EMÍLIO RIBAS – UM PAULISTA QUE HONROU A SUA TERRA
José Augusto César Salgado
Conta-nos Rui Barbosa, na sua memorável conferência sobre Oswaldo Cruz, que, ao ser convidado a
falar do grande higienista brasileiro, procurou eximir-se do honroso encargo, por não se reconhecer capaz
de tratar de assuntos científicos especializados, inerentes à personalidade que lhe serviria de tema, mas
alheios à sua seara.
“Como – objetou Rui Barbosa – descrever os trabalhos de Oswaldo Cruz, caracterizar-lhes a expressão,
medir-lhes o alcance, tomar-lhes o relevo, estimar-lhes os resultados, sem entrar pela região dessas
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ciências, em cujo serviço viveu e ganhou os louros de sua vida?”
Se Rui Barbosa assim se manifestou, qual deveria ter sido minha resposta a quantos, generosa mas
desavizadamente, se lembraram de meu nome para a inauguração do ciclo de palestras, em que, mais uma
vez, nesta cidade, será exaltada a obra de Emílio Ribas?
Entretanto, não relutei. Fiz ouvidos moucos aos argumentos de minha incompetência e aquiesci, de
pronto, em aceitar o desvanecedor convite.
Que motivos me levaram a esse atrevimento?
Talvez, a voz da terra e a voz do sangue. Sou, como Emílio Marcondes Ribas, filho desta nobre cidade
de Pindamonhangaba. Paroquianos ambos da velha matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, onde
recebemos o batismo cristão, nossas origens se entrelaçam e se confundem na linhagem dos Marcondes,
que deita raízes na Sereníssima República de Veneza, pátria daquele nosso remoto ancestral, Dionízio
Maricondi, descendente de “soggetti illustri” “nato nella contrada di San Leone” e paroquiano da igreja de
São Bartolomeu.
Dir-se-á que esses vínculos não atribuem autoridade para falar do eminente cientista.
Não o contesto. Mas, – e eu o ponderei a mim mesmo como a escusar-me da ousadia – minha tarefa se
limitará a respigar na farta messe dos que vêm estudando, sob múltiplos aspectos, a personalidade de
Emílio Ribas. Pois, não é certo, que na sua bibliografia se enumeram cerca de cem trabalhos?
Assim, na falta de recursos próprios, eu iria tomá-los, de empréstimo, na fazenda alheia.
Terei errado? Indagação ociosa, quando aqui estou. E a exemplo de certo escritor francês, afeito a
garimpar além de seu parco terreiro, só me resta repetir:
“Je prends mon bien ou je le trouve”.
Consequentemente, nada de inédito se encontrará na minha palavra. Esta será, apenas, o eco de vozes
mais autorizadas.
Pindamonhangaba, que ostenta entre seus títulos os de “Princesa do Norte” e “Cidade Imperial”, pode
atribuir-se, também, o de “Berço da Inteligência”.
Historiadores e cronistas, nacionais e estrangeiros, já lhe assinalaram, desde seus primórdios, essa
característica que a singulariza, através do tempo.
Emílio Zaluar, enamorado dos encantos desta cidade deu-lhe a primazia entre todas as de seu roteiro de
viagem, como se vê no livro “Peregrinação pela Província de São Paulo”. “Nesta terra de predileção –
escreveu ele – ao lado da pompa de uma natureza luxuriante acelera-se o desenvolvimento material e brota
2
como espontâneo o talento e o gênio de seus filhos”.
Afonso de Taunay, ao prefaciar o mesmo livro, na edição comemorativa do IV Centenário de São Paulo,
sublinhou os encômios do historiador luso, com a explicação materialista de que o fastígio desta cidade era
apenas um milagre do café. No meu opúsculo, “Pindamonhangaba, Cidade Imperial”, pedi vênia para
discordar do Mestre:
– Milagre do café? Não. Se assim o fosse, outras cidades mais ricas em produção cafeeira teriam
superado socialmente o burgo dos irmãos Leme. A causa da maravilha, que tanto impressionou o autor da
“Peregrinação pela Província de São Paulo” estava na raça, naquela “gente de prol”, que povoou a primitiva
freguesia, destacada do feudo da Condessa de Vimieiro.
Razão tinha Emílio Zaluar, ele que soube louvar tão alto os primores dessa terra e que bem merece, por
isso, a consagração de seu nome, numa das ruas da cidade.
