martins (2009) apresenta em seu texto alguns dados, dentre eles duas tabelas que
são reveladoras das características dos linchamentos praticados no Brasil, como
podemos ver a seguir:
Tabela 1 - Atrocidade nos linchamentos no Brasil, conforme a região (Em %)
Fonte: Martins (2010a, p. 307).
157
Tabela 2 - Brasil: Distribuição dos índices de participação, conforme o motivo do linchamento ou
tentativa de linchamento (Em %)
Fonte: Martins (2010a, p. 308).
Para Martins (2010a), ainda há outra diferença fundamental entre os
linchamentos praticados nos EUA e aqueles praticados no Brasil. Nos EUA, os
linchamentos são predominantemente do tipo vigilantismo e, no Brasil, são frutos de
mobilização espontânea e violenta para a punição, assim como há uma contestação
popular à ordem legal, o que os aproximaria do vigilantismo.
O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de
questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionamento do
poder e das instituições que, justamente em nome da impessoalidade
da lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos
(MARTINS, 2009, p. 40).
Um estudo realizado entre 1979-1982 por Benevides e Ferreira (1983) destaca
que o linchamento não é um fato inerentemente vivenciado só por pobres, contudo, é
mais frequente entre esses sujeitos. De todo modo, as cenas e notícias sobre
linchamento parecem satisfazer à média social, logo, não há um choque moral ou
estranhamento sobre esse fato, mas, antes, um sentimento de gratidão para com os
linchadores. Desse modo, vale destacar que para as autoras o linchamento é visto em
nossa sociedade como um resultado:
(...) Da exacerbação da agressividade de setores da população
economicamente mais marginalizada e, portanto mais exposta às
violências cotidianas (...) o descrédito na eficácia da polícia e na
“justiça” da ação da justiça. A incorporação dos métodos mais
158
violentos da própria polícia (BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p.
228).
Além disso, Benevides e Ferreira (1983) destacam, ao realizarem uma
contextualização geral sobre os linchamentos no Ocidente, que os mesmos já estavam
presentes nos EUA, quando da Revolução Americana e foram encabeçados por Charles
Lynch; na Alemanha, Inglaterra, Espanha, Rússia e Polônia, há registros de
linchamentos durante o medievo. Nos EUA, os linchamentos persistem durante o
século XX em ações de grupos como a Ku-Kux-Klan, assim como as autoras
consideram que durante o hitlerismo, podemos mapear casos de linchamentos na
Alemanha nazista.
As referidas autoras enfatizam, ainda, que os casos de linchamento nos EUA
foram transformados em crimes contra raça, pois há sempre ali uma prevalência de
linchamentos contra os negros.
Quanto ao Brasil, as estatísticas 87 sobre linchamentos estão abaixo de crimes
como chacinas. Esse fato remete à banalização desse tipo de violência, que é tido como
um crime esporádico e midiático.
Na verdade, essa imprecisão e naturalização dos linchamentos, presente nos
estudos e na representação social de tal evento, deve-se ao fato, dentre outros, de não
termos nem mesmo uma conceituação jurídica 88 que o nomeie. Talvez aí resida uma das
maiores dificuldades de mapear os casos de linchamento.
Do mapeamento realizado pelas autoras antes descritas, destacamos as seguintes
características sobre os linchamentos: 1) foram em maior número praticados em zonas
urbanas e pobres; 2) foram cometidos contra homens pobres com idade entre 16-25
anos; 3) tiveram como motivação os crimes contra a propriedade e contra o corpo,
especialmente, os crimes sexuais contra mulheres e crianças e os homicídios e
latrocínios; 4) os motoristas de táxis foram uma categoria recorrente como sujeitos
87
“Pesquisa do IBOPE, realizada no Rio de Janeiro em 1980, registrou que 44% dos entrevistados
apóiam o linchamento, pois, <se a justiça não age, o povo tem de agir>. De setembro de 1979 a
fevereiro de 1982, a imprensa noticiou 82 ocorrências: 38 linchamentos com vítimas fatais e 44
tentativas”. (BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p. 230).
88
“Se encararmos o problema do linchamento, do prisma estritamente jurídico - do fato que produz
lesões corporais leves, graves ou geralmente, a morte -, iremos verificar, de um lado, que é possível
enquadrar o ato típico em alguns dispositivos do Código Penal - nos artigos 121, 129, 132, 137 e 228”
(BICUDO apud BENEVIDES; FERREIRA, 1893, p. 244).
159
linchadores; 5) houve frequência de invasão às delegacias; 6) “[...] dos 82 casos
noticiados, não há, até os dias de hoje, qualquer conclusão de inquéritos [...]”
(BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p. 231.) (Grifo da pesquisadora).
A tese das autoras para a reincidência de linchamentos, a partir das variáveis
acima descritas, deve-se ao fato do descaso dos dispositivos de segurança para com as
zonas pobres e a não possibilidade dos habitantes desses lugares em “comprar segurança
privada”, como o fazem os estratos mais abastados da população. Assim, resta aos
primeiros, agir em causa própria, visando disciplinar, punir ou extinguir os promotores
da desordem:
(...) Nessas regiões pobres e sem qualquer segurança, o pagamento de
um “pedágio” ao assaltante para livrar-se do abuso sexual é comum.
Muito pior, no entanto, é o descaso da polícia diante desse tipo de
crime, o que aumenta a revolta das famílias: as denúncias são, em
geral, recebidas com ironia e humilhações; não raro os pais aflitos
ouvem a seguinte resposta: <a polícia não tem tempo de defender o
(...) de sua filha> (BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p. 233).
De acordo com as autoras, o linchamento é visto como uma reação da população
pobre à ausência ou ineficiência dos dispositivos de segurança na promoção da chamada
ordem social.
Assim sendo, elas classificam os linchamentos como anônimos (aqueles
cometidos por pessoas pobres em “legítima defesa”) e comunitários. O tipo de
linchamento comunitário é aquele praticado como reação imediata, na qual os
linchadores desconhecem o delito e não são nem vítimas diretas do sujeito linchado,
além do que esse tipo de ação ocorre com mais frequência em zonas abastadas da
cidade. Sendo assim, como se vê na citação que se segue:
(...) Não se trata mais da “justiça de talião” (...) mas da explosão de
violência punitiva de outra natureza (...) <histeria coletiva>. Tais
pessoas não foram diretamente atingidas pelo delinqüente, mas será
através da violência na agressão punitiva (...) que extravasarão seus
mais profundos sentimentos de insegurança, revolta e ódio
(BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p. 234).
As autoras enfatizam que nesse tipo de linchamento a fúria punitiva vai além da
morte, pois em muitos casos, há o enforcamento ou mutilação do morto. De acordo com
160
Benevides e Ferreira (1983), os linchamentos ainda divergem quanto às justificativas
dadas. Quando cometidos em pequenas cidades, tendem a ser planejados e têm o apoio
da média da população, principalmente em casos contra estupradores de crianças. De
todo modo, os linchadores sentem orgulho ao contarem a sua façanha: “para o povo de
Matão o dia do linchamento foi melhor que o Corpus Christi” (BENEVIDES;
FERREIRA, 1983, p. 235).
De outro modo, são bastante relevantes os dados que as autoras apresentam e
que remetem ao apoio e gratidão de “autoridades competentes” em relação aos
linchadores:
(...) Um delegado do Rio de Janeiro afirmou que, (...) <os
linchamentos fazem ver aos bandidos que eles não são donos da rua;
não se trata de fazer justiça com ódio aos criminosos, mas com amor
às suas vítimas> (...) O prefeito de Matão afirmou que <os linchadores
agiram certo e que 95% da população está de acordo> (...) E os
vereadores de Macaé felicitaram da tribuna da Câmara Municipal os
linchadores que <defenderam a honra da cidade> (BENEVIDES;
FERREIRA, 1983, p. 237).
De acordo com Paes (2006), há uma recorrência das análises científicas e de
práticas voltadas ao lazer (como por exemplo, filmes, músicas, jogos), que tomam o
crime/violência como foco e que de certo modo banalizam e até valorizam a ação
violenta.
Assim, ao realizar uma análise mais apurada na trajetória da sociedade brasileira,
o autor percebe que:
(...) As características assumidas pelo sistema de controle do crime no
Brasil, remetem ao monopólio do uso da força física, a reprodução da
desigualdade jurídica e a perda de lugar central do Estado no controle
da violência organizada e da criminalidade (PAES, 2006, p. 167).
Ainda aparece no texto de Paes (2006) uma menção aos estudos acerca dos
linchamentos na Bahia. Logo, ele apresenta os linchamentos como consequência do
vigilantismo que nasce da descrença da população nos dispositivos de segurança.
Pegoraro (2006) discute, a partir do enfoque marxista, a complexa relação entre
lei e realidade social, questionando as tentativas teóricas de justificação do
Jusnaturalismo. Para o autor, as normas são, antes de mais nada, frutos de contextos
161
históricos e sociais. Assim, “se estuviera presente em el fondo de uno mismo, La ley no
sería ya la ley, sino suave interioridade de la conciencia.” (FOUCAULT apud
PEGORARO, 2006, 174).
Portanto, em não havendo um apriori normativo, é que nós nos vemos às voltas
com a necessidade de “inventar” normas e processos normalizadores. Assim, o que
caracterizaria, para Pegoraro (2006), a vida em sociedade seria o fato de termos uma
certa tendência à contravenção.
Nesse sentido, a discussão do filme 89 Laranja mecânica, no qual há a
problematização dos processos socializadores e das técnicas da “ortopedia educativa”,
pode nos remeter a essa pretensão do controle social e, ao mesmo tempo, à fragilidade
das técnicas disciplinares de estímulo-resposta, a partir das quais se objetiva
moldar/reconfigurar o corpo e a mente de um “criminoso”. De outro modo, nós
podemos, então, contrapor a esses processos de disciplinamento as ações de vontade de
potência do protagonista, pois além da suposta coerção normativa, escapa à personagem
um viés libertário que o faz questionar e invadir espaços destinados aos normais.
Seguindo essa linha de raciocínio, questionamos se não é esse mesmo o motor
que propulsiona a multidão à ação além da norma posta. Assim, linchar não seria
questionar e deslegitimar o constructo da ordem e da eficácia das “práticas de Estado”?
Contudo, Pegoraro (2006) é previdente ao ressaltar que assim como “tendemos”
a questionar a ordem, também buscamos cumpri-la e, nesse sentido, o fato de ir de
encontro a certa norma não significa que não aceitemos nenhuma, mas que aquela,
naquele momento, naquela situação, não é adequada. Entretanto, estamos, mesmo
quando das contracondutas, tentando fomentar uma nova ordem social.
Assim, se toda Lei é arbitrária, pois verticalmente construída e efetivada, as
contracondutas, como os linchamentos, também geram uma nova pragmática de
castigo/coerção e se, para os “poderes constituídos” eles são atos ilegais; para a maior
parte da população eles podem ser vistos como uma medida higienista que “limpa e
livra-a da sujeira do criminoso”.
89
Ver: Laranja... (2001).
162
Portanto, quando se olha a construção da história dos delitos, pode-se ver que
esses são assomados pela normatividade jurídica e, assim, são conceituados e
caracterizados sem considerar as variáveis contextuais que os provocaram. Por isso:
(...) La historia social y política de las violaciones populares a la ley
(...) debe ser entendida como producto de una serie de confrontaciones
entre la economia de mercado y La outra economia de la subsistência
(...) El derecho o el acceso a la subsistência no puede ser
sociologicamente reducido a la simple categoría de <delito>
(PEGORARO, 2006, p. 178).
Nessa passagem, temos uma visão clássica que aponta a ação da multidão, em
saques, sedições ou linchamento, como sendo uma ação de vigilantismo. Nesse sentido,
nos perguntamos: será que algum dia não olharemos para os séculos XIX, XX e XXI e
reavaliaremos a nossa interpretação acerca dos linchamentos? As variáveis apontadas
em estudos realizados sobre tal tema já nos mostram saídas alternativas às classificações
jurídicas, ao considerarem, por exemplo, a corrupção das “práticas de Estado” e dos
seus dispositivos de segurança e a ineficiência e morosidade desses últimos, que nos
fazem pensar nas motivações que levam à turba a se formar e a agir por si mesma. O
projeto moderno de ordem não se concretizou e a população reagiu à ineficiência das
““práticas de Estado”” em promover e manter a lei e a ordem. De outro modo, a
população que lincha também é movida por princípios religiosos que ligam o ato de
linchar à possível purificação do mal causado. O linchamento é vingança e reparação.
Contudo, Pegoraro (2006) enfatiza as estratégias que os poderes constituídos e a
mídia usam para classificar a anormalidade a partir das teses da criminologia positivista,
que visam enquadrar ou encarcerar a figura do criminoso, arregimentando-a nas
camadas menos abastadas da população, negligenciando os desvios cometidos por
aqueles que se encontram entre os abastados.
O delito é, então, visto na modernidade como sintoma da des-razão, pois que
nega a racionalidade da norma. É ao mesmo tempo, um instrumento que suscita a
repressão. Conforme discutido anteriormente, o delito é sempre rotulado quando da
ação daqueles advindos das camadas menos abastadas, até porque, esses não têm fácil
acesso ao sistema educacional/normativo dito universal, que, para o ideário moderno,
constituiria a “humanização do homem”, pois que acrescentaria a segunda natureza, a da
163
razão e da obediência. Logo, em nossa sociedade, geralmente, crime e pobreza são
complementares.
De modo diferente da visão marxista antes discutida, Foucault (2008b) estuda as
práticas racionalizadoras no “exercício da soberania política”, destacando a
especificidade e a autonomia das “práticas de Estado” em relação a outros poderes,
como, por exemplo: Deus e a família.
Esse “Estado autônomo” nasce do mercantilismo e legitima-se no liberalismo.
Contudo, no século XVIII, surge a chamada “limitação da arte de governar”. Assim, a
autonomia e o exercício do poder de polícia do governo teriam um recuo.
A economia política e sua intenção de enriquecimento do Estado será no século
XVIII o grande instrumento de limitação, nascido no próprio seio das “práticas de
Estado”, visando planejar o crescimento da população e os meios de subsistência dessa,
assim como, garantir que o Estado tenha o controle da população.
De outro modo, a questão da fomentação da verdade será a segunda limitação do
Estado. O estabelecimento da verdade fica condicionado à legitimidade ou ilegitimidade
do governo e essas são apreciadas a partir da eficácia desse governo.
A lógica para a razão das “práticas de Estado” moderno e da sua autolimitação
seria: “se as pessoas estão quietas (...) se não se agitam, se não há descontentamentos,
nem revolta (...) fiquemos quietos” (FOUCAULT, 2008b, p. 27). Nesse ponto, O
liberalismo político e econômico passou a reger a “razão de Estado” e este de todo
modo, cedeu à primazia da livre ação do mercado e dos “empreendedores individuais”,
metaforizada na máxima smithiana da “busca do auto-interesse próprio” 90.
Mas, quem estuda o linchamento pode tomar essa contextualização como viável?
Entendemos que sim, pois os linchamentos parecem que são úteis às “práticas de
Estado”, uma vez que, provavelmente, isenta-os de ações custosas e caras para a
resolução de conflitos e normalmente os linchamentos são realizados por criminosos,
sem recursos, para terem uma proteção rápida e eficaz pelos dispositivos de segurança.
Ora, se não fosse assim, não veríamos linchamentos ocorrerem dentro de presídios e
delegacias ou, ainda, durante prisões. É curioso o fato de que não se mapeia nenhum
caso de linchamento contra políticos corruptos (crime contra a propriedade pública),
90
Ver: Smith (2006).
164
empresários (que sonegam impostos ou desfalcam empresas privadas), contra médicos
ou psicólogos que (abusam de pacientes durante o atendimento-tratamento). Todos eles
personagens de crime contra a propriedade e contra a pessoa.
