TURBA E TURBULÊNCIA*
Física e Administração Municipal no tempo em que a complexidade era relativamente simples
"Vejo subir a maré do nihilismo"
Nietzsche
1. Dois problemas
O ano é 1848. A cidade é Paris. Dois homens enfrentam graves e complicados problemas.
Um deles é o Prefeito de Polícia. O outro, um jovem físico, preparador do curso livre de
microscopia do Dr. Alfred Donné.
O primeiro está às voltas com a desordem das massas e as revoltas populares. Uma monarquia
havia caído em dois dias, uma "república social" havia sido proclamada e, poucos meses depois,
"aburguesada" a ferro e sangue. O referido prefeito, Sr. Caussidière - que Marx uma vez considerou
a repetição farsesca de Danton1 -, é um dos principais encarregados de manter a ordem na cidade.
Mas, perguntava-se o Sr. Caussidière, como constituir uma polícia capaz de enfrentar distúrbios e
arruaças que não tem hora para começar, nem lugar para acontecer? Como enfrentar a turba, se
raramente sabemos de onde vem ou para onde vai?
O segundo homem é Leon Foucault, que, em 1845, publicara, em colaboração com o Dr.
Donné, um "Atlas de Anatomia Microscópica", contendo gravuras elaboradas a partir de
observações em um "microscópio solar", isto é, um aparato que valia-se da luz do sol para projetar
imagens microscópicas ampliadas numa tela. Após este primeiro trabalho, Foucault passa a buscar
um modo artificial de iluminar (e projetar) as imagens microscópicas, tornar-se indenpendente dos
horários e vicissitudes do astro-rei. Inicialmente, utiliza a luz oxi-hídrica, obtida a partir de uma
mistura de hidrogênio e oxigênio puros, que revelou-se perigosamente explosiva.
O opção seguinte foi adaptar o "ovo elétrico", que havia sido inventado por Sir Humphry Davy,
em 1802, e que, até então, não passava de uma "curiosidade científica". O "ovo elétrico" consistia de
dois eletrodos de carvão, alimentados por várias pilhas, postos bem próximos um do outro. A faísca que
"saltava" entre eles, dita "arco voltaico", era a fonte luminosa propriamente dita. A utilização prática luz
elétrica dependia de alguns aperfeiçoamentos básicos. Em primeiro lugar, encontrar um tipo de carvão
de baixa combustibilidade, permitindo assim que o arco perdurasse por um tempo propício ao meticuloso
1
MARX, Karl. O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos Econômicos Filosóficos e outros textos
escolhidos (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 323.
trabalho dos microscopistas. A escolha do físico acaba recaindo em um tipo de carvão muito denso, que
se depositava no fundo das retortas utilizadas para a produção de gás de iluminação - de certo modo, um
carvão calcinado a serviço da luz.
É preciso ter em mente, no entanto, que mesmo de combustão mais lenta, o "carvão de retorta
de gás" também se desgastava. Este desgaste acarretava o aumento da distância entre os eletrodos e,
portanto, irregularidades no arco voltaico. Quando a distância tornava-se demasiada, o efeito
luminoso desaparecia. Para corrigir este problema, Foucault acrescentou um pequeno parafuso ao
aparelho, que permitia ao operador reaproximar as hastes de carvão sempre que necessário. Com o
auxílio desta "lâmpada fotoelétrica", Foucault e Donné publicaram, em 1846, um "Atlas do Curso de
Microscopia", executé d'après nature, ou microscope-daguérreotype. Desde então, e até 1848, Leon
Foucault empenha-se em tornar sua lâmpada "automática", isto é, criar algum tipo de mecanismo
capaz de evitar o transtorno de estar constantemente reaproximando manualmente os eletrodos.
Os problemas dos Srs. Caussidière e Foucault têm algo em comum. São problemas de um tipo
que hoje chamaríamos "complexos". Problemas relativos a irregularidades e imprevisibilidades.
