Movimento
ISSN: 0104-754X
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Escola de Educação Física
Brasil
Guttman, Allen
Visando a modernidade arco e flecha e a modernização do Japão
Movimento, vol. 10, núm. 3, septiembre-diciembre, 2004, pp. 9-21
Escola de Educação Física
Rio Grande do Sul, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=115317777002
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Visando a modernidade arco e flecha...
Visando a modernidade
arco e flecha e a modernização do Japão
Allen Guttman*
Resumo: O texto analisa a modernização a sociedade
japonesa no que se refere à rápida aceitação de esportes
modernos oriundos da Europa e da América do Norte.
Focalizando a prática do arco e flecha japonês (kyûjutsu)
e identificando-a como uma atividade não européia, o
argumento central é o de que a rápida aceitação dos esportes modernos pela sociedade japonesa pode ser melhor entendida quando verificamos que algumas das principais características deste esporte (a racionalização, a
quantificação e a busca do recorde), já estavam presentes na sociedade japonesa, antes do período da reforma
daquele país. Buscando mostrar como as características
do esporte moderno são identificáveis na prática do arco
e flecha japonês, conclui-se que, estando as sementes da
modernidade presentes no Japão antes do próprio processo de modernização, torna-se mais fácil a compreensão deste acontecimento histórico.
Palavras-chave: História, Cultura, Esporte, Modernidade.
O Japão foi a primeira sociedade asiática a cruzar a barreira
cultural que separa as sociedades tradicionais das modernas. Um
aspecto dessa transição para a modernidade foi a rápida difusão
durante o século XIX e início do século XX na sociedade japonesa do
beisebol, futebol, futebol americano, golfe, tênis e outros esportes
modernos inventados na Europa e América do Norte. Uma razão
para essa rápida difusão, para essa imediata aceitação de novos
esportes, pode ter sido o fato de que algumas características podem
não ter sido de todo novas. Não estou insinuando que os aristocratas
japoneses dos períodos Hein e Kamakura tenham jogado beisebol
ou futebol, mas estou intrigado com alguns aspectos do arco e flecha
japonês.
Já no século XVII, o arco e flecha japonês possuía várias das
mais importantes características do esporte moderno – sendo que
uma dessas características pode ser traçada desde o século XIII. Não
quero sugerir que a modernização da sociedade japonesa tenha de
qualquer forma sido “causada” pelo esporte do arco e flecha. Longe
* Doutor em Estudos Americanos. Professor da Amherst College, Estados Unidos.
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disso. Eu quero dizer, entretanto, que o arco e flecha japonês –
kyûjutsu – é uma pista para a predisposição na cultura japonesa
que tornou os japoneses especialmente receptivos às influências
1
modernas do Ocidente. Devo acrescentar que os historiadores
foram de certa forma cegos aos aspectos modernos do arco e
flecha moderno por terem sido ofuscados pelo aspecto religioso
do arco e flecha. No seu livro, “Zen in the Art of Archery”, o
filósofo alemão Eugen Herrigel conta uma boa história, mas não
2
a única que pode ser contada sobre o arco e flecha japonês.
Deixe-me apresentar muito brevemente, sem a evidência que
já apresentei, três das características do esporte moderno (que são
em geral características da sociedade moderna). O esporte moderno
apresenta um alto nível do que o sociólogo alemão Max Weber
3
chamou de zweckationalität - “racionalismo instrumental”.
Abstração e padronização são duas formas dessa racionalização.
Um dos meus exemplos favoritos é o cavalo com alças da ginástica.
Originalmente, claro, o cavalo era um cavalo real, montado por
cavaleiros de verdade que então demonstravam suas habilidades
eqüestres como ainda fazem hoje em esportes como a equitação.
