ENSINO DE CIÊNCIAS E HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Marcos Rodrigues da Silva – [email protected]
Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Filosofia
Rua Pernambuco, 1129, ap. 52 – Cep: 86020-121, Londrina, PR.
Londrina - Paraná
Resumo: este trabalho pretende mostrar uma forma específica da utilização da
História e Filosofia da Ciência no ensino de ciências por meio do uso de uma fonte
histórica primária. Apresentaremos algumas passagens de um clássico artigo
científico: o artigo contendo a estrutura molecular do DNA (a dupla hélice do DNA), de
autoria de James Watson e Francis Crick. Estas passagens estarão conectadas com a
apresentação de alguns episódios importantes para a construção da dupla hélice.
Apresentamos ao final alguns problemas para a utilização de fontes históricas
primárias.
Palavras-chave: DNA; natureza da ciência; ensino de ciências; história e filosofia da
ciência; dupla hélice.
1
INTRODUÇÃO
Um exame da literatura revela que são várias as formas de aplicações práticas da
inserção de História e Filosofia da Ciência (HFC) no ensino de ciências: a) como parte
integrante da constituição de currículos (cf. Rosa e Martins 2007); b) como orientação
conceitual da prática pedagógica (cf. Mion e Angotti 2005); c) como fomentadora de
uma compreensão da natureza da ciência (cf. Matthews 1994). Neste trabalho se opta
por uma proposta e reflexão acerca da aplicação (c). Por meio desta aplicação se
compreende a fonte histórica primária como um material pedagógico que pode suscitar
reflexões acerca da prática científica, sobretudo a respeito daquilo que se considera
como a natureza da ciência. Neste sentido, este trabalho é uma tentativa de oferecer uma
contribuição para esta forma específica de aplicação de HFC no ensino, aplicação esta
que faz uso de uma fonte primária para a inserção de HFC. Para isso apresentaremos um
artigo clássico da história da biologia molecular (o artigo de James Watson e Francis
Crick que apresenta o modelo molecular do DNA: a dupla hélice do DNA) e
analisaremos suas possibilidades (enquanto fonte primária) de utilização por parte de
um professor de ensino médio de biologia, tendo em vista seu objetivo de, por meio do
artigo, inserir HFC no conteúdo “ácidos nucléicos”.
Em linhas gerais o objetivo do trabalho é apresentar uma proposta de viabilização
da inserção de HFC no ensino de ciências, viabilização esta que dependerá, por sua vez,
de i) um domínio relativamente seguro dos principais episódios da história da
construção de um modelo científico e da ii) utilização de uma fonte histórica primária (o
artigo de Watson e Crick).
1. O ensino de ciências e a inserção de HFC
Muito se discute, no interior das tradições de investigação do campo
multidisciplinar de ensino de ciências, a respeito das possibilidades de obtenção de
dividendos cognitivos a partir da inserção, nas disciplinas de ciências, de conteúdos de
HFC; estes dividendos, grosso modo, se exibiriam em habilidades desenvolvidas pelos
alunos em sua resolução de problemas e compreensão mais adequada dos conteúdos,
habilidades estas que permitiriam ao aluno aprender mais do que apenas o próprio
conteúdo, pois seria conduzido a uma compreensão dos contextos científicos,
filosóficos, sociais e culturais que circundam a apresentação de teorias e conceitos
científicos. Neste caso pretende-se entre outras coisas que o aluno consiga estabelecer
relações das teorias e conceitos científicos com aspectos a princípio extra-científicos
tais como a cultura, a história, o contexto social etc; ou seja: pretende-se que o aluno
consiga “ir além” do conteúdo em sua apresentação mais estrita e concisa.
De acordo com Michael Matthews (1994:49-53), existem algumas razões
para a inclusão de HFC nos currículos de disciplinas científicas, tais como:
compreensão acerca da natureza da ciência; compreensão de forma mais adequada dos
conceitos e métodos científicos; importância intrínseca da história da ciência;
desmascaramento do dogmatismo e cientificismo dos manuais; humanização da ciência
por intermédio da história; enfoque da interdisciplinaridade científica. Independente dos
seus méritos, cada uma destas razões deveria promover o entendimento das teorias
científicas (ou partes delas) que são ensinadas aos alunos (Matthews 1994, p. 163).
Sendo assim, uma razão para a inserção de HFC deve ser tratada como uma razão não
para a complementação do conteúdo, mas para a compreensão do mesmo.