Agora, vai falar o publicista alemão Maurício Lamberg: “Essa cidadezinha tem algo de particular que não
se encontra em outros lugares semelhantes e que eu sentia sem poder explicar. Os habitantes parecem
estar mais adiantados intelectualmente do que outros de velhos centros idênticos que eu visitara”.3
Foi o nosso Monteiro Lobato, por vezes irônico, mas sempre perspicaz nos seus juízos, quem deu a esta
cidade o epíteto de “Terra Roxa do Talento e da Aptidão”. E disse mais: “Pinda oferece um fenômeno
1
Rui Barbosa. “Elogios e Orações”, págs. 162-163, Rio de Janeiro, 1924.
Emílio Zaluar. “Peregrinação pela Província de São Paulo”, pág. 92, São Paulo, 1952.
3
“Apud” Athayde Marcondes. “Pindamonhangaba através de dois e meio séculos”, págs. 405-406, São
Paulo, 1922.
2
notável no meio de outras cidades de sua zona, tal qual Campinas na sua; e esse fenômeno é o entranhado
culto da educação de seus filhos.
Constituiu-se em seu seio uma verdadeira aristocracia intelectual e do enxame de representantes com
que dotou as carreiras liberais muitos alcandoraram o vôo, fugindo do ambiente estreito da notoriedade
urbana para o céu desafogado das celebridades nacionais.
E essas glórias “Pinda não as deixa de lado, azinhavrando à pátina do olvido, antes as cura com amor, e
nítidas as traz constantemente na memória e no coração – como num panteon vivo”.4
Emílio Ribas foi desses filhos predestinados de Pindamonhangaba, que “alcandoraram o vôo”. E, como
poucos, ele soube honrar a sua terra.
Já se disse – e muitas vezes – que ele foi um precursor no campo da medicina sanitária. E de fato o foi.
Se tivéssemos de eleger um título para melhor o qualificar, penso que o mais próprio, seria o de
“Bandeirante da Higiene Brasileira”.
O mérito do precursor é destacar do emaranhado do problema o fio de Ariadne, que o conduzirá a
regiões ignotas e insuspeitáveis aos espíritos comuns.
O precursor é como uma antena sensibilíssima, apto a captar vozes inaudíveis, vindas de mundos
longínquos. Ele se assemelha ao poeta, “capaz de ouvir e de entender estrelas”.
E porque o precursor se antecipa ao seu tempo e à sua gente, ele é sempre um incompreendido; cerca-o
a indiferença, quando não a hostilidade.
“Vox clamanti in deserto”, ninguém o escuta.
Um dia, porém, a verdade surgirá de onde menos se espera. Ela pode vir das alturas infinitas, nas ondas
do éter, das entranhas da terra, na carcaça de um fóssil, das águas mortas do pântano, nas asas de um
mosquito.
As obras de Emílio Ribas devem ser avaliadas em todo o seu imenso valor a projetar-se além, muito
além dos quadros da medicina profilática e terapêutica, no vasto campo onde se equacionam os problemas
vitais da nacionalidade. Aí, então, entramos no terreno da política, não dessa política mesquinha, que divide
os povos e os cidadãos, em nome de falsos ideais e baixos interesses; mas da política que cuida da
sobrevivência das nacionalidades e da salvaguarda de bens essenciais à personalidade humana. Nesse
âmbito, a política da saúde, que é, por assim dizer, a mais nobre das atividades do homem, pois seu
objetivo é manter a vida, fonte e razão de nossa existência.
Os artífices dessa política salvadora colaboram na obra de Deus, criador da vida.
A humanidade ainda não aprendeu a pagar o seu tributo de veneração a esses que lhe deram tanto e
receberam tão pouco. Pasteur, que na expressão de um escritor francês, segundo Rui Barbosa, “operou à
semelhança do Criador, suscitando por um ato inicial as leis donde havia de sair o desenvolvimento
5
progressivo do universo” , Pasteur, o sábio, no mais puro sentido do termo, não encontrou lugar na galeria
dos heróis providenciais de Carlyle!
Quando Emílio Ribas deixou a sua clínica no interior de São Paulo, para ocupar o posto de médico
sanitarista, dois fatores contribuíam pra propagar o nome do Brasil lá fora: o café e a peste. Se o café nos
trazia dinheiro, os surtos de febre maligna nos traziam o estigma de uma terra precita, onde a morte se
atocaiava entre os encantos de uma natureza falaz, para cair de improviso sobre criatura inermes, que
morriam sem defesa, como rebanhos imolados à sanha de feras famintas.