Os processos de estigmatização, vitimização e naturalização das mortes de vidas
passadas, consideradas inúteis são irrefutáveis, pelo menos aqui no Brasil. Já as vidas
abastadas são depositárias do primado da justiça legal e a crença da readaptação social
“promovida” pela prisão.
Considerando a peculiaridade (poder aquisitivo? capital social e cultural?) que
seleciona a vítima do linchamento, Sousa (1999) mostra que os EUA têm os maiores
índices.
No Brasil, os registros mais significativos (SOUSA, 1999) aparecem entre os
anos de 1853-1990, tendo um número de 533 registros, nos quais são incluídos
linchamentos e tentativas.
Para Martins (2009) 91, a contemporaneidade acena para um quadro de aumento
dos índices de ocorrência de linchamentos em países ricos e pobres, o que aponta
também para uma desconstrução do ideário de que os linchamentos são típicos de
sociedades politicamente frágeis e desorganizadas.
Os linchamentos têm a característica do uso excessivo da violência e da
destruição do corpo linchado. Nesse sentido, as práticas de linchamento trazem uma
proximidade com as caças às bruxas durante o medievo e começo da modernidade. Ali,
o objetivo da ação não se extinguia com o espetáculo público da morte, mas era preciso
destruir o corpo herege. Dessa forma, pensando a partir da nossa formação judaicocristã, podemos perceber que os suplícios e mutilações são uma forma de ascese que
tem nos acompanhado há muitos séculos e, em diferentes situações, como por exemplo,
nas “brincadeiras de destruição de Judas”, tão comuns em países ditos católicos.
Desconfiamos então que a violência exacerbada que se vê nos linchamentos, remete à
91
Apesar da nossa proposta teórico-metodológica estar diametralmente oposta a de Martins,
entendemos ser indispensável à aproximação a sua discussão sobre linchamento, pois que ele é um dos
teóricos no Brasil que mais têm se dedicado a tal tema e suas pesquisas revelam um monitoramento
contínuo de tal ação. Contudo, para Martins, o linchamento é uma variável vista a partir da luta de
classes (com base no marxismo e na tradição marxista estricto senso). Diferentemente disso, para nós e,
não obstante considerarmos que os linchamentos são mais comuns em pessoas, zonas e condições de
pobreza, nós o problematizamos a partir de discussões que tomam a violência como princípio fundante
da sociabilidade e não unicamente da sociedade capitalista ou do marco que prioriza as lutas de classes.
165
necessidade de “purificação social”, de eliminação da vida impura; de normalização das
vidas sacras e, de todo modo, ainda ameniza a “culpa social” que o coletivo sente por
saber-se incapaz de prevenir/coibir os crimes heréticos 92.
Assim, o fogo seria a última tática de eliminação da vida impura e a garantia de
que ela purgará definitivamente a sua culpa. Talvez aqui numa alusão direta ao inferno
bíblico que consumiria a alma perdida.
Um exemplo da discussão anterior pode ser visto no manual de caças às bruxas
onde se leem os princípios de identificação da alma herética, tais como:
(...) Existência de denúncia formal ou boatos; identificação de
testemunhas; busca de evidências dos malefícios; busca de evidências
dos instrumentos de ação; aprisionamento; interrogatório; uso de
tortura; promulgação da sentença; execução; espetáculo da queima dos
corpos na fogueira (SOUZA, 2008, p. 329).
Como visto nas páginas precedentes, essa sistemática de inquérito, julgamento,
condenação e destruição do corpo também é comum em casos de linchamento 93. Desse
modo, entendemos que a transição do sistema teocrático para o judiciário (laico?), não
rompeu com o escopo da vingança, só que agora ela deve ser executada em nome da
razão e pelas “práticas de Estado”. Mas, parece que se essas práticas não têm o crédito
necessário para a ação, à população pune por conta própria.
Pode-se depreender daí que quando identificamos o florescimento de
práticas marginais significa que o sistema, que deveria ser detentor do
monopólio sobre a violência final, está sendo incapaz de controlar a
escalada de vingança. É por isso que para uma compreensão adequada
das práticas marginais, incluindo aí o linchamento, é fundamental
identificar tanto o funcionamento da polícia e do aparelho judiciário,
quanto clarificar a relação que se estabelece entre tais instituições e a
população (MARTINS, 1999, p. 330).
Nesse sentido, vale a pena ratificar que não só a população em geral protege os
linchadores, mas que sempre em casos de linchamento ficam dúvidas quanto à
92
Ver os casos bíblicos de apedrejamento público de ladrões, prostitutas ou adúlteras e, no medievo a
morte de bruxas. Já na época vitoriana e, hoje, na contemporaneidade, o horror a infanticidas, ladrões e
estupradores que suscitam o linchamento.
93
Ver O Linchamento de Chapecó (2009), considerado um dos “clássicos” acerca dessa temática no
Brasil.
166
legitimidade do inquérito sobre o ato. Inquérito que muitas vezes não problematiza com
rigor a prisão, o transporte e as condições de encarceramento do preso que foi vítima de
linchamento.
Martins (2009) chama a atenção para o fato de que parece, na maioria das vezes,
haver facilitação por parte dos dispositivos de segurança a que a multidão tenha acesso
ao preso. E, mais, que durante a instrução do processo há “descuidos” que dificultam o
esclarecimento do caso.
A tese central de Martins (2009) é a de que tanto no medievo, quanto na
modernidade e, ousa-se acrescentar, na contemporaneidade, o grande impasse para a
população em geral e para os pesquisadores é o da avaliação da chamada imparcialidade
da construção dos discursos de verdade, fomentados pelos dispositivos de segurança,
uma vez que os dados sobre o linchamento e as suas supostas provas podem sofrer
alterações que visem beneficiar, ocultando os linchadores.
Martins (2009) enfatiza o conteúdo teológico da ação linchadora, que estaria
balizada na cultura do “olho por olho e dente por dente!”, na qual não basta punir, é
preciso matar e destruir o corpo do criminoso.
Martins (2009) deixa clara a sua orientação teórica, ao defender a retomada e
disseminação do monopólio legítimo da violência pelo Estado. Ele enfatiza a noção de
desordem social e aponta os linchamentos não como uma perspectiva de democracia
radical, mas como o aprofundamento da cultura do extermínio.
Essa é uma visão extremamente iluminista, que outorga às “práticas de Estado”
o arbítrio da força para a constituição da ordem. Porém, não percebe a incongruência de
seu argumento ao não apresentar exemplos de sociedades (no nosso caso, Ocidental) em
que os fundamentos contratuais modernos deram conta da “harmonia e equidade”.
Portanto, chega a ser agressiva a sua concordância em ver “permanência do
arcaico em sociedades modernas”, ao exemplificar os casos de linchamento. Pois, nessa
afirmação, está implícita a leitura violenta do assimilacionismo moderno que, embasada
no evolucionismo social, invadia, classificava e exterminava o dito bárbaro em nome da
civilização e do progresso!
Desse modo, como já discutido no capítulo anterior, entende-se que os abusos
cometidos pelos dispositivos de segurança têm o álibi da tentativa de instituir a ordem,
entretanto, se a violência parte da população é vista como desordem/crime.
167
Defender um “Estado maior” em nome da repressão da violência é tão ingênuo
quanto acreditar que o higienismo tinha por meta o bem estar da população. São ambas,
falácias da modernidade que dão vida à pretensão de esquadrinhar e disciplinar os
sujeitos.
Para Sinhoreto (2009), os linchamentos escapam à lógica estigmatizante que lhes
conferem as características de ações bárbaras. Ao contrário, ela os toma como práticas
racionais.
(...) Os linchamentos podem ser interpretados como expressão coletiva
de um certo grupo que, mobilizado por uma revolta, investe contra um
ou mais indivíduos considerados transgressores de regras
fundamentais, para aplicar-lhes justiça sem intermediações
(SINHORETO, 2009, p. 2).
Em uma revisão de literatura, que abarcou prioritariamente a década de 1980, a
autora apresenta diferentes teses que explicam a mobilização para o linchamento, a
saber: a) o linchamento seria, stricto sensu, uma forma de justiça popular 94, emergida
do conflito entre a justiça estatal e o descrédito da população com a mesma; b)
indignação com a ação policial em relação aos crimes de roubo e ataques sexuais, que
como crimes contra pobres, é descuidado pela polícia, cuja resolução é morosa ou não
existente; c) os pobres não suportam o fato de terem que se submeter à violência
praticada por seus pares; d) linchamentos são práticas que remetem à democracia
participativa; e) os linchamentos misturam práticas rurais de justiça camponesa, com
práticas camponesas de contestação oligárquica.
Para Sinhoreto (2009), “há conivência da polícia” com a prática de linchamento.
De algum modo, ela facilitaria a ação da população e descuidaria do processo pericial e
investigativo.
Whyte (2005), na segunda parte da sua obra Sociedade de esquina, nos fornece
uma discussão que, de certo modo, aproxima-nos da tese de Sinhoreto (2009). Dessa
forma, ao analisar as relações entre a polícia e a população, o autor enfatiza o ideário do
“bom policial” aquele que transmite uma imagem de confiança e pessoalidade, o que
ajudará na resolução dos conflitos. Apresentando, dessa forma, uma tese da
94
Ver Foucault (1982), acerca da justiça popular ao discutir o tema com estudantes maoístas,
defendendo a tese de que o tribunal é uma expressão de intermediação entre as ações populares e o
Estado ou, grosso modo, é a primeira deformação da justiça.
168
interatividade entre os jovens pobres “que se tornam líderes”, os gangsteres, os políticos
e a população em geral, tem a polícia um papel de mediadora e não exatamente de
dispositivo de segurança. As barganhas e negociatas são o tônus das relações entre as
personagens antes descritas.
Numa perspectiva bem diferente das anteriores, pois agora poderá ser visto o
primado da razão moderna falando, mesmo que pela boca de representante da tradição
marxista, Benjamim (1986) discute a relação entre violência, justiça e direito e mostra
que é violento todo ato que atinge a ética, ou seja, ameaça a ordem posta. Contudo,
dentro do próprio direito, encontra-se o precedente de que a violência é um meio e
sendo assim ela pode ser usada para fins justos. Esse seria o primado do Direito Natural,
que de todo modo, normatiza, por exemplo, a desigualdade social. Logo, naturaliza a
exploração e a submissão do homem pelo homem, ou da violência praticada pela
Revolução Francesa em nome de uma causa maior, a saber: a constituição da tríade
liberdade-igualdade-fraternidade. Portanto, a violência, nesse contexto, é descrita como
algo imanente e positivo à condição humana e o contexto social moderno só viria a
arrefecer esse voluntarismo violento. A razão moderna busca, através do processo de
representatividade política e centralização do uso do poder pelas “práticas de Estado”,
dominar-manipular a violência intrínseca ao humano.
De outro modo, o Direito positivo defende que o poder e a violência não são
dados da natureza, mas antes, são historicamente construídos. Entretanto, tanto o Direito
natural quanto o Positivo, concordam que os fins justificam os meios, ou seja, a
violência é válida quando for usada em nome do bem coletivo.
Com a modernidade, vemos que o “Estado” representado pelas práticas do
Direito visa, cada vez mais, retirar do indivíduo o uso da violência-poder numa busca da
adesão-submissão do Direito natural ao Positivo e, de outro modo, essa seria a razão
basilar para que os indivíduos antipatizem o direito positivo formal, ou o sistema
judiciário. Sabendo-se, sentindo-se usurpado no seu direito de resolução imediata dos
litígios, o povo volta-se contra a normativa do direito positivo. Logo, aquelas práticas
discursivas e interventivas empreendidas por instituições denominadas Estado, sistema
judiciário e polícia, são justificadas como ações da razão e toda forma de emergência do
uso da violência pelo povo é rotulada de barbárie/des-razão e perigo.
169
Para resolver o impasse entre violência legítima (sistema formal punitivo) e
ilegítima (praticada pelo povo), criamos na modernidade a mediação por meio das leis
e, se quisermos numa crítica mais ousada e aguçada, podemos pensar na razão
instrumental da tese habermasiana da teoria da ação comunicativa que nesse sistema
judiciário acena para nós a partir de meados do século XX, como uma alternativa,
constituindo-se em justiça conciliadora ou comunicativa, negociativa e procedimental,
pois crédula no primado da razoabilidade e satisfação mútua encontra a alternativa no
binômio concessão-conquista, ou, cedo, você ganha, nós ganhamos! Ambos saímos
felizes, afinal a balança da justiça manteve-se equilibrada e seus pesos não penderam
em desalinho. Essa tese utópica seria perfeita se a justiça não tivesse desde a sua
origem, apesar de cega, um instinto muito forte para pender para o lado que disponha de
maior capital cultural, econômico e social 95. Isso vale para a retórica do indivíduo
acusado ou, mais especificamente, ao conjunto habilidade-conhecimento-persuasão do
defensor ou do acusador e isso sem falar da relação tão criticada por Marx e pela
tradição marxista, que dá conta do caráter economicista de defesa da propriedade
privada e dos interesses individuais da chamada elite no poder.
Nesse sentido, a antinomia e, ao mesmo tempo, complementariedade entre
violência/poder, sendo esse legítimo ou ilegítimo, são processos contínuos e
retroalimentares da tanatologia do poder instituinte e constituinte, numa luta constante
entre “ordem/desordem”, que é espetacularizada e aponta para a necessidade de
formação de uma nova ordem. Assim, por exemplo, dentro da visão clássica do
exercício do poder, os atos de linchamento desnudariam uma falência/fragilidade da
“justiça formal” e proporia (?) a alternativa da justiça imediata, vendo nesse processo
resistência e contraponto revolucionário, ou seja, abaixo uma ordem das elites e o
estabelecimento de uma nova ordem do povo. A ordem permanece, o que muda são os
manipuladores dos seus fios. Vimos ao longo do século XIX e XX, as “revoluções
francesa e socialista” estabelecendo o novo primado da liberdade do homem. Vimos,
95
“Dados Gerais do Ministério da Justiça: 2009: 440 mil pessoas (sendo 158 mil em São Paulo);
Crescimento acelerado – 4 a 7% por ano: 94% homens; 6% mulheres; 95% Pobres ou muito pobres; 65%
negros (pretos + pardos, segundo critérios do IBGE); 75% não completaram a educação básica; 12% são
analfabetos; 60% têm entre 18 e 30 anos; 8,9% estão envolvidos em homicídios; 30% poderiam ter
acesso imediato a penas e medidas alternativas; apenas 18% têm acesso a alguma atividade educativa
no sistema prisional”. (CARREIRA, 2009).
170
também o totalitarismo a que isso nos levou. Desse modo, não se entende o linchamento
como uma alternativa à ordem posta, mas como uma ação intrínseca e ritualística na
ação humana, que não propõe um novo primado, mas que apenas age a partir da
fugacidade do instante de fúria coletiva.
Portanto, pensamos que o ato da violência praticada pela multidão linchadora
não é uma ação teleológica, mas antes, um acaso/acontecimento sem pretensão de
constituir uma nova ordem. Quer dizer, não acreditamos no “poder revolucionário das
massas”. Esse ideário é o da mistificação do poder revolucionário. Ora, tentou-se, ao
longo deste texto, propor justamente o contrário disto, ou seja, a tese da casualidade da
formação e esvaziamento da multidão.
Por fim, o uso da violência é um ato fundador das sociedades humanas, tanto no
que diz respeito a sua ação sobre a criação do Direito, quanto na sua busca por mantê-lo.
Nesse sentido, não concordamos que os atos de violência individual ou coletiva tenham
a pretensão de criar outra ordem, mas antes, eles nos acenam, grosso modo, para aquilo
que o próprio Benjamim (1986) destaca, ou seja, a mistificação do exercício do poder
ou, como nos mostra Girard (1999) a reificação da violência fundante: o ato sacrificial.
4.3.
O TEATRO DA “FORÇA DO POVO”: LINCHAMENTOS NA PARAÍBA
A coleta de dados sobre casos de linchamento na Paraíba remete à discussão
subsequente, a qual apresenta os títulos das reportagens, para que destaquemos o modo
banal e espetacularizante com que os meios de comunicação de massa tratam a questão.