O tipo de reflexão historiográfico-filosófica sugerido neste trabalho
pressupõe a importância da inserção de HFC no ensino de ciências, pressuposto este
disponível em larga escala na literatura pertinente. Não é objetivo deste trabalho discutir
os potenciais problemas que possam advir de um questionamento ao porquê da
inserção; entretanto, talvez seja interessante oferecer ao leitor a informação de que
pesquisas em ensino de ciências têm enfatizado a relevância a respeito do significado de
“natureza da ciência” (cf. Scheid, Ferrari e Delizoicov 2007, p. 158; Oki e Moradillo
2008, p. 71; Praia, Gil-Perez e Vilches 2007, p. 147; Acevedo et al 2005, p. 4;
Matthews 1994, p. 50-52; Fourez 2003, p. 118; Lonsbury e Ellis 2002, p. 3; Carvalho e
Vannuchi 2000, p.428). Basicamente, o que se pode concluir é que existe uma
preocupação com a alfabetização científica, entendida esta em sentido amplo, e se
deseja que o ensino seja produzido com o auxílio de concepções norteadoras acerca da
natureza da ciência, e que a aprendizagem transcenda o conteúdo propriamente dito. A
pergunta implícita deste trabalho é: em que sentido uma abordagem historiográfico-
filosófica pode auxiliar na tarefa de compreensão da natureza da ciência? Após
apresentarmos uma contribuição da história e filosofia da ciência para uma
compreensão do episódio da dupla hélice do DNA, retomaremos a pergunta acima.
2. Aspectos históricos da construção do modelo da dupla hélice do DNA
Não se pretende, nesta seção, apresentar nem a história da construção da
dupla hélice, e nem ao menos um resumo desta história. Ao invés focaremos alguns
momentos importantes que, de acordo com a historiografia do episódio, não podem ser
negligenciados por aquele que deseja obter uma compreensão do próprio episódio 1.
2.1 A relação entre DNA e hereditaredade
Por volta da década de 40 do século passado, diversos físicos estavam
convictos de que uma resposta à questão “o que é a vida” deveria ser dada a partir de
um tratamento molecular ao problema geral da transmissão da informação genética.
Schröndiger se perguntava como fenômenos do mundo vivo poderiam ser tratados pela
química e pela física (cf. Schröndiger 1997, p. 17). Um conceito importante de
Schröndiger é o conceito de “entropia”, cujo significado remete à termodinâmica e, no
caso de Schröndiger, se refere ao aumento da desordem na natureza causado pelo
metabolismo de um organismo em sua tentativa de sobreviver (cf. Schröndiger 1997, p.
82-83). Para Schröndiger, um organismo não se mantém vivo por causa de alguma força
metafísica (cf. Schröndiger 1997, p. 82), mas pela capacidade que o organismo possui
de produzir “entropia negativa”; ou seja: “(...) que o organismo tenha sucesso em se
livrar de toda a entropia que ele não pode deixar de produzir por estar vivo”
(SCHRÖNDIGER 1997, p. 83). O livro de Schröndiger foi uma forte influência para
muitos cientistas, dentre eles James Watson e Francis Crick.
2.2 As proporções de Chargaff
O bioquímico austríaco Erwin Chargaff intensificou suas investigações a
respeito do comportamento químico das bases nitrogenadas que estão localizadas no
interior da dupla hélice do DNA. Nesta investigação descobriu empiricamente que as
bases timina e adenina sempre aparecem em proporções quase iguais e o mesmo valia
para as bases citosina e guanina (isto deu origem à célebre fórmula: AT=1; CG=1).
2.3 A hipótese de Watson e Crick
James Watson e Francis Crick, após se conhecerem e começarem a
trabalhar juntos no Laboratório Cavendish, em Cambridge, em 1951, se dedicam à
construção de um modelo molecular para o DNA. Seu ponto de partida é o
reconhecimento acerca da profunda relação que eles supunham haver entre DNA e
hereditariedade; e, baseados em vários conhecimentos bem estabelecidos da ciência da
época, em 25 de abril de 1953 publicam seu paper com a estrutura da dupla hélice na
1
Para uma história compreensiva e completa do episódio sugere-se Olby (1974) e Judson (1979). Para
relatos autobiográficos sobre o episódio ver Crick (1988), Watson (1997) e Wilkins (2003). Para
discussões filosóficas ver Giere (1999) e Latour (2000).
revista Nature. A publicação apresenta a dupla hélice do DNA apenas como uma
hipótese.
