1 LAICIDADE E RELIGIOSIDADE EM ESCOLAS PÚBLICAS DE BH Heli Sabino de Oliveira (UFMG)1 Considerações iniciais No final da década de 1980, a disciplina de Ensino Religioso foi suprimida do currículo escolar da Rede Pública de Educação do município de Belo Horizonte. Essa decisão se baseou em duas justificativas: uma que denunciava o caráter confessional da referida disciplina e a outra que destacava o caráter laico da Escola Pública. No primeiro caso, afirmava-se que se tratava de uma situação que feria o princípio constitucional que estabelecia a liberdade de culto, bem como promovia certa discriminação religiosa, já que, cada vez mais, a cidade era menos Católica. No segundo caso, destacava-se, por um lado, o intuito de se colocar em prática o princípio republicano que celebra a separação entre Estado e Igreja e, por outro lado, a necessidade de se consolidar o caráter secular da Escola moderna, criada para formar cidadãos críticos e participativos e divulgar o pensamento científico. Em outras palavras, a disciplina de Ensino Religioso era vista como uma extensão da Igreja Católica e como entrave à disseminação da razão. Por esse motivo, ela deveria ser banida da grade curricular da escola. Cabe destacar aqui que esse debate foi travado em um período de grande efervescência política: o Brasil estava deixando para trás trinta anos de Ditadura Militar, marcado por forte ingerência governamental nas questões educacionais. Com os estabelecimentos de ensino vinculados ao ideário de segurança nacional e de desenvolvimento econômico, tanto as disciplinas de Educação Moral e Cívica, Organização Social, Política Brasileira (OSPB) e Ensino Religioso quanto às disciplinas de História e Geografia possuíam um conteúdo ideológico claro – manter o status quo2. Isso explica porque, com a redemocratização do país, os gestores educacionais, os sindicatos e as associações de professores passaram a repensar a função social da Escola. Não se pode esquecer ainda que esse debate fora alimentado por uma certa concepção marxista, bastante disseminada nos meios universitários da época, que preconizava que a Religião era o principal ópio do povo3. Talvez, por isso, o fim da disciplina de Ensino Religioso em Belo Horizonte não tenha provocado grandes repercussões na cidade. Essa situação não se alterou, em 1996, quando houve uma ampla reforma educacional em Belo Horizonte. Conhecida como Escola Plural, esse programa procurou destacar que o fracasso escolar não estava associado apenas às grandes desigualdades sociais que assolam o Brasil, mas também às formas pelas quais os estabelecimentos educacionais organizavam seus tempos, espaços e currículos escolares. Em linhas gerais, essa proposta compreendia que a Escola Tradicional não respeitava a pluralidade de ritmos de aprendizagem, nem as diferenças de classe, gênero e raça. Além disso, sua estrutura e organização curricular eram seletivas e excludentes, por quatro razões, a saber: a) ela privilegiava os conhecimentos técnicos e científicos, em detrimento dos saberes artísticos e literários; b) não concebia a Escola como tempo de cultura, desprezando, assim, a diversidade sociocultural dos educandos; c) celebrava a formação acadêmica, ignorando as dimensões éticas e estéticas que compõe a formação integral do educando; d) não destacava o caráter formador do tempo e do espaço escolar, pois compreendia apenas o contexto da sala de aula como ato educativo4. 1 Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor de História da Rede Municipal de Belo Horizonte. 2 Cf. CUNHA, Luiz Antônio & GÓES, Moacir. O Golpe na Educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 3 Cf. FONSECA, Selva Guimarães. Os caminhos da História ensinada. São Paulo: Papirus,1992. 4 Cf. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Escola Plural. Belo Horizonte: 1994. 