A criatividade como ponte de passagem - do passado instituído a um devir instituinte Moisés Rodrigues da Silva Júnior De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura... um encontro! Fernando Sabino Encontro Marcado “Tudo que está a favor da vida é parte da vitória. Mesmo que não seja agora.” Entrevista Carta Capital - Ministra Marina Silva Projetos Terapêuticos é uma instituição de saúde mental que teve seus inícios na virada do século 21. Tempos marcados por questionamentos e dificuldades de implantação das novas propostas de atendimento aos doentes mentais introduzidas pela reforma psiquiátrica (os serviços alternativos, a práxis da saúde reformada e a dos novos operadores “da saúde mental”) e da lenta transformação da representação social do doente mental como um “não-ser social”, ao qual todos os direitos reservados ao cidadão são negados e como um “não-ser humano” do qual é retirada toda a individualidade e respeito humanos. UM RÁPIDO PANORAMA – O trabalho clínico é uma atuação política sem necessariamente ser um “ativismo político“. A reforma psiquiátrica, em desenvolvimento hoje no Brasil, tem suas raízes fincadas na década de 1970. A política dos governos militares para a área da saúde mental consolidou as alianças entre internação hospitalar e privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos, até se consolidar na área da saúde mental a proporção de 80% de leitos contratados junto ao setor privado. Na segunda metade da década de 1970, no contexto do combate ao Estado autoritário, emergem críticas à ineficiência da assistência pública em saúde e ao caráter privatista da política de saúde do governo e, o que é mais importante para o posterior movimento da reforma, as denúncias do abandono, da violência e dos maus-tratos a que eram submetidos os pacientes psiquiátricos internados do país. Em 1979 durante o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, a opinião pública brasileira e internacional foi sacudida pela comparação feita por Franco Basaglia do Hospital Colônia de Barbacena a um campo de concentração. O movimento da saúde mental assume nesse momento um forte compromisso político-social, insistindo num argumento originário: os “direitos do doente mental”, sua cidadania, desdobrando-se em um amplo e diversificado repertório de práticas e saberes, configurando-se então como um movimento que não pode ser considerado apenas setorial, mas parte de um amplo movimento que estava em andamento, de luta pela saúde e pela democracia. A ação coletiva e organizada dos trabalhadores nos locais de trabalho, nas instituições de ensino, no meio sindical, re-introduzia pensar o social e suas práticas a partir das forças vitais e da subjetividade dos coletivos. O cotidiano é estabelecido como suporte e como categoria fundamental a vida cotidiana, a vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada. São então valorizados traços característicos da vida cotidiana: o caráter momentâneo dos efeitos, a natureza efêmera das motivações e a fixação repetitiva do ritmo, a rigidez do modo de vida, forçando a política a criar novos lugares para exercitar-se. A ruptura com o modelo manicomial significa muito mais do que o fim do hospital psiquiátrico. Afirma-se ao lado da vida como contraposição à negatividade patológica construída pelo cotidiano da segregação assim como de noções e conceitos como a incapacidade, a periculosidade, a invalidez e a inimputabilidade. O modelo antimanicomial atinge em cheio a sociedade em sua posição de indiferente distancia aos “crimes em tempos de paz”. Recordemos que, ao longo de quase 75 anos de existência do Hospital Colônia de Barbacena, morreram em situação desumana mais de 60.000 internos dessa instituição. A guisa de comparação, o movimento de purificação eugênica alemão nos anos 1930 - 1940 assassinou 70.000 pacientes psiquiátricos. Mudar o modelo assistencial em saúde mental significa determinação ética e política assim como a adesão a utopias sociais que visam satisfazer à vontade coletiva de um aperfeiçoamento da vida social e da realização de um ideal social. Em lugar de pensar o humano a partir de categorias universais previsíveis, tal como tentou certa ortodoxia psiquiátrica e psicanalítica, apostamos na imprevisibilidade humana como fonte infinita de respostas ao contexto no qual se insere. É este homem o nosso tema, o nosso objeto de desafio institucional. Redefinido em seu lugar e papel social, o sujeito vê, desde uma nova perspectiva, seu objeto de trabalho e seu lugar no processo terapêutico, incluindo de forma inédita a possibilidade de articular-se com todos os saberes de sua época, os saberes artísticos, populares, incluídos num amplo projeto de intervenção institucional. É a criação de uma nova vitalidade na experiência pessoal criativa; o seu principal produto é o de dar ao indivíduo a chance de ser participante na atividade criadora social. É o inicio da construção de uma expressão coletiva. O grupo como suporte para o tratamento é sustento de nossa prática, pensado como uma estrutura de recepção, de elaboração e de reparação dos restos, do traumático, e das rupturas sofridas pelo sujeito, com o fim de restaurar nesse sujeito a capacidade de simbolização, continuidade psíquica e criatividade. Além do apoio sobre as funções fisiológicas corporais e do objeto de amor sobre a mãe, existe um apoio sobre o self e um apoio das funções psíquicas sobre o grupo e a instituição que o grupo mediatiza. A ruptura do encapsulamento psicótico se dá sempre pela apresentação ao sujeito de elementos heterogêneos a ele. A entrada no social é, essencialmente, produto desta ruptura. A participação em um grupo, garante ao indivíduo uma identidade singular, e um reconhecimento pelos outros, apresentando um mundo possível de ser compartilhado e da vida ganhar uma referência e, portanto, acesso a uma significação. Chegamos então ao conceito que formulo como “supra-grupal”, possibilidade de criar planos de acontecimento cada vez mais abertos de informação, conexão, presença do social, para através de uma 'percepção renovada', levar o indivíduo a uma novidade, ao dilatamento de suas capacidades relacionais habituais, pela descoberta / ativação