Problemas da desordem das massas, por um lado, e do desgaste nas lâmpadas de arco voltaico, por
outro. As soluções que encontram pertencem a uma época que Ortega Y Gasset assinalou como a do
início da "expansão ilimitada" da "técnica científica - física e administrativa."2 Elas nos indicam uma
das vias pelas quais a imaginação técnica no século XIX aprendeu a lidar com a complexidade.
Se admitimos, com Jean Fabre, que no século XIX, "os rios da ciência e da técnica não
correm no mesmo vale", isto não se deve apenas à "indiferença" dos sábios "pelas aplicações que
pudessem derivar de suas descobertas"3. A ciência, de fato, ainda passava os seus domingos na praia,
à beira-mar, na franja de areia onde o mar deita seus dejetos. Neste "território do vazio", os filósofos
naturais do século XVIII começaram a juntar os cacos de uma "história da terra" - diante de um
oceano que era todo o desconhecido.4 Resguardadas pelas "margens onde se mobiliza uma ciência"
face à "banalidade" do que é comum, polinésias de "insularidades científicas" emudeciam diante de
"práticas e simbolizações irredutíveis ao pensamento", face ao "rumor oceânico do ordinário."5
Em suas reflexões sobre as "artes e ofícios", os enciclopedistas já haviam descoberto a
insuficiência da "geometria da academia", que não lograva resolver, nas palavras de Diderot, os
"mais simples e menos compostos" dos problemas de uma "geometria das oficinas" (das "alavancas
e mecanismos de relógios"), de uma física das "fricções têxteis", onde o cáculo mais refinado cedia
vez a uma álgebra do corpo, a uma "matemática manual", a uma "língua sem palavras próprias".6
2
3
ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Masas. Madrid: Revista de Occidente, 1945, p. 106.
FABRE, Jean. Science et technique au XIXe siècle dans le domaine de l`électricité: divorce ou séparation de corps?.
In: CARDOT, Fabienne (org.) 1880-1980. Um Siècle d`électricité dans le monde. Paris: PUF, 1987, p. 177.
4 CORBIN, Alain. O Território do Vazio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
5 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 64.
6
Citado em Idem, p. 138.
Por pretender situar-se aí, sobre este limite, este ensaio é também um convite à vilegiatura. E
para que se desfrute melhor da paisagem, é preciso estabelecer a afinidade entre os dois problemas.
2. Modelos de Complexidade
A imagem fundamental de massas e multidões na França vem de sua Revolução; as figuras
iniciais parecem emergir de um pesadelo: "avalanche" que não pode ser contida, "hidra" cujas
cabeças renascem continuamente.7 Ao longo do século XIX, começam a ser elaboradas outras
imagens, visando explicar o "fenômeno" à luz das psicologias e sociologias nascentes. Entre as
várias hipóteses formuladas, destacam-se, sem dúvida, em campos opostos, explicações
"sugestionais", inspiradas na hipnose, e outras "filogenéticas", como as de Darwin ou Freud. Vamos
nos deter adiante, apenas, em alguns modelos pardigmáticos, porque metafóricos, aos quais se
recorreu, com alguma frequência, para pensar as multidões.
2.1 Modelo vivo
Era corriqueiro comparar a multidão a algum tipo ser vivo, um "animal". Gabriel Tarde, no
final do século XIX, admitia que esta idéia decorre da multidão constituir-se como um "feixe de
contatos psíquicos essencialmente produzidos por contatos físicos".8 Mesmo Elias Canetti, na
segunda metade do século XX, ainda identificava no contato algo que carateriza a massa: "quando
não se presta mais atenção em quem se aperta contra a gente ... tudo acontece como se dentro de um
só corpo."9
Mas que tipo de corpo, que tipo de animal? Um corpo humano, talvez; mas neste caso, uma
mulher:
"... por seu capricho rotineiro, sua docilidade revoltada, sua credulidade, seu
nervosisimo, suas bruscas viradas de vento psicológicas, do furor à ternura, da
exasperação à explosão de riso, a multidão é feminina, mesmo quando se compõe,
como acontece quase sempre, de elementos masculinos."10
7
8
9
PALMADE, Guy. La Epoca de la Burguesia. Madrid, Siglo XXI, 1976, p. 16
TARDE, Gabriel. A Opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 30
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Melhoramentos, 1983, p. 12. A relevância da experiência do "contato"
advém, sem dúvida, de que a espécie humana é caracteristicamente avessa ao contato físico, ao contrário das
bactérias, por exemplo.