2 No entanto, a Escola Plural não levou em consideração o peso da religiosidade na formação dos educandos, nem a relação entre Religião e Cultura. Pelo contrário, a nova proposta educacional de BH confirmou a supressão do Ensino Religioso do núcleo das disciplinas obrigatórias do Ensino Fundamental. Para se adequar ao artigo 33 da nova Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei 9394/96), que diz que o Ensino Religioso é parte integrante da formação básica do cidadão, a Secretaria Municipal de Educação (SMED) estabeleceu que os saberes próprios dessa disciplina fossem trabalhos como temas transversais. Contudo, não existe nenhum documento oficial que sugira como pode ser tratada essa dimensão humana no contexto escolar; assim, o que prevalece, de forma implícita, é que a questão religiosa continua sendo, para a SMED, um problema de foro particular, não cabendo ao sistema educacional tratá-la como temas escolar. Certamente, essa postura contraria as novas tendências e perspectivas do Ensino Religioso, tão bem analisadas por Meneghetti (2003). Para a autora, o Ensino Religioso não está mais vinculado ao campo teológico, local de confessionalidade e denominação religiosa, como aconteceu na década de 1980. Agora, os pressupostos epistemológicos dessa disciplina estão relacionados à Ciência das Religiões. Seu objeto de estudo é a análise dos elementos comuns e específicos às diversas religiões, isto é, o fenômeno religioso em si e em suas múltiplas expressões. Assim, seu objeto é maior do que a confessionalidade presente em cada denominação religiosa. Trata-se de uma ciência construída, em seus princípios e métodos, dentro 5 da tradição das ciências modernas (Idem, ibidem, p.94) . Sob a argumentação de que as escolas municipais são laicas e seculares, o município de Belo Horizonte está deixando de participar de um amplo debate sobre o lugar da religiosidade em nossos dias, bem como sua relação com a vida dos educandos. Além disso, não há nenhuma garantia de que a supressão do Ensino Religioso assegure a implantação de uma escola laica e secular. Existem evidências materiais e simbólicas que demonstram que as escolas públicas da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte possuem uma confessionalidade católica. Basta observar a quantidade de escolas com nomes de santos e sacerdotes católicos, bem como a presença de símbolos e práticas ligadas ao catolicismo nos tempos e espaços dos estabelecimentos educacionais6. Adotando a perspectiva dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais, o presente artigo indaga as relações de poder que permitem que essa religiosidade seja vista como fato da vida escolar e não como um construto simbólico. Além disso, procura compreender como os educadores lidam com a diversidade religiosa em um contexto em que a sociedade brasileira é, segundo o IBGE (2000), cada vez menos católica. Também aborda como acontece o processo de normalização da prática católica nos estabelecimentos públicos de ensino. Os dados empíricos coletados, por meio de questionários, entrevistas e Observação Participante, evidenciam uma questão estranha: no espaço escolar, religiosos são os outros, os católicos são “os normais”. Esse trabalho está dividido em duas partes: na primeira, busco realizar, de forma sucinta, uma revisão bibliográfica sobre a relação entre processo de escolarização e religiosidade; na segunda, analiso as formas pelas quais ocorrem a manifestação da religiosidade Católica no espaço escolar. Nas considerações finais, procuro reafirmar a relevância da disciplina Ensino Religioso nesse novo contexto educacional. 5 Cf. MENEGHETTI, Rosa Gitana Kro. A Pertinência Pedagógica da Inclusão do Ensino Religioso no Currículo Escolar. In: GUERREIRO, Silas (Org). O Estudo das Religiões: desafios contemporâneos. São Paulo: Paulinas, 2003. 6 Cf. OLIVEIRA, Heli Sabino. Escola noturna e jovens: relação entre religiosidade e escolarização. In: SOARES, Leôncio. Aprendendo com a diferença: estudos e pesquisas em Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 3 Relação entre processo de escolarização e religiosidade Os estudos que focalizam a relação entre processo de escolarização e religiosidade no Brasil são ainda embrionários. Isso talvez ocorra porque se trata de uma temática que é pouca valorizada nos meios educacionais. Vista como questão de foro íntimo, a religião é compreendida, não raro, como algo particular, estritamente ligada ao âmbito familiar, cabendo à escola apenas tolerar e respeitar as crenças de seus alunos. Por sua vez, a escolarização está, normalmente, associada à formação pública do cidadão, bem como à difusão de conhecimentos e de procedimentos científicos. Modesto (1998) elenca três razões para justificar a escassez de