Agora, como todos sabem – muitos para sua grande tristeza – alguns
cavalos são melhores que os outros, mais fortes, mais rápidos, mais
facilmente domados, o que confere uma clara vantagem sobre seus
afortunados montadores. A padronização iguala a competição. O
garanhão eqüestre tornou-se o cavalo de madeira do ginasta. No
século XIX ele ainda parecia razoavelmente eqüino. Além das suas
quatro patas de madeira, o dispositivo tinha uma cabeça de madeira
e uma cauda de crinas, nenhuma das quais sobreviventes ao impulso
racionalizante. A idéia dessa nem tão platônica versão de um cavalo
era a de que se tratava de um equipamento padronizado que não
desse vantagem a nenhum dos competidores. Um triunfo da
1 Richard Mandell chegou à mesma conclusão: “algumas características especiais
do esporte japonês também sugerem que alguns pré-requisitos para a modernização
estavam presentes no Japão muito antes da sua surpreendente modernização, no
final do século XIX”; ver Sport: A Cultural History. New York: Columbia University
Press, 1984, p. 100. Em uma dissertação redigida dois anos antes, sugiro o mesmo;
ver “The Sociological Imaginationand the Imaginative Sociologist,” Sport and the
Sociological Imagination, ed. Nancy Theberge e Peter Donnelly. Fort Worth: Texas
Christian University Press, 1984. p. 4-20. Mandell e eu somos amigos íntimos e
discutimos a história do esporte em incontáveis ocasiões. Não posso dizer qual
de nós dois foi o primeiro a ficar intrigado pela possibilidade do que podemos
chamar de modernidade antecipada do arco e flecha japonês.
2 Eugen Herrigel, Zen in der Kunst des Bogenschiessens. Tübingen: Otto-Wilhelm
Barth, 1975.
3 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, ed. Johannes Winckelmann, 2 vols. Cologne:
Kiepenhauer & Witsch, 1964.
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racionalidade lúdica e um esplêndido exemplo do que George
4
Vigarello chama de “deréalisation”.
Uma segunda e mais marcante característica do esporte moderno
é o impulso de quantificar as conquistas. Essa característica merece
ser melhor explicada. Hoje vivemos em um mundo de números. No
atletismo medimos as distâncias até o centímetro, e o tempo até os
centésimos de segundo. Em Munique, em 1972, os organizadores
alemães dos Jogos Olímpicos mediram os tempos dos nadadores até
os milésimos de segundo, o que significou pelo menos um caso em
que o ganhador da medalha de prata na verdade nadou mais rápido
que o ganhador da medalha de ouro. (A explicação é a de que a
diferença espacial, ou seja, a diferença de distância entre as raias
dos nadadores era muito maior do que a diferença temporal).
Quando os Jogos Olímpicos foram restaurados, em 1896, um
observador americano comentou que as competições de ginástica
não eram particularmente populares porque não eram passíveis
5
de medidas precisas. Hoje, medimos os escores da ginástica até
três casas decimais. O total de Nadia Comanecci em 1976, nos
Jogos de Montreal foi de 79.275, o que significa – nós acreditamos
– que a sua performance deve ter sido melhor do que a de Ludmilla
Tourisheva nos Jogos de Munique quatro anos antes. Afinal de
contas, ela marcou meros 77.025 pontos.
Nós vivemos em um mundo de números, mas os gregos não
viviam. Apesar de Pitágoras, Arquimedes, Euclídes e outros terem
feito grande contribuições para a matemática, a civilização grega
não era obcecada pela necessidade de quantificar. Para eles, apesar
do homem ser a medida de tudo, não era o objeto de infinitas
medidas. Nos Jogos Olímpicos não havia a tentativa de se medir o
tempo, o que teria sido difícil. E nem havia a tentativa de se medir
a distância, o que teria sido fácil. Os romanos se interessavam um
pouco mais pelos números, especialmente nas corridas de bigas,
mas a quantificação de toda e qualquer conquista esportiva – a
altura de um salto com vara à velocidade de um saque no tênis – é
uma mania distintamente moderna.