De outro modo, num segundo momento, há a exposição das tabelas que foram
construídas a partir de pesquisa realizada em sites de jornais locais.
Os dados foram distribuídos em duas fases: na primeira, foi apresentada uma
resenha da pesquisa realizada em fontes de mdcm; num segundo momento, as tabelas.
Assim, como visto na discussão anterior, surgiram muitas dificuldades na coleta
dos dados acerca dos linchamentos. Primeiramente, as fontes de reportagens
jornalísticas são construídas de modo que enfatizam muito uma abordagem
sensacionalista 96 do linchamento. Por outro lado, não há por parte dos dispositivos de
96
Nessa abordagem privilegia-se a estratégia do apelo emocional, do exagero da visibilidade do “fato” e
busca-se antes de mais nada manter a audiência e garantir os lucros. Por exemplo, as chamadas
coberturas em “tempo real” de catástrofes humanas sejam elas de origem natural, seca, enchente,
171
segurança uma delegacia específica para atender denúncia de casos de linchamento.
Logo, assim como em outros estudos apresentados ao longo deste capítulo, restaram
apenas os dados veiculados pelos mdcm.
Foram mapeados sete casos de linchamento e os demais, tentativas. Contudo,
como foi realizado o levantamento geral, todos os casos foram expostos. Eles serão
apresentados na sequência deste texto. É oportuno destacar que nessa primeira parte, em
que são descritos os linchamentos, eles estão sendo reproduzidos de modo literal em
relação às reportagens pesquisadas e, portanto, não há necessidade de colocar os
discursos entre aspas.
4.3.1. “Esquartejamento em Picuí”
Em Picuí, no dia 20 de junho de 2006, às 09h35min. As características do
linchamento são de assassinato, seguido de esquartejamento. O título da reportagem era:
Moradores de Picuí lincham acusados de esquartejamento (2009). A vítima foi
Severino Cassimiro da Silva, 31 anos, morador da mesma localidade. E o linchado foi
José Santos do Nascimento, 31 anos, também morador de Picuí. Milhares de pessoas
invadiram a delegacia onde o acusado foi apedrejado e teve seu corpo queimado. Foram
utilizadas pedras e depois material inflamável. Não há um número exato de pessoas
envolvidas no ato.
tsunami, ou de origem social, nessa a violência é então o espetáculo mais lucrativo. Ver: MATOS (2007).
Para Paixão (1983, p. 34) “a representação dramática do tema [violência] via imprensa, seja por
sensacionalismo ou por interesses ideológicos, se adiciona a experiências pessoais diretas ou indiretas
na produção de imagens coletivas da criminalidade urbana”. Assim o “tipo ideal” de criminoso posto
pelos mdcm tem as seguintes características: homem com idade entre 18 e 30 anos; imigrante e
migrante; menores que cometeram crime contra o patrimônio; negros envolvidos com furto; brancos
envolvidos com tráfico de drogas; desempregados ou empregados braçais (pedreiros, pintores);
analfabetos. Como podemos ver o criminoso é antes de tudo O POBRE. Assim: ”estatísticas são o
produto da atividade prática e cotidiana do policial e esta lógica em uso configura um segundo método
de geração de categorias delinquentes - ou com objetivo abstrato de <combate ao crime> se traduz em
procedimentos organizacionalmente apropriados de seleção e filtragem de possíveis autores de
crimes[...]<más atitudes>, pais separados ou definidos como incompetentes, desempenho escolar
negativo, pobreza, associações com suspeitos” (PAIXÃO, 1983, 42).
172
4.3.2.
“Em Alhandra, Polícia facilita linchamento”
Em Alhandra, no dia 1º de agosto de 2005, às 14h15min, houve um assalto à
mão armada, seguido de morte. O título da reportagem era: Major que teria facilitado
linchamento tem preventiva pedida (2009). Houve uma invasão na cadeia municipal
que, segundo a reportagem, foi facilitada pelo major Aurélio Aires do Nascimento, onde
outras pessoas lincharam o preso. O linchamento foi qualificado como espancamento do
preso e homicídio qualificado. Foram autuadas 11 pessoas (adultas) e um menor de 17
anos.
4.3.3.
“Assaltante de saidinha de banco é linchado”
Em João Pessoa, em 1º de outubro de 2008, às 19h. O título da reportagem era:
Vítima reage à “saidinha de banco” e assaltante é linchado (2009). A população que
passava pelo local linchou o acusado. Realizaram o linchamento com agressão física.
Não há um número exato acerca dos envolvidos.
4.3.4.
“Assassino linchado pelos próprios presos”
Guarabira, em 15 de junho de 2006, às 15h20min. Título: Assassino de
doméstica é encontrado morto no Presídio Bosco Carneiro (2009). José Trajano da
Silva, 24 anos, morador do sítio Tananduba de Baixo, município de Araçagi, Brejo
Paraibano, foi acusado de assassinato. A vítima foi Josefa Francisca da Costa, 36 anos,
moradora do sítio Tananduba de Baixo, município de Araçagi, Brejo Paraibano. Aquele
foi linchado pelos próprios presos. Eles utilizaram espetos de paus das camas. Não há
número exato dos envolvidos.
4.3.5.
“Pedófilo linchado em Cajazeiras”
O título da reportagem era: População tenta linchar acusado de abuso, em
Cajazeiras (2009). O fato ocorreu no dia 3 de outubro de 2007, às 12h31min. O acusado
(Roberto Pereira Gonçalves, 27 anos, morador de Cajazeiras), praticou violência sexual
contra uma criança. O nome da menor não foi citado. Ela tinha 09 anos e era moradora
173
de Cajazeiras. Cerca de 150 pessoas tentaram linchá-lo na hora da prisão, buscando
fazer justiça com as próprias mãos.
4.3.6.
“Ameaça de linchamento contra pedófilo em Santa Rita”
Em Santa Rita, acusado (Severino Sousa Santos, 36 anos, morador da
localidade), de 45 casos de violência sexual contra crianças. O título era: Violência
sexual: 45 casos contra crianças (2009). Em um deles, ocorrido no Bairro de Várzea
Nova, Santa Rita, a população chegou a ameaçar linchar o acusado de tentar estuprar
uma criança de seis anos. O fato ocorreu no dia 12 de julho de 2007, às 21h2min. O
nome da menor não foi citado. Os moradores tentaram matar o estuprador com pedaços
de paus e pedras. Não há um número exato sobre os envolvidos.
4.3.7.
“Em João Pessoa, população tenta apedrejar acusado”
Em João Pessoa, no dia 9 de setembro de 2006, às 04h32min. O título da
reportagem era: Polícia paraibana não consegue resolver casos graves (2009). Houve
agressão física às pessoas nas ruas. Não foram citados os nomes dos agressores, nem
tampouco, os nomes das vítimas de rua. Os moradores tentaram apedrejar, utilizando,
também pedaços de paus. Não há o número exato dos envolvidos.
4.3.8.
“População tenta linchar pedófilo na prisão”
Entre 17 e 23 de setembro de 2004. Em Campina Grande, um caso de abuso
sexual contra menor (praticado por Ednaldo de Lima Moraes). Nem o nome e nem a
idade da menor foram citados. A população tentou matar o acusado na hora da prisão,
usando pedras e pedaços de paus. Não há número exato dos envolvidos.
4.3.9.
“Maníaco sexual sofre tentativa de linchamento”
Título: Força-tarefa prende vigilante que atacava mulheres em Campina
Grande (2009). Em 18 de novembro de 2008, às 19h46min. O acusado é Fernando
Mendes da Silva, de 29 anos, morador de Campina Grande. As vítimas foram cinco
mulheres que supostamente foram estupradas pelo acusado. Elas tinham entre 16 e 47
174
anos de idade, e eram moradoras daquela cidade. A polícia levou o acusado para o
hospital, sob vigilância, para evitar que ele fosse linchado, já que os moradores estavam
revoltados. Não aconteceu o linchamento. Não há número exato dos envolvidos.
4.3.10. Em Pocinhos tentativa de linchamento contra pedófilo
Em Pocinhos, o título foi: Pedófilo alicia criança e paga R$ 1 (2009). Em 1º de
fevereiro de 2009, às 22h. Milton Joffily Guedes, 44 anos, morador de Pocinhos foi
acusado de cometer abuso de menor e pedofilia pela internet. Nem o nome e nem a
idade do menor foram citados. Os Moradores cercaram a delegacia e tentaram depredála e linchar o acusado, usando pedras e pedaços de paus. Eram cerca de 100 pessoas,
mas, não foram identificadas.
4.3.11. “Assassino sofre tentativa de linchamento em Aroeiras”
Em Aroeiras. Título: Homem mata a namorada dentro da Igreja com várias
facadas (2009). No dia 22 de dezembro de 2003, às 21h11min. O acusado de
assassinato foi José de Arimatéia de Lima, 42 anos, morador de Aroeiras. A vítima era
Maria das Dores Filomena da Rocha, 45 anos, moradora de Aroeiras. A população
queria linchar o acusado na hora da prisão, utilizando pedras e pedaços de paus.
4.3.12. “Tentativa de linchamento em velório”
João Pessoa, em 15 de agosto de 2008. O título era: Suspeito vai a velório e
quase é linchado por populares (2009). Acusado de assassinato e estupro, Luciano da
Silva, 23 anos, morador de João Pessoa. A vítima era Daniele de Araújo de Figueiredo,
15 anos, moradora de João Pessoa. A população reagiu com agressão física. Não há
número exato sobre os envolvidos.
4.3.13. “População tenta linchar pastor pedófilo em Santa Rita”
Em Santa Rita, o título era: Pastor da Assembleia de Deus é preso sob acusação
de pedofilia em Santa Rita (2009). Havia suspeitas de crime de agressão sexual e
pedofilia. O acusado, Antonio Carlos Silva, 47 anos, morador de Santa Rita. Nem o
175
nome e nem a idade da menor foram citados. Os vizinhos queriam linchar o acusado.
Não foram citados os meios que utilizaram, nem o número de pessoas envolvidas.
4.3.14. “Agressores sofrem tentativa de linchamento”
Cabedelo, 13 de outubro de 2006. O título era: Bandidos da Asper e capangas de
Severino Paiva agridem fisicamente Gilson Gondim (2009). Um pequeno grupo de
estudantes em protesto pela construção de uma passarela, fecham a BR 230, sentido
Cabedelo. Gilson Gondim, motorista insatisfeito com engarrafamento, para e pede
esclarecimentos e é agredido verbal e fisicamente pelo grupo. “Baderna, arruaça, fúria
homicida e professor de linchamento”, foi como classificou os agressores, a vítima.
4.3.15. “Em delegacia, estuprador de criança sofre tentativa de
linchamento”
Guarabira, 4 de abril de 2008, às 09h41min. Título: Criança é estuprada e morta
quando voltava da escola (2009). Fernando Eduardo dos Santos, 29 anos e Sebastião
Batista dos Santos, 24 anos, moradores de Guarabira, foram acusados de cometerem
assassinato e estupro. Nem o nome e nem a idade da menor foram citados. A população
apedrejou a delegacia usando pedras e pedaços de paus. Não há número exato acerca
dos envolvidos.
4.3.16. “Delegacia é invadida por linchadores”
Guarabira, em 16 de outubro de 2005, às 11h47min. Sebastião Costa Lopes,
morador de Guarabira, foi acusado de assassinato contra Ivanilson da Silva, 26 anos,
também morador daquela cidade. Houve tentativa de invasão da delegacia para linchar o
acusado. A população usou pedras e pedaços de paus. Não há número exato dos
envolvidos.
4.3.17. “Aliados políticos tentam linchar opositor”
Taperoá, em 9 de setembro de 2004, às 10h12min. Título: Brigas esquentam
clima no Cariri: Aliados do candidato a prefeito Deoclécio Moura (Coligação
176
PMDB/PT) agrediram a vítima (2009). A população ficou furiosa com os acusados.
Não foram citados mais detalhes.
4.3.18. “População de Sumé tenta linchar diretor do DNOCS”
Sumé, 9 de novembro de 2007, às 10h17min. Título: Água de beber iria ser
usada para irrigar tomates em Sumé (2009). A vítima foi o Diretor Geral do DNOCS
da Paraíba, Solon Alves Diniz, morador de Sumé. Não foram citados os nomes dos
moradores. A população queria linchar o acusado.
4.3.19. “Atropelamento e tentativa de linchamento”
João Pessoa, 27 de outubro de 2008, às 07h23min. Título: Veículo invade a
calçada e mata duas pessoas na Torre, em JP (2009). O acusado Leandro Fernando,
morador de João Pessoa, embriagado, causa morte. As vítimas fatais foram Júlia
Galdino de Oliveira, 68 anos, e José de França Campos, de 86 anos, moradores de João
Pessoa. Os moradores destruíram o veículo e tentaram linchar o acusado. Não foi citado
o número exato dos envolvidos.
4.3.20. “Índios revoltados contra atropelamento”
Baía da Traição, 3 de novembro de 2008, às 07h45min. Título: Comunidade
indígena se revolta com acidente e ateia fogo em carro (2009). Cristina da Silva, 27
anos, moradora de Guarabira, acusada de homicídio culposo, contra a vítima Adriana
Medeiros, 24 anos. A população queria linchar a acusada. Atearam fogo no carro da
mesma. Não há número exato dos envolvidos.
4.3.21. “Doente mental é linchado e preso”
Santa Rita, 19 de outubro de 2008, às 15h26min. Título: Criança é agredida por
doente mental em Santa Rita (2009). O acusado: Genilson Moraes da Silva, 32 anos,
morador de Santa Rita. Nem o nome e nem a idade da menor foram citados. O acusado
quase foi linchado pela população, escapou porque foi preso. Não foi citado o número
dos envolvidos.
177
4.3.22. “Atropelamento incita tentativa de linchamento”
Campina Grande, 21 de agosto de 2008, às 07h54min. Título: Enfermeira que
atropelou e matou criança na Prata se apresenta à polícia (2009). Aldiene Alves
Bezerra, (acusada de homicídio culposo), moradora de Campina Grande. A vítima Vitor
da Silva Gomes, de cinco anos, morador de Guarabira. A população revoltada queria
linchar a acusada, utilizando pedaços de paus e pedras. Não há número exato acerca dos
envolvidos.
4.3.23. “Atropelamento bárbaro revolta moradores”
Campina Grande, 17 de agosto de 2008, às 11h05min. Título Criança morre
após ser atropelada e arrastada por uma moto (2009). Houve a acusação de homicídio
culposo, não é citado o nome do acusado e nem da vítima. A população revoltada
queimou a moto e os pneus, o acusado fugiu. Foi utilizado material inflamável. Não há
número exato sobre os envolvidos.
4.3.24. “Moradores tentam linchar assaltante”
Campina Grande, 23 de março de 2007, às 14h08min. Título: Um homem
acusado de praticar assaltos foi agredido por moradores do centro de Campina
Grande, ontem à noite (2009). Não há registro da data e hora. O acusado é Wellington
Santos Ângelo, 23 anos, morador de Campina Grande. Não foi citado o nome e nem a
idade da vítima. Os moradores reconheceram o acusado e começaram com a tentativa de
linchamento. Não foi citado o número dos envolvidos.
4.3.25. “Moradores tentam linchar motorista”
Campina Grande, 27 de maio de 2010, às 13h16min. Título: Moradores tentam
linchar motorista após acidente na Paraíba (2010). Não há um número exato. O
agredido foi Mario Laurindo Barros Junior, 43 anos, morador de Campina Grande. Nem
o nome, nem a idade da vítima foram citados. Um motorista que dirigia uma
caminhonete, e estaria embriagado, bateu em uma motocicleta ao tentar fazer uma
178
manobra proibida. Moradores da região ficaram revoltados com o acidente e tentaram
linchar o homem. Agressão física.