pesquisa na área educacional que trate sobre essa problemática. Em primeiro lugar, porque as Escolas Públicas surgiram na Modernidade, precisamente na III República francesa, com o propósito de combater os misticismos, as superstições e as crendices que supostamente limitavam o avanço das Ciências. Estas, compreendidas como ferramentas propulsoras da Razão, do Progresso e do Desenvolvimento, tinham, de certa forma, lançado as bases para o desencantamento do mundo, expressão cunhada pelo sociólogo alemão Max Weber para designar as experimentações empíricas que comprovavam a existência de leis naturais que governam o universo. A autora nos lembra que os principais pensadores do século XIX, época em que as Ciências se institucionalizaram como agência produtora de conhecimento, eram ateus. “Como a história das idéias demonstra, Deus perde o controle da natureza (expulso por Darwin), perde o controle da história (expulso por Marx), perde o controle da consciência humana (expulsa por Freud)” (Idem, ibidem, p.78). Em segundo lugar, porque os Estados nacionais buscavam se distanciar do poder da Igreja Católica. Seus objetivos eram agora criar sentimentos de nacionalidade. A Escola era, dessa forma, vista como o lugar de se aprender símbolos, memória e as “histórias dos heróis nacionais”. Em terceiro lugar, porque a teoria da secularização se tornou, nos meios acadêmicos, hegemônica. De acordo com esse modelo analítico, a modernização (industrialização e urbanização) provoca a contração da esfera religiosa, que gradativamente se desloca da esfera pública para a esfera privada. Isso ocorreria porque os principais fenômenos físicos e sociais deixariam de ser explicados por forças mágicas e místicas, como em períodos históricos anteriores, mas por princípios racionais, fruto do desenvolvimento técnico-científico. A autora nos chama a atenção para o fato de que essas previsões não se efetuaram. Nas últimas décadas, a religiosidade tem se expandido; basta observar o avanço dos movimentos neopentecostais e carismáticos7. Victor Valla (2001) desconfia que, sob a argumentação de que a Escola Pública é laica e secular, os educadores acabam não percebendo que a religiosidade, além de fazer parte da realidade de muitos brasileiros, é o eixo organizador mais importante das camadas populares. Sendo o código cultural que o povo domina, a manifestação religiosa é, em parte, responsável tanto pelo modo de ser e de pensar quanto por crenças e esperanças de uma parte significativa de pessoas. Nesse sentido, o autor alerta: A questão da religiosidade é um tema que permeia a vida cotidiana de uma grande parte das camadas populares, e neste sentido, dos alunos da escola pública. Se este fato não for reconhecido, é possível que muitos preconceitos tendam a ser perpetrados no interior da própria escola pública.Tanto os meios de comunicação como frequentemente os próprios livros utilizados nas escolas, quando mencionam a questão religiosa nas aulas de História ou Ciências Sociais, tendem a centrar sua atenção na Igreja Católica, frequentemente tratada como “A Igreja” – e nas igrejas protestantes conhecidas como históricas e as de orientação judaica. Com isso, ficam marginalizadas da discussão geral centenas de igrejas evangélicas, pentecostais, 7 Cf. MODESTO, Ana Lúcia. Religião, Escola e os problemas contemporâneos. In: DAYRELL, Juarez (org). Múltiplos olhares sobre a Educação e Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. PP 7684. 4 neopentecostais e as afro-brasileiras, como as de umbanda e candomblé (Idem, 8 ibidem, p. 8) . Cumpre sublinhar aqui que não é somente nos livros de História que a Igreja Católica (A Igreja) ocupa posição privilegiada no processo de escolarização. Conforme veremos mais adiante, ela está, de forma sutil, presente nos estabelecimentos educacionais, bastando observar os nomes das escolas, a organização do tempo e do espaço escolar. No entanto, o desprezo pela religiosidade do educando pode suscitar pelo menos três conseqüências desastrosas para o processo de escolarização: a) a escola tratar com desprezo, medo ou hostilidade certas crenças e valores, bem como classificar o diferente como inferior ou perigoso; b) a escola não tomar conhecimento sobre o universo simbólico do educando, ignorando as formas pelas quais interpretam