A quantificação da performance fornece a base para o recorde
esportivo quantificado, um conceito desconhecido antes do surgimento
do esporte moderno no fim do século XVII. O que é exatamente
4 Georges Vigarello, Une Histoire culturelle du sport. Paris: Robert Laffont, 1988.
5 Rufus B. Richardson, “The New Olympian Games”, Scribner’s Magazine, 20. September
1896, p. 279
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recorde esportivo? Deixe-me citar da minha própria formulação. O
recorde esportivo é um mecanismo que permite que o presente
compita contra o ausente e que o vivo compita contra o morto. O
recorde é um número no Livro Guinness dos Recordes e no canto
superior direito da sua tela de televisão. É um estímulo a níveis
inimagináveis de conquista e uma barreira física que direciona os
esforços dos atletas. É uma oportunidade de exaltação, uma forma
de loucura racionalizada, um símbolo da nossa civilização. Em um
momento de lirismo, um atleta francês tinha esperança de que sua
filha poderia “um dia recitar a litania não de nossas batalhas, mas
6
de nossos recordes, mais belos que os trabalhos de Hércules” Entre
as características do esporte moderno, a busca por recordes talvez
seja a mais significante. Para mim, a busca por recordes representa
a racionalização do impulso romântico de ultrapassar os limites da
7
possibilidade.
Agora, de volta ao Japão: algumas formas de arco e flecha do
período Tokugawa japonês exibiam essas três características –
racionalização, quantificação e o recorde esportivo. A racionalização
apareceu mais surpreendentemente na forma do alvo moderno,
que aparentemente foi inventado no Japão séculos antes do seu
surgimento no Ocidente. As primeiras competições de arco e flecha
provavelmente envolveram alvos vivos – como os tiros aos perus
das fronteiras americanas. Finalmente, entretanto, no Japão assim
como em qualquer outro lugar, os pássaros vivos foram substituídos
por alvos miméticos, ou seja, alvos cujas formas imitassem as formas
de pássaros e animais. Na Europa medieval, por exemplo, arqueiros
atiravam no popinjay, um pássaro de madeira montado sobre um
alto poste. O próximo passo no caminho da modernidade foi o de
substituir o animal simulado por uma forma puramente geométrica,
com um “animal” racionalizado que simbolizava – um tanto melhor
que os porcos de George Orwell – a igualdade de todos os animais.
Aquela forma puramente geométrica é, claro, o alvo do arco e flecha
moderno. O termo inglês “Bull`s eye”(na mosca) é um lembrete
residual das origens pré-modernas do alvo moderno.
Os japoneses começaram a transição dos alvos miméticos para
os abstratos já no século X. Devo acrescentar, antes de prosseguir,
que nem todos os alvos japoneses tomaram essas formas abstratas
modernas. No inuoumono, um esporte popular no período
Kamakura, trinta e seis arqueiros montados atiravam flechas sem
6 André Obey, L’Orgue du stade.Paris: Gallimard, 1924, p. 35.
7 Allen Guttmann, From Ritual to Record. New York: Columbia University Press,
1978, p. 51-52.
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ponta em cento e cinqüenta cachorros ganindo. No yabusame,
arqueiros montados atiravam em alvos de madeira abstratos mas
não compostos de áreas formadas por círculos concêntricos. Não há
necessidade de discutir essas formas de arco e flecha. É suficiente
para meus propósitos que o alvo moderno tenha surgido lado a
8
lado com outros tipos de alvos.
O Dairi Shiki, que registra cerimônias da corte de 646 a 930
DC, contém relatos do nobre ritual de arco e flecha conhecido como
jarai, que era realizado anualmente no meio do primeiro mês lunar.