do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, de sua “fome social” a tanto negada. A valorização do indivíduo na coletividade leva ao compartilhamento de valores coletivos que qualificam suas aspirações criativas mais fundamentais. Através de proposições cada vez mais abertas ao social (deslocamentos, encontros, propostas de ação, trabalhos) visamos fazer com que cada um encontre em si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, pelo encontro quase casual com o outro, uma referência, a pista para o estado criador, possibilidade de ser e estar no mundo o que Mário Pedrosa definiu como 'exercício experimental da liberdade. Parte fundamental do projeto terapêutico é nossa concepção de território, por concebermos nossa instituição e o trabalho clínico como espaços sociais implicados não apenas com o psicológico, mas com a produção de subjetividades, convivência e integração. Com uma participação ativa no território, buscamos novas associações e novas formas de cooperação na construção do cotidiano e na ocupação do espaço público, na tentativa de desvendar e intervir nas relações entre os homens e os grupos com o espaço: “pertencer àquilo que nos pertence, pressupondo também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que, entre os seres vivos, é privilégio do homem”. Milton Santos O ponto de partida? Como dizia Winnicott, todo início é uma soma de inícios... Se considerarmos que há uma interação dinâmica entre os níveis social, institucional e individual e que determinantes sociais, culturais e psicológicos se articulam, podemos pensar na criação de novas formas de representação e atuação com relação aos diferentes objetos sociais, no qual temos incluída a loucura. A instituição enquanto mediadora entre o que é da ordem social e cultural e o que é da ordem do indivíduo/sujeito, se revela como o centro dinamizador de mudanças sociais. O Movimento Institucionalista concebe a sociedade como uma rede de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens. A instituição ainda, segundo Cornelius Castoriadis, é um conjunto de significações operantes, capazes de construir formas de subjetividade específicas para cada época e lugar, determinando o que é bom ou mau, valorizado ou desprezado, o que fazer ou não, bem como as conseqüências para cada ação. Uma das maiores evidências de vitalidade de uma instituição é sua capacidade de manter o movimento de transformação. Essas forças transformadoras das instituições ou capazes de instituir uma instituição são chamadas de instituinte. O instituinte é processo, movimento, tornando-se referência obrigatória para os sujeitos que se constituem na trama de uma dada instituição. Isto significa que todas as instituições, tanto quanto a família, têm potencialmente o poder e a função de fundar subjetividades. O sujeito não tem como se constituir fora das instituições (e, uma vez constituído, não tem como imaginar-se diferentemente). Dizemos, então, que a instituição – em suas duas dimensões, de instituído e instituinte, - é estruturante da vida psíquica individual já que aquilo que está “fora”, isto é, as representações imaginárias válidas para aquela época e lugar, estão instituídas também “dentro” do sujeito, constituindo-se como fundantes do sujeito. A indicação clínica de um tratamento institucional encontra sentido na concepção de que a matriz simbólica do sujeito psíquico é institucional. Se o sofrimento psíquico é expressão de um impasse no processo de subjetivação, na instituição e por meio dela, o sujeito poderá criar para si novos modos de ser a partir de novos investimentos narcísicos e objetais que podem vir a ter lugar. Construímos um programa, conjunto de espaços estruturados e ações coordenadas, ao mesmo tempo em que livres à participação e invenção criativa dos participantes. Cada grupo porta, pelo pertencimento a um todo maior, o programa, a instituição, a marca de não todo e desta forma é na reunião institucional que se apresenta um corpo reconhecível, instrumento no campo de uma clínica, que se abre a proposta de aprender a aprender ou aprender a pensar sutilmente, integrando estruturas afetivas, conceituais e de ação, isto é, o sentir, o pensar e o fazer. Retomando, então, o modelo do operativo instituinte e instituído, podemos pensar o nosso tratamento como resultante da articulação entre esses dois níveis. O projeto terapêutico, instituinte, em constante criação, serve como referente simbólico de todas as ações e de todas as estratégias postas em prática na instituição através dos dispositivos terapêuticos em seu funcionamento concreto, cotidiano, que devem ser sustentados pela equipe. Uma vez determinados pelo projeto terapêutico, aquilo que será instituído está referido a algo para além do desejo e das representações de cada um. Faz parte do instituído, a circulação diária dos relatos dos grupos, a reunião clínica, (espaço privilegiado de elaboração e construção de estratégias compartilhadas de ação), as supervisões de duplas de coordenação, os planos transversais de interlocução entre terapeutas, a análise institucional. Podemos resumir nossa proposta com a idéia de que o estabelecimento de projetos de vida tem como desafio, o descobrimento do potencial do ser humano, a construção de valor social, e o aumento de poder nas trocas sociais a partir da prática da diferença. BIBLIOGRAFIA Amarante Paulo - Saúde Mental e Atenção Psicossocial, Editora Fiocruz, 2007. Baremblit, Gregorio - Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática, Editora Rosa dos Tempos, 1996. Basaglia, Franco - Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica, Paulo Amarante (organizador), Editora Garamond, 2007. Dejours, C - A banalização da injustiça social, Editora FGV, 2005. Castoriadis, Cornelius - A Instituição Imaginária da Sociedade, Editora Paz e Terra, 1991. Heller, Anne - Sociologia da vida cotidiana, Editora Paz e terra, 1977. Pedrosa, Mario - Mundo, Homem, Arte em Crise. Editora Perspectiva, 1986. Santos, Milton - O Espaço do cidadão, Edusp, 1987. Santos, Milton – Da totalidade ao lugar, Edusp, 2002. Viñar, Marcelo Uma utopia sem lugar de chegada, Revista de Psicoanalisis, LVI, 3, 1999 Winnicott, Donald - O brincar e a realidade, Editora Imago, 1971.