e dão sentido às suas práticas sociais; c) a escola não reconhecer que as “concepções e ideais de vida, que nos movem com vigor, sempre são formados na luta com outros ideais, que são tão sagrados para os outros quanto os nossos são para nós” (Weber, Apude Harvey, 1989)9. A primeira conseqüência é sentida com mais intensidade pelas religiosidades afrobrasileiras. Constituídas às margens do cristianismo, elas não são, como descreveu tão bem Maggie (2001), compreendidas como expressão simbólica de um grupo, mas associada, de forma preconceituosa, ao estágio “primitivo” e “inferior” em que supostamente se encontra a raça negra. Por isso, são classificadas de religiosidades rurais, fetichistas, mágicas, emocionais e não-racionais. A autora afirma que o preconceito se manifesta na compreensão de que Sendo seus membros negros, suas crenças deveriam ser condizentes com o estágio “primitivo” e por que não “inferior” dessa raça. (...) Foi associada também às camadas baixas da população brasileira que, com forte contingente negro, adotavam essas religiões por não terem ainda alcançado estágios mais altos da evolução cultural, a “civilização”. Mais recentemente, um outro tipo de associação foi feito. Esses traços foram associados a uma maior ou menor adaptação ao meio de vida urbano. Aparece assim uma nova oposição entre rural e urbano, o pólo rural associado a traços primitivos, emocionais, não-racionais e o pólo urbano associados a traços mais civilizados, não-emocionais, racionais. Dessa forma, os traços africanos estariam no pólo mais rural, primitivo, emocional, não-racional, enquanto os traços espíritas seriam mais compatíveis com um estilo de vida urbano, racional, civilizado, nãoemocional (2001, p.14)10. Em outro lugar (Oliveira, 2000, p.95), constatei que, em razão do estigma que pesa sobre essas manifestações religiosas, seus adeptos são vistos, no espaço escolar, como pessoas inferiores e perigosas; por isso, preferem, não raro, se identificar como católicos. Trata-se de uma estratégia, cuja finalidade é prevenir possíveis hostilidades ou desprezos11. A segunda conseqüência é o estabelecimento educacional deixar de se perceber como um espaço sociocultural (Dayrell,1998)12. Nessa perspectiva, os educadores procuram compreender os diversos universos simbólicos (entendidos aqui como as formas pelas quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seus conhecimentos em relação à vida) presentes no espaço escolar. O objetivo é construir uma prática pedagógica desvencilhada de qualquer espécie de etnocentrismo. 8 Cf. VALLA, Vincent Victor. Prefácio. In: VALLA, Vincent Victor (org). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 9 Cf.HARVEY, David. Condição pó- moderna. São Paulo: Loyola, 1989. Cf. MAGGIE, Yvonne. Guerra de Orixá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 11 OLIVEIRA, Heli Sabino. Jovens Pentecostais e Escola Noturna: significados atribuídos às experiências escolares. Dissertação de Mestrado: Universidade Federal de Minas Gerais – FaE, 2000. 12 Cf. DAYREEL, Juarez. A escola como espaço sociocultural. In: DAYRELL, Juarez (Org). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. 10 5 Quando isso não ocorre, a tendência é tratar o diferente como igual. Eis aqui um trecho de reportagem que pode ilustrar bem essa situação – no dia 8 de setembro de 2002, o jornal Estado de Minas noticiou a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região de cassar a liminar que concedia aos estudantes adventistas o direito de realizar as provas do vestibular da Universidade Federal de Uberlândia, em horário especial. De acordo com o presidente da COPEVE (Comissão Permanente de Vestibular), Sidinei Ruocco Junior, “a decisão foi correta, pois não se pode tratar de forma diferenciada aqueles que são iguais”. Outro ponto que os educadores não podem perder de vista é que as “concepções e ideais de vida, que nos movem com vigor, sempre são formados na luta com outros ideais, que são tão sagrados para os outros quanto os nossos são para nós” (Weber, Apude Harvey, 1989). Isso significa dizer que a diversidade religiosa não pode ser classificada de forma hierarquizada. Não existe, do ponto de vista epistemológico, nenhum critério objetivo para se definir a superioridade de uma religiosidade sobre outra. Pelo