10 TARDE, G. Op. cit., p. 185.
A estes traços psicológicos da massa, vinham acrescentar-se outros caracteres femininos como a
"covardia" e uma "inteligência" inferior à média de seus membros, quando considerados
individualmente. Numa versão dândi do mesmo juízo, Tarde afirma que a multidão apresenta "um
simbolismo marcadamente expressivo, unido a uma grande pobreza de imaginação na invenção
destes símbolos, sempre os mesmos e incansavelmente repetidos."11
Aproximar multidão e mulher remetia diretamente à experiência da Revolução, onde a
violência feminina havia sido "notória". Escutavam-se ainda os ecos dos gritos-de-guerra das
mulheres reivindicando "despedeçar", "esquartejar", e fazer "condecorações das tripas" de Maria
Antonieta. Edmund Burke descrevera a escolta do casal real, em sua viagem de volta a Paris, após o
"flagrante" de Varrenes, como sendo composta por "todas as indizíveis abominações das fúrias do
inferno, na forma degradada das mais vis mulheres".12 Recordam-se histórias como a da mulher que
furou os olhos de um velho prefeito com uma "tesoura", ou daquele major, em Caen, esquartejado,
cujo coração foi devorado por uma cidadã. Gabriel Tarde espanta-se com as mulheres: "só lhes
ocorre idéias de canibais".13
Mas o próprio Tarde irá reconhecer na mulher uma imagem demasiadamente humana para a
multidão:
"A multidão, entre as populações civilizadas, é sempre uma mulher selvagem ou uma
faunesa, menos que isso, um bicho impulsivo e maníaco, joguete de seus instintos e
seus hábitos maquinais, às vezes uma animal de ordem inferior, um invertebrado, um
verme monstruoso em que a sensibilidade é difusa e que continua a agitar-se em
movimentos desordenados depois que seccionada sua cabeça, consfusamente distinta
do corpo."14
É descendendo nesta hierarquia - mulher / bicho / animal inferior / invertebrado / verme - que
reencontra a hidra de múltiplas (e nenhuma) cabeças. Mas, ao mergulhar tão fundo nos mais baixos
níveis do vivo, Tarde defronta-se com a fragilidade de um modêlo orgânico - fosse animal ou
mulher. A multidão não era enfim um organismo e o vínculo entre seus membros, apesar do "contato
físico", era de ordem temporal: os indivíduos constituiam-se como massa por sua simultaneidade15.
Vínculo que se tornava possível porque a massa nasceria de um nivelamento (em um patamar abaixo
11
12
13
14
15
Idem, p. 62. Apontar a "falta de imaginação" nas mulheres soa, de fato, tipicamente wildeano.
Citado em RUDÉ, George. A Multidão na História. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 6.
TARDE, G., p. 52. Sem dúvida, o caráter feminino e canibal das multidões tem relação direta com os modelos
filogenéticos que não estamos tratando neste texto. Tarde, no entanto, não vai além de reconhecer aí a
irrupção de elementos "primitivos". Também Le Bon, considerava a multidão "irracional, instável e
destrutiva" e "com tendência a reverter a uma condição animal." Cf. RUDÉ, G. Op. cit., p. 8.
TARDE, G., p. 2-3 (nota).
Entre os leitores de um mesmo jornal, seu público, este vínculo de simultaneidade seria praticamente o único.
da média de seus membros). É a partir destas idéias de simultaneidade e nivelamento, mas não
necessariamente sincronicidade, como algo que se constitui e progride em fase, que os modelos mais
complexos da massa são elaborados.