4.3.26. “Ladrões são linchados no bairro de Manaíra”
João Pessoa, 27 de maio de 2010, às 13h16min. Título: Levaram a pior: Ladrões
são linchados em Manaíra; um morre e outro está internado (2010). Três homens
foram linchados, um deles morreu (o assaltante morto era menor de idade) e Rafael
Carvalho dos Santos, de 19 anos, morador de João Pessoa, está internado no Hospital de
Emergência e Trauma. O terceiro fugiu. Os nomes e as idades das vítimas não foram
citados. Um dos assaltantes estava armado. Ele usava um revólver para intimidar os
presentes, enquanto os outros dois roubavam objetos da casa, além de carteiras e
celulares. Tudo mudou quando uma das vítimas conseguiu tomar a arma do assaltante e
os três ladrões passaram a ser agredidos. Agressão física. Não há um número exato de
envolvidos.
4.3.27. “Presidiários lincham”
João Pessoa, 29 de maio de 2010, às 18h32min. Título: Espancamento provoca
afastamento do Diretor do Roger (2010). Policiais do presídio do Roger, no bairro do
Roger em João Pessoa. A vítima do linchamento foi Carlos José dos Santos, de 37 anos,
morador de João Pessoa. Carlos José foi submetido a sessões de tortura numa cela
isolada no presídio do Roger, onde foi colocado para não ser morto pelos presos da
própria unidade, houve torturas que o levaram até a morte. Não há um número exato de
envolvidos.
4.3.28. “Albergados lincham”
Campina Grande, 27 de março de 2010, às 13h16min. Título: Identificado
(2010). Os nomes e as idades dos acusados não foram citados. O nome do sujeito
linchado era Diego Marques dos Santos, 16 anos, morador de Esperança. A vítima foi
linchada até a morte pelos presos albergados em Campina Grande. Ele foi matar um dos
179
albergados quando errou o alvo, ficou sem munição e foi morto. Assassinado a
pauladas, pedradas, socos e chutes. Não há um número exato de envolvidos.
4.3.29. “Acidente de trânsito leva a linchamento”
Campina Grande, 30 de maio de 2010, às 20h06min. Título: Após pega, carro
bate em moto e deixa dois mortos em Campina Grande (2009). Acidente envolvendo
um carro e uma moto deixou dois mortos. O sujeito linchado foi Cristofer Walison dos
Santos Lima, morador de Recife. O mototaxista Nilson Santos Alves, 46 anos, levava
para o trabalho o padeiro Flávio Costa Lima, ambos moradores de Campina Grande.
Após tentativas da população de incendiar o carro e linchar o motorista, os envolvidos
no acidente foram levados para a Central de Polícia. Tentaram linchar com pedras,
pauladas e chutes. Não há um número exato de envolvidos.
4.3.30. “População tenta linchar assassino de mulher”
Teixeira, 30 de maio de 2010, às 17h02min. Título: Mulher é Morta com Golpe
de Faca (2010). O sujeito linchado foi José Carlos Silva, 20 anos, morador de Teixeira,
que assassinou Maria Madalena B. Vicente, 40 anos, moradora de Teixeira. A
população presente gritava eufórica pelo "Lincha, Lincha", o que não aconteceu por
pouco, graças à intervenção dos policiais ali presentes. Nem o nome e nem a idade do
sujeito que sofreu a tentativa de linchamento foram citados. Não há um número exato
dos envolvidos.
4.3.31. “Linchamento contra pedófilo no sertão”
Piancó, 31 de março de 2010, às 19h06min. Título: A tragédia de Piancó e os
seus desdobramentos em Itaporanga (2010). Uma Criança foi violentada sexualmente e
morta por estrangulamento. O acusado de tal crime foi Antônio Marcos Pereira do
Nascimento, 37 anos, morador de Piancó. A vítima era Kettelly Aianny Costa da Silva,
cinco anos, moradora da mesma localidade.
180
Várias pessoas aglomeraram-se em frente à delegacia e ameaçaram invadir o
local para linchar o acusado. No presídio, os detentos também revoltados, lincharam o
acusado até a morte. Não há um número exato dos envolvidos.
4.3.32. “Padre tarado foge para não ser linchado”
Juru, 31 de maio de 2010, às 19h06min. Título: Padre tarado de Juru foge para
não ser linchado (2010). O nome do acusado é Antonio Evandro, morador de Juru. Os
nomes e as idades das vítimas não foram citados. A população queria linchar o padre
que abusou de várias crianças da região. Não há um número exato acerca dos
envolvidos.
4.3.33. “Abusador de idosa é linchado”
Ingá, 11 de junho de 2006, às 21h45min. Título: Polícia evita linchamento de
acusado de estuprar idosa e praticar assaltos (2010). O acusado foi Claudiano Batista
dos Santos, de 22 anos, morador de Ingá. Não foi citado o nome da vítima, a sua idade
era 64 anos e a mesma é moradora de Ingá. A população ficou revoltada com o acusado.
Não há um número exato de envolvidos.
4.3.34. “População enfurecida contra pai assassino”
Campina Grande, 28 de junho de 2010, às 09h45min. Título: Pai mata filho de
06 meses a pauladas no bairro do Santa Rosa (2010). O acusado foi o preso albergado
Carlos Alberto Guedes da Silva, morador de Campina Grande. Não foi citado o nome e
nem a idade da vítima. A população tentou linchar o acusado. Não há o número exato
dos envolvidos.
4.4.
“NO ALTAR DA RECONCILIAÇÃO” 97
“Há circunstâncias em que só obtemos algo de um homem se o
ofendemos e criamos inimizade com ele; este sentimento de ter um
97
Ver: Nietzsche, aforismo 357 (2005, p. 190).
181
inimigo o aborrece tanto, que ele aproveita o primeiro sinal de uma
disposição mais branda para se reconciliar, e no altar dessa
reconciliação sacrifica a coisa a que dava tanta importância, que
não pretendia ceder a nenhum preço” (NIETZSCHE, 2005, p. 190).
Como podemos ver, as ocorrências de linchamento e tentativas de linchamento
se deram de modo mais recorrente em cidades de porte médio. Sendo assim, João
Pessoa (seis casos) e Campina Grande (nove casos) são as cidades que mais lincham,
seguidas de Guarabira (nove casos) e demais cidades.
Podemos perceber, então, que as teses que apontam os linchamentos como uma
atitude típica de zona rural, no nosso estado, não se adequam. Contudo, devemos ter o
cuidado de refletir se de fato, essas cidades com maior registro têm realmente maior
índice ou, se pela dificuldade do acesso à justiça ou à naturalização da justiça popular
não dificulta a informação e registro dos casos no interior. Outrossim, podemos ver que
no Brasil,
(...) Apesar dessas características tradicionalistas da maioria dos
grupos envolvidos, 61,1% dos linchamentos registrados ocorrem nas
regiões metropolitanas, 29,8% em cidades não situadas em regiões
metropolitanas e apenas 0,7% nas zonas rurais. Os linchamentos que
podem ser estudados no Brasil constituem um fenômeno
caracteristicamente urbano, que se dá num ambiente
caracteristicamente anti-tradicionalista (MARTINS, 1996, p. 18).
De outro modo, nos dados coletados, se pode ver que os linchamentos não
ficaram circunscritos aos espaços periféricos, mas que na maioria dos casos eles
ocorreram nas ruas centrais ou em invasões às delegacias e prisões (05 casos), logo, em
espaços públicos e, não necessariamente, redutos de miséria. Assim,
(...) Nesse cenário de urbanização inconclusa, insuficiente, patológica
e excludente, de relações sociais essencialmente mediadas por
privações, os processos sociais regeneram com facilidade
significações arcaicas que revestem de alguma coerência um modo de
vida que, mais do que contraditório e excludente, é carente de sentido.
Como vários depoimentos revelam, é o que dá à consciência dos
protagonistas da injustiça do linchamento a certeza de que
participaram de um ato moralmente justo (MARTINS, 1996, p. 24).
Os casos de Taperoá e Sumé, no Cariri paraibano, são os únicos que fogem à
regra básica apresentada pelos autores aqui referenciados, que defendem as seguintes
182
variáveis como determinantes para casos de linchamento, a saber: crime contra a pessoa,
contra o patrimônio ou sexual stricto sensu. Como visto acima, em Taperoá (crime em
defesa da honra partidária), a tentativa de linchamento teve motivação de disputa
partidária, logo, questão política e, em Sumé (escassez alimentar) a motivação foi o
desperdício de água, por parte do gestor do Dnocs e a subsequente revolta da população.
Nos dois casos ficam patentes as questões históricas que assolam a região do semiárido
nordestino, ou seja, a relação entre a seca e a politicagem local (ALBURQUEQUE
JÚNIOR, 1999).
De outro modo, vimos que os linchamentos estão distribuídos a partir das
seguintes variáveis: crime de pedofilia, 07 casos; acidentes de trânsito, 07 casos;
asssalto ou tentativa, 04 casos; assassinato, 03 casos; estupro contra mulheres adultas
e idosas, 03 casos.
Com exceção do caso de Alhandra, em que 11 pessoas foram autuadas, todos os
demais casos registram a indefinição do número de envolvidos. Entretanto, fala-se de
milhares de pessoas. Esse recurso à imprecisão e generalização da multidão é uma
estratégia muito eficaz para dificultar ou mesmo impossibilitar a tramitação normal de
um processo investigativo e de uma posterior punição dos envolvidos. Todos os autores
que tratam do tema linchamento discutem esse fato e o tomam como um dos piores
vieses dessa temática. Vimos ainda que em todos os casos as técnicas de punição que
constroem o linchamento são: uso de agressão física como, bater, apedrejar,
esquartejar, atear fogo, esfaquear e utilização de armas de fogo, além é claro, da
depredação de prédios públicos (como cadeias e presídios).
4.5.
DA DIFICULDADE EM COLETAR OS DADOS: “A IMPRECISÃO DAS
FONTES”
Assim como os autores trabalhados apresentaram dificuldades acerca da coleta
de dados sobre linchamentos, a presente pesquisa também as teve, em relação à coleta
de dados sobre os linchamentos na Paraíba. Nesse sentido, foi angustiante, a princípio, o
fato da não realização de entrevistas.
Tentamos os dispositivos de segurança, mas sempre vinha à informação da falta
de tempo, ou pedia-se o envio do “questionário” por e-mail. Contudo, quando tomavam
183
conhecimento de que era uma entrevista aberta, eles recusavam-se a falar. Assim,
Juízes, delegados, padres e pastores não demonstraram disponibilidade para entrevistas.
De outro modo, tentamos manter diálogo com os sujeitos envolvidos nos linchamentos
de Alhandra e de João Pessoa, sem, contudo obtermos êxito, pois eles até marcaram
encontro, mas quando era explicado o teor da pesquisa, todos se negavam a falar.
Em último caso, procuramos a Comunidade do Rangel, na cidade de João
Pessoa, onde ocorreu um linchamento da casa em que morava o casal envolvido na
“Chacina do Rangel”. Falamos com a líder comunitária e ela disse que jamais tocasse
nesse assunto na comunidade, que o que todos ali queriam era esquecer aquilo e ver os
culpados pagarem pelo que fizeram. Sobre essa tendência a silenciar, pudemos
observar que:
Em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se
impor a todos aqueles que querem evita culpar as vítimas. E algumas
vítimas, que compartilham essa lembrança <comprometedora>,
preferem, elas também guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um
mal-entendido sobre uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar
a consciência tranquila e a propensão ao esquecimento dos antigos
carrascos, não seria melhor se abster de falar? (POLLACK, 1989, p.
6). (Grifos nossos).
Portanto, nem “vítimas e nem algozes” se permitem reconstruir via discursos à
memória do linchamento e, considerando ainda que juridicamente essa infração nem
existe, há, desta feita, um pacto tácito e amplo na nossa sociedade que visa reprimir,
talvez apagar-esquecer o evento do linchamento, assim como o fogo se consome nas
chamas, o linchamento se dissipa na dispersão da turba. É um fogo fátuo que desaparece
no instante mesmo de sua instantânea aparição.
A partir dessa conclusão, foi aceitamos que o tema linchamento é envolto numa
“lei do silêncio”. Isto foi frustrante num primeiro momento, já que vínhamos de uma
trajetória na temática da violência, com a qual sempre conseguíamos “coletar dados” via
“apreensão discursiva”.
Contudo, nesse momento de amadurecimento, percebemos que além da pseudo
coleta, tratamento e análise de dados, há um cunho muito mais de julgamento de valor
do pesquisador do que qualquer outra falsa pretensão de apresentar o “real”, ou seja,
como já problematizado antes, apresentar/representar aquilo que se constitui como real
184
é, antes de mais nada, tentar provar a ficção. Assim, “talvez reconheçamos então que a
coisa em si é digna de uma gargalhada homérica: que ela parecia ser tanto, até mesmo
tudo, e na realidade está vazia, vazia de significado” (NIETZSCHE, 2005, p, 26;
aforismo 17). (Grifos do autor).
Portanto, foi feita uma viagem teórica e que se pensa interpretativa de alguns
textos que problematizam o silêncio em torno de certas temáticas, especialmente a da
violência.
Baudrillard (1994) trabalha com o conceito de massa, pois entende que essa é
uma forma contemporânea de neutralização do social e do político. A massa é uma
força não condutora, é rizomática, não deixa rastros/traços,“irredutível a qualquer teoria
ou práticas tradicionais” (BAUDRILLARD, 1994, p. 9).
A massa é uma força atual. Seu passado e seu futuro são o hoje, o agora, o
acontecimento. Ela é silêncio, indizível, gritaria/explosão, logo, e, de novo, o nada e a
calma:
Buraco negro em que o social se precipita. Exatamente o inverso,
portanto, de uma acepção sociológica. A sociologia só pode descrever
a expansão do social e suas peripécias. Ela vive apenas da hipótese
positiva e definitiva do social. A assimilação, a implosão do social lhe
escapam. A hipótese da morte do social é também da sua própria
morte (BAUDRILLARD, 1994, p. 11).
As variáveis da sociologia como classe, raça, cultura se esvaem na massa e, a
própria sociologia não tem condições/instrumentos próprios para “recortar”, descrever,
representar a massa. Contudo, quando podemos dizer com precisão que os sociólogos
puderam constituir verdades sobre o “objeto?”, entendendo que todas as variáveis são
elas mesmas arbitrárias e verticalizantes, logo, construídas a partir do ponto de
vista/cosmovisão do pesquisador, da teoria e do método que ele escolheu trabalhar?
Desse modo, as falas sobre as massas, desde o século XIX, apontam para conteúdos
pejorativos de uma elite que forja o exercício político, intelectual ou religioso, sobre o
acaso, que de todo modo, desafia e não considera o racional.
A massa é inominável e qualquer tentativa de sistematização teórica ou
metodológica aponta para a constituição da ação dos mandarins da ciência, ou seja, a
massa não existe para ela mesma, senão torna-se um SER quando das tentativas de
representações estatísticas. Nesse sentido, pode-se ver a inglória tarefa de mapear,
185
diagnosticar, descrever e prescrever o que é a massa; quem e quantos a compõem; como
evitá-la.
Nos estudos sobre linchamentos, podemos notar que, no máximo, nesta
pesquisa, ou naquelas da literatura clássica, temos uma representação matemática e
imprecisa acerca do número dos envolvidos. Mas, via de regra, há uma impossibilidade
real de nominar os envolvidos, classificá-los quanto a gênero, idade, raça/etnia, ou
mesmo, quantificar o número dos envolvidos, ficando recorrente o jargão: “não há
número exato dos envolvidos”.