3. O artigo de Watson e Crick
O artigo, que contém menos de 1000 palavras, é um documento histórico
ainda atual. No que segue da seção destacaremos do artigo três grupos de passagens que
podem ser analisados de um ponto de vista historiográfico; estes cinco grupos de
passagens correspondem, respectivamente, aos itens das sub-seções da seção 2 acima.
3.1 A relação entre DNA e hereditaredade
“Nós desejamos sugerir uma estrutura para o sal do ácido
desoxiribonuclécico (DNA). Esta estrutura tem novas características que são de
considerável interesse biológico”.
“Não nos passou despercebido que o pareamento específico que
postulamos sugere imediatamente um possível mecanismo de cópia para o material
genético”.
Historiograficamente estas duas passagens situam o contexto do grande
problema científico que foi eleito por Watson e Crick como fundamental; este contexto
poderia ser expresso na seguinte notação axiológica 2: construir uma estrutura para o
DNA com o objetivo de compreender os aspectos genéticos da molécula (ou ainda:
compreender a função genética do DNA). Deste modo Watson e Crick não estão
construindo modelos simplesmente por uma orientação metodológica; em vez disso,
seus modelos precisam conter especificações a respeito do papel genético da molécula3,
ainda que neste artigo tais especificações sejam expressas apenas enquanto uma
“promessa”4 para uma investigação futura e por isso sejam apresentadas de uma forma
bastante tímida (do ponto de vista científico, não retórico). Porém elas denunciam a
orientação axiológica de Watson e Crick, orientação esta que se tornará ainda mais clara
quando, um mês depois, eles apresentam à comunidade científica um segundo paper
sugestivamente intitulado “Genetical Implications of the Structure of Deoxyribose
Acid”, paper no qual eles começam a investigar tais possibilidades genéticas do DNA.
2
Uso aqui “axiológica” para me referir a uma discussão acerca dos objetivos da ciência.
A orientação metodológica de que seus modelos precisam ser importantes do ponto de vista da genética
do DNA é apresentada de modo informal em uma carta de Watson para Max Delbrück escrita em 12 de
março de 1953. Nela, Watson informa que um artigo contendo uma estrutura para o DNA está sendo
preparado por ele e por Crick. Ao final da carta ele critica o modelo de Pauling e declara seu
compromisso com um modelo que indique algo sobre a reprodução do DNA (cf. Olby 1974, p. 416).
4
Utilizo aqui o termo “promessa” de acordo com a acepção dada por Kuhn à expressão “promessa de
sucesso” quando aplicada a paradigmas (estruturas conceituais amplas que balizam as pesquisas num
campo científico, tais como: a genética molecular, ou a mecânica newtoniana, ou o evolucionismo). Esta
expressão é utilizada por Kuhn para se referir ao ponto de partida dos paradigmas que orientam as
investigações científicas em um campo específico. De acordo com Kuhn, um paradigma é uma “promessa
de sucesso”, pois em seu início pouco se sabe a respeito de sua efetividade na solução dos problemas para
os quais o próprio paradigma oferecerá uma base para sua solução por meio de teorias que serão
formuladas no interior deste paradigma; entretanto, a despeito desta dúvida, o paradigma é acolhido tendo
em vista sua natureza promissora. Para uma melhor compreensão do ponto, ver Kuhn (1995, cap. 2).
3
Estas duas passagens, portanto, apresentam ao historiador a filiação
científica de Watson e Crick, bem como apresentam também a audiência de Watson e
Crick. A comunidade a qual eles estão se dirigindo é, ao menos em primeiro lugar, a
comunidade de geneticistas; e isto talvez explique a relativa pouca importância que eles
parecem dar ao confronto de seu modelo com os dados de raio-x (dados produzidos por
Rosalind Franklin e que são a melhor evidência da época para a descoberta da estrutura
do DNA5). Assim o mais importante (do ponto de vista historiográfico) a respeito destas
passagens é a localização do contexto científico no qual Crick e Watson atuam; e,
perder este contexto, é ignorar uma circunstância historiográfica decisiva para a
compreensão do episódio, bem como ignorar algumas opções científicas que foram
feitas por estes cientistas em seu trabalho de construção do modelo. Mas além destas
duas há outra passagem que merece consideração.
“Provavelmente é impossível construir esta estrutura [a dupla hélice]
com uma ribose no lugar de uma dessoxiribose (...)”.