O dilema que nos desafiava era pungente: ou o Brasil expungia de seu mapa a nódoa de zona pestífera,
aviso aos navegantes para passar ao largo, ou dentro de pouco, se o mal persistisse, nós estaríamos
isolados do convívio de outros povos, a bracejar em permanente quarentena, abatidos pelo descrédito e
condenados, irremissivelmente, à decadência e à ruína.
Imaginemos a repercussão, na Europa e, sobretudo, na Itália, do fúnebre episódio ocorrido a bordo do
cruzador “Lombardia”, de janeiro a fevereiro de 1896, na bahia do Rio de Janeiro, quando a febre amarelo
dizimou a guarnição dessa belonave da marinha real italiana, enviada ao Brasil, em visita de amizade. Dos
trezentos e quarenta marujos, duzentos e trinta e quatro sucumbiram, entre eles o comandante!
A nau forasteira, que viera de longes mares, carregada de esperanças, balouçava-se, agora, nas águas
compungidas da Guanabara, como sinistro mausoléu.
Arriados os galhardetos alvissareiros que se estendiam entre os mastaréus, subiu na adriça dos sinais
fatídicos uma bandeira negra.
E o “Lombardia” regressou à Itália, envolto nas brumas de seu luto, como carcassa emergente do fundo
de uma tragédia.
No Brasil, no litoral, como no interior, a peste amarela sacrificava periodicamente, centenas de vidas. A
ineficácia dos métodos preventivos e curativos opostos ao flagelo servia a desmoralizar o esforço das
autoridades sanitárias.
4
5
“Apud” Athayde Marcondes, op. cit., introdução.
Rui Barbosa, op. cit., pág. 167.
Sem falar no Rio de Janeiro, e transferindo o exame do problema ao Estado de São Paulo, vamos
encontrar Campinas, sujeita durante dez anos, até 1898, à incidência da febre, com pesado tributo de vidas
e de bens. A praga dissemina-se por outras cidades paulistas, notadamente, Santos, Ribeirão Preto,
Sorocaba, São Carlos, São Simão, Araraquara e Jaú.
Foi em 1895, dentro desse panorama desalentador, que Emílio Ribas deixou sua clínica, em Santa Rita
do Passa Quatro, para o exercício de funções no Serviço Sanitário do Estado.
Ia iniciar-se, nos domínios da medicina pública, uma grande tarefa, em benefício não só de São Paulo,
mas do Brasil. O homem que a providência destinara para o cumprimento dessa nobre missão chamava-se
Emílio Ribas.
As teorias então predominantes sobre a propagação da febre amarela eram as mesmas que ele
aprendera, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com seu mestre de Higiene, Barão do Lavradio.
De acordo com a ciência oficial, aqui, na Europa e nos Estados Unidos, o morbo amarílio se transmitia, ou
pelo contágio vivo, ou por influências telúricas, ou pela ação dos miasmas. O microscópio com que o gênio
de Pasteur havia desvendado os arcanos da microbiologia era um instrumento inútil para os que traziam
nos olhos a trava da rotina.
Embora, já em 1854, Louis Daniel Beaurperthuy, em artigo publicado aos 23 de maio, na “Gazeta Oficial”
de Camaná, houvesse denunciado o mosquito, como o agente transmissor da febre amarela; embora em 14
de agosto de 1881, o iluminado Carlos F. Finlay houvesse apresentado à Academia de Ciências Médicas,
Físicas e Naturais de Havana a sua tese sobre o mosquito como agente transmissor da febre amarela, os
centros médicos da época se obstinavam em negar crédito às novas idéias. Só em 1900, foi que Finlay,
“esse maluco”, no apelido desdenhoso de seus detratores, logrou o reconhecimento de sua teoria, pela
comissão médica-militar norte-americana, presidida pelo Major Walter Reed.
Emílio Ribas não esperou tanto para se convencer de que o mosquito era o único agente transmissor da
febre amarela. Sua intuição divinatória já lhe fizera perceber o caminho certo, em regiões onde não
penetravam vistas de menor alcance.