Parados sobre uma esteira feita de pele de cordeiro, nobres atiravam
em um alvo feito de pele de veado. Um gongo soava uma vez para
indicar que uma flecha havia acertado o anel de fora do alvo. O
gongo soava duas vezes se a flecha se alojasse no anel do meio, e
9
três se o anel interior – ou seja, o Bull‘s eye – fosse atingido. O
relato dado no Dairi Shiki indica claramente que os arqueiros
atiravam em um alvo abstrato composto de um Bull`s eye circulado
por dois círculos concêntricos.
Infelizmente, desconheço qualquer ilustração contemporânea do
alvo de jirai. Minha primeira ilustração é do Kitano Tenjin-engi, um
pergaminho pertencente ao Santuário Kitano de Kyoto. Ele mostra
Sugawara no Michizane no pátio da corte de outro aristocrata do
século IX, Miyako no Yoshika. Enquanto Yoshika e seus assistentes
observavam, Michizane mira em um alvo pintado que consistia de
cinco círculos concêntricos em torno de um Bull‘s eye. A competição
de arco e flecha ocorreu em 870; o pergaminho foi feito em 1219.10 O
mesmo incidente aparece em outros pergaminhos, incluindo um
datado de 1319.11
8 Este breve comentário sobre inuoumono e yabusame é retirado de Allen Guttmann and
Lee Thompson, Japanese Sports: A History.Honolulu: University of Hawaii Press,
2001, p. 48-52.. Nossas principais fontes são Hayasaka Shôji, “Yabusame,” Saishin
supôtsu daijiten, ed. Kishino Yûzo. Tokyo: Taishûkan shoten, 1987, p. 1251-63; Obinata
Katsumi, Kodai kokka to nenjû gyôji. Tokyo: Yoshikawa Bunkan, 1993. and G. Cameron
Hurst, Armed Martial Arts in Japan. New Haven: Yale Univeristy, 1998.
9 Jörg Möller, Spiel und Sport am japanischen Kaiserhof. Munich: Iudicium, 1993, p. 4145; Imamura Yoshio, Nihon taiiku shi. Tokyo: Fumaidô, 1970, p. 36-37; Koyama
Takashige, “Nihon kyûdô gairon,” Gendai kyûdô kôza, ed. Uno Yôzaburô. Tokyo:
Yûzankaku, 1982, p. 1-61.
10 O pergaminho, ilustrado em Rose Hempel, Japan zur Heian-Zeit. Stuttgart:
Kohlhammer, 1983, p. 161, pertence ao Santuário de Kitano.
11 O pergaminho, ilustrado em Bijutsu ni miru Nihon no supôtsu. Nagoya: Tokugawa
Bijutsukan, 1994), p. 10-11, pertence à Fundação Maeda
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Uma terceira imagem é um detalhe de um pergaminho do século XIV descrevendo cortesãos cruzando um caminho pelas montanhas entre Kyoto e Kamekoa. Na metade superior da figura, cortesãos sobem e descem pelo caminho de Ôinosaka; na metade inferior,
um menino mira em um alvo com seis anéis enquanto seu compa12
nheiro aguarda a vez. Existem outras incontáveis imagens de alvos
semelhantes, sendo que a mais acessível é uma ilustração do século
XVII sobre o clássico do século XI de Murasaki Shikibu, O Conto de
Genji. Uma xilogravura de Yamamoto Shunshô, primeiramente
publicada em 1650, mostra dois arqueiros montados atirando em um
alvo com vários campos, preso a uma vara carregada por um homem
13
correndo.
Com esses exemplos japoneses em mente, quero levar em
consideração os desenvolvimentos europeus. O alvo abstrato europeu
parece ter aparecido primeiramente em uma ampla faixa territorial
que vai da Suíça, passa pela Alemanha até o nordeste da França e
Países Baixos.14 Minha primeira ilustração, feita por um artista
15
anônimo do século XV, mostra uma competição de besta em Ghent.
12 O pergaminho, também ilustrado em Bijutsu ni miru Nihon no supôtsu, p. 10-11,
pertence ao Museu Nacional de Tókio.