contrário, todas são construções culturais. Isso não pode ser compreendido, com clareza, porque as lutas pelo estabelecimento das verdades religiosas são travadas em situações de desigualdade: não é qualquer um que pode, em qualquer momento, em qualquer lugar, defender seu ponto de vista. A distribuição dos recursos materiais e simbólicos está estritamente associada às relações de poder. Segundo Silva (2000, p.81), as relações de poder se manifestam, de forma sutil, em pelo menos três situações sociais: primeira, pela demarcação de fronteiras simbólicas, processo que fixa os limites culturais entre “nós e eles”, apagando o caráter histórico (variável e mutável) e o caráter social (construído) das relações entre grupos. Segunda, pela elaboração de um consistente sistema de classificação, ordenação e hierarquização dos grupos sociais, definindo quem são os bons e os maus, os puros e impuros, os desenvolvidos e os primitivos, os racionais e os irracionais. E por fim, pela normalização das práticas sociais, que sentencia quem são os normais e quem são os anormais na sociedade13. Para o autor, as narrativas contidas no currículo escolar não são neutras e inocentes, mas interessadas, pois corporificam noções particulares sobre conhecimento, formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais. Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não. As narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou mesmo serem totalmente excluídos de 14 qualquer representação (Idem, 2002, p.195) . Pode-se observar que o currículo escolar privilegia certas práticas religiosas em detrimento de outras. Peres & Peres nos contam o caso de Dandara, uma garota que passou a se desinteressar pela escola, depois de ter sido ridicularizada e segregada pelos colegas por causa de sua religião. Ao relatar que estivera, no verão, em uma praia, participando com sua família de um ritual de homenagem a Yemanjá, a professora se assustou, perguntando se os pais eram macumbeiros. A partir daí, a turma passou, durante o intervalo, a empurrar a menina, chamá-la de galinha preta e macumbeira. Certamente a professora não imaginava – e não desejava – que seu comentário espontâneo, quase automático, provocasse o efeito que provocou. A partir do que a professora falou, muitas crianças se sentiram autorizadas a fazer seus próprios 13 Cf. SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. 14 Cf. SILVA, Tomaz Tadeu. Alienígena em Sala de Aula. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. 6 comentários sobre o assunto, fruto do mesmo estranhamento que o relato da menina 15 provocou nelas e na professora. (PERES & PERES, 2004, p.196) . Segundo os autores, existem países que buscaram, por meio de uma legislação rígida, desvincular as práticas escolares das experiências religiosas. O presidente francês, Jacques Chirac, sancionou, no dia 10 de fevereiro de 2004, uma lei proibindo qualquer vestimenta ou objeto que identifiquem a Religião de um estudante. Assim, foram banidos do espaço escolar, dentre outros símbolos, o véu islâmico, o solidéu judeu e os crucifixos. Na Alemanha, precisamente em Berlim, o governo proibiu, no dia 01 de abril de 2004, o uso de símbolos religiosos (véu islâmico, crucifixo e kipá judaico) somente para funcionários públicos como juízes, policiais e professores. Para os autores, essas leis pretendiam, sobretudo, disciplinar o modo de vestir, porque o corpo é uma forma de comunicação entre as pessoas. Dessa maneira, uma forma eficaz de manter um Estado laico e secular é impedir que mensagens religiosas cheguem aos espaços públicos por meio de “linguagem corporal”. Eles defendem esse ponto de vista por meio dos seguintes argumentos: Uma pessoa que é membro de uma dada comunidade religiosa – ou que não professa nenhuma religiosidade – pode ficar incomodada com a exposição constante, na sua presença, de símbolos de uma outra Religião. Além disso, pode ser que ao ter que se vestir de determinada forma, o estudante passe a ter que cumprir certas regras de vestuário que interfira no desenvolvimento de certas atividades escolares. Outro argumento utilizado, com muita insistência pelos que defendem leis, como a francesa, que proíbe o uso de qualquer símbolo ou vestuário com conotação religiosa, é o de que nem sempre os jovens e crianças