Em 1896, Ribas já não acreditava na transmissão do morbo de homem a homem. Encarregado, naquele
ano, de dirigir os trabalhos de extinção do surto amarílico, em Jaú, viu-se obrigado, por circunstâncias
extremas, a abrigar crianças desamparadas, órfãos de febrentos, nos hospitais, onde se achavam
internadas inúmeras vítimas da terrível epidemia. Então, foi-lhe dado observar que – palavras suas – “ou as
crianças vinham infeccionadas da cidade e a moléstia se manifestava depois de decorrido o período
habitual de incubação, ou elas não contraiam mais a febre amarela depois de passados cinco dias de
entrada para o hospital, apesar do avultado número de amarelentos ali internados”.
É o preclaro conclui: “Essa observação calou no meu espírito e foi inteiramente contrária à teoria do
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contágio direto da febre amarela, do doente à pessoa sã”.
Anote-se a data: 1896.
Quatro anos antes da confirmação da teoria de Finlay, Emílio Ribas estava na esteira do “culex”, como
agente transmissor da febre.
Eis um fato de extraordinária importância a mostrar que o sábio paulista teria chega às mesmas
conclusões de seu colega cubano, por intuição própria. Não há exagero em dizer-se que Ribas,
independentemente de Finlay, acabaria alcançando o êxito por ambos entrevisto.
Acentue-se, ainda, que a teoria de Finlay era repudiada pelos expoentes da medicina daquele tempo.
Para tanto contribuira o equívoco inicial do mestre de Havana ao atribuir ao “culex” e não ao “stegomya
fasciata” ou “aedes Aegypti” a transmissão da doença.
Entre nós não se dava crédito à teoria havanesa. Houve até quem aqui escrevesse: “Estão atraindo o
ridículo sobre o Brasil, nas asas de um mosquito”.
Pereira Barreto, uma espécie de pontífice da medicina provinciana, afirmava que o elemento exclusivo
da propagação da febre amarela era a água. Admitia o mosquito como veículo secundário, provindo de
mananciais infectados e não do homem doente.
Nesse meio de hostilidade, ignorância e incompreensão, Emílio Ribas lutava só, com a sua crença e
alguns raros discípulos.
Os céticos, à maneira de São Tomé, não se renderiam sem tocar na chaga.
A prova que poderia convencê-los não seria uma simples experiência de laboratório. Os que a ela se
submetessem iriam jogar a vida.
Que importa? Não é assim nas batalhas em que os homens morrem por um ideal? E haverá ideal mais
nobre do que o de sacrificar-se pela vida da humanidade?
Ribas não hesitou. E inscreveu-se em primeiro lugar na lista das cobaias humanas que não fariam um
gesto para afastar o mosquito portador do vírus mortal. O presidente do Estado tentou demovê-lo. Amigos,
em pânico, argüiram-lhe o extremo risco da empresa. Ribas não cedeu.
– Como poderia permitir que outros atendessem ao grave apelo, eximindo-se de acompanhá-los, ele o
chefe, o responsável de tudo? – Não. Jamais o faria.
6
Emílio Ribas. “Conferência no Centro Acadêmico Oswaldo Cruz”. Cfre. “Ribas, o Pioneiro”, Amadeu
Amaral, “Luzes do Planalto”, págs. 11-12, São Paulo, 1961.
Foi entre fins de 1902 e começo de 1903 que se realizaram as “heróicas experiências”. O assunto,
embora conhecido, é dos que devem ser relembrados como lição de coragem e de sacrifício. Ouçamos a
narrativa de Rubens do Amaral, em “Luzes do Planalto”:
“Para dirimir dúvidas, Ribas escolheu uma comissão composta de Pereira Barreto, adversário, Adriano
de Barros, companheiro, e Silva Rodrigues, eqüidistante, com a incumbência de acompanhar as
experiências, feitas sob o maior rigor científico. Prevenindo as objeções de Pereira Barreto, colheram-se
larvas em Itu, onde não havia febre amarela, e levaram-se, já criados os mosquitos, para São Simão,
assolada pela epidemia. Aí os mosquitos picaram febrentos e foram depois trazidos a São Paulo. Para
receberem sua picada, que podia ser mortal, ofereceram-se seis voluntários: o primeiro foi o próprio Ribas,
que deu o heróico exemplo; o segundo, Adolfo Lutz, seu braço direito, sempre fiel ao mestre; depois quatro
voluntários cuja memória devemos reverenciar: Oscar Moreira, André Ramos, Januário Fiore e Domingos
Vaz.