13 A versão de Seidensticker reedita essa ilustração na página 588 no capítulo intitulado
“New Herbs.”
14 O alvo abstrato nunca substituiu completamente o alvo mimético. Associações de
arco e flecha continuaram a atirar no popinjay, um pássaro de madeira ou metal
colocado no topo de um alto poste. O popinjay era constituído de até 50 peças
diferentes, cada uma das quais com um diferente valor. Arqueiros recebiam diversos
prêmios por acertarem na cabeça, cauda, asa, etc. Ver Franz M. Feldhaus, “Zur
Geschichte der Schießscheiben und Schießbäume,” Zeitschrift für Waffenkunde , 8
(1918): 84086; Egon Hartmuth, Die Armbrust. Graz: Akademische Druck- und
Verlagsanstalt, 1975); Helmut Müller, Von Schützenvögeln und Vogelschützen.
(Greven: Eggenkamp, 1982).
15 De uma reprodução nos arquivos do Instituut voor Lichamelijke Opleiding, Leuven
– Bélgica.
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Comparado com alvos japoneses usados séculos antes
este é primitivo. Parece consistir de um simples disco de papel preso no topo de uma viga.
A competição parece, um tanto literalmente, ser um caso de
acerte-ou-erre. O mesmo tipo
de alvo aparece em uma imagem de um Schützenkönig ale16
mão do século XVI.
A data exata é legível: 1585.17 Meio século depois, David Teniers
o Jovem desenhou um
grupo de arqueiros atirando em um alvo que
parece ter consistido de
um pedaço de papel em
forma de losango preso
a uma parede de pedra.18 Não tenho a imagem dessa pintura, mas
Teniers fez outra, alguns
anos depois, que mostra outro grupo de arqueiros aldeãos mirando em um círculo simples
inscrito em uma folha de papel quadrada presa a uma viga.19
16 A imagem, ilustrada em Anne Braun, Historische Zielscheiben. Leipzig: Edition
Leipzig, 1981, p. 27, pertence ao the Germanisches Nationalmuseum - Nürnberg.
17 É contemporâneo a esse alvo primitivo um complicado losango dividido em 25
quadrados cujos valores eram arbitrários, com exceção dos campos dos quatro
cantos que tinham o valor de 22, 23, 24 e 25 pontos enquanto o campo do centro
valia um ponto. A vitória era realmente uma questão de sorte.
18 Essa pintura, pertencente ao Prado em Madrid, é reproduzida em Sport in de
belgische Kunst van de romeinse Tijd tot Nu, de Leon Lewille e Francine Noel,
(publicado por Gemeentekredit van Beglie; local e data não fornecidos, p 100.
19 De uma reprodução nos arquivos do Instituut voor Lichamelijke Opleiding, Leuven
(Belgium).
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Alvos abstratos
com quatro círculos concêntricos foram conhecidos na Inglaterra já
em 1673.20 Em 1754, foi
solicitado aos camareiros dos Arqueiros de
Finsburg que providenciassem “um alvo ou
cartolina quadrada, coberta com tecido; no
centro do qual deve ser
desenhado um círculo, e desse círculo quatro anéis concêntricos, que
sejam visíveis e precisamente diferenciados por cores”.21 No fim do
século, o Príncipe de Gales decretou que o Bull‘s eye e os quatro
anéis concêntricos deveriam ter valores de pontos padronizados: 9,
7, 5, 3, e 1.22 Apesar da invenção de alvos cada vez mais abstratos,
alvos miméticos continuaram a ser populares através do século XIX.
Por vezes, os dois tipos de alvos eram combinados, como pode ser
visto em um alvo misto para passatempo, do século XIX, da cidade
alemã de Wissenbourg.23
Quem tomou de quem? Missionários europeus chegaram ao
Japão no século XVI, mas deveria ser óbvio que os japoneses,
que já atiravam em alvos abstratos por mais de trezentos anos,
não foram inspirados por eles. Se
eu fosse realmente precipitado
em minhas especulações, poderia sugerir que foi o contrário.