2.2 Modelo hídrico
É verdadeiramente admirável a persistência da imagem da massificação como uma
inundação. Há menos de 20 anos, é ainda de nivelamento que Certeau nos fala, de um fluxo de água
que subsume os indivíduos e a cultura:
As massas "foram as primeiras a ser submetidas ao enquadramento das
racionalidades niveladoras. O fluxo subiu. A seguir atingiu os quadros possuidores do
aparelho, quadros e técnicos absorvidos no sistema que geravam; invadiu enfim as
profissões liberais que se acreditavam protegidas contra ele, e as 'belas almas`
literárias e artísticas. Em suas águas, ele rola e dispersa as obras, antigamente
insulares, hoje mudadas em gotas d`água no mar, ou metáforas de uma disseminação
da língua que não tem mais autor, mas se torna o discurso e a citação indefinada do
outro."16
Em 1926, Ortega Y Gasset já havia apontado a "subida do nível histórico" como o "fato mais
formidável do nosso tempo", ao mesmo tempo, permitindo o acesso e a manipulação pelas massas
das "técnicas materias, jurídicas e sociais" e, por outro lado "massificando" a aristocracia sob a
forma da "mundo elegante"17.
Existe aqui, nesta idéia de inundação, algo do caráter nivelador e, particularmente
progressivo, do tornar-se massa. Mas, sem dúvida, o modelo hídrico incorporava também alguns
elementos novos:
"Notemos que essas comparações hidráulicas vêm naturalmente ao espírito toda vez
que nos referimos a multidões, ...redemoinhos numerosos que lembram a idéia de um
rio sem leito preciso. Pois nada é menos comparável a um organismo que uma
multidão, a não ser um público. Eles são, muito mais, cursos d`água de regime mal
definido." 18
A referência de Tarde a cursos d`água não é de modo algum "poética". Ele tinha consciência do tipo
de imagem da complexidade que estava buscando:
"Há assim multidões complexas, como em física há ondas complexas, encadeamento
dos grupos de ondas."19
16
17
18
19
CERTEAU, M. Op. cit., p. 59.
ORTEGA Y GASSET, Op. cit., p. 63-72.
TARDE, G. Op. cit., p. 30 (nota)
Idem, p. 168.
"Um chefe de rebelião não dispõe jamais completamente de seus homens, um general
quase sempre; a direção do primeiro, é lenta e tortuosa, refrata-se em mil desvios, a
do segundo processa-se rapidamente e em linha reta."20
Poderia então haver uma física das multidões? A resposta de Tarde parece afirmativa. Mas
teria de ser, forçosamente, uma física que desse conta da não-linearidade dos fenômenos de massa.
O modelo hídrico resgatava, em um plano físico, uma afinidade que a etmologia sempre sustentara,
aquela entre turba e turbulência. A turbulência é o que a turba faz, mas é também característica dos
fluidos: "uma porção de desordens em todas as escalas, pequenos redemoinhos dentro de
redemoinhos grandes".21
2.3 Modelo Eletro-energético
No mesmo plano do modelo hídrico, forjava-se uma outra imagem das multidões. Também
não-humana, ou não-animal, porém capaz de preservar a experiência fundante do contato, e,
ademais, considerar uma energética que não fosse inteiramente estranha ao vivo. É preciso
sublinhar, desde já, que apesar do hídrico e do elétrico disporem-se hoje em territórios científicos
bastantes distintos, possuem afinidades imagéticas muito antigas. Ao longo do século XVIII, a
eletricidade é o "fluido elétrico". Um tipo particular de fluido, um eflúvio, uma emanação: podia-se
ouví-lo nas centelhas, sentí-lo nos choques, cheirá-lo em torno das máquinas elétricas (além disto,
produzia-se por atrito).
Quando Gabriel Tarde põe em movimento a imagem da eletricidade, no final do XIX, ele,
implicitamente, admite que hídrico e elétrico são imageticamente compatíveis:
"A verdeira multidão, aquela em que a eletrização por contato atinge o ponto mais
elevado de rapidez e energia, é composta de pessoas em pé e, acrescentemos, em
marcha."22
Mesmo pensadores contemporâneos das "massas" conservam algo deste modelo eletroenergético. Em Canetti, por exemplo, ele transparece na noção de "descarga". Em Massa e Poder, a
massa só passa realmente a existir a partir da "descarga". Coerente com a percepção de Tarde que a
20
21
22
Idem, p. 168.