os usam por vontade própria, mas são constrangidos a usá-los, seja pela família, seja por outros membros da comunidade a que pertencem. A proibição legal do uso desses símbolos e vestes seria uma forma de proteção a essas crianças e jovens (Idem, Ibidem, p.200). Como forma de exemplificar a questão do uso de vestimenta que impede realização de certas práticas escolares, os autores nos apresentam o relato de uma professora que atua nos anos iniciais do Ensino Fundamental, no Estado do Rio Grande do Sul. Em uma atividade de Educação Física, ela notou que duas crianças que trajavam saia estavam de fora da quadra. Indagadas pela educadora, as meninas respondem que pertencem a uma determinada igreja pentecostal que proíbe o uso de short e calça. Em síntese, os poucos estudos no Brasil que focalizam a relação entre processo de escolarização e religiosidade podem ser agrupados em três tipos de abordagens: uma que questiona o peso do catolicismo no cotidiano escolar e nos livros didáticos; outra que descreve e analisa as formas subalternas de manifestações religiosas na Escola Pública; finalmente, aquelas que destacam a relevância de se implantar um estabelecimento educacional desvinculado das práticas religiosas da sociedade. Na próxima seção, busco destacar o peso da religiosidade Católica nas Escolas Públicas de BH. A religiosidade Católica nos tempos e nos espaços escolares O fim da disciplina Ensino Religioso não promoveu a laicização das Escolas Públicas de Belo Horizonte. O objetivo desta seção é analisar a manifestação da religiosidade Católica como construto simbólico balizador das demais crenças religiosas que se expressam no espaço escolar. Diferentemente do pentecostalismo e de outros grupos religiosos, o catolicismo não causa aos professores e alunos estranhamento, pois é 15 Cf. PEREZ, Eliane Terezinha & Sabastião Perez. Escola, Sociedade e Diversidade Religiosa. In: Coleção Veredas – Formação Superior de professores. Belo Horizonte: Secretaria Estadual de Educação, 2000. 7 concebido como fato social da vida escolar e não como resultado de um determinado ethos cultural. De modo geral, a manifestação religiosa católica, geralmente, não é vista, nas Escolas Públicas, como manifestação religiosa. Ela se inscreve como fato da vida escolar. Assim, somente outras manifestações religiosas é que são percebidas como manifestações religiosas. É como a manifestação do sotaque lingüístico. Ele é percebido somente nos forasteiros, naqueles que se encontram em terras alheias e nunca nos que estão estabelecidos em suas próprias casas. Sobre o processo de normalização, Silva afirma que: Normalizar é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Paradoxalmente, são as outras identidades que são marcadas como tais. Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, “ser branco” não é considerado uma identidade étnica ou racial. Num mundo governado pela hegemonia cultural estadunidense, “étnica” é a música ou a comida dos outros países. É a sexualidade homossexual que é sexualizada, não a heterossexual. A força homogeneizadora da identidade normal é 16 diretamente proporcional à sua invisibilidade (2000, p.83) . Em outras palavras, no espaço escolar, religiosos são os outros, os católicos são os “normais”. Em linhas gerais, o catolicismo se expressa nas instituições educacionais de três formas distintas e complementares: a primeira de maneira institucionalizada, a segunda de forma objetivada e a terceira de forma incorporada. Cabe destacar aqui um esclarecimento: as categorias estado institucionalizado, estado objetivado e estado incorporado são usados nos trabalhos de Pierre Bourdieu (1986)17 para explicar como se manifesta o capital cultural no processo de diferenciação e hierarquização do desempenho escolar de crianças de diferentes classes sociais. Aqui essas categorias, no entanto, são tomadas de empréstimo apenas como forma de designar como se manifesta o catolicismo nos estabelecimentos educacionais. O catolicismo se expressa de maneira institucionalizada por meio de nomes dos estabelecimentos de ensino. Em Belo Horizonte, a quantidade de escolas com nomes de santos e sacerdotes católicos é surpreendente. Das 189 escolas, dezenove possuem alguma referência. Eis aqui a título de ilustração alguns nomes: E. M. Nossa Senhora