Do sexual e do político em Elvira Riveiro Tobío 1. Será que, como queria Lacan, “a mulher é o sintoma do homem” (lembre-se, por exemplo, o célebre “A mulher não existe”)? Pode-se dizer, em resumo, que existe uma indeterminação do significante “mulher”? Por que razão é concedido tão grande privilégio à tese do enigma da “insatisfação” feminina? O que pode significar a feminilidade enquanto diferença? Como é que se pode falar de uma assinatura sexuada do mundo-mulher? Que enuncia, para usar um termo em voga, a verdade do desejo? Convém lembrar igualmente o “feminino arquetípico”, (in)apreensível? Que recebeu desde sempre a definição canônica na maternidade? O gozo em excesso? O prazer ao seu para além? Será que o sexo é o elemento definidor e distintivo que divide poetas de poetisas e lhes confere um tipo de escrita específico e de mentalidades diferentes? 2. Elvira Riveiro Tobío - jovem poetisa galega natural de Cerponzóns, Pontevedra, 1971 - , é hoje um exemplo maior da afirmação freudiana de que as mulheres não sublimam. O seu poemário Andar ao leu (Tambo, Pontevedra, 2005) patenteia as mediações do desejo: a dialéctica do sexual e do seu “expoente”, a líbido, como base do que conhecemos de Eros. Pressupõe uma sexualidade transgressiva e ambivalente - na (des)intricação das pulsões - a partir de indícios indirectos, parciais ou dispersos, permanentes e inapagáveis? Já o próprio vocabulário é testemunho da metaforização do sexual (e dos seus prolongamentos pulsão e inconsciente). Sendo assim, compreende-se melhor esse primado concedido ao erotismo: metonímia do desejo, metáfora do prazer, oxímoro do gozo? Uma poética onde se exorcismam as “cadeias de eros”? Os impasses do gozo? Foi labor espiñoso exorcizar a besta andar ao leu sobre pétalos ardentes comer na man que te escorrenta (p.59) Constatamos mais uma vez esse pendor de “estranhamento” e de “insaciabilidade” de uma escrita, conjugada no presente, - amálgama do pulsional e do sexual na sua riqueza fenomenal - votada à volúpia e ao afecto: as feridas do simbólico. Todo um jogo de projecções cruzadas do gozo - como tal - e o desejo e a sua incompletude: a fugacidade do sentimento? Se vou e me desprendo de adobíos qué ficará senón tanta nudez, ao leu irán tripando os sentimentos a esfera do amargo, o berro inútil. Se vou e me descobren e me rendo cun mollo de afectos-tesouros pendurados hei volver, de certeza, á matogueira que me agarda co refuxio e a gorida (p. 15) Ao examinarmos este poemário vemos que é possível dividi-lo em “constelações temáticas”. Assim será possivelmente. Seu verdadeiro valor reside na exaltação de Eros. Do amor, signo do impossível? “In praesentia”? Irremediável? Heteros? Xermolaches codesos floridos pola boca, meu cazador, e estraloques para verter fluídos que agora deixo escorregar - sen temor – para que me vexas en postura ergueita irta de pel de ancas tesas e para ser angueira mol onde recales (p.12) Impõem-se algumas observações sobre esta escrita como auto-travessia do corpo, ou seja, da “rendição sexual”. Óllame ben, o meu sexo amorea cántaros de melindres e a dozura desbócaseme entre as coxas, olla estas tetas como abruños de río aboiando na fartura do viño novo, todo: O ventre, corgo dos estíos fecundos, as mans como pucharcas do desexo… Porque ti relambes a coiraza eu renego cadora do teu peito (p. 34). Há, parece, como que uma inclinação “natural” dos poetas que tendem a exaltar por toda a parte e sempre a rebelião e a revolta. Porque não conseguimos libertar-nos da consciência autoritária e da mentalidade tecnológica-hierárquica que apenas se mostrou capaz de favorecer o complexo militar-industrial e as guerras? Será mesmo possível falar do sentido e da necessidade do absoluto? Da utopia (o que não tem lugar)? Da ética mínima? Se acaso chega a revolta e aluma fachos abondo para