Talvez tenham sido os comerciantes holandeses na pequena
ilha de Dejima na enseada de
Nagasaki que notaram o alvo japonês e o apresentaram aos seus
conterrâneos (que seriam, presumivelmente, muito estúpidos
para terem inventado o alvo mo20 Robert Hardy, The Longbow. Cambridge: Patrick Stephens, 1976, p. 146.
21 Citado de E.G. Heath, A History of Target Archery. Newton Abbbot: David &
Charles, 1973, p. 77.
22 ibid.
23 A imagem litografada é ilustrada em Historische Zielscheiben de Braun, gravura 2.
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derno por si mesmos). Muito provavelmente, o alvo moderno foi
inventado independentemente pelos japoneses e – bem mais tarde
– pelos europeus.
Além da racionalização, a segunda e terceira qualidades do
esporte moderno são a quantificação e a busca por recordes. A
evidência dessas duas características no arco e flecha pode ser vista
mais claramente em uma competição, conhecida como tôshiya
24
(“flechas limpas”). Registrada pela primeira vez em 1606, a
competição continuou ocorrendo até 1861. Apesar de a competição
ser completamente secular, realizava-se no templo Rengeô-in em
Kyoto. (O templo é popularmente conhecido pelo nome de seu
salão principal, o Sanjûsangendô, onde era realizada a competição.)
Sentado em uma ponta de uma longa varanda no oeste do
Sanjûsangendô, um único arqueiro atirava uma série de flechas
que deveriam atravessar os 120 metros da varanda sem tocar o
teto, pilares ou paredes (o que explica o termo “flechas limpas”).
Como as flechas comuns atiradas de arcos comuns faziam um
arco muito alto para o baixo corredor do Sanjûsangendô, arcos mais
curtos e flechas mais leves desenvolvidos especificamente para serem
usados no tôshiya. Esses arcos e flechas não podiam ser utilizados em
guerras porque as flechas atingiam com muito menos impacto que
aquelas lançadas pelo arco longo. Por essa razão, tradicionalistas que
queriam manter o arco e flecha como uma habilidade marcial criticavam
25
a competição como não-prática e militarmente inútil. A família
Ogasawara, que teve um papel importante no desenvolvimento do
arco e flecha ritual, se recusou a competir em tôshiya. “Tôshiya,” de
acordo com Cameron Hurst, “que começou como um simples teste
para ver se um arqueiro podia atirar uma ou duas flechas através do
longo pátio de Sanjûsangendô, foi então desenvolvida em um
26
organizado e competitivo esporte”.
Nos 255 anos em que esse evento se realizou, um total de 823
arqueiros (contando repetentes) testou suas habilidades em tôshiya
no Sanjûsangendô. O primeiro foi Asaoka Heibei, que ficou
aparentemente satisfeito por acertar cinqüenta e uma flechas. Seu
recorde, firmado em 1606, foi rapidamente superado. Em 1623,
24 Esse relato de tôshiya é retirado de Guttman e Thompson, p. 54-56. Nossas fontes
principais são: Imamura Yoshio, Nihon taiiku shi. Tokyo: Fumaidô, 1970, p. 169-81;
Kohsuke Sasajima, “History of Physical Exercises and Sport in Japan,” Geschichte
der Leibesübungen, ed. Horst Ueberhorst, 6 vols. Berlin: Bartels & Wernitz, 19721989, 6:106-13; Hurst, Armed Martial Arts. p. 136-43.