Simultaneamente, três outros pacientes foram recolhidos a local em que havia roupas maculadas de
vômitos e dejectos de pacientes. Eram três imigrantes italianos recém-chegados, portanto com a melhor
receptividade ao contágio, amplamente informados dos riscos que corriam e que aceitaram
conscientemente. Registremos também os seus nomes: Giuseppe Malagutti, Ângelo Paroletti e Giovanni
Siniscalchi.
Estes três ficaram incólumes, assim se comprovando que não havia contágio direto. Dos que se fizeram
picar pelo mosquito, três se mostraram imunes: Ribas e Lutz, talvez porque, no seu longo contacto com a
febre amarela, tivessem adquirido imunidade paulatina, e Oscar Moreira. Os três outros, Ramos, Fiore e
Vaz contraíram a moléstia, científica e rigorosamente observada. Felizmente, todos sobreviveram à terrível
experiência, merecendo perene gratidão”.7
Estava aberto, conclui o autor, “caminho largo e plano a Oswaldo Cruz”, para o saneamento do Rio de
Janeiro, cinco anos depois.
A bem da verdade, muitas vezes esquecida, é mister que se proclame a prioridade da ação de Emílio
Ribas, no combate à febre amarela, no Brasil. Basta recordar que, em 1904, a terrível epidemia era
considerada extinta em São Paulo. O Rio de Janeiro teria de aguardar até 1908, para que outro sábio de
méritos incontestáveis, valendo-se da experiência paulista, cumprisse a sua obra redentora.
“A glória de Emílio Ribas – é ainda Rubens do Amaral quem o escreve – não ofusca, nem interfere com
a de Oswaldo Cruz. Um foi o pioneiro, que em parte se antecipou a Havana e em parte a seguiu na
Província, limitado o seu âmbito provinciano. Outro agiu na Capital da República, onde sofreu os piores,
duríssimos tropeços, e daí se irradiou por todo o País, na larga esfera nacional. Apesar de Ribas e sem
Oswaldo, não se pode imaginar quantos anos ainda padeceria o Brasil do opróbio da febre amarela, que
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matava brasileiros e desmoralizava o Brasil, prejudicando-o material e moralmente”.
A obra de Emílio Ribas, na sua fase pioneira, apresenta impressionantes testemunhas de que ele,
guiado tão só por sua intuição científica, penetrou na “selva selvaggia”, onde imperava a febre amarela, qual
bandeirante à procura, não de ouro ou de esmeraldas, mas de um minúsculo inseto alado, mais venenoso
do que os répteis peçonhentos das florestas tropicais. E com o mesmo ânimo dos que se embrenharam no
desconhecido para a descoberta de mundos misteriosos, ele caminhou resolutamente por veredas
insuspeitadas, valendo-se de recursos precários, mas assistido pelo senso premonitório de que estava no
caminho certo.
A comprovação desse enunciado, quem nô-la oferece é o próprio Emílio Ribas, ao aludir, em conferência
proferida na época, ao saneamento de Campinas, iniciado em 1896. Eis, literalmente transcrito, o
depoimento pessoal do egrégio sanitarista:
“Campinas foi saneada antes dos estudos de Cuba, graças aos meios profiláticos, depois demonstrados
brilhantemente em Havana, como recursos heróicos na extinção do terrível mal”.
O trecho seguinte refere-se à sua obra em Santos, devastada durante meio século, pelos surtos da
inexorável epidemia:
“Do importante porto de Santos, flagelado há cincoenta e dois anos, a febre amarela desapareceu
também, sob a forma epidêmica, desde 1901, graças à aplicação empírica da profilaxia havanesa, como
atestam vários serviços ali executados e que fatalmente concorreram para grande redução dos agentes
9
transmissores”.
À vista de tais informes, tão positivos e tão autorizados, não há que possa negar a Emílio Ribas, a glória
do precursor. Foi ele, no Brasil, o primeiro a revelar o processo científico que levaria à erradicação da febre
amarela. É quanto lhe basta para que seu nome figure nos anais dos benfeitores da pátria e sua lembrança
jamais pereça, na memória das gerações.
Emílio Ribas não foi apenas o cientista, absorvido por suas pesquisas e isolado do mundo, no recesso
dos laboratórios; não foi apenas o chefe administrativo a ditar ordens de trabalho, sem transpor os umbrais
7
Autor e obra citados, pág. 13.
Autor e obra citados, pág. 14.
9
“Nota biográfica do grande esquecido”, em “A Gazeta” de 2-4-62.