GLEICK, James. Caos; A Criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 124. Também em
inglês, as relações são semelhantes, pois a turba é mob, do latim mobile vulgus - o populacho em movimento,
mas também a multidão instável e caprichosa.
TARDE, G. Op. cit., p. 181.
multidão é mais um "acontecimento" que uma "situação", a "descarga" é a ocasião do
"nivelamento": "todos se despojam de suas experiências e se sentem iguais."23
A idéia de "descarga" sugere, portanto, que as pessoas são portadoras de uma carga - como
uma pilha, por exemplo - "privada": sua posição na sociedade (hierarquias, ordens, distâncias, etc.)
Quando a massa se desfaz, as pessoas se recarregam. Logo, para que a massa permeneça como tal a
descarga deve ser contínua:
"Somente o incremento da massa impedirá que os seus componentes tenham de
submeter-se novamente a suas cargas privadas."24
Com Simondon, escrevendo aproximadamente na mesma época que Canetti, o modelo eletroenergético torna-se ainda mais abrangente, uma vez que adquire valor "epistemológico" para as
ciências humanas. Explico-me. Entende Simondon que a síntese lograda por Maxwell, um século
antes, reunindo campo elétrico e campo magnético em uma só teoria eletro-magnética, poderia
servir de modelo para as ciências humanas. Também o sucesso destas últimas dependeria de sua
capacidade de reunir, em uma só teoria, a psicologia e a sociologia. A chave para esta união seria a
própria noção de campo: "um presente dado às ciências humanas pelas ciências da natureza".25
Por meio da noção de campo seria possível elaborar uma axiomática capaz de sustentar uma
investigação da energética dos "grupos sociais", e não apenas de sua morfologia:
"... o mais importante na vida dos grupos sociais, não é somente o fato de que são
estáveis, mas que, em certos momentos, não podem conservar suas estruturas: eles se
tornam incompatíveis com relação a eles mesmos, eles se desdiferenciam e se
supersaturam: ...esses grupos se desadaptam."26
23
24
25
26
CANETTI, E. Op. cit., p. 14.
Idem, p. 16.
SIMONDON, Gilbert. L'Individuation psychique et collective. Paris: Aubier, 1989, p. 44. A posição ocupada por
Simondon neste ensaio pode ser considerada, por alguém mais devotado à cronologia, um imperdoável
anacronismo. Apesar de sua ênfase na explicação de uma psicologia coletiva recair sobre processos
ontogenéticos, distinguindo-se do paradigma dominante no século XIX que valoriza a filogênese - cabendo à
ontogêse dar testemunho de recapitulação -sua concepção do social e do vivo escora-se ainda no repertório
científico oitocentista (eletromagnetismo, metaestabilidade, etc.). Convém assinalar que Ortega y Gasset, em
seu ensaio sobre o nascimento do "homem-massa", escrito em 1926, também aponta a "incongruência entre a
perfeição de nossas idéias sobre os fenômenso físicos e o atraso escandaloso das 'ciências morais`".
(ORTEGA Y GASSET, J. Op. cit., p. 17). Neste ensaio, a massa não ocupa o lugar da complexidade, sendo o
seu surgimento, de fato, um efeito da complexificação social; mesmo assim, Ortega y Gasset esforça-se por
incorporar a pluralidade à sua noção de "unidade real", substituindo um "paradigma" de "objeto corporal" por
uma dynamis: "a Europa não é uma coisa, mas um equilíbrio" (Idem, 21). Neste sentido, o "cheio" na massa,
sua "aglomeração" (e, por estensão, o contato físico entre seus membros), é apenas uma percepção primária,
uma "experiência visual" (Idem, p. 54) Desse modo, a complexidade em Ortega y Gasset comporta uma
dinâmica e não necessariamente uma energética. O "homem-massa" estaria megulhado, ao contrário do que
pensa Simondon, em um tipo de homogeneidade que exclui a pluralidade (Idem, p. 22).