25 Ibid., p. 140.
26 Ibid., p. 138.
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Yoshida Okura tinha aumentado o recorde para 1333 flechas. A partir de Okura, o número de flechas lançadas também passou a ser
marcado (no seu caso, 2087 flechas). Esse número nos permite calcular a porcentagem de suas flechadas bem-sucedidas (63.4%). Ao
visitar Kyotodurante durante sua estada no Japão de 1690 a 1692,
Engelbert Kaempfer expressou espanto pelo fato de arqueiros se27
rem capazes de atirar “vários milhares de flechas... em um dia”.
Com o tempo a competição se tornou mais complexa, e se desenvolveu em quatro categorias principais: o ôyakazu, que durava
vinte e quatro horas; o hiyakazu, que durava doze horas; a competição de mil flechas, e a competição de cem flechas. Uma proliferação
de diferentes distâncias e categorias separadas para homens e meninos por fim produziu uma exibição de onze diferentes eventos. Muitos oficiais observavam a competição. Havia três juízes – um da escola do arqueiro e dois de escolas rivais. Eles seguravam bandeiras com
as quais sinalizavam o êxito ou falha de cada tiro.
De 1606 a 1861, o ôyakazu foi realizado 598 vezes, mas mais da
metade dessas competições – 54% para ser exato – ocorreram nos
primeiros trinta anos, o que sugere que a popularidade do esporte
crescia à medida que os recordes atingiam novos e intimidantes níveis. Em 255 anos, o recorde para o ôyakazu foi estabelecido 41 vezes. Uma placa memorial de 1669 marca a conquista de Hoshino
Kanzaemon, que marcou 8000 sucessos em 10542 flechas. Uma segunda placa comemora o feito de Wasa Daihachirô, que ultrapassou
o recorde de Kanzaemon em 1686 quando acertou 8133 em 13053
flechas. Para fazer
isso, ele teve que atirar cerca de seis flechas por minuto por
24 horas, de pôr-dosol a pôr-do-sol. À direita da pintura que
celebra seu recorde
está o número exato
de flechas lançadas
(em números japoneses).
27 Kaempfer: citado em John M. Rogers, “Arts of War in Time of Peace,” Monumenta
Nipponica, 45:3, Outono de 1990, p. 257.
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Visando a modernidade arco e flecha...
A competição de Kyoto se tornou conhecida para arqueiros em
todo o Japão, nem todos capazes de viajar até Kyoto para competir.
Para acomodar os arqueiros hábeis em Edo, um Sanjûsangendô foi
construído naquela cidade em 1642. Lá, entre 1645 e 1852, 544 arqueiros (contando repetentes) testaram suas habilidades no tôshiya
em vinte e um diferentes eventos em vários tempos, distâncias, limite de flechas e de idade. As mais espetaculares conquistas foram
aquelas do lendário Kokura Gishichi. Na sua primeira participação,
aos 11 anos de idade, em 1827, ele errou apenas cinco dos seus mil
tiros na distância de “meio corredor”.
Edo não foi o único lugar onde uma réplica do Sanjûsangendô
foi construída. Os clãs Sendai e Shônai, por exemplo, construíram
seus próprios quase autênticos Sanjûsangendô nos seus domínios e
realizavam suas próprias competições de tôshiya. Outros domínios
realizaram competições similares em instalações já existentes. Os
Aizu, por exemplo, usaram um depósito com uma longa varanda
localizado no terreno do seu castelo, hoje a residência oficial dos
28
administradores de Fukushima.
Dois historiadores, Sasajima Kôsuke e Homma Shuku, sustentam
que as placas colocadas no templo para celebrar os feitos de Hoshino
Kanzaemon e Wasa Daihachirô são provas e que os japoneses do século
XVII entendiam o conceito de recorde esportivo quantificado. A
evidência parece apoiar sua causa. Outra colocação parece menos
convincente. De acordo com Sasajima, o ôyakazu “saiu de voga” porque
29
“as pessoas achavam difícil quebrar o recorde”. Isso pode ter sido o
caso, mas não acredito. Afinal de contas, a competição continuou por
cento e cinqüenta e seis anos depois que Daihachirô estabeleceu o
recorde. Qualquer que tenha sido a razão para a eventual perda de
popularidade do esporte, as conquistas quantificadas do tôshiya foram
completamente esquecidas enquanto os japoneses e seus admiradores
estrangeiros se tornaram fascinados pelo charme místico do Zen na
arte do arco e flecha.