Do ponto de vista dos acontecimentos que em geral são descritos para
circunscrever a história da dupla hélice, a passagem acima pode ser incompreensível,
uma vez que praticamente todos estes acontecimentos são acontecimentos em torno da
importância do DNA, bem como da importância da busca de uma estrutura para o DNA.
Neste sentido, por que então a menção à impossibilidade de construir um modelo para o
RNA? Aqui novamente precisamos atentar para a audiência pretendida por Crick e
Watson (sobretudo este último): os geneticistas; e estes, em 1953, não tinham clareza
quanto ao papel que o RNA ocuparia na transmissão das informações genéticas. Para
Watson, em certos vírus o RNA parecia ocupar o papel do DNA, o de codificar as
proteínas (cf. Watson 2005, p. 81). Além disso, como lembra Judson (1979, p. 234), o
RNA apresenta complexidades não percebidas no DNA.
3.2 As proporções de Chargaff
“Foi descoberto experimentalmente que a proporção das quantidades de
adenina para timina e a proporção da guanina para a citosina são sempre muito
próximas de 1 no DNA”.
“Não nos passou despercebido que o pareamento específico que
postulamos sugere imediatamente um possível mecanismo de cópia para o material
genético”.
Na primeira passagem Watson e Crick fazem alusão à descoberta
empírica de Chargaff, descoberta esta também conhecida como “proporções de
Chargaff”, como já vimos. Aqui eles estão simplesmente utilizando aquilo que é muitas
vezes chamado de “conhecimento anterior” – ou seja: um conhecimento que está
disponível no pool de informações que os cientistas utilizam para, entre outras coisas,
construir suas hipóteses6. Esta informação é importante no sentido de mostrar que
5
Sobre o trabalho de Rosalind Franklin e a polêmica envolvendo sua participação na construção do
modelo da dupla hélice sugere-se Maddox (2002), Klug (1974), Pipper (1998), Polcovar (2006), Sayre
(1975) e Selya (2003).
6
O conhecimento anterior pode também ser uma forma de resolver disputas entre hipóteses rivais (e com
isso sua importância não estaria circunscrita apenas à construção de hipóteses). Esta é uma tese vinculada
a uma escola filosófica de interpretação do significado cognitivo da ciência denominada genericamente
Watson e Crick fizeram uso de um conhecimento científico pré-estabelecido e
fundamental para a construção de sua hipótese da dupla hélice.
Na segunda passagem as coisas se complicam. Note-se que há o uso de
um novo termo: “pareamento”. O novo termo é, na verdade, um novo e fundamental
conceito: o conceito de pareamento das bases, conceito este não proposto (ao invés das
proporções) por Chargaff (cf. Wilkins 2003, p. 151). Mas a respeito do que estamos
aplicando a palavra “novo”? Chargaff havia descoberto as proporções de um-para-um
da adenina para a timina e da citosina para a guanina; mas ele não havia “postulado” o
pareamento. Porém como ele poderia postular o pareamento fora do modelo? De fato, o
ponto aqui gira em torno do conceito de “pareamento”; um conceito que, como veremos
a partir de agora, é um conceito “relativo”.
As proporções de Chargaff formam algo empiricamente detectável (cf.
Olby 1974, p. 215) – e elas podem ser consideradas como “absolutas”; ou seja: algo
empiricamente à disposição para verificação mais ou menos direta. Porém o mesmo não
ocorre com o pareamento, que é uma relação que só se tornou significativa no interior
do modelo – e sobretudo de um modelo que é dinâmico e que postula um movimento
interno. Neste movimento interno, a “escada” que está no interior da espiral vai se
movimentando de modo a fazer que quando apareça uma timina em seguida apareça (na
mesma proporção, como Chargaff havia proposto) uma timina; e então elas formam um
par. Porém note-se que o conceito “pareamento”, portanto, só possui um sentido no
interior da dupla hélice – a qual não estava disponível a Chargaff. É por isso que
“pareamento” é um conceito que denota algo relativo: pareamento no interior de uma
estrutura molecular dinâmica.
Temos aqui então uma distinção entre a utilização de um conhecimento
anterior (as proporções de Chargaff) e a assimilação deste mesmo conhecimento
anterior (o pareamento das bases). Watson e Crick, de fato, não descobrem as
proporções; porém inegavelmente elas ganham um sentido no interior do modelo e,
ainda no interior deste, podem ser consideradas (quando assimiladas como um
pareamento) uma novidade produzida pelo modelo.