A massa é sem atributo, sem predicado, sem qualidade, sem
referência. Aí está sua definição ou sua indefinição radical. Ela não
tem <realidade> sociológica. Ela não tem nada a ver com alguma
população real, com algum corpo, com algum agregado social
específico. Qualquer tentativa de qualificá-la é somente um esforço
para transferi-la para a sociologia e arrancá-la dessa indistinção que
não é sequer a da equivalência (soma ilimitada de indivíduos
equivalentes: 1+1+1+1- tal é a definição sociológica), mas, a do
neutro, isto é, nem um nem outro (ne-uter). Na massa desaparece a
polaridade do um e do outro. Essa é a causa desse vácuo e da força de
desagregação que ela exerce sobre todos os sistemas, que vivem da
disjunção e da distinção dos pólos (dois, ou múltiplos, nos sistemas
mais complexos). É o que nela produz a impossibilidade de circulação
de sentido: na massa ele se dispersa instantaneamente, como os
átomos no vácuo. É também o que produz a impossibilidade, para a
massa, de ser alienada, visto que nela nem um nem o outro existem
mais (BAUDRILLARD, 1994, p. 12).
Desse modo, as massas não falam e não há nada a dizer delas no seu
acontecimento, pois elas são o vazio da “ideia/razão”. Sendo assim, a relação
religião/sacrifício/violência e a consequente purificação assumem nas massas a função
de “organização do mundo” e revificação da “ordem/desordem”.
Quanto à impossibilidade de nela se fazer circular o sentido, o melhor
exemplo é o de Deus. As massas conservaram dele somente a
imagem, nunca a Idéia. Elas jamais foram atingidas pela Idéia de
Deus, que permaneceu um assunto de padres, nem pelas angústias do
pecado e da salvação pessoal. O que elas conservaram foi o fascínio
dos mártires e dos santos, do juízo final, da dança dos mortos, foi o
sortilégio, foi o espetáculo e o cerimonial da Igreja e a imanência do
ritual – contra a transcendência da Idéia (BAUDRILLAR, 1994, p.
13).
186
Ora, podemos notar que o autor é radicalmente pessimista quanto a qualquer
corolário que possa tomar a massa como referente, ou que queira retomar a massa como
fonte de pesquisa. A massa não tem o que dizer, pois ela só o é no acontecimento e,
desse modo, não conseguimos entrevistá-la na sua emergência.
A massa dissolve o político e o social, pois ela tem a característica de ser
amorfa, a-social, apolítica, caótica e residual. Ela não tem um sentido, não deixa um
sentido, uma informação, um caminho discursivo a ser mapeado, mas antes, ela é
espetáculo, circunstância, fim de cena e mutismo:
O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos, elas
idolatram os jogos de signos e de esteriótipos, idolatram todos os
conteúdos desde que eles se transformem numa seqüência espetacular.
O que elas rejeitam é a <dialética> do sentido. E de nada adianta
alegar que elas são mistificadas. Hipótese sempre hipócrita que
permite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido:
as massas aspirariam espontaneamente às luzes naturais da razão. Isso
para conjurar o universo, ou seja, que é em plena <liberdade> que as
massas opõem ao ultimato do sentido a sua recusa e sua vontade de
espetáculo. Temem essa transparência e essa vontade política, como
temem a morte. Elas <farejam> o terror simplificador que está atrás da
hegemonia ideal do sentido e reagem a sua maneira, reduzindo todos
os discursos articulados a uma única dimensão irracional e sem
fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se consomem na
fascinação: o espetacular (BAUDRILLARD, 1994, p.15).
A massa não é uma simples constituição da alienação, ela não deve ser vista pelo
viés da mistificação, ou o iluminista que a vê como a matéria bruta a ser emancipada,
ou, ainda, a abordagem frankfurtiana que a vê como objeto de manipulação. Enfim, na
perspectiva que a entende como feminilidade perigosa, a massa não é uma negação a
algo, ela é o vazio e não a contradição, a massa é maioria silenciosa.
Como espetacularização dos signos da violência, a massa é construída a partir
dos discursos midiáticos que visam representar/amedrontar o conjunto dos “justos e
pacíficos” frente ao “embrutecimento/desordem” da massa mostrada como anônima e
perigosa. Assim, nos aproximamos da memória midiática do que foi o acontecimento da
massa quando dos casos de linchamentos que ela “noticia”.
Nesse sentido, é impossível construir a partir da massa posturas metodológicas
clássicas sobre a diferença entre sujeito e objeto, pois a massa não fala; seu silêncio é
sua fala. Não tem objeto para ser especulado/representado ou mesmo apresentado e nem
187
sujeito de revolução ou apatia. A massa é probabilidade, ciência inexata, risco,
acontecimento, logo, como sondá-la, apresentá-la graficamente? Ela traz como traço o
espontâneo, provisório e o inapreensível, nem bem se formou já se desfaz e não deixa
rastros, apaga as suas pegadas.
As massas recusam o “batismo do social”, ou seja, do sentido e da liberdadeordem, elas provam o fruto proibido e não procuram o confessionário para expurgaremse, elas apenas silenciam. Não porque refreiem/recalquem o ato violento, mas, porque
ele não existiu como fato social ou político, o linchamento acena como explosão de
instinto e implosão do sentido na “sombra da maioria silenciosa”.
Diferentemente da atitude terrorista que não elege uma vítima, vemos que em
casos de linchamento a vítima é selecionada entre os muitos anônimos, pois ela tem a
característica de ter o traço da perversão sexual ou da invasão à propriedade privada, ou
seja, num contexto de não sentido sua marca é a de ser “bode expiatório”, sua morte tem
a “utilidade” de evitar a escalada da violência, ou, ela alimenta a espiral da violência
não a extinguindo, mas, amenizando-a.
Ao discutir a “lei do silêncio” em relação aos sobreviventes do Holocausto,
Cytrynowicz (2003) traz à tona a dificuldade de que se esses sobreviventes falassem
estariam reabrindo feridas que se querem esquecidas.
Cytrynowicz (2003) discute a questão da tanatopolítica realizada pelo estado de
exceção nazista, mas, conforme está sendo discutido ao longo desse texto, essa
“banalização do mal” aponta para uma escalada das mortes violentas e, dentre elas, a
naturalização/gratidão quando da destruição da “vida impura” em rituais de
linchamento. Nesse sentido, aquilo que entendemos por sociedade mostra-se a favor da
pena de morte legal e 98 enquanto ela não é legitimada, o linchamento acena como a
saída possível.
Outro fato importante é pensar que o silêncio ou a negativa em falar sobre o
linchamento descortina que: “o horror compele ao esquecimento” (CYTRYNOWICZ,
2003, p. 129). Desse modo:
O ofício do historiador é muitas vezes diluído como uma tentativa
racional e banal, quase inútil, de compreensão de uma experiência que
estaria além das fronteiras da compreensão, restando, portanto, apenas
98
Ver: Almeida (2007).
188
a esfera da narrativa descritiva e do conhecimento fatual
(CYTRYNOWICZ, 2003, p. 131).
Além da exposição/rememoração à dor, tentar coletar dados de pessoas
envolvidas em cenas de violência, seja como vítima ou algoz, é também uma ação
violentadora. Contudo, os cânones da ciência moderna e alguns contemporâneos ainda
defendem que só há verdade/legitimidade na tese teórica e empírica. Como se não
bastasse o culto à revificação da violência promovido pela mídia, a Academia ainda
entende também haver uma imprescindibilidade em ”representar/apresentar, descrever,
compreender o fato”, pela via da coleta de dados por entrevista. No entanto: “a memória
social ou coletiva, por sua vez, cristaliza-se colada muitas vezes a demandas afetivas ou
políticas externas ao testemunho” (CYTRYNOWICZ, 2003, p. 131). Nos casos de
linchamento, o silêncio (dos promotores da justiça popular e dos dispositivos de
segurança), ou a apologia dos que apóiam o ato de linchar a “vida impura” nos apontam
para arquétipos que transitam entre olho por olho e da necessidade de salvar o coletivo
da vida impura. Assim, muito mais do que remontar um caso de linchamento em si,
como se fosse possível apreender pela fala a intricada e multifacetada situação social e
psicológica que envolve o ato, o linchamento como “fato social” aparece como a
revificação de rituais “arcaicos” pagãos, judaicos e cristãos, que visam esterilizar “o
conjunto patológico” de certos comportamentos sociais. Nesse sentido, a negação a
reconstituir o linchamento pela entrevista mostra que:
A memória procura sempre apaziguar os conflitos, fechar as feridas,
restaurar as ruínas, silenciar as dores; ela tem compromisso com a
subjetividade, com a reconstrução de uma história de pessoas que
precisam encontrar saídas viáveis, até mesmo do ponto de vista
psíquico, para reconstituir uma vida, um futuro e, isso por mais que
ela conte das dores e das feridas (CYTRYNOWICZ, 2003, p. 131-
132).
Seligmann-Silva (2003a) também problematiza o silêncio, a partir da crítica ao
historicismo que acredita poder representar fatos. Assim, para Silva (2003a, p. 60): “ao
que tudo indica, estamos despertando desse sonho ou pesadelo recorrente do
historicismo, que acreditou na possibilidade de se conhecer o passado e tal como ele de
fato ocorreu”.
189
Seligmann-Silva (2003a) cita Benjamim e Nietzsche como grandes críticos da
busca pela compreensão/descrição dos “fatos”. De modo contrário a essa perspectiva,
Nietzsche e Benjamim mostram que os “fatos” apresentam-se como resultantes do
esquecimento, ou seja, toda verdade/palavra/descritora constrói, antes da emergência do
“objeto”, a sua morte pela representação/apresentação. Nesse sentido, a historiografia
atua muito próxima às técnicas do tribunal, ou seja, ela visa o testemunho para arrolar
provas que forjem a veracidade do fato. Ora, não é essa a pretensão da ciência que se
pensa empírica dizer e provar e, no caso das ciências humanas e sociais a prova “vem”
pelo veículo da fala/discurso?
Como podemos perceber, não tem sentido essa tarefa árdua dos ícones da ciência
moderna, nas suas diferentes abordagens de terapêutica metodológica! “Ou será que
devíamos nos manter na tradição das belles intidèles, que na verdade não é nada mais
que o modelo historicista que acreditava na traduzibilidade total do mundo/do
passado?” (SELIGMANN-SILVA 2003a, p. 64).
Sob essa ótica, as coletas de dados por entrevistas, as práticas de análise e
tratamento de dados, sejam elas análises de conteúdo, de discurso, todas apontam para a
necessidade de apresentar/traduzir o “real”. Criar/mostrar a “verdade”. Ao contrário
disso:
As novas formas de representação do passado foram modeladas a
partir do próprio corte histórico que a segunda guerra implicou. Elas
podem ser reunidas, grosso modo, sob o signo da nova desconfiança
diante das categorias universais (SELIGMANN-SILVA, 2003a, p.
65).
Nessa perspectiva, a ética prevê, antes de tudo, o respeito à dor e à memória de
quem vivenciou uma violência. Desse modo, ela não parte da busca “vampiresca” pela
história oral ou de vida, pois mesmo que expresse essa história, não pode efetivamente
descrever
o
intrincado
universo
daquela
vivência,
mas,
talvez
somente
reacender/magoar velhas cicatrizes.
A aproximação do fenômeno não deve apagar os seus traços
distintivos: a distância certa é aquela que permite guardar a força
única contida em documento da barbárie (...) toda escritura do passado
(...) é uma (re) inscrição penosa e nunca total (SELIGMANN-SILVA,
2003a, p. 76).
190
A historiografia é vista, então, como uma busca em apreender a “realidade” e,
sendo assim, ela aproxima-se do setting traumático da psicanálise ou do confessionário
cristão, nas três catarses: pesquisa, psicanálise e confissão. O que está em jogo é a
rememoração do que se pretende esquecido-apagado:
Enquanto mecanismo patológico (o silêncio) tem a sua contraparte no
negacionismo dos assassinatos (...) eles querem minimizar o papel das
atrocidades – substituindo e descolando o seu local-, seja negar a sua
existência. Esse procedimento retraduz em vários níveis uma série de
mecanismos implícitos ao trauma que estão implicados na
impossibilidade da perlaboração total do mesmo. Em segundo lugar,
ele repete o assassinato das vítimas ao negar que o fato tenha ocorrido.
O apagamento da memória – e com ela, da responsabilidade- é parte
integrante de muitos assassinatos em massa (SELIGMANN-SILVA,
2003a, p. 78).
Seligmann-Silva (2003b) apresenta a literatura do testemunho, ou seja, da
reprodução das vivências pela fala como uma alternativa à leitura irônica, leia-se nos
moldes pós-modernos 99, na qual tanto o autor quanto o leitor perdem-se na ausência de
sentido. O testemunho nasce da fala do sobrevivente.
Para o judiciário, testemunho é verdade, basta que o interrogado jure dizê-la.
Não se costumam questionar casos de omissão ou acréscimo que possa haver. O
princípio básico é da fé no discurso, ou seja, a narrativa é tomada como real e nunca
ficção. Contudo, para Seligmann-Silva (2003b, p. 376) testemunho e ficção se
imbricam, pois:
Tendemos a dar voz ao sobrevivente (...) dar forma ao inferno que ele
conheceu – mesmo que o fantasma da mentira ronde as suas palavras.
Um texto totalmente ficcional de testemunho é apresentado como
autêntico, mobiliza os leitores como se não se tratasse de um texto
apócrifo.
Portanto, o testemunho não nos dá a possibilidade de assepsia total. Na luta da
busca pela razão versus o sentimento-ficção, quem narra, fala de um lugar no presente e
com certeza já re-significou o “fato” passado:
Daí a categoria de o trauma ser central para compreender a
modalidade de o <real> de que se trata aqui – se compreendermos o
<real> como trauma – como uma <perfuração> na nossa mente e
99
Consultar: Caldeira (1998); Moraes (1994).
191
como ferida que não se fecha – então fica mais fácil de compreender o
porquê do redimensionamento da literatura diante do evento da
literatura do testemunho (SELIGMANN-SILVA, 2003b, p. 383).
Testemunhar poderia ser, então, compreendido por dois ângulos, a saber, dar voz
ao sobrevivente e/ou, permitir que ele enfrente o trauma. Ora, Seligmann-Silva (2003b)
diz que isso não é psicanalizar a pragmática da pesquisa científica, mas, convenhamos,
o corolário falar-rememorar-reelaborar aqui proposto é uma caricatura do setting
psicanalítico, seja ele freudiano ou pós-freudiano. Antes de mais nada, é a tentativa
catártica da cura pela fala! Como vemos, esse autor retorna à presunção moderna de que
a fala pode resignificar o trauma, ou a luz afasta as sombras (tão caro ao platonismo),
volta então ao mito da Caverna 100.
Desse modo, Pode-se perceber que o método mais eficiente seria a pesquisa em
fontes jornalísticas e, no caso desta, o meio mais profícuo foi a consulta on-line, já que
nesse, os dados ficam disponíveis o tempo todo e de modo mais organizado.
As tentativas de coleta de dados em fontes impressas tornaram-se inviáveis,
devido a não disponibilidade de arquivos e quanto à dificuldade de recebimento nas
redações dos jornais consultados pela autora da pesquisa.
Uma questão central desta pesquisa e que também é recorrente com outros
pesquisadores, especialmente no texto de Martins (1996), é a impossibilidade de
descrever um número exato e com altos índices populacionais para caracterizar a
“multidão linchadora”. Como será visto mais à frente, nas tabelas, há sempre a
imprecisão quanto à variável número de pessoas envolvidas. Cogita-se em alguns casos
algo variando entre 100 a mais pessoas. No entanto, só no caso do linchamento em
Alhandra é que há um número preciso quanto às pessoas autuadas, mas não quanto ao
total dos envolvidos. Desse modo, segundo Martins, os estudos sobre linchamentos
mostram que:
100
Ver: Ricoeur (2007) ao discutir o papel dos gregos, Platão e Aristóteles, quanto à representação de
uma coisa ausente e a memória do passado, assim como, a discussão sobre a peculiaridade de Elias e
Foucault ao discutirem a história das mentalidades e não realizarem uma “escavação do passado”. “É de
um lado a defesa de M. Foucault de uma ciência que se quer sem precedentes, denominada arqueologia
do saber, de outro, a defesa de N. Elias de uma ciência das formações sociais, que se crê inimiga da
história, mas que se desenvolve de forma imperiosa segundo um modo francamente histórico”
(RICOEUR, 2007, p. 210).