SIMONDON, Op. cit., p. 63.
Portanto, de um ponto de vista energético, um grupo social pode não ser estável, mas
encontrar-se em um tipo de equilíbrio semelhante àquele de uma solução supersaturada: um estado
supertenso. Basta que se imiscua nesta solução um pequeno germe cristalino para que ela se
cristalize, para que tome uma forma. Simondon preferencialmente irá chamá-lo, por isso, de "germe
estrutural". A "tomada de forma" precipita-se a partir dele e propaga-se pela solução. Tal idéia de
propagação significa, simplesmente, que a tomada de forma dá-se - e continua a dar-se - sempre no
limite da parte já estruturada.
Trata-se de um limite móvel, no interior de um domínio informável (que pode ganhar uma
forma), entre a parte deste domínio já-informada (estável) e a parte ainda-não-informada. O avançar,
progressivo, da estrutura, "ganhando um campo a partir de um germe estrutural" é, como na física,
uma "operação transdutiva"27.
Na massa, o limite de sua configuração está em movimento enquanto ela se expande. Nos
termos de Canetti, enquanto existe descarga, a massa continua como tal - permanece sendo massa.
Simondon chega à mesma conclusão:
"Os fenômenos de massa... devem ser considerados como condições de acumulação de
energia potencial dentro de um campo, e, propriamente falando, condições de criação
do campo enquanto domínio possível de transdutibilidade, o que supõe uma relativa
homogeneidade."28
A despeito de sua complexidade, portanto, o campo deve ser "suposto" como homogêneo - mesmo
que antes que haja "simultaneidade" ou "nivelamento" entre os elementos que o constituem. Mas de
que homogeneidade está-se falando, então? A homogeneidade fundamental, em Simondon, é aquela
entre "germe estrutural" e "campo estruturável". Tal homogeneidade também está "suposta" em
Canetti, do mesmo modo que em Tarde. Em Canetti, os "germes cristalinos" de Simondon cintilam
como "cristais de massa": "pequenos e rígidos grupos de homens, fixamente limitados e de grande
constância, que servem para desencadear massas".29 Em Tarde, o caráter homogêneo do
germe/cristal já havia sido evocado na imagem do fermento:
"Acontece também, com frequência, que uma multidão posta em movimento por um
núcleo de exaltados, os supera e os reabsorve, e, tornando-se acéfala, parece não ter
condutor. A verdade é que ela não o tem mais, como a massa fermentada não tem
mais fermento."30
Em alguma medida, a percepção das massas como hidras e vermes indecapitáveis refletia
uma experiência malograda de controlar multidões pela subtração de seus supostos líderes. A técnica
27
28
29
30
Idem, p. 32.
Idem, p. 33.
CANETTI, E. Op. cit., p. 78.
TARDE, Op. cit., p. 169.
de repressão à turba pelo isolamento de seus elementos mais exaltados não resistia à etapa dos
interrogatórios. Este novo modelo de acefalia - germes, cristais ou fermentos, no seio de uma
operação transdutiva - tentava aproximar-se de um ponto de vista interno à própria multidão: "não
tinham líder e cada homem era tão livre quanto o outro", declarara um insurgente à polícia, preso por
ocasião do ataque ao Palais Royal, em 1789. George Rudé, confirma que a autoridade destas
"cabeças" era "puramente local e temporária" e que, entre as centenas de ingleses degredados para a
Austrália por participação em distúrbios, entre 1830 e 1840, nenhum deles demonstrou qualquer
pendor posterior para a "atividade política e radical".31
O campo informável - homogêneo em relação ao cristal que lhe deflagra a tomada de forma deve encontrar-se, no momento anterior à operação transdutiva, em uma condição de equilíbrio que
a favoreça. Simondon define este equilíbrio como de um tipo metaestável: nem estável, nem
instável. A metaestabilidade - como a que existe em uma solução supersaturada - descreve um modo
de equilíbrio distinto do repouso, inerente à própria condição do vivo. No vivo, a estabilidade seria
equivalente à morte - um estado em que as transformações só podem ocorrer a partir de energias que
lhe são exteriores. Em um domínio metaestável, ao contrário, transformações podem ser suscitadas
por energias internas ao próprio campo. A imagem consagrada da metaestabilidade é a do
funâmbulo, equilibrando-se sobre um fio de arame. Enquanto ele permanece em movimento - ou
precisamente por isso - seu equilíbrio é sempre restabelecido, ao mesmo tempo em que um "novo"
desequilíbrio é gerado. Uma vez que o funâmbulo repouse, estabilizando-se, ele não pode mais
sustentar-se, e cai.