espertar a gorxa entumecida, o letargo pobre, daquela é hora de encherse a boca, agatuñar o mastro da coraxe, e bradarlles aos que hibernan in aeternum: desventurados os mansos porque herdan o triste ermo da morna, mísera e triste vasalaxe, benaventurados os que acreditan na utopía pois ela é a matriz, matria, conforto que nos gorece, na contenda, da friaxe, que na derrota nos ampara da fatiga (p. 38) No poemário em análise aborda-se “leviatan” que se impõe aos homens como força determinante e impõe as suas exigências a todo o corpo social. Podemos, pelo menos, assinalar - num rápido balanço de leitura - a crítica ao conformismo e ao pensamento convencional: a ordem disciplinar e o rigor das convenções burguesas. Seria necessário pôr aqui muitas interrogações sobre o pensamento - um tanto catastrófico - do final dos grandes ideais colectivos (incluindo o espaço público). E, todavia, estamos prontos a reconhecer a originalidade do pensamento de Braudilard que constatou o fim do social. Referimo-nos constantemente à ética desta poesia - na qual se pode adivinhar, tal como em Alejandra Pizarnik, o confronto com a voz da doxa, a opinião. Na versão de Alain Finkielkraut o século XX foi o século do “sofrimento inútil” (ou, melhor ainda, o século do triunfo sangrento da história sobre a dignidade). Vários poemas políticos são, sob este aspecto, deveras significativos. Se houbese lexións a dominar a dialéctica da liberdade, Ese vocábulo crebado, Como quen domina o espazo aéreo da infamia, Por onde queira que ollásemos El A aiún, Monrovia, Freetown, Kinshasa… Sorrisos habería como mazarocas Como queira que Grozny, Mogadiscio, Colombo, Skopia.. Amencesen Tralo escuro. Se houbese quen fose de resistir eterno espanto Podería reptar polas rúas de Bagdad e descubrir que alí, A rente as fendas, O espanto eterno reverte entre o cascallo (p. 41) No caso de Elvira Ribeiro, um dos elementos que tornam particularmente interessante a sua poesia é a “agregação”da loucura ou extravagância: a causa amante. Sem pretender examinar com seriedade o seu livro Andar ao leu - a sua economia textual ímpar - teremos que fazer referência a uma mátria- galega de que compartilha “momentos” ou “níveis”. Aqui, a “última instância” será talvez a história e as histórias, os sulcos da linguagem “feminina”. Falarei na lingua de Maria Peres, a Balteira, musa prostibularia e tecedeira de cantigas coa quentura por entre as coxas. Falarei na lingua das irmandiñas que arrebolaran con forza berros de liberación aos pais da tiranía, falarei bidueiro, falarei croio, sarabia, laxe, seara, burato, morno, sistema de signos, símbolo da memoria que esmorece. Falarei na lingua de Rosalía, de Xaquina Trillo, De María Mariño Carou, a lingua renegada da meniña Carolina Otero violada no camiño, a lingua da miña avoa, canteira anónima, arxina da Terra de Montes, labradora de sucos na pedra gra e nas consciencias de todas as que soñaram ser amazonas da linguaxe (p.45) É, pois, conveniente fazer referência à sua afinididade com os proscritos (os marginalizados da cultura e do anti-sistema). Assim, pois, o que constitui o “eterno feminino”, em contrapartida ao carácter masculino da cultura, convertido em oposição contra a dominação e a exploração? Não será a poetisa Elvira Riveiro Tobío - para utilizar alguns “protocolos de leitura” - uma das (nossas) amazonas da linguagem? Pela rara exigência de busca de uma essencialidade humano-feminina? Podemos, pelo menos, recordar - num rápido balanço histórico, das últimas décadas, na Galiza, - um fenómeno bastante curioso, ou seja, o renascimento de uma sensibilidade poética no feminino de tal modo vasta que constitui um fenómeno, em si próprio, diferente do que se tem verificado em Portugal e no mesmo período. Alexandre Teixeira Mendes http://incomunidade.blogspot.com, 29 de maio de 2006