192
(...) Os dados sugerem que se esclareça, desde logo, que a palavra
multidão, (...) não significa grandes massas agindo numa única
direção. Apenas 10,2% dos casos arrolados referem-se a linchamentos
com mais de mil participantes, 54,8% referem-se a menos de cem
participantes e 38,7% a menos de cinqüenta. A tendência é, portanto,
de linchamentos praticados por grupos relativamente pequenos. O que
estou classificando como multidão está presente em apenas um quinto
do total de linchamentos. E nessa categoria, apenas 6,3% dos
linchamentos tiveram mais de mil participantes. Enquanto isso, 17,3%
dos linchamentos da categoria B, a dos vizinhos e moradores,
envolveram mais de mil participantes. Isso é muito mais do que aquilo
que estou chamando de multidão. Essas grandes aglomerações, no
entanto, diferem do que neste texto é multidão porque são formadas
por pessoas que não têm entre si propriamente um vínculo ocasional,
anônimo e aberto. Ao contrário do que Canetti define como multidão
natural e aberta (...) esses agrupamentos poderiam ser definidos como
‘multidões fechadas, localistas e corporativas, geralmente hostis aos
estranhos, entre os quais, aliás, encontram vítimas para os
linchamentos que praticam. Os linchadores vivem na mesma
localidade e, de certo modo, são vizinhos, ainda que vizinhos
distantes. Seu dia a dia envolve grande probabilidade de reencontro, se
é que não são “conhecidos de vista”. A recusa de testemunhar e de
identificar pessoas nos inquéritos policiais que são instaurados
indicam, justamente, mais do que medo de represália, uma consciência
de pertencimento de conivência. A verdadeira multidão o é menos
pelo número dos que a compõem do que pelas características de sua
mobilização e participação nos atos de linchar. Neste caso, maciças
mobilizações para linchar por grupos que se identificam e são
identificados como vizinhos e moradores, não configuram
propriamente situações de multidão, embora os comportamentos aí se
confundam com comportamentos de multidão. Sobretudo porque a
multidão reúne pessoas que não têm entre si outro vínculo que não
seja o vínculo ocasional, fortuito e acidental derivado de ação
orientada por um objetivo passageiro, embora compartilhado através
de um fugaz sentimento de identificação e companheirismo, uma
espécie de comunidade breve e transitória (MARTINS, 1996, p.17).
(Grifos nossos).
De outro modo, num primeiro momento, foi completamente impossível ir às
delegacias, pois não há, como já frisado no início deste capítulo, nenhuma delegacia
específica para registro de casos de linchamentos. Esses são diluídos em artigos penais
diversos.
193
4.6.
TABELAS: CASOS DE LINCHAMENTO NA PARAÍBA
Tabela 3 - Cidades onde ocorreram os linchamentos
Cidades
Picuí
Alhandra
Guarabira
João Pessoa
Campina Grande
Piancó
Total
Frequência
1
1
1
3
1
1
8
Fonte: pesquisa da autora
Tabela 4 - Cidades onde ocorreram as tentativas de linchamentos
Cidades
Cajazeiras
Santa Rita
Sumé
Baía da Traição
João Pessoa
Campina Grande
Pocinhos
Aroeiras
Cabedelo
Guarabira
Taperoá
Ingá
Juru
Texeira
Total
Fonte: pesquisa da autora
Frequência
1
3
1
1
3
8
1
1
1
3
1
1
1
1
27
194
Tabela 5 - Crimes praticados
Crimes Praticados
Assassinato e Esquartejamento
Embriaguez seguida de morte
Homicídio culposo
Assassinato e Estupro
Assassinato
Tentativa de estupro
Assalto seguido de morte
Agressão física
Estupros
Abuso sexual e Pedofilia
Negligência Pública
Acidente seguido de morte
Assassinato e Pedofilia
Abuso sexual e Pedofilia
Tortura
Frequência
1
1
4
2
6
1
1
5
2
6
1
1
1
1
1
Total
34
Fonte: pesquisa da autora
Tabela 6 - Idade do sujeito linchado
Idade do sujeito linchado
31 anos
44 anos
42 anos
32 anos
37 anos
23 anos
22 anos
20 anos
19 anos
47 anos
24 anos
26 anos
Idade não informada
Total
Fonte: pesquisa da autora
Frequência
1
1
1
2
1
2
1
1
1
1
1
1
20
34
195
Tabela 7 - Sexo do sujeito linchado
Sexo do sujeito linchado
Masculino
Feminino
Não informado
Total
Frequência
30
2
2
34
Fonte: pesquisa da autora
Tabela 8 - Naturalidade do sujeito linchado
Cidade natal
C. Grande
Ingá
João Pessoa
Juru
Piancó
Teixeira
Não informado
Total
Frequência
4
1
2
1
1
1
24
34
Fonte: pesquisa da autora
Tabela 9 - Naturalidade das vítimas
Naturalidade
Não informada
Total
Frequência
34
34
Fonte: pesquisa da autora
Tabela 10 - Onde ocorreram os linchamentos
Onde ocorreram os linchamentos Frequência
Ato da prisão
8
Velório da vítima
1
Local do delito
4
Apedrejamento da Delegacia
1
Penitenciária onde estava preso
3
Invasão de Delegacia
4
Não informado
13
Total
Fonte: pesquisa da autora
34
196
Tabela 11 - Como ocorreram os linchamentos
Como ocorreram os linchamentos
Pedras e Material inflamável
Espancamento e homicídio qualificado
Pedaços de paus e pedras
Ateamento de fogo no carro do sujeito
Material inflamável
Tortura
Não informado
Total
Frequência
1
3
12
1
1
1
15
34
Fonte: pesquisa da autora
Tabela 12 - Quantas pessoas participaram?
Quantas pessoas participaram
11 pessoas
150 pessoas
100 pessoas
Não informado o número exato
Total
Frequência
1
1
1
31
34
Fonte: pesquisa da autora
Como visto, em todos os casos pesquisados há ausência de informações que
seriam importantes para uma melhor compreensão dos eventos, pois a narração é
imprecisa, há dificuldade em identificar a idade, a raça da vítima do linchamento, assim
como saber o número de pessoas envolvidas no ato.
De acordo com Martins (2008), a maneira mais rápida e fácil de coleta de dados
são os meios de comunicação de massa. Contudo, esses apresentam suas informações
de modo sensacionalista e pouco preocupados em descrever de modo amiúde os fatos.
Os títulos das reportagens nos dão uma amostra das técnicas de marketing publicitário
que os mesmos utilizam.
As tabelas nos remetem a uma visão geral das características dos linchamentos
em todo o Estado, assim como nos aproximam das teses levantadas pelos autores com
quem houve diálogo ao longo deste trabalho. Vemos que na maioria dos casos os
197
linchamentos são do tipo de mobilização espontânea, mas com traços também de
vigilantismo, pois que apontam para a descrença e contestação à ordem posta 101.
De todo modo, chama a atenção o fato de que assim como visto em Martins
(2008), ao estudar os índices de linchamento no Brasil, os maiores estão presentes em
casos de crime contra a pessoa e a propriedade. Essa recorrência parece ter a ver com a
descrença na “razão do Estado” (FOUCAULT, 2008) em proteger o indivíduo e o seu
patrimônio, e, de outro modo, está muito próxima da leitura de Whyte (2005), sobre a
facilitação dos dispositivos de segurança às ações de linchamento. Nesse sentido, o caso
de Alhandra é o mais emblemático, pois, conforme o título da reportagem, foi o próprio
Major o facilitador da tomada do prisioneiro pela população. De outro modo, é
extremamente profícua a citação que se segue para entendermos a dificuldade na coleta
dos dados, devido à imprecisão dos registros:
(...) Em geral, pinçam-se meia dúzia de pessoas, geralmente aquelas
que mais se empolgaram em linchar, e elas são levadas à justiça para
um arremedo de investigação e processo. Como as autoridades não
querem se incompatibilizar com a opinião pública (...) e têm dentro de
si, a certeza de uma co-responsabilidade decorrente da impunidade
(...) as investigações tendentes a apontar os autores desses atos de
violência se diluem na própria extensão do número deles. E o que
acontece nesses casos é a impunidade (...) (BICUDO apud
BENEVIDES; FERREIRA, 1983, p. 244).
Como visto no levantamento de dados, nos casos de João Pessoa e Guarabira,
também fica no ar a suspeita de facilitação, já que nos dois casos os sujeitos linchados
também estavam sob a guarda da polícia.
Quanto ao número de envolvidos, há sempre uma imprecisão ou impossibilidade
de nomear os percentuais e só há registro em um único caso de boletim de ocorrência
indiciando os envolvidos.
A ausência da variável raça é outra perda, pois seria importante comparar os
índices dos considerados de raça clara e parda e aqueles considerados negros 102. Essa
variável permitiria uma comparação com os casos dos EUA.
101
102
Ver: Cerqueira e Noronha (2004) e também: Sinhoreto (2009).
Ver: Bethell (2009).
198
Aqui no Brasil, é sabido que a maior população carcerária também é composta
por sujeitos considerados negros, pobres e com pouca escolaridade, de tal sorte que
desconfiamos que os sujeitos linchados também fazem parte desses estratos.
Enfim, é muito relevante o estudo de Martins (2008) 103, ao discutir os índices;
as regiões; o perfil dos linchadores e dos linchados; as técnicas utilizadas e a dificuldade
de mapear o linchamento no Brasil, pois ele apresenta dificuldades que também
detectamos nesta pesquisa.
4.7.
“É POSSÍVEL CONFIAR NA JUSTIÇA?” Por que linchamos?
Peralva (2000), na sugestiva obra Violência e democracia: o paradoxo
brasileiro, levanta a questão do uso da violência/tortura pelos dispositivos de segurança,
apresentando dados que corroboram com a ocorrência dos abusos e as práticas de
crimes que envolvem também esses agentes. Exemplo disso, ocorreu em São Paulo:
“em outubro de 1992, a polícia Militar, chamada a intervir durante uma rebelião na Casa
de detenção de São Paulo, matou 111 prisioneiros e feriu 35” (PERALVA, 2000, p. 88).
A autora destaca, também, a participação de policiais em crimes, mostrando que,
na prática cotidiana, há uma bricolagem entre os papéis de “mocinho e bandido”, “(...) a
prisão de alguns grandes chefes do narcotráfico permitiu verificar que policiais (civis,
militares ou da polícia Federal) asseguravam a chegada das drogas, das armas e das
munições nos centros de distribuição ao varejo, situados notadamente nas favelas”
(PERALVA, 2000, p. 89-90).
Outra questão relevante é o fato do surgimento e expansão da segurança privada,
tanto privada no sentido mercantil (negócio da prestação de segurança), quanto privada
103
“Possivelmente. Isso nos últimos 50 anos, período que minha pesquisa abrange. Não dá para ter
certeza, porque linchamento é o tipo de crime inquantificável. Mesmo os americanos, quando tentaram
numerar seus casos, tiveram fontes precárias. O linchamento é um crime altruísta, ou seja, um crime
social com intenções sociais. O linchador age em nome da sociedade. É um homem de bem que sabe
que está cometendo um delito e não quer visibilidade. Por outro lado, no Código Penal brasileiro não
existe o crime de linchamento, somente o homicídio. Então, ele não aparece nas estatísticas. Os casos
são diluídos. Estimo que aconteçam de 3 a 4 linchamentos no País por semana, na média. São Paulo é a
cidade que mais lincha. Depois, vêm Salvador e Rio de Janeiro” (MARTINS, 2009, p. s/i).
199
no sentido da ação individual do sujeito que se armando busca a sua proteção e da sua
família 104.
Como podemos ver, a partir do estudo de Bernardes (2009), as empresas de
segurança privada surgiram na década de 60, século XX, visando atender às demandas
dos bancos privados que se sentiam ameaçados por roubos e viram nelas uma garantia
eficaz de proteção. De outro modo, o estudo mostra que o aumento acentuado do
número de empresas acontece nos anos 90, favorecido pela grande demanda e pelo
barateamento dos equipamentos eletrônicos de vigilância. Conforme dados do Sindicato
das Empresas de Segurança e Vigilância do Estado de São Paulo, citados na pesquisa,
entre 1982 e 1983, foram concedidos 533 alvarás de funcionamento pela Polícia Federal
que fiscaliza o setor. Entre 1994 e 2000 foram expedidos 867 alvarás, passando de 84
autorizações em 1994 para 186, em 2000. Atualmente são 1.230 empresas de segurança
privada em todo o país.
As tabelas (QUEM..., 2009, 2010) que seguem são extremamente significativas
para que possamops visualizar a dimensão da submissão do Estado à iniciativa privada e
inclusive, a sua adesão a esses dispositivos de segurança. Na primeira tabela serão
vistos os números das empresas prestadoras de segurança em relação às regiões que
compõem o território nacional e, em seguida, a irônica distribuição numérica dos órgãos
estatais que utilizam esses serviços, desse modo:
No Brasil, são 1.100 empresas orgânicas, 2 mil empresas
especializadas e 5.800 carros-fortes. Há 33 mil postos de atendimento
bancário atendidos pelo setor de segurança. Estima-se um número de
1,7 milhões de vigilantes no país, sendo que apenas 450 mil
regulamentados. Ao todo, são 180 mil armas sob o porte de
profissionais da segurança privada. Os principais contratantes diretos
são os governos federal, estaduais e municipais (cerca de 65% da
demanda) (CAVALCANTE, 2010, p. s/i).
104
Ver: Bernardes (2009).
200
Tabela 13 - Empresas de segurança privada autorizadas no Brasil – 2010
201
Tabela 14 - Demanda por vigilância na administração pública –
medida por número de vigilantes alocados – em 2005 (em %)
Tipo
Governo Federal
Governo Estadual
Governo Municipal
Empresas de
economia mista
Total
Mercado
Pequenas –
até 100 vigilantes
Médias –
101 a 1.000
vigilantes
Grandes –
mais 1.000
vigilantes
14,8%
13,2%
4,5%
19,9%
2,7%
-
23,3%
17%
9%
7,5%
11,8%
1,6%
5,8%
3,1%
5,9%
6,2%
38,3%
25,7%
55,2%
27%
Fonte: DPF / SISVIP
A partir das tabelas vistas anteriormente, podemos fazer uma leitura de um
prenúncio de denúncia quanto ao fracasso das práticas do Estado brasileiro em
construir, manter e perpetuar a chamada e tão “desejada ordem social". Ora, elas
próprias legalizam e legitimam o exercício da segurança privada ao concederem
autorização e, ao mesmo tempo, comprarem esses serviços. Desse modo, como pode o
cidadão comum “confiar” na proteção e justiça estatal? O quadro que vemos pintado
em nossa realidade é bem próximo à estética surreal que constrói um Estado grande,
disforme e, feito de cristal, ou seja, o “monstro” é suscetível a qualquer ataque.
A imagem a seguir, para nós, traduz, de modo enfático, aquilo que em palavras
fica difícil exprimir, ou seja, a discussão que perpassa todo esse texto, a saber: a
fragilidade da pretensa racionalidade instrumental que orienta a vida humana (moderna)
e forja os ditos princípios da ordem, ou, aquilo que foi “pragmaticamente” vivido no
ideário do uso legítimo da violência pelo “Estado”, ou seja, a imagem nos mostra um
“ser” em pose embrionária, apesar de ser representado como adulto, e envolto numa
frágil casca de ovo:
202
Figura 6 - Salvador Dali
Fonte: Fialho (2009)
A fragilidade do “estatuto da ordem e da segurança” é discutida por Martins
apud Peralva (2000, p. 94), quando destaca o aumento dos índices de linchamento,
mostrando que “o crescimento dos casos de linchamento coincidiu com o retorno à
democracia. Foram quase 50% maior [depois do advento da Nova República em 1985],
isto é, uma vez e meia o número de linchamentos e tentativas do período da ditadura”.
