Encontro interdisciplinar: O herói que queremos Roney Freitas (cineasta) Se o cinema comercial de ficção predominante consegue ainda apresentar o herói como o homem americano que ascende sozinho para salvar o mundo de uma iminente destruição, um outro tipo de cinema que não deseja seguir essa fórmula (dentre os vários cinemas possíveis que infelizmente não conseguem se estabelecer no mercado com mesma expansão) vem a problematizar e até a indefinir o que seria o herói atual – não só no cinema, aliás, mas algo que se estende a todas as narrativas. O herói hollywoodiano consegue ainda ser o protagonista de questões preto-no-branco, o ser humano notável da submissão autoconquistada que nos protege de um tirano acumulador do benefício geral, oferecendo sua vida por algo maior que ele mesmo. Num modelo dramático clássico, herói é aquele que se retira da cena mundana, inicia uma jornada de conflitos – na qual muitas vezes vivencia o amor pleno (configurado majoritariamente como um relacionamento heterossexual) – para depois retornar com um benefício maior à sociedade. Um modelo clássico revisitado por narradores de todos os tempos, esquadrinhado por muitos teóricos que tratam de narrativas de ação não só em filmes, mas também em romances, contos, fábulas e mitos. Assim, se o herói é o indivíduo que se aparta da sociedade para então retornar a ela, o leitor ou ouvinte é por oposição o “não herói”. Pertencente ao grupo que constitui a sociedade, guiado por ações regulamentadas socialmente além do individualismo do herói solitário, está longe de superaventuras, de combates com vilões malignos superpoderosos. O espectador é um ser humano normal, sem poderes sobre-humanos ou senso de justiça inabalável. Estabelece-se em grupo, não apresenta o purismo de um arquétipo, não atinge as ações ideais para o heroísmo: tem um impulso para o heróico, mas não a habilidade para se engajar à trajetória, necessitando da personagem que o faz e o representa. O ser humano é falho, corruptível, incoerente e fraco muitas vezes. Sem saber ao certo suas escolhas, cheio de dúvidas ao fazer seu destino, ele busca e necessita de modelos de caminhos numa vida que se apresenta muito mais fragmentária e caótica. Mas é justamente por ele que vem o conceito e o modelo de herói porque é através de sua escuta atenta e consequente incorporação da narrativa que o “não herói” diferencia o que é heróico do que não é. É quem o define temporalmente, a cada novo contexto de recepção e que, no recorte de um tempo – o tempo finito da narrativa –, organiza fragmentos do continuum da vida numa trajetória especial. A definição de herói é, portanto, incompleta se percebida apenas como um personagem arquetípico altruísta, guiado por ideais nobres, exemplo moral entre o divino e o humano, ou apenas como uma jornada de separação-iniciação-retorno, como núcleo do “monomito” definido no estudo de Joseph Campbell em seu livro O herói de mil faces. O herói deve incluir ambos, o personagem e a ação, numa definição que não se completa até que estes dois elementos se concretizem em uma narrativa, a ser ouvida ou assistida por um espectador e incorporada a seu sistema de crenças. Por isso, refletir sobre o herói que queremos hoje no cinema é refletir sobre o campo de recepção das produções contemporâneas, seus modos de exibição, situar o cinema numa perspectiva histórica, estudar o legado da imagem em movimento há mais de 115 anos, e seu uso aliado à exploração do som: ter consciência de tudo o que foi experimentado desde os irmãos Lumière até agora. Não há um modelo milenar inabalável a não ser o que vem reapresentado por uma forma atual, reinventada na sensibilidade do cineasta que propõe um arranjo novo para seu tempo. Essa sensibilidade do artista, que mais percebe o novo em sintonia com o mundo do que o inventa, é o caminho para a resposta inatingível do herói que queremos. Inatingível porque é mais uma busca do que um fim, pois, assim como o herói, tal pergunta não terminará com a volta de um elixir, sempre haverá um novo a buscar para a melhoria da sociedade, do cinema e do mundo. O que faz o herói é o movimento, sua ação organizadora no devir do tempo, logo infinito e inalcançável se buscado como um arco único maior, mas possível pouco a pouco de modo múltiplo em pequenos arcos, em trajetórias que se sucedem e se desenham numa grande espiral cósmica sem fim. E assim é também que o herói se constitui na dinâmica de nossa psique, no ciclo de nossas vidas, na compreensão de nosso ego que amadurece pelos meios da vida contemporânea e passa a compreender e incorporar em respeito “o outro”. O desafio do herói moderno hoje é o próprio homem, que, com sua ciência, sua linguagem, seu amadurecimento filosófico, artístico e religioso, transferiu prodigiosamente o ponto focal do milagre para a humanidade (não mais o mundo animal, nem o mundo vegetal, nem o milagre das esferas percebido por conceitos de uma astrologia arcaica como percebíamos antes, em contato com as mitologias primordiais). Como diz Campbell no livro supracitado: “o homem configura-se como uma presença estranha com a qual devem as forças do egoísmo chegar a um acordo, presença por meio da qual o ego deve ser crucificado e ressuscitado e a cuja imagem a sociedade deve ser reformada. O homem entendido não como 'Eu', mas sim como 'Tu', pois nenhum dos ideais e instituições temporais de qualquer tribo ou raça continente classe social ou século, sejam quais forem, pode configurar-se como a medida da maravilhosa existência divina inexaurível e multifária, que constitui em todos nós a vida”. O herói de hoje, portanto, deve ser subvertido em seu modelo clássico e pensado por esta dinâmica que realmente o constitui. Deve ser fissurado, questionado no pensamento do ocidental que não mostra tanto sentido no grupo e calca tudo no indivíduo – como nos faz acreditar o cinema comercial americano majoritário, onipresente, que, mais do que dizer “Você consegue”, diz, subliminarmente, e perversamente, “Você deve!”, a fim de manter o sistema capitalista que o sustenta. Hoje o sentido é totalmente inconsciente. Não sabemos o alvo para onde caminhar. O pathos que antes era claro no protagonista da tragédia grega e que acompanhávamos até a sua resolução catártica, hoje é diluído. Sentimos uma força nas personagens de uma trama, mas não sabemos ao certo o que as move como pessoas. Talvez o herói que precisamos (não necessariamente o que queremos) seja o que saiba lidar neste novo caminho, alguém muito mais próximo de nós mesmos hoje, nos dilemas e fragmentos da vida no seu dia a dia comum. O “não herói” que em sua busca, nas escolhas de sua vida, se reencontra melhorado, encontrando e atingindo em si o herói que queremos. 1 2 In CAMPBELL, Joseph; O herói de mil faces, pág. 375-376, editora Cultrix