do Amparo, E.M. Padre Marzano Matias, E.M. Cônego Siqueira, E.M. Cônego Raimundo Trindade, E.M. Padre Guilherme Peterson, E.M. Padre Francisco Moreira, E.M. Edeimar Massote, etc. Há aqui dois pontos curiosos: o primeiro diz respeito à inexistência de estabelecimento que possua nome de orixás, pai-de-santo, médium, rabino ou pastor evangélico. O segundo é o fato de que, para boa parte da população, a existência de nomes de outras religiosidades causaria estranhamento. Certamente, a naturalização de nomes escolas que tenham alguma referência Católica ocorre em função do passado colonial e imperial do Brasil. A forma objetivada de expressão do catolicismo nos estabelecimentos educacionais se manifesta de três maneiras, a saber: em primeiro lugar, por meio de inscrição de símbolos religiosos no espaço escolar. Tanto a presença do crucifixo e da imagem de Nossa Senhora quanto de grutas e oratórios demarcam, de forma objetiva, a opção religiosa da 16 Cf. SILVA, Tomas Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. 17 Cf. BOURDIEU, Pierre. Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1986. 8 escola. Em segundo lugar, por meios de rituais pedagógicos: em muitas escolas, principalmente as que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, têm como prática rezar o Pai Nosso, sob a alegação de que se trata de uma oração universal. Outro evento escolar que a religiosidade Católica se manifesta de maneira bastante forte é a formatura: geralmente, essa solenidade abarca três fases: colação de grau, baile e missa, podendo, eventualmente, ser realizado um culto ecumênico. Entretanto, é no mês de maio, quando algumas escolas celebram a coroação de Maria e na Festa Junina, quando alguns professores confeccionam materiais com dizeres viva São Pedro, viva São João e viva Santo Antônio que a religiosidade Católica se apresenta, no interior da escola, de maneira mais visível. Em terceiro lugar, por meio do tempo escolar. Como se sabe, o ano letivo é estruturado tendo como referência o calendário que vigora no Brasil, o que significa dizer que em feriados religiosos (Semana Santa, Corpus Cristhis, Dia da Padroeira do Brasil) não há aula. A forma incorporada de manifestação do catolicismo nos estabelecimentos educacionais acontece das seguintes formas: ao fazer o sinal da cruz ou invocar nomes de santos em determinada situação cotidiana, os profissionais da educação estão assumindo publicamente sua opção religiosa Católica. Entretanto, cabe destacar aqui que outras religiosidades se manifestam na escola dessa forma. Há dois trabalhos de Oliveira (2003 e 2006) que demonstram isso: no primeiro, ele estuda os cultos (músicas e pregações) realizados por jovens pentecostais em uma determinada escola noturna de Belo Horizonte durante o intervalo escolar; no segundo, analisa as formas de compreensão das leituras bíblicas durante o período de escolarização. As formas pelas quais o catolicismo se expressa no interior das escolas públicas de Belo Horizonte constituem aquilo que os estudiosos denominam de currículo oculto, ou seja, um conjunto de práticas e rituais escolares que informam determinadas saberes e crenças, sem que sua intenção pedagógica tenha sido explicitado ou planejado. Num certo sentido, o currículo oculto está diretamente relacionado às vivências culturais vivenciadas nas escolas. Nas palavras de Silva (2001, p.79): “o currículo oculto ensina através de rituais, regras, regulamentos e normas. Isso porque os alunos aprendem através de conceitos, divisões e categorizações explícitas ou implícitas que ordenam o espaço escolar”18. Dessa forma, pode-se afirmar que apenas um tipo de religiosidade é legitimado nas Escolas Públicas de BH, o que contraria a formação de muitos alunos, pois a cada década o catolicismo perde fieis. De acordo com o IBGE, o número de Católicos dessa cidade passou de 80,09% em 1991 para 68%,84 em 2000. De certo modo, pode-se dizer que essas mudanças têm repercutido no contexto escolar. Nos últimos anos, o horário de intervalo em determinadas escolas noturnas da Regional de Venda Nova, em Belo Horizonte, tem sido redefinido por alguns jovens pertencentes ao pentecostalismo. Nesse momentos de encontro, além de cantar e orar, esses alunos procuram fazer proselitismo junto aos demais colegas da escola. Sabe-se