Neste caso temos uma interessante questão a respeito da natureza da
ciência: em alguns casos certas descobertas empíricas só obtêm um reconhecimento
maior em função de sua assimilação por uma unidade científica mais ampla do que a
própria investigação empírica. Isto não significa dizer que as pesquisas empíricas de
Chargaff se legitimaram com a dupla hélice; porém inegavelmente os seus resultados se
difundiram de modo contundente quando assimilados (devido à sua importância) por
Watson e Crick. (Linus Pauling – o qual também procurou decifrar a estrutura do DNA
- (1974, p. 771) reconheceu que não conseguira perceber o significado do pareamento
das proporções de Chargaff (embora tivesse conhecimento das proporções).)
3.3 A hipótese de Watson e Crick
“Os dados de raio-x previamente publicados sobre DNA são
insuficientes para um teste rigoroso de nossa estrutura. Tanto quanto podemos dizer,
“realismo científico”. Discussões importantes sobre este não menos importante tema podem ser
conferidas em Boyd (1985), Lipton (1991) e Giere (1999).
ela é em grande medida compatível com os dados experimentais, mas deve ser
considerada não provada até que seja checada contra resultados mais exatos”.
De todos os aspectos do artigo, talvez se encontre neste o mais profícuo
do ponto de vista filosófico. Afinal, não é nada desprezível o impacto que as teorias
filosóficas da ciência produziram no que diz respeito à idéia geral de que o
conhecimento humano é falível, sujeito a erros, hipotético etc. Mas, tão profundo
quanto este impacto, é o esquecimento da idéia do falibilismo.
Analisado pelo leitor atual, o artigo é uma exposição do modelo da dupla
hélice do DNA. Mas, no contexto de sua época, era apenas uma hipótese dentre tantas
sugeridas (abertamente e de forma relativamente acabada, ou mesmo apresentada em
circuitos mais fechados, e de forma ainda em construção)7.
4. Conteúdos de história da ciência ou atitudes em relação à ciência?
Ao final da primeira seção deste trabalho foi colocada a seguinte pergunta: em que
sentido uma abordagem historiográfico-filosófica pode auxiliar na tarefa de
compreensão da natureza da ciência? A princípio duas respostas parecem plausíveis e,
de certo modo, compatíveis com a sumária estrutura historiográfica proposta neste
trabalho para o episódio da dupla hélice.
Uma primeira resposta diria respeito à relação da história da ciência (em
conjunto, claro, com a filosofia da ciência) com o conteúdo a ser ensinado. Deste modo,
se enfatizaria um recorte histórico tendo em vista suas potencialidades para uma
compreensão do próprio conteúdo. Por outro lado, poderia se enfatizar não diretamente
o tópico do conteúdo (embora isto não precise ser deixado de lado, é claro), mas aquilo
que Carvalho e Vannucchi denominam de “atitude”: o interesse dos estudantes em
aprender ciência (Carvalho e Vannucchi 2000, p. 429). Para os autores, “(...) vários
projetos de investigação têm mostrado que o conceito de ciências dos estudantes é em
grande medida responsável por atitudes negativas adotadas por grande parte deles em
relação à aprendizagem de ciências” (CARVALHO e VANNUCCHI 2000, p. 429).
No caso específico deste trabalho, que tipo de atitude poderia se esperar
de um estudante a partir do enfoque historiográfico sugerido? Dentre várias respostas
possíveis, uma delas seria a de que o conhecimento produzido para a construção do
modelo da dupla hélice do DNA se estabeleceu como uma “construção coletiva” (cf.
Scheid, Ferrari e Delizoicov 2005; cf. Andrade e Caldeira 2009, p. 151). Naturalmente,
por “construção coletiva”, não se pretende aqui fornecer a sugestão de uma construção
parte-a-parte, linear e direcionada (e nem os autores acima o sugerem). Ao invés a
sugestão é a de que Watson e Crick estão utilizando conhecimentos anteriores a eles
disponíveis e, sobretudo, estão fornecendo formas específicas de assimilação deste
conhecimento anterior. Porém o mais importante é mencionar que Crick e Watson não
procedem a partir de regras metodológicas bem definidas, como veremos agora.