Peralva (op. cit.) não problematiza esse aumento nos índices, mas parece claro que ele
tem relação com o afrouxamento do estado coercitivo, no qual era praticamente
impossível agir em detrimento às práticas de segurança do “Estado”. De outro modo, ela
discute a ocorrência de grupos de extermínio que, formados durante a ditadura por
policiais militares, civis e federais, atuavam na chamada “limpeza social” (PINHEIRO,
2010).
Ao discutir especificamente os linchamentos na “redemocratização” e, ainda
citando Martins, Peralva (2000, p. 95) esclarece que:
203
(...) Parece que se esconde por trás desse procedimento ordenado a
concepção de que linchamento não é crime, justamente porque se
faz em lugar público, como ação coletiva. Crime é o que se faz
escondido, às ocultas. Por isso o linchamento é público, à vista e com
a cumplicidade, voluntária ou não, de todos. (Grifos nossos).
Peralva (2000) defende a tese de que se disseminou na sociedade brasileira,
notadamente nas regiões sul e sudeste, uma sociabilidade violenta, a qual motivaria,
especialmente, os jovens a exporem-se aos riscos como forma de autodefesa e busca de
“imunidade” ao Estado de latência perigosa da vida social. Ela exemplifica tais
comportamentos em situações como surfe em trens; arrastões; imprudência no trânsito;
uso e tráfico de drogas e a frequência em bailes funks.
Adorno e Pasinato (1989) discutem a questão da morosidade e da dificuldade de
acesso à justiça. Apresentam um quadro que descreve a descrença e insatisfação dos
cidadãos brasileiros em relação à justiça cível e criminal. Portanto, já no início do seu
texto, os autores destacam o crescimento do medo e insegurança, assim como dos
índices de violência imediata para resolução de litígios.
A impunidade tem sido apontada pelos meios de comunicação de massa e
pesquisas acadêmicas de levantamento de opinião como a responsável central pela
escalada de violência. Assim, o tempo da justiça transitaria entre muito longo (que gera
dificuldade em investigar, arrolar provas e julgar, como por exemplo, nos casos de
linchamento) ou muito curto (criando problemas como tortura para gerar confissões).
Para pensar aquilo que consideram justiça moderna e seu tempo, Adorno e
Pasinato (1989) recorrem a uma problematização acerca do estatuto da ordem. Assim,
eles mostram que a sociologia traz uma diversidade de teses, desde as otimistas quanto
ao ordenamento social, transitando pelo ideário da democracia, até teses que visam
negar completamente todo processo de sujeição e representação 105. Portanto, a
105
“A guerra é a santa saúde dos Estados, portanto, é fortalecendo a paz que se avizinha nova guerra. A
crise nas sociedades hierarquizadas, e em particular na disciplina é a determinação de um
posicionamento, um lugar continuamente habitado. A crise não é circunstancial como nas sociedades
primitivas, um acontecimento que exige generosidade da chefia, fuga da reverência, bloqueio ao poder
da palavra. Em nossa cultura a crise é permanente e requer mestres e discípulos, soberano e súdito,
governante e governado, pai e filho, guerra e paz, conservação e extermínio, médico e doente, a
verdadeira saúde, a verdade verdadeira, lugar, pessoa ou palavra que dê a solução temporária comporta
nova crise” (PASSETTI, 2003, p. 244).
204
confiança seria a chave para entendermos o nível de satisfação social frente à justiça.
Contudo, as pesquisas mostram que:
(...) Desde a década de 1960, no mundo ocidental, sondagens de
opinião e estudos especializados vêm anotando, com insistência, o
declínio da confiança depositada nos governantes, nos governos, nos
mecanismos de participação e representação (...) (LEVI apud
ADORNO; PASINATO, 1989, p 207).
Para os autores acima citados, as instituições encarregadas da ordem e da lei são
as que menos apresentam níveis de confiabilidade, uma vez que crescem o crime
organizado, a violação dos direitos humanos e a escalada da violência urbana.
Diferentemente daquilo que se sonhou com a “redemocratização” no Brasil, ou seja, o
fim do autoritarismo, da arbitrariedade e do abuso de poder, a sociedade se vê às voltas
com casos de corrupção e violação de direitos. Assim, na medida em que forjamos a
Constituição de 1988, também vimos crescerem os conflitos sociais. Para os autores, o
nosso “Estado” não conseguiu o monopólio do exercício da violência e, mais que isso,
as suas leis são obsoletas para responder às questões atuais. Dentre essas questões,
destaca-se o caso do linchamento. Desse modo, o linchamento é visto como: violação
dos direitos humanos e não como crime social.
[...] Classificamos os linchamentos por entender que ocorrem por
omissão do Estado nas suas tarefas de proteção dos direitos e garantias
individuais, inclusive, o direito à segurança. É justamente, esta
omissão que pode estimular a aplicação de justiça imediata (isto é,
sem mediações das instituições legais para o controle social), “líquida
e certa” nos termos da linguagem jurídica corrente (ADORNO;
PASINATO, 1989, p. 139).
Discordamos dessa argumentação, apesar de entendermos que a tese da
desconfiança/descrença no sistema judiciário é real e pode levar à escalada de violência.
Para nós, a partir da argumentação que foi construída ao longo deste texto, não haveria
possibilidade de construção de um “Estado” ideal e promotor da ordem, paz e isonomia
social, evitando e punindo os casos de violência. Ora, essas práticas são antes de mais
nada violentadoras, pois que arbitrárias.
A violência é uma variável recorrente e contínua nos fluxos de sociabilidade e
organização social. Logo, para nós, a fórmula para a reforma das “práticas de Estado” e
205
das práticas judiciárias não acabaria com as violações, como já exaustivamente
discutido antes. O sacrifício ritual é rizomático e resiliente na nossa sociedade. Isto não
quer dizer que precisemos naturalizar todo e qualquer ato de violência, pois eles podem
ser transfigurados em mimese e “sublimados”, contudo, ao que parece, estarão sempre
presentes.
Ao considerar esse traço da violência (do qual já falamos anteriormente) nos
processos de sociabilidade, Magalhães (2008) em Violência e/ou política discute a
temática do poder em Foucault, ao realizar uma revisão de literatura do conjunto da sua
obra (a saber, foucaultiana), contudo, o referido artigo tem como escopo central mostrar
o caráter positivo do conceito e prática de poder na obra foucaultiana, ou seja, destacar
que o poder é sempre exercido desde que garantida à possibilidade de liberdade. Nesse
sentido, não há como pensar o poder, em sociedades modernas, como um exercício de
sujeição total, mas antes, ele é exercido através de estratégias na forma de biopoder ou
biopolítica e tem como fim último a disciplina, a normalização.
No tocante à temática deste trabalho, é imprescindível destacar que:
(...) No caso da teoria jurídica clássica do poder, o poder é
considerado um direito do qual se seria possuidor como de um bem, e
que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, de uma forma
total ou parcial, por um ato jurídico ou um ato fundador do direito (...)
o poder é aquele, concreto, que todo indivíduo detém e que viria a
ceder, total ou parcialmente, para constituir um poder, uma soberania
política (IFDS apud MAGALHÃES, 2008, p. 31).
Para Magalhães (2008), Foucault não relaciona direta e simplesmente o
exercício político à metáfora da guerra, mas, a guerra moderna seria configurada na
persona dos juízes, sendo esses os estrategistas e construtores dos padrões de
normalidade, ou seja, eles podem interferir nas dos sujeitos e assim:
(...) Governar, nesse sentido, é estruturar o campo de ação eventual
dos outros. O modo de relação próprio ao poder não teria de ser
buscado na violência e na luta, nem do lado do contrato e da ligação
voluntária (...): mas do lado desse modo de ação singular- nem
guerreiro, nem jurídico- que é o governo (DE IV in MAGALHÃES,
2008, p. 35). (Grifos do autor).
206
O destaque desse exercício das relações de poder seriam as diferentes “artes de
governo”, como visto no segundo capítulo, o governo das almas, de si e do outro.
Governo que vai se esmiuçando e ficando cada vez mais difuso e capilar, a tal ponto das
práticas do Estado e do seu (aparato de segurança ou dispositivo de segurança)
perderem, cederem, compreenderem enfim, que o exercício da coerção não está restrito
a elas, mas pode ser realizado por cidadãos comuns. Senão:
(...) Mesmo quando a relação de poder é completamente
desequilibrada, quando verdadeiramente podemos dizer que um tem
todo o poder sobre o outro, um poder só se exerce sobre o outro na
medida em que resta ainda a este último a possibilidade de se matar,
de saltar pela janela, ou de matar o outro. Isso quer dizer que nas
relações de poder, há forçosamente possibilidade de resistência,
porque se não houvesse possibilidade de resistência- de resistência
violenta, de fuga, de astúcia, de estratégias que invertem a situaçãonão haveria de modo algum relações de poder. (...) se há relações de
poder em todo o campo social, é porque há liberdade em todo lugar
(MAGALHÃES, 2008, p. 36). (Grifo do autor).
Enfim, para Magalhães (op. cit.) onde há violência, não há exercício de relação
de poder, pois esse só existe onde possa haver liberdade e resistência. Portanto, o
governo seria o tipo ideal de exercício de poder, posto que é negociativo. A nós, esta
interpretação da obra foucaultina, nos parece alijá-la no que ela tem de mais instigante,
ou seja, a sua proximidade com o conceito de “vontade de potência” nietzscheano, uma
vez que torna procedimental demais o exercício das relações de poder, numa
perspectiva bem próxima às teses de Arendt e Habermas (OLIVEIRA; AGUIAR;
SAHAD, 2003). Preferimos as interpretações mais próximas ao conceito de força
plástica do exercício de poder, assim “exigir da força que não se expresse como força,
que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de
inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse
como força”. (NIETZSCHE. 2005. p. 36. Afor 13. § 1). A força plástica é modeladora,
regeneradora e propiciadora do esquecimento.
Portanto, mesmo quando pensamos em relações microssociais como a educação,
a sexualidade, a relação parental, vemos nelas exercícios de violência, se não física, mas
muitas vezes simbólica/psicológica. Logo, parece idílico demais um exercício de
relações de poder com caráter prioritariamente comunicativo e persuasivo.
207
De modo bem diferente de Magalhães (2008), para Passetti (2003), o século XX
deslumbrou os ideários: da democracia, do multiculturalismo, do capitalismodemocrático. Os anarquistas não creem nessas premissas, pois, propriedade privada não
se coaduna com liberdade.
A proposta libertária é pelo fim da crença no mito do “Estado”, ou seja, de luta
pelo fim das desigualdades e dos universalismos. Assim:
Os libertários trazem pensamentos sem donos, localizações de
terrenos de prazer, afirmações de desejos que constituem um presente
vivo que se volta para si mesmo. São anarquistas que elaboram
discursos de verdade, ora alheios à unidade totalizadora, ora
inspirando a superação de seu limite. Deslocam-nos do território dos
pensadores sociais propriamente ditos para desterritorializações
côncavas e convexas em campos diversos para a criação dos saberes e
das práticas sociais (PASSETI, 2003, p. 12).
Desse modo, sentimos a dificuldade de mapear, apreender, de ter e
representar/apresentar a discussão/vivência do linchamento, pois as utopias/teorias não
dão conta das emergências heterotópicas dos linchamentos. Esses eventos se colocam à
revelia do ideário da disciplina e docilização dos corpos.
No entanto, como visto nas resenhas que descrevem os linchamentos, são os
meios de comunicação de massa que constroem e destroem a cena dos mesmos, assim
como eles constroem a esteriotipação da vítima linchada. Nesse sentido, para Passetti
(2003), a política é uma vivência de democracia midiática das “interações”, das
sondagens, com relação às quais geralmente somos chamados a nos posicionarmos
contra ou a favor de certos temas: por exemplo, aborto; pena de morte; redução da
menoridade penal. Inclusive, em alguns casos, somos incitados a declarar o nosso
clamor social, via apelos de dispositivos de segurança e pelos meios de comunicação de
massa 106.
106
“O Júri do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, que já dura três dias, levantou uma
discussão sobre o espetáculo midiático montado em torno do caso e até onde a espetacularização da
notícia pode prejudicar o julgamento dos réus. Segundo especialistas consultados pela revista Consultor
Jurídico, essa exposição é extremamente negativa à defesa dos réus” . “Não estou dizendo que o casal é
inocente ou culpado. Não preciso defendê-los. Até porque, eles [Alexandre Nardoni e Anna Carolina
Jatobá] já estão representados por um ótimo advogado”, registrou. Frederico Muller afirmou que,
fatalmente, o corpo de jurados já entrou na Plenária com um pré-julgamento sobre o caso, “onde
nitidamente há um trabalho pericial mal feito e uma investigação irresponsável”, ressaltou ele, ao citar
208
Nesse sentido, é preciso e saudável a contraconduta, pois: “numa sociedade de
controle que exige participação como forma de inibir resistências, os anarquismos
precisam da razão do outro libertário. Se quiserem responder ao que estão fazendo de si,
terão de enfrentar os efeitos da crítica à autonomia do sujeito” (PASSETTI, 2003, p. 2526).
Essa <autonomia> do sujeito, mina inclusive, o ideário socialista e
democrático da vontade geral, que antes de mais nada, se revela como
uma <religião moderna do rebanho>. Assim, é utópico e funcional à
reprodução da <ordem> a crença/defesa na trilogia dos direitos
modernos, a saber: civis, políticos e sociais. De todo modo, o homem
intentando à constituição da ordem tem utilizado-se da pedagogia da
<correção>, assim castigar sempre foi o método pelo qual os costumes
afirmaram a necessidade de um soberano, do superior, deus castigou
Adão e Eva, no Genesis, depois de lhes dar o paraíso. Ordenou-lhes
vagar pela Terra e trabalhar, como punição por terem experimentado o
proibido. A vida como entes comuns trouxe o crime, o fraticídio, o
horror para dentro da sagrada família. A imagem do senhor não devia
ser ferida ou maculada pelos humanos expostos aos satânicos
impulsos para pecar. Precisamos da Idéia de Deus materializado numa
Lei para guiar os seres de volta ao paraíso perdido, depois da morte do
cordeiro obediente (PASSETTI, 2003, p. 238).
O “mundo ocidental” construiu a sua cultura em diferentes momentos históricos
a partir da noção do castigo, do limite, do controle. Inventou Deus e suas regras, dividiu
o poder de Deus entre a igreja e a monarquia e travestiu/metamorfoseou o divino no
mais uma vez que o "circo" que se montou prejudica e muito a defesa dos réus. O advogado registrou,
ainda, que a participação da autora de novelas, Glória Perez, na platéia, em nada ajuda o Judiciário ou a
Justiça. Ele disse que a presença dela pode interferir, mesmo que inconscientemente, na decisão dos
jurados que poderão associar o caso de Isabella com o crime cometido contra sua filha, Daniela Perez.
Em dezembro de 1992, a atriz Daniela Perez, de 22 anos, foi assassinada por seu companheiro de
trabalho na TV Globo, Guilherme de Pádua, e pela mulher dele, Paula Thomaz. O casal foi julgado,
condenado e já cumpriu pena pelo crime. Glória Perez, a partir da tragédia que a atingiu, não perde
mais oportunidade de fazer campanha para o endurecimento da Lei Penal como arma contra a
criminalidade. “Não estou discutindo se o casal é culpado ou não. A certeza que eu tenho é a da
tragédia, mas como advogado e como cidadão, fico muito preocupado em pensar que esse casal pode
ser condenado por conta do show que se montou em cima do caso que deveria estar restrito aos
interesses das famílias envolvidas”, diz. Muller lembra que a Justiça é cega e tem de ser cega
exatamente para proporcionar segurança jurídica. Explica que, na França, é proibido qualquer tipo de
veiculação sobre o caso antes do julgamento. De acordo com ele, para se ter um julgamento isento, os
jurados são informados no dia da plenária. “Eles devem estar virgens de informações sobre o caso que
vão julgar” (MILÍCIO, 2010...).