Deixe-me resumir e concluir. Séculos antes do arco e flecha
moderno ter surgido como um esporte europeu, uma forma de arco e
flecha japonês envolvia o uso de alvos abstratos. No século XVII,
outra forma de arco e flecha japonês, uma que não utilizava os alvos
de anéis concêntricos com vários campos, enfatizava a quantificação
e a busca de recordes. Essa forma de arco e flecha surgiu no Japão
precisamente no mesmo momento em que o esporte europeu começou a manifestar uma mania similar por números e recorde esportivo
28 Imamura, Nihon Taiiku shi, p. 169-181.
29 Sasajima, p. 106-113.
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quantificado. Se todas as três dessas características do esporte moderno – racionalização, quantificação e a busca de recordes – estavam
presentes no esporte japonês dois séculos antes dos modernizadores
do período Meiji começarem a emprestar do Ocidente, então a surpreendentemente rápida aceitação do beisebol e outros esportes modernos pelos japoneses é um tanto mais fácil de se entender. Assim a
modernização japonesa é um tanto mais fácil de ser entendida, afinal,
as sementes da modernidade já estavam presentes em 1853 quando
os indesejáveis navios do Comodoro Mathew Perry ancoraram em
águas japonesas.
Targeting modernity
Archery and the modernization of Japan
Abstract: The text analyses the modernization of the
Japanese society regarding the swift acceptance of
modern sports from Europe and North America.
Focusing the practice of the Japanese archery (kyûjutsu)
and identifying it as a non-European activity, the main
argument is that the quick acceptance of modern sports
by the Japanese society can be better understood when
we verify that some of the main characteristics of this
sport (rationalization, quantification and the quest for
records), were already present in the Japanese society,
before the period of reformation of the country. Seeking
to show how the characteristics of modern sports are
identifiable in the practice of Japanese archery, it’s
concluded that, being the seeds of modernity present in
Japan before the modernization process itself, it’s easier
to understand this historical event.
Keywords: History, Culture, Sport, Modernity.
Movimento, Porto Alegre, v. 10, n. 3, p. 9-21, setembro/dezembro de 2004
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Visando a modernidade arco e flecha...
Visando la modernidad
Arco y flecha y la modernización del Japón
Resumen: el texto analiza la modernización de la
sociedad japonesa en lo que se refriere a la rápida
aceptación de deportes modernos oriundos de la Europa y de la América del Norte. Focalizando la práctica del
arco y la flecha japonés (kyûjutsu) e identificándolo como
una actividad no europea, el argumento central es el de
que la rápida aceptación de los deportes modernos por
la sociedad japonesa puede ser mejor entendida cuando
verificamos que algunas de las principales características de este deporte (la racionalización, la cuantificación
y la búsqueda del récord), ya estaban presentes en la
sociedad japonesa, antes del periodo de la reforma de
aquel país. Buscando mostrar como las características
del deporte moderno son identificables en la práctica
del arco y flecha japonés, se conclue que, estando las
semillas de la modernidad presentes en el japón antes
del propio proceso de modernización, se torna más fácil
la comprensión de este acontecimiento histórico.
Palabras clave: Historia, Cultura, Deporte, Modernidad.
Recebido em 11/10/2004
Aprovado em 12/11/2004
Allen Guttmann
English Department
Amherst College
Amherst, MA 01002-5000
USA
E-mail:
[email protected]
Movimento, Porto Alegre, v. 10, n. 3, p.9-21, setembro/dezembro de 2004
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