UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS –
PPGEL
FERNANDA DA SILVA MACHADO
RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884:
ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS
Salvador
2014
1
FERNANDA DA SILVA MACHADO
RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884:
ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da
Bahia – PPGEL/Uneb como requisito final para obtenção
de grau de mestrado.
Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto.
Salvador
2014
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Machado, Fernanda da Silva
Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas/
Fernanda da Silva Machado. - Salvador, 2013.
135f.
Orientador: João Antonio de Santana Neto.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas. Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2013.
Contêm referências, apêndice e anexos.
1. Barbosa, Rui, 1849-1923. 2. Retórica. 3. Linguística. 4. Escravos - Emancipação - Brasil.
5. Discursos parlamentares - Brasil. I. Santana Neto, João Antonio de. II. Universidade do
Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 808.3
3
FERNANDA DA SILVA MACHADO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do
Estado da Bahia – PPGEL/Uneb como requisito final para obtenção de grau de mestrado.
Aprovada, ________ de ___________________________ de 2014
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof. Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto (PPGEL/UNEB)
___________________________________________________
Profa. Dra. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque (PPGH/UFBA)
___________________________________________________
Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira (PPGEL/UNEB)
Salvador
Mar/2014
4
Dedico este trabalho a meu pai, José (in
memoriam) e a Luzia-mãe, por entender que
eles representam o alicerce de minha
identidade, de minha vida.
5
AGRADECIMENTOS
A Jeová Deus, agradeço por permitir o cumprimento de mais um objetivo, mais uma
superação.
A minha mãe, Luzia, pelo apoio incondicional e por ser a fonte de força para que eu
prosseguisse. Pela preocupação altruísta e eterna com meu bem-estar, por ser, enfim,
literalmente a luz da minha vida.
A minha família lato sensu, tias, primos, irmãos, mães e pais, amigos para toda a hora,
auxílios fortificantes.
A meus amigos de curso, inclusive os que o são desde a graduação, pela resistência à
desagregação, pelos risos, pelo aprendizado derivado do convívio.
A meu amigo Cláudio Ribeiro, especialmente pela revisão do Abstract.
Às instituições Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – Fapesb e ao Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – PPGEL, por acreditarem em minha proposta
investindo nela.
Aos funcionários do PPGEL, Camila, Geysa e Danilo, pelo apoio permanente, pelos
momentos de descontração e pelo profissionalismo.
Aos funcionários da Biblioteca do Instituto de Economia do Centro de Documentação, Lucas
Gamboa – UNICAMP, Mirian Clavico Alves, Diretora de Serviços e Francisco Orlandini,
bem como a Sabrina Pinheiro da Revista Estudos Econômicos – USP, pela seriedade e
solicitude.
Ao corpo docente do PPGEL pelas discussões travadas e por não dissociar valores humanos e
construção de conhecimento.
Aos professores Wlamyra Albuquerque, e à professora Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira e
Gilberto Sobral pelas considerações atentas na fase do Exame de Qualificação e/ou Defesa.
Sou-lhes grata pelo interesse real e sugestões esclarecedoras.
Ao Prof. Dr. João Antônio de Santanna Neto, pela contínua confiança em meu trabalho,
acompanhando-me generosamente desde a fase em que se apresentava como um projeto até
sua concretização em dissertação, generosidade e ponderação essas responsáveis por meu
amadurecimento acadêmico.
Por cada participação discreta que em conjunto (porque toda conquista é conjunta) foram
decisivas para o impulso que é este trabalho.
6
RESUMO
Com a dissertação intitulada “Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no
Parecer ao Projeto Dantas”, intenta-se uma análise que enfoque o caráter argumentativo do
referido Parecer de Rui Barbosa – pelo viés da Retórica e da Semântica Argumentativa,
tomando como principais trabalhos, respectivamente, os elaborados por Chaïm Perelman e
Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958]2005) (que fizeram um exaustivo levantamento de estratégias
argumentativas) e os de Oswald Ducrot ([1969] 1987, [1977]1989, 2003) (Semântica
Argumentativa/ Teoria da Argumentação na Língua) – tomando como amostra o Parecer ao
Projeto Dantas redigido por Rui Barbosa enquanto deputado no ano de 1884. Esse texto de
200 páginas, favorável ao projeto homônimo, também elaborado por ele, previa, em suma, a
libertação de escravos sexagenários sem a indenização dos seus então proprietários. Embora
os principais pontos do Projeto Dantas (1884) tenham sido reformulados na Lei dos
Sexagenários (1885), examina-se o esforço argumentativo no Parecer que enfeixa os pontos
de vista frontalmente colidentes, paradoxais ou gradualmente diferenciados. Trabalham-se
noções como os topoi retóricos e tipos argumentativos perelmianos. Sob o prisma linguístico,
analisa-se o texto ruiano com base naquilo que se considera permanente na ANL, como a
polifonia discursiva com as figuras de locutor e enunciadores presentes nos blocos semânticos
mais representativos do Parecer.