8
de seu gabinete. Ele foi, acima de tudo, um homem de ação, armado de coragem moral e de coragem
física. “Chevalier sans peur et sans reproche”, capaz de lutar em qualquer terreno, com a bravura dos
intemeratos, quando as circunstâncias o exigiam. Vejamo-lo no centro de um acontecimento dramático em
que bem se define a altivez de seu caráter: em 1896, Emília Ribas escrevia, de Jaú, ao diretor do Serviço
Sanitário, alertando-o da situação lastimável em que se encontrava parte da população da cidade, alojada
em casebres infectos, onde viviam também estrangeiros recém-chegados, sem os mais elementares
recursos de higiene. Fale agora o principal protagonista, Emílio Ribas: “O resultado deste estado de coisas
não se fez esperar, e quando o terrível morbo explodia com o seu primeiro caso na rua das Flores, hoje
Marechal Bittencourt, o que foi essa epidemia sabem-nos os desgraçados que viram cair vitimados entes
queridos e eu que tive de repelir, com armas na mão, o plano infame e desorganizador do serviço sanitário,
engendrado pela autoridade policial em exercício que, ao invés de se colocar a meu lado como mandaria o
patriotismo (se ela o tivesse), fugiu covardemente ao cumprimento do dever, para obedecer, servilmente, à
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política tacanha de campanário.
“Tive de repelir com armas na mão...”
Naquele tempo, houve um sábio higienista, que, em dado momento, largou o microscópio e pegou o
fuzil.
Ribas não contou toda a história, por motivos óbvios. Não nos furtamos, porém, à curiosidade de saber
como se precipitaram os acontecimentos até a fase culminante da repulsa armada à hostilidade dos
energúmenos, que investiram contra o sanitarista.
Tudo começou com a remoção compulsória para o Hospital do Isolamento de doentes tratados
clandestinamente por certo curandeiro, cuja ação nefasta vinha causando sérios embaraços às atividades
dos médicos oficiais, sob a direção de Emílio Ribas.
“Daí resultou – o relato consta do trabalho do ilustre higienista, dr. José Antonio Alves dos Santos, “Em
memória de Emílio Marcondes Ribas” – séria agitação popular, e esta se agravou pelo fato de ter a parte
culta e esclarecida da população e a quase totalidade das autoridades desertado do centro urbano,
entregue dessa forma à sanha dos elementos mais ignorantes.
O chefe da Comissão, tocado pela energia da sua mocidade e pelo entusiasmo da causa da saúde
pública, e alertado providencialmente do levante que se preparava, resolveu resistir e obstar os intentos
amotinados, que eram a sua degradante expulsão da localidade e a retirada dos doentes hospitalizados
regularmente. Em face da situação, essa resistência rodeou-se de circunstâncias inteiramente inéditas: o
sanitarista, arvorado em comandante da praça e guerrilheiro, aliciou os presos da Cadeia Pública para
lutarem a seu lado, armando-os com uma dezena de velhos fuzis encontrados na sala da guarda. Com esse
pugilo, formado por tão insólito destacamento, fez levantar trincheiras nas entradas principais do
Isolamento, visado pelos rebeldes; estes, recebidos com tal aparato, perderam o ímpeto inicial e, advertidos
do poder mortífero das “armas do governo”, acabaram por dispersar-se.
Sobreveio então, para o inusitado episódio, um estranho epílogo: aqueles pobres presidiários boçais,
alguns deles fascínoras na extensa região de que Jaú era cabeça, contagiados pela personalidade do
improvisado comandante, com o qual só haviam tomado contato horas antes, devolveram-lhe, uma a uma,
as armas que lhes foram entregues; e, ordeiramente, retomaram seus lugares na prisão, confiando em
vagas promessas de minorações penais que, de fato, foram depois conseguidas para muitos, mas no
momento, não passavam de generosa promessa verbal daquele jovem médico a quem acabavam de
11
servir”
Eis Emílio Ribas, num lance de insuspeitada audácia, a demonstrar a sobrevivência das virtudes
características da velha raça paulista: dignidade, brio, coragem, insubmissão ao arbítrio, espírito de
sacrifício.
Se houvesse, por estas bandas o espírito do civismo, se aqui se prestasse aos nossos heróis autênticos
e não pré-fabricados, o merecido culto, a vida de Emílio Ribas deveria constar das cartilhas escolares e dos
programas educativos dos órgãos de publicidade, para mostrar não só às crianças e aos jovens, mas
também aos adultos, que o Brasil não é, apenas, o país do samba e do carnaval: há outros motivos
certamente bem melhores, para nos orgulharmos de nossa terra e de nossa gente.