Quando Watson e Crick se encontram no Laboratório Cavendish em
1951, produzem um ligeiro esboço de algo próximo a uma meta investigativa: porém
7
Sobre este ponto ver Judson (1979, p. 177), Creager e Morgan (2008, p. 270), Crick (1988, p. 73) e
Ridley (2006, p. 197).
eles não dão origem ao que poderíamos chamar de um “programa de investigação”. Sua
meta investigativa é a descoberta de pistas significativas para a compreensão da função
genética do DNA8. Para isso, sabem que precisam construir uma estrutura química para
o DNA. Ainda em 1951, eles propõem uma estrutura que é rapidamente rejeitada pela
comunidade científica. Porém há um espaço em branco entre a rejeição e o resultado
final, a dupla hélice. E o interessante é que este espaço em branco não é preenchido por
aplicações sucessivas e bem sucedidas de um método científico com bem definidas
etapas de investigação. Em vez disso Watson e Crick se empenham em reunir diversas
informações que podem ser úteis para a construção de seu modelo, sem ter tempo de
checar todos os dados que serão incorporados ao modelo. No final, não realizam um
único trabalho experimental que sustente empiricamente a dupla hélice.
O comportamento de Watson e Crick pode ser analisado de acordo com
um padrão: a despeito de não considerarem a estrutura comprovada empiricamente,
inferências genéticas são produzidas com total impudor. (Este padrão, registre-se, não é
apenas de Crick e Watson – na verdade ele está presente em vários episódios da história
da ciência.) E este padrão torna possível concluir que este tipo de comportamento faz
parte dos procedimentos por vezes adotados pelos cientistas, os quais, mesmo não tendo
à sua disposição a confirmação de suas hipóteses, ainda assim se lançam em
investigações que visam o desenvolvimento destas mesmas hipóteses (não confirmadas).
Disto se conclui algo importante a respeito da natureza da ciência: o
conceito de dupla hélice do DNA não é um conceito cujo significado se reduz à soma
dos constituintes empíricos da molécula; no mínimo não o era, é importante ressaltar, no
período de sua construção e no período da sua divulgação pública em abril de 1953. Ao
invés, se tratava de um conceito cujo significado era muito mais amplo do que aquilo
que se apresentava nas evidências.
E assim retomamos o conceito de atitude, conforme sugerido por
Carvalho e Vannuchi anteriormente. A narrativa historiográfica pode servir como
fomentadora de uma atitude em relação ao conteúdo ministrado; esta atitude poderia ser,
por exemplo, a de perplexidade diante tanto da multiplicidade de fatores que foram
considerados por Watson e Crick para sua proposta quanto das estratégias gerais por
eles acionadas para alcançar seu objetivo. A partir desta atitude o estudante poderia ser
conduzido (ou se auto-conduzir) à concepção de que investigações científicas não são
(apenas) produções regulamentadas metodologicamente, mas exigem criatividade,
linguagem apropriada, cálculo de riscos diante de posições assumidas, estabelecimento
de relações com conhecimentos de algum modo já consolidados etc. Todas estas
exigências parecem ser da natureza da ciência.
Conclusão
A despeito da ênfase acerca das possibilidades filosófico-historiográficas
da utilização do clássico artigo de Watson e Crick em aulas de ensino médio de
biologia, existem algumas dificuldades que, longe de ser um impedimento a esta
utilização, devem no mínimo ser consideradas como interessantes problemas
conceituais para a transposição do material histórico para a sala de aula. Uma primeira
dificuldade é a de saber como exatamente seriam inseridas tais informações históricas.
8
Sobre a relação entre DNA e genética para Crick e Watson ver Morange (1998).
Em segundo lugar, que tipo de recorte historiográfico seria produzido para a inserção
das informações? Em terceiro lugar, seria desejável que a inserção de informações
históricas acerca do modelo da dupla hélice de fato contribuísse para a aprendizagem de
aspectos específicos do conteúdo “ácidos nucléicos”. Que tipo de informação histórica
poderia oferecer tal contribuição? De que modo isto ocorreria? O trabalho deixa tais
questões em aberto.
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SCIENCE TEACHING AND HISTORY OF SCIENCE
Abstract: the present article intends to show a specific way of utilization of Science
History and Philosophy in the teaching of sciences, by means of the use of a primary
historical source. We shall present some extracts of a classical scientific article: the
article containing the DNA molecular structure (DNA’s double helix), by James Watson
and Francis Crick. Such extracts are connected to the presentation of some important
episodes in the construction of the double helix. Some problems in the use of primary
historical sources will be presented at the end.
Key-words: DNA; nature of science; science teaching; history and philosophy of
science; double helix.
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