Palavras-chave: Argumentação. Nova Retórica. Semântica Argumentativa. Parecer ao
Projeto Dantas. Rui Barbosa.
7
ABSTRACT
With a dissertation entitled Antislavery’s Rui Barbosa in the Opinion to Project Dantas:
arguments intends an analysis that focuses on the argumentative character of that Opinion of
Rui Barbosa – by the Rethoric and the Semantic Argumentative, taking as main works ,
respectively, the prepared by Chaim Perelman and Lucie Olbrechts - Tyteca [1958] 2005
(which made an exhaustive survey of argumentative strategies) and Oswald Ducrot ([1969]
1987, [1977] 1989, 2003) (Semantic argumentative/Argumentation Theory in Language) –
taking as sample the Opinion to Project Dantas written by Rui Barbosa as a Member in 1884 .
This 200-page text, in favor of the eponymous project, also written by him, provided, in short,
the liberation of sexagenarian slaves without compensation its then owners. Although the
main points of the Project Dantas (1884) have been reformulated in the Sixties Law (1885),
examines the arguments in Opinion wich gathers the views frontally conflicting, paradoxical
or gradually differentiated. Work up notions as rhetorical topoi and argumentative types
perelmianos. Under the linguistic perspective, we analyze the ruiano text based on what is
considered permanent in ANL as the discursive polyphony with the figures of the speaker and
enunciators in semantic blocks more representative of Opinion.
Keywords: Argumentation. New Rhetoric. Argumentative Semantics. Opinion to Dantas
Project. Rui Barbosa.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES (ESQUEMA E QUADROS)
Quadro 01 – Analogias no Parecer ao Projeto Dantas ..................................................................... 56
Quadro 02 – Argumentações normativa e transgressiva ................................................................. 87
Quadro 03 – Encadeamentos do bloco semântico propriedade-indenização ................................. 91
Quadro 04 – Descrição do evento enunciativo 1 ............................................................................... 93
Quadro 05 – Descrição do evento enunciativo 2 ............................................................................... 94
Quadro 06 – Descrição do evento enunciativo 3 ............................................................................... 95
Quadro 07 – Descrição do evento enunciativo 4 ............................................................................... 96
Quadro 08 – Esquema de AI de “escravidão” ................................................................................ 100
Quadro 09 – Esquema de AI de “abolição” .................................................................................... 101
Quadro 10 – Argumentações externas do bloco semântico abolição-humanitarismo................. 103
Quadro 11 – Argumentações externas do bloco semântico escravidão-humanitarismo............. 103
Quadro 12 – Argumentações externas recíprocas .......................................................................... 103
Quadro 13 – Argumentos externos “abolição” ............................................................................... 104
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 11
2 PRESSUPOSTOS RETÓRICOSEM RUI BARBOSA – ANTIESCRAVISMO NO
PARECER AO PROJETO DANTAS .............................................................................................. 20
2.1 RUI BARBOSA – HISTÓRICO ANTIESCRAVISTA .............................................................. 24
2.1.1 Radicalismo e Liberalismo ................................................................................................ 25
2.1.2 Projeto Dantas ..................................................................................................................... 30
2.2 O PARECER EM FOCO ............................................................................................................ 32
2.2.1 Cronologia legislativa emancipatória – contra-argumentos escravocratas .................. 35
3 ARGUMENTAÇÃO NO PARECER AO PROJETO DANTAS – TOPOI RETÓRICOS E
TIPOS ASSOCIADOS ..................................................................................................................... 43
3.1 DIREITO DE PROPRIEDADE EM QUESTÃO ....................................................................... 45
3.2 TOPOI RETÓRICOS NO PARECER AO PROJETO DANTAS ................................................. 47
3.3 VALORES E HIERARQUIASNOPARECER AO PROJETO DANTAS .................................... 48
3.4.1 Socialismo, comunismo e retorsão .................................................................................... 60
3.4.2 Sobre a liberdade restrita .................................................................................................. 62
3.5 OPOSIÇÃO OSCILANTE: O CASO MURITIBA E OUTROS EXEMPLOS .......................... 66
3.5.1 O passado em outras nações/colônias ............................................................................... 67
3.6 A AÇÃO DO ORADOR RUI BARBOSA ................................................................................. 71
4 PARECER AO PROJETO DANTAS: ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA .................................. 73
4.1 ARGUMENTAÇÃOSEGUNDO DUCROT: IDEIAS DE BASE .............................................. 74