É preciso reagir contra a desfaçatez dessa mentalidade seresteira que – “mirabile dictu!” – encontra
expressões de patriotismo nos meneios dos quadris de uma cabrocha, pois já se cantou por aí:
“Guardo cem por cento de brasilidade
Nas minhas cadeira, p’ra cá e p’ra lá”(!).
Ensine-se às nossas crianças que um sábio de Pindamonhangaba, chamado Emílio Ribas, salvou a vida
de milhares de pessoas e outorgou à ciência médica paulista o primado da aplicação de novos e seguros
métodos científicos, na profilaxia da febre amarela, em toda a América do Sul.
10
Emílio Ribas. “Relatório”, enviado ao diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, em 31 de janeiro de 1898.
Cfre. José Alves do Santos. “Em memória de Emílio Marcondes Ribas”, pág. 136, São Paulo, 1964.
11
José Antonio Alves dos Santos, op. cit., pág. 138.
Essa glória imperecível, ele mesmo a reconheceu, ao escrever: “São Paulo, que foi o primeiro a levantar
a nova bandeira do combate, na América do Sul, venceu em toda a linha o inimigo do progresso de nossa
Pátria”.
E prossegue neste comentário em que se evidencia o imenso valor de sua obra: “A insalubridade de
Santos deixou de ser o espantalho de outros países. As tripulações estrangeiras que, apavoradas,
entregavam outrora o serviço de carga e descarga de seus navios mercantes aos nacionais e iam procurar
abrigo longe daquele porto, voltaram a freqüentá-lo sem o menor receio.
Dir-se-ia, em relação a Santos, que o decreto de D. João VI, abrindo os nossos portos ao comércio
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mundial, só se tornou francamente efetivo noventa e três anos depois”.
A atividade benemérita de Emílio Ribas, em favor da terra dos Andradas, não se resume na extirpação
da febre amarela: em 1899, a peste bubônica surge na cidade, sanitariamente indefesa. Nos hospitais
superlotados, os doentes morriam à mingua de recursos médicos eficientes. Ribas acode com as primeiras
providências para circunscrever a epidemia. Vital Brasil, enviado à zona pestífera, contrai a moléstia e,
felizmente, se restabelece graças à desvelada assistência de seu chefe e amigo. Faltava o sôro de Yersin,
antídoto específico, preparado com exclusividade pelo Instituto Pasteur de Paris. Emílio Ribas não hesita
um instante e determina as primeiras providências para a instalação imediata em São Paulo, de um
laboratório soroterápico, destinado à produção do soro de Yersin e de outros congêneres. Estava criado o
Instituto de Butantã que, no decorrer dos tempos, iria transformar-se no mais completo instituto de patologia
humana do mundo. Realização de tal monta não pode ser omitida, no registro das benemerências do
higienista patrício. Se dúvidas houvesse, nenhuma palavra mais autorizada do que a de Vital Brasil poderia
ser invocada. Leiamos o que ele escreveu com referência à epidemia de peste bubônica em Santos:
“As dificuldades encontradas na obtenção do grande recurso de combate e o temor de maior
desenvolvimento da epidemia fizeram gerar, no espírito de Ribas, a idéia de um Instituto de Soroterapia,
capaz de fornecer ao Estado, em primeiro lugar, o soro contra a peste e depois todos os reclamados pela
defesa sanitária.
Homem de ação, mesmo antes de terminada a epidemia de Santos, já havia promovido a aquisição, nas
proximidades da Capital, da propriedade denominada “Butantã”, para a instalação do estabelecimento que
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planejara. O Butantã foi, pois, criação de Emílio Ribas.
Assim falou Vital Brasil, a quem Ribas confiou desde logo a organização do Instituto, posto em que o
novel diretor iria consagrar-se, perante a ciência universal, por seus trabalhos notabilíssimos, no campo de
soroterapia.
Não caberia nos limites de uma conferência a apreciação, ainda que superficial, da obra multiforme de
Emílio Ribas. Diretor do Serviço Sanitário de São Paulo durante dezenove anos, larga e longa foi a sua
atuação em defesa da saúde pública, através dos vários setores daquele departamento administrativo.