também que, não raro, certos saberes e atividades escolares, como a teoria da evolução e festas juninas, são contestados por esses alunos, por contrariarem suas convicções religiosas. Como destaquei em minha dissertação de Mestrado, esse fato tem provocado estranheza dos professores em relação a esses jovens: professores que, em reunião, definem, de modo ambivalente, esses pentecostais. Por um lado, eles têm sido caracterizados como exemplos de comportamentos estudantis que devem ser seguidos, pois, durante as explicações, ficam, geralmente, em silêncio e procuram, no momento dos exercícios propostos, realizá-los prontamente. Por outro, para explicar as causas da discordância desses estudantes em relação a certos saberes e experiências escolares, os professores utilizam, via de regra, expressões do tipo “eles usam viseiras”, “eles são fanáticos”, “eles são alienados”, “eles sofreram lavagem cerebral de suas igrejas”, “eles são fundamentalistas”. Além disso, presenciei o controle direto da identidade pentecostal tanto por parte dos colegas quanto por alunos e professores. No primeiro caso, a expressão 18 Cf. SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 9 recorrente era a seguinte: “irmão, você não está dando testemunho de Cristão”; no segundo caso, a expressão era outro: “você nem parece crente”. De qualquer maneira, o que estava em jogo era o controle moral e comportamental do jovem. Cabe destacar aqui que não existe, no currículo explícito das Escolas Públicas de BH nenhum momento para se refletir sobre a espiritualidade dos educandos, nem sobre o lugar da Religião na atualidade. Nesse aspecto, pode-se dizer que a ausência de um estudo sistemático sobre as religiosidades acabam gerando o que os especialistas designam como currículo nulo (o que é calado, omitido no processo de ensino/aprendizagem). Como destaca Amaral (Salgado e Amaral, 2008, p.35)19, tanto o currículo oculto quanto o currículo nulo “podem influir no currículo formal e, especialmente, no currículo real, gerando preconceitos e discriminações que devem ser explicitados e superados”. Considerações finais A supressão da disciplina Ensino Religioso do currículo escolar da Rede Pública Municipal de Belo Horizonte não significou a vitória da laicidade. Pelo contrário, em muitos casos, as escolas mantiveram rotinas e práticas Católicas. Além disso, outras formas de expressão religiosas “invadiram” os estabelecimentos de ensino, colocando em xeque certos conhecimentos e atividades escolares. Para superar esse limite educacional, proponho a re-introdução do Ensino Religioso. Não se trata, no entanto, de uma disciplina confessional e proselitista, como na década de 1980. Agora, ela tem a função refletir sobre a cultura religiosa. Segundo Jean Paul Willaime20 (1998), o ensino de cultura religiosa não tem por objetivo suprimir o caráter laico e secular da escola. Pelo contrário, trata-se apenas de reconhecer que as religiões, de modo geral, fornecem, por meio de seus sistemas simbólicos, orientações para condutas sociais da vida, dando sentido à existência de milhões de pessoas e que o desconhecimento desse fato pode gerar intolerância religiosa. Partindo do pressuposto de que, para compreender o outro, é preciso conhecê-lo, a disciplina Ensino de Cultura Religiosa estudaria não somente os símbolos, os mitos e ritos dos diversos grupos religiosos, mas também os grupos que negam a existência de Deus e os “Sem-religião”. Ao propiciar aos educandos contatos com diferentes crenças, estaremos criando condições para que se conheçam símbolos e significados, com quais os diversos grupos sociais, dando sentido à sua existência, construíram, historicamente, o mundo Ocidental. Talvez, longe de ser ameaça à escola laica, a disciplina de Ensino Religioso possa contribuir na construção de uma Escola Pública inclusiva e plural, contribuindo, assim, para formação de professores capazes de dialogar com as diferenças socioculturais, certos de que o diferente não, ipso facto, é inferior, nem perigoso. 19 SALGADO & AMARAL. Manual de Orientações Gerais do Educador do Pró-Jovem Urbano. Brasília: SECAD, 2008. 20 Cf. WILLLAIME, Jean Paul. École et culture religieuse: Présentation. REVUE FRANÇAISE DE PEDAGOGIE: École et culture religieuse. Nº125 – octobre-novembre-décembre, 1998. 10