Desse modo, o social e o vivo, por sua afinidade ontogenética - a tomada de forma em uma
campo metaestável - podiam ser estudados à luz de um mesmo modelo. Simondon sutenta,
explicitamente, sua adequação às investigações sobre fenômenos como as revoltas populares:
"Uma teoria energética da tomada de forma em um campo metaestável nos parece
convir à explicação dos fenômenos ao mesmo tempo, complexos, rápidos e
homogêneos, ainda que progressivos, como o Grande Medo."32
A partir dos elementos expostos até agora, é possível enunciar um conjunto de características
da percepção complexidade no século XIX, segundo o repertório de analogias que, particularmente
os modelos hídrico e eletro-energético punham à disposição:
. diz respeito ao que é rápido (e progressivo);
. supõe alguma homogeneidade (que facilita a propagação);
. pode transformar-se a partir de energia interna;
. pode equilibrar-se de um modo metaestável (pela continuidade de seu movimento).
31
32
RUDÉ, G. Op. cit., p. 270.
SIMONDON, G. Op. cit., p. 69.
Tendo em mente estas características, podemos sugerir, como faremos a seguir, que as
soluções encontradas para os dois problemas inicialmente apresentados orientaram-se por um
princípio imagético comum.
3. As Soluções
3.1 A polícia de Caussidière
O prefeito de polícia estava disposto a implementar um modo de regularizar a turba, um
modo de agir em um campo onde a desordem havia assumido escala de massas. Sua resposta foi a
descoberta de um "germe estrutural". Segundo um contemporâneo, ele decidiu "fazer com que a
polícia e a boa vigilância municipal se utilizassem dos personagens perigosos que atulhavam a Paris
insurreta."33
Fundava-se assim um tipo paradigmático de polícia, rigorosamente homogênea aos
"personagens perigosos" que supostamente deveria combater. Uma deliciosa enumeração de Marx,
nos fornece um perfil deste "cristal" que o braço armado da Lei punha agora a seu serviço:
"vagabubdos, soldados desligados do exército, presidários libertos, forçados
foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzaroni, punguistas, trapaceiros,
maquereaus, donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros,
amoladores de facas, soldadores, mendigos."34
O Sr. Caussidière vangloriou-se com a própria descoberta, jactando-se de haver "feito a
ordem a partir da desordem."35 Por meio deste singelo enunciado estabelecia-se um princípio
operativo fundamental: problemas complexos relativos a campos extremamente irregulares podem
ser resolvidos "pondo-se a desordem a serviço da ordem". A solução do prefeito não visava
estabilizar a desordem, convertê-la ao repouso, mas equilibrá-la em seu próprio movimento.
3.2 A lâmpada de Foucault
O modo como Leon Foucault logrou tornar "automática" a regulação de sua lâmpada
fotoelétrica segue o mesmo princípio. Instalou uma pequena mola que empurrava uma das hastes de
33
34
35
FIGUIER, Louis. Les Nouvelles conquétes de la science (1888). In: Les Merveilles d'électrité. Paris:
Association pour l'histoire d'électricité en France, 1985, p. 40.
MARX, K. Op. cit., p. 366. Marx está a referir-se, de fato, à composição do núcleo dos "decembristas", a
"tropa de choque" de Luís Bonaparte, mas fornece simultaneamente uma "caracterização" do
costumava-se chamar então la bohéme.