Já se acentuou o caráter de pioneirismo de sua atividade científica e a sua irredutível incompatibilidade
com a rotina.
Entre os exemplos citados e outros que poderiam ser aduzidos, em abono desse acerto, apontam-se
suas inovações, nos métodos de profilaxia da lepra. De acordo com preconceitos de ranço medieval,
predominantes na época, os doentes do mal de Hansen deviam ser segregados longe dos centros urbanos,
em lugares remotos, de preferência em ilhas. Esses infelizes, estigmatizados pela desventura, eram como
os parias, intocáveis.
Em contraste a essa doutrina, desumana e anticientífica, se opôs decididamente Emílio Ribas: “Tudo o
que der a idéia de degredo deverá ser contra-indicado, a bem da profilaxia” – escreveu ele. E mais: “É fácil
compreender que ninguém se conforme em ser banido da sociedade, em ficar nas condições de um
enterrado vivo, só porque a fatalidade o fez leproso”.14
Ribas venceu a obstinação dos cientistas retardados e o pavor que inspirava a moléstia. E o AsiloColônia de Santo Ângelo surgiu de suas mãos benfazejas, como uma dádiva a minorar a pena dos
internados.
Que mais se lê, na folha corrida desse “benemérito da humanidade”, na expressão de Clamente
Ferreira? Há ainda algo a acrescentar?
Sim. Ele reorganizou o Serviço Sanitário, remodelou o Desinfetório Central, refundiu os laboratórios de
saúde pública, ampliou o Hospital de Isolamento, criou a Secção de Proteção à Primeira Infância, a
Inspetoria Sanitária Escolar, o Serviço de Profilaxia e Tratamento do Tracoma. 15
Em que tabela burocrática se classificam esses serviços?
A resposta está neste ofício do Secretário do Interior de São Paulo, dirigido a Emílio Ribas, em 1918:
12
Emílio Ribas. “Campanhas Sanitárias”, “O Estado de São Paulo”, de 18-11-1922
o
Vital Brasil. Emílio Ribas, em “Arquivos de Higiene e Saúde Pública”, ano I, n 1, pág. 8, São Paulo, 1936.
14
Emílio Ribas. “Lepra, sua frequência no Estado de São Paulo. Meios profiláticos aconselháveis”, em
“Arquivos de Higiene e Saúde Pública”, vol. XVII, no 91, pág. 29, São Paulo, 1962.
15
Cfre. Humberto Pascale. “A Personalidade Médica de Emílio Ribas”, em “A Gazeta”, de 19-4-1962.
13
“Comunico a V. S. que foi assinado hoje o decreto de sua aposentadoria do cargo de diretor do Serviço
Sanitário. Em nome do presidente e no meu próprio agradeço os bons serviços que, com grande dedicação,
V.S. prestou ao Estado de São Paulo, no desempenho daquelas funções”.
Esse ofício – “mutatis mutandis” – poderia ter sido enviado a um contínuo!...
Referindo ao fato, comentou o Dr. Manuel J. Ferreira: “E ao despedi-lo, o Poder Público, disfarçando
com uma aposentadoria o gesto que lhe indicava a porta de saída, deu-lhe por prêmio de toda a sua vida e
sua obra, a frieza desta notícia”.
Já dizia o Conselheiro Acácio que há de tudo, neste mundo...
Emílio Ribas, ao receber tal ofício, devia ter sorrido. Ele estava imunizado contra a maldade dos homens
e o efeito das peçonhas. Aquela picada de um “culex” oficial não lhe faria mossa.
Se um dia, que está tardando, se erguer na praça pública da metrópole paulista, uma estátua a Emílio
Marcondes Ribas, inscreva-se no pedestal esta legenda inspirada em outra que imortalizou um pugilo de
heróis:
“Raras vezes, tantos deveram tanto a um só”.
Revista do Ateneu Paulista de História, Número 3, Ano III, Setembro de 1966, pp. 25-36
Conferência proferida na Câmara Municipal de Pindamonhangaba, aos 29 de abril de 1966, no ciclo de
palestra promovido pela Sociedade Paulista de Medicina.
Conferência proferida por José Augusto César Salgado na Câmara Municipal de Pindamonhangaba,
aos 29 de abril de 1966, no ciclo de palestra promovido pela Sociedade Paulista de Medicina e publicada na
Revista do Ateneu Paulista de História, n. 3, Ano III, Setembro de 1966, pp. 25-36.
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