209
ideário de bem comum das modernas democracias que são exercidas em nome da
vontade geral. No entanto:
A ampliação deste biopoder disciplinar e regulamentador faz recuar o
poder soberano e intervir o racismo: <o corte entre o que deve viver e
o que deve morrer>. A subdivisão no interior de um segmento, a
fragmentação, faz aparecer o guerreiro exterminador que fortalece não
o eu mas a espécie: a morte do outro deixa a vida <mais sadia, mais
pura>: é o direito de matar. Não apenas <assassínio direto, mas,
também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à
morte, de multiplicar para alguns o risco de morte, ou, pura e
simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.>. A morte
do outro é o fortalecimento da própria pessoa, no capitalismo
democrático, no nazismo e no socialismo autoritário, por meio de
relações de poder ascendente e descendente. Ninguém é ativo ou
passivo, todos os súditos estão convocados a ser isso e aquilo
condição de fortalecimento do assujeitamento (PASSETTI, 2003, p.
246).
Desse modo, a lógica das “práticas de Estado” no século XX, quanto à gestão do
Estado via políticas públicas, dentre elas a de segurança, nos descortina todo um
universo de jogos linguísticos, performances jurídicas e lapsos de interpretação, do
roteiro da peça idílica da cidadania. Esses vieses entre o dever ser e aquilo que se faz
abrem possibilidades para a negação da vida que não merece ser vivida. Portanto, a
saúde/paz das “práticas de Estado” demandam guerras (micro e globais). Assim, a
comunicação, a velocidade e a “criatividade” caminharão lado a lado com o obsoleto, o
moroso e a reprodução.
As redes de poder não desapareceram, apenas passaram a ser
atravessadas por fluxos (...) Nunca religião e ciência foram tão
próximos (sic). O anjo da guarda protege o computador de vírus; os
programas dos sistemas de controle se fortificam como deuses que
guardam as preciosidades armazenadas no computador . Eles são a
saúde da máquina, ao lado de cada novo programa de segurança,
criado por um ser mortal. Pela primeira vez ao assumir a relação
intrínseca entre religião e ciência se reconhece que os deuses são
criações humanas (PASSETTI, 2003, p. 249).
No entanto, nesse paradigma, não rompemos com a necessidade da disciplina.
Contudo, ela será exercida de modo implícito, ou seja, “participativo/democrático”,
como se o fato de ter que escolher entre ser a favor ou contra “questões tabus”, que nos
são colocadas pela mídia, nos tornasse de fato “cidadãos” participantes dos debates na
210
ágora midiática. Talvez aqui a teoria da ação comunicativa seja aquela que mais embale
os sonhos da democracia. Entretanto:
A sociedade que clama por mais punição é a que se reconhece na
periferia. É preciso segurança contra a periferia. E, na periferia,
segurança contra os marginais e policiais (o caso mais evidente, desde
o final do século 20, é o do narcotráfico). O sistema de seguros passa a
ser um bom negócio para todas as seguradoras, que por sua vez
também estão asseguradas contra roubos, incêndios, coisas estranhas
ocorridas na terra, no subterrâneo, no espaço sideral, nas guerras. Eu
preciso estar seguro de você (...) Não há seguro contra a subjetividade
do outro; por isso mesmo as subjetividades são cada vez mais
capturadas pelos fluxos; exige-se que cada um possa ser localizado
imediatamente por senhas, até pelos satélites. A terra está circundada
de satélites de segurança. Os anjos da guarda nos protegem!
(PASSETTI, 2003, p. 281).
Ironicamente, a “universalidade” da segurança pública esbarra e acaba na
fatalidade de que só a tem quem a pode comprar, logo, há uma aporia da violência
que nos aponta para o binômio violentadores-violentados? Ou vice e versa? Como não
se tem a pretensão de dar a última palavra e muito menos ter a Palavra Verdadeira sobre
a discussão aqui empreendida, será dito apenas: façam as suas apostas! Vejam bem,
apostem como perspectiva probabilística, mas não escolham, pois em cada escolha já
há, a princípio, uma teleologia, pois, “necessária é também uma inclinação para
enfrentar questões que hoje ninguém se atreve a elucidar; inclinação para o proibido;
predestinação para o labirinto (...) experiência das sete solidões” (NIETSZCHE, 2003,
p. 37). Nesse sentido, com este trabalho tivemos a pretensão de enfrentar a discussão
sobre a violência ritual do linchamento, vendo-o como um sintoma da ineficácia das
“práticas de Estado” modernas e, ao mesmo tempo, denunciando a relação simbiótica
entre “Estado”, Igreja e sociedade, pois o linchamento nos aponta para a tese de que o
rito sacrificial ainda é uma forma presente nas sociedades que se pensam racionais e
laicas.
211
CONCLUSÕES, NÃO! NOVAS INQUIETAÇÕES!
Figura 7 - Surrealismo Salvador Dali
“Não se acha a paz evitando a vida.”
(VIRGINIA WOOLF)
I - “... O QUE SERÁ QUE SERÁ?...”
Assim como a imagem (um tanto dionisíaca) que abre este capítulo é muito
próxima ao mito do “sacrifício ritual”, o carneiro é levado ao templo sacrificial para
evitar a escalada da violência e quem sabe, “restaurar/reinventar” a ordem...
O linchamento como recorte da violência global foi apresentado aqui, segundo
as teses que veem a violência, como uma recorrência da ação do homem sobre o
homem, do projeto de construção da humanidade.
212
A violência (processos socializadores) nos diz, desde cedo, qual o nosso lugar
quanto a: nome, gênero, cor, profissão, estética. Toda a vida em sociedade é perpassada
pelo olhar (aprovador/reprovador) numa aporia que também já foi forjada antes!
A violência, um fenômeno de várias nuances, é praticada de modo
“democrático”, não estando circunscrita a tal ou qual instituição social. Infelizmente, é
na chamada modernidade e, talvez, devido à facilidade de publicização midiática de
cenas violentas, que nós vimos crescerem os índices das mais diversas modalidades de
exercício da violência.
Praticada pelo coletivo ou individualmente, a violência tem acenado com um
impasse entre o ideário da lei e da ordem, especialmente aquela ordem que deve ser
exercida pelas “práticas de Estado” e as rizomáticas realizações da violência praticada
pelos “leigos”.
Em nenhum momento, pretendemos defender a bandeira da violação contra si ou
outrem,
mas
também
não
foi
visto
na violência apenas
o
seu
sentido
negativo/destruidor. Percebemos a violência como ato fundador da vida, ou seja, a
violência da proliferação molecular; a violência do ato sexual; a violência do processo
de assujeitamento a partir do qual nos tornamos Eu, diferentes do eles... A violência
como força que nos faz superar o agora.
Tentando “entender, conceituar, aprisionar” a violência como uma andarilha,
percorremos ruas, favelas, guetos e prisões e pensando estar “descortinando” a vida dos
ditos indesejáveis, fomos, aos poucos, desconstruindo/construindo leituras possíveis que
a explicassem. Assim, como dizia Erasmo de Desidério, não é um mal ser enganado, o
mal é nunca sê-lo, ou seja, é crermos na felicidade buscada nas coisas mesmas, como se
houvesse uma essência/verdade posta e passível de captação. Ao contrário, o mundo é
invenção/ficção e na maioria das vezes é a ficção o que nos dá a ideia de verdade. Ela é
a nossa verdade.
Desse modo, apesar de toda problematização estabelecida neste trabalho ao
ideário moderno, quanto ao seu paradigma da ordem, do progresso e da funcionalidade,
entendemos que seria impossível abrirmos mão, de uma vez por todas, daquilo que, ao
longo de milênios da história, nós constituímos como “processos socializadores”, pois
que estratificadores e tendentes à chamada organização da vida em grupo. Sem defender
as “práticas de Estado” e tampouco sem a pretensão de negá-las completamente, o que
213
nos falta é um olhar corajoso e sem comiseração em relação àquilo que nos tornamos ao
nos pensarmos como um e como nós.
Ao realizarmos tal exercício de relativização, talvez possamos olhar para os
“sobrantes históricos” e não vê-los como mortos ou mortificáveis, ou vítimas,
simplesmente. Ora, como visto na nossa discussão, é preciso que existam os “não
capacitados à vida” para que os “potencialmente vivos” se tornem força. Desse modo,
não nos coadunamos com nenhum discurso universalista e pastoral que vise representarproteger os ditos fracos.
Não é admissível aceitar qualquer discurso que se escamoteie em universalismos
de proteção do outro. Se quisermos mesmo “transformar” aquilo que construímos como
realidade, que incitemos e demos efetivamente ao outro a chance de ser ele mesmo,
inclusive, de defender-se. É preciso que se acabem com as pieguices teológicas e
pseudo-científicas que alardeiam a defesa do fraco, pois, a própria conotação da
fragilidade do outro já nos acena para as vantagens de sermos seus “representantesbeneficiadores”, logo, o forte, o milenarista e salvador.
Todo homem deve exercer a sua “liberdade” e tornar-se capaz, o suficiente, para
externar seu desejo e intentar a sua consumação, obviamente, exceto os casos em que a
medicina e o direito “conceituam como incapacitados”. Precisamos ler mais Foucault e
nos inspirarmos menos no darwinismo.
“Práticas de Estado”; razão de Estado; bem comum; vontade geral; ordem e lei:
eis os conceitos e práticas que nos tornam tutelados por interesses escusos aos nossos
desejos e busca da felicidade. Desse modo, o linchamento nos acena não como uma
alternativa à farsa do uno, mas, antes de mais nada, aparece como uma emergência da
sua impossível existência, da sua inoperância e desinteresse em “proteger todo o
rebanho”.
Acima de tudo, o linchamento, na perspectiva aqui trabalhada, nos aponta para a
ainda presente união entre igreja, “Estado” e sociedade. Longe da apregoada ruptura
entre os três tipos de conhecimento no século XVII, temos ainda uma relação íntima,
embora conflituosa entre religião, ciência e filosofia.
A pseudo-segurança das “práticas de Estado” moderno, parece alicerçada na
certeza da vulnerabilidade da lei e ordem e, assim, nem ovelhas e não somente lobos
214
atravessamos os desertos em busca da fartura das pastagens verdejantes e “tranquilas”
até que outros predadores nos ameacem e comecemos nova jornada em “busca de paz!”
Nesse sentido, pensar no linchamento é antes de tudo, tomá-lo como um
exemplo da impossibilidade do monopólio da violência pelas “práticas de Estado”. É,
também, descortinar a série de descontinuidades e fracassos do ideário do bem comum e
da vontade geral. É, ainda, e cada vez mais, o entendimento de que nem todos nascem
para sorrir/viver. Aquilo que denominamos sociedade está embasado na busca do
controle
e
do
auto-controle,
especialmente,
no
controle
sobre
o
outro/diferente/estrangeiro, enfim, na sua maioria contra o pobre que, por sua aparência
física; seu modo de ser e de viver e a sua quase impossibilidade de enquadrar-se na
sociedade de consumo, será sempre visto como um perigo potencial, pois
desejoso/invejoso da vida do que tem.
Assim, o “bode expiatório” é uma figura que o seu próprio olhar o acusa, seu
olhar é desejante, mas que audácia! Um não homem desejando sê-lo! Os “bodes
expiatórios” estão nos sinais; cheiram cola; usam crack; pedem; coagem; roubam;
agridem nosso corpo, mente e propriedade, eles não são vistos como gente,. Logo, não
merecem viver!
Nos casos de linchamento estudados, tanto o de Chapecó, quanto os 34 casos
ocorridos na Paraíba, vimos se repetirem as variáveis: a) crime contra a pessoa ou
contra a propriedade; b) não definição do número dos envolvidos e não arrolamento de
testemunhas e inquérito, menos ainda de julgamento e punição; c) o fenômeno da
multidão e do seu esfacelamento; d) possível conivência da polícia. Todas essas
variáveis acenam para um cenário de, mesmo que de modo implícito, certa aceitação
por parte da média geral da sociedade sobre tais atos. Vimos que a média social defende
a questão da pena de morte; vimos discursos, em citações, que descreviam a gratidão de
pessoas comuns e de dispositivos de segurança quanto aos atos de linchamento; vimos a
“lei do silêncio” que, operando como mecanismo de defesa psicológica e/ou jurídica,
nega, “esquece” o linchamento.
De outro modo, a “sociedade em geral” (os que podem pagar), as instituições
que representam as “práticas de Estado”, as empresas do mundo mercantil e de serviços,
todos compram segurança privada. Uma sociedade dita pós-moderna que não resolveu
questões arquetípicas como a fome; o analfabetismo; o não-trabalho/inclusão, ao mesmo
215
tempo implanta chips em pessoas para que possam ser rastreadas. Câmeras; internet;
segurança pessoal... Ações de biopoder e biopolíticas de controle que não garantem a
tranquilidade do agora. Vivemos numa sociedade que se vê às voltas não mais com a
angústia, mas com o pânico; que constitui, cada vez mais, discursos e práticas de
exclusão do outro, principalmente, se pobre.
A chamada sociedade brasileira e paraibana, hoje, está permeada por discursos
de esquerda, direita (da política representativa) ou o não discurso, mas, se vê
confrontada cotidiana e continuamente com o horror da violência que simplesmente
viola/destrói, sem que seja utilizada como uma força plástica e transformadora para a
desconstrução do mito da racionalidade, imparcialidade, universalidade e ordenamento
e que se propusesse a olhar o outro não como ameaça ou coitado, mas, simplesmente,
um outro, assim, como cada indivíduo o é em relação aos demais.
Mas, de fato, a pragmática moderna nunca intentou, stricto sensu, o “reinado” da
vez e vontade geral, mas, antes, sempre buscou os controles dos fluxos, da natalidade,
da morbidade e da mortalidade.
Desse modo, sendo as “práticas de Estado” desenvolvidas por instituições que,
muito “bem intencionadas” e cheias do espírito do dever ser, tomaram para si a “árdua”
tarefa de constituírem o normal e o patológico. Elas deixaram à margem muitos dos
quais usam pouco o exercício do poder e se deixam por ele domesticar, ou pelo menos,
são alvos das tentativas de domesticação. Assim, o linchamento não é uma atitude
louvável e não acena como uma alternativa à chamada ordem posta. Ao contrário,
tristemente, emerge como os refluxos de uma sociedade que se quer “racional e
civilizada” versus irracional, com práticas “desumanas”. Não se fala aqui de
desumanidade apenas como o linchamento stricto sensu, mas de tudo que envolve o
ideário ainda presente de que a violência pode ser combatida com mais agressão, ou
seja, de que podemos lidar apenas com os resíduos de uma estrutura ideária e maneiras
de agir na qual para eu ser, tenho que negar o outro.
Como visto, no Brasil, “ontem e hoje”, ou seja, da sua invenção como nação,
passando pelos diferentes paradigmas de governamentalidade, temos garantida a paz
pelo consumo, especialmente o consumo da segurança privada, que ao contrário das
“práticas de Estado”s europeus, não foi abolida com o estabelecimento da chamada
centralidade do uso da violência. No Brasil, estar seguro implica, antes de mais nada, ter
216
dinheiro suficiente para garantir-se seguro. Nisso, as próprias “práticas de Estado” nos
dão exemplo ao consumirem serviços de empresas terceirizadas de segurança.
De outro modo, os litígios relacionados às camadas mais pobres têm sido
resolvidos nos imediatismos da justiça popular e a segurança, no Brasil, de um modo
geral, é representada como uma insegurança nacional. Como podemos esperar que a
população não reaja quando atacada?
Enfim, este estudo não pretendeu esgotar o tema mas, propôs torná-lo visível,
provocativo e deixar em aberto diferentes formas de abordá-lo.
217
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