FIGUIER, L. Op. cit., p. 40.
carvão em direção à outra. Mas, de modo a "equilibrá-la" na distância devida, fez agir sobre a
mesma haste um eletro-imã, atraindo-a na direção contrária. Como este eletro-imã era alimentado
pela mesma corrente elétrica que gerava o arco voltaico, toda vez que distância entre os eletrodos
aumentava, devido ao desgaste nas pontas das hastes de carvão, a força de atração do eletro-imã
diminuia e a ação da mola prevalecia, reaproximando os eletrodos. Quando a distância ideal era
restabelecida, mola e eletro-imã voltavam a anular-se. Um sofisticado mecanismo de relojoaria,
desenvolvido pelo ótico Jules Duboscq, tornava o sistema sensível aos menores movimentos,
gerando um efeito luminoso bastante regular.
Há mais de um século, um atento cronista das "maravilhas da eletricidade" assim descrevia a
invenção de Foucault:
"...é o agente produtor do fenômeno luminoso, isto é, a corrente elétrica ela mesma,
que gradua e modera as irregularidades. A ordem, a uniformidade do efeito luminoso,
é produzida pela desordem, isto é, pelas irregularidades das distâncias entre as
pontas de carvão."36
É própria irregularidade (o mal funcionamento da lâmpada), portanto, que torna-se fator de
equilíbrio e uniformidade. Equilíbrio que só é possível porque, e enquanto, o movimento se mantém.
Leon Foucault havia criado uma máquina metaestável.
4. Com quantos paus se faz um paradigma?
O que foi exposto acima não visa, de modo algum, sustentar que técnicas do século XIX policiais ou eletromagnéticas - respondiam problemas que somente a ciência do século XX veio a
plantear. A técnica respondia a outros problemas. Ou antes, resolvia-os. E, no entanto, foi
exatamente nos mecanismos de retroalimentação que a mais durável das teorias do século XIX, a
seleção natural de Darwin e Wallace, foi buscar seu modelo. Dez anos depois de Caussidière e
Foucault, em 1858, publica-se "Sobre a tendência das espécies em formar variedades; e sobre a
perpetuação de variedades e espécies por meios naturais de seleção". Nos termos deste estudo: de
como a desordem das variedades produz a ordem das espécies. Com Darwin, e especialmente
Wallace, a técnica converte-se em princípio da natureza, a seleção é o mecanismo da própria história
natural:
36
Idem, p. 41.
"A ação deste princípio é exatamente como a do regulador centrífugo de um motor, que
checa e corrige qualquer irregularidade quase antes de ela se tornar evidente."37
Hoje, a imagem da complexidade reconcilia ciência e técnica, arte e vida. O nome da
complexidade é o "abre-te sésamo" da multiplicidade, e a uma vigorosa promessa "mais realidade",
afinal. A complexidade é uma sonda hiper-realista lançada ao mar pelos seres do estirâncio. Mas os
mesmos mares podem já ter sido singrados por outras embarcações, que calculvam seu rumo com as
ferramentas matemáticas de uma geometria do corpo, uma álgebra de funâmbulo; encontrando o tipo
de solução "sem linguagem própria", da qual Diderot lamentava não saber o verdadeiro nome.
Quando Louis Figuier escreveu, em 1888, na pequena anedota que deu origem a este texto, que Leon
Foucault, "realizou na física aquilo que Caussidière havia feito na administração municipal", ele
também nos ajudou a recordar que não é pela estabilidade dos nomes que se forma um paradigma,
mas pelo movimento das imagens.
Mauricio Lissovsky
*
37
Texto publicado em Pontos de Fuga: visão, tato e outro pedaços. Taurus: Rio de Janeiro, 1996.
Citado em CRONIN, Helena. A Formiga e o Pavão; altruísmo e seleção sexual de Darwin até hoje. Campinas (SP):
Papirus, 1995.
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física e administração municipal no tempo em que a complexidade