4.1.1 “Enunciado” e “frase” ....................................................................................................... 75
4.1.2 “Locutor” e “enunciador” ................................................................................................. 76
4.1.3 “Pressuposto” e “subentendido” ....................................................................................... 78
4.2ARGUMENTAÇÃO “TRADICIONAL” E ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA ....................... 79
4. 3 O ATO ARGUMENTATIVO DA LINGUAGEM .................................................................... 81
4.4 DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES AOS BLOCOS SEMÂNTICOS .................................. 85
5. O PARECER AO PROJETO DANTAS: BLOCOS SEMÂNTICOS E A NEGAÇÃO DA
ESCRAVIDÃO ................................................................................................................................. 90
5.1 O PARECER E A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS..................................................... 90
5.1.1 Encadeamento propriedade-indenização: norma e transgressão .................................. 91
5.1.2 Modificadores realizantes e desrealizantes ...................................................................... 97
5. 1.3 Argumentos internos, externos e suas relações............................................................... 99
6. CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 107
10
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 110
APÊNDICE – LINHA DO TEMPO (MEDIDAS LEGAIS) .......................................................... 115
ANEXO A – “PROJETO DANTAS/RUI BARBOSA” ..................................................................... 116
ANEXO B – O PROJETO ORIGINAL .............................................................................................. 117
ANEXO C – O PROJETO ORIGINAL .............................................................................................. 118
ANEXO D – LEI DOS SEXAGENÁRIOS ........................................................................................ 124
ANEXO E – LEI DO VENTRE LIVRE ............................................................................................. 130
ANEXO F – PROIBIÇÃO DE LEILÕES DE ESCRAVOS............................................................... 134
ANEXO G – PROIBIÇÃO DE PENAS DE AÇOITES AOS RÉUS ESCRAVOS ........................... 135
11
1 INTRODUÇÃO
“Será lícito extrapolar do discurso científico uma imagem de mundo que
corresponda aos meus desejos?” (CALVINO, 1990, p.20)
Pouco contemplado pelos linguistas é o exercício de pensar seu campo de atuação para além
de sua prática acadêmica – quer como um fazer científico em constante processo de
rearrumação teórica, ou seja, como algo que extrapola o cômodo conhecimento antes
adquirido, não cerceado por referências somente eleitas e mantidas por gosto pessoal ou por
uma tradição espistemológica hegemônica; quer por refletir sobre os processos de construção
de saber em sua área, ou ainda por cogitar um diálogo entre teorias já sedimentadas na
universidade e senso comum, entre a cátedra e a sociedade. Isso ocorre porque a prática
acadêmica, de modo reiterado, tem imposto um modelo de trabalho limitado ao uso
instrumental, isto é, não reflexivo, das teorias correntes, em voga por serem prestigiadas num
determinado período (BACHELARD, 1996; RAJAGOPALAN, 2004).
Devido a essa exígua autocrítica, incorre-se num risco de realizar um trabalho hermético, em
que o objeto de análise resulte impregnado por uma visão estritamente pessoal/institucional, o
qual muito facilmente pode se colocar numa escala que vai da inutilidade da pesquisa ao
equívoco ou ostracismo científico (RAJAGOPALAN, 2004; SOUSA SANTOS, 2004). Como
uma tentativa de evitar isso, cabe o uso desta como questão-guia: “Será lícito extrapolar do
discurso científico uma imagem de mundo que corresponda aos meus desejos?” (CALVINO,
1990, p.20), desejos antes acolhidos pelos pesquisadores individualmente ou em grupo,
incluindo-se aí a ciência já naturalizada em senso comum (RAJAGOPALAN, 2004).
Ao trabalhar com as noções interdependentes de ato e pessoa, Chaïm Perelman e Lucie
Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p.337) esclarecem que “quanto mais recuada uma
personagem está na história, mais rígida se torna a imagem que dela formamos”. Mas isso não
quer dizer que a imagem da pessoa se torne imutável, fixa, e sim “rígida”, estável. Há uma
imagem de Rui Barbosa estabelecida para determinado grupo de estudiosos em muito baseada
no mal-afamado episódio da queima de arquivos1 sobre a escravidão, os quais assegurariam
aos afrodescendentes, por exemplo, a elaboração de árvores genealógicas. Ter conhecimento
de sua ascendência, de sua base étnica e cultural, seria algo espoliado de toda a geração de
negros subsequente à incineração desse acervo documental, intencionalmente efetuada. Essa
1
Decisão S/N de 14 de dezembro de 1890: “Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos
relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério Público”.
12
imagem se liga à suposição de que foi pelo cálculo de uma pessoa mal-intencionada, disposta
a efetuar esse suposto apagamento histórico que a destruição se deu. Todavia, essa imagem é
de uma rigidez maleável, pois é relativa, mutável, já que “não só novos documentos podem
determinar uma revisão, mas afora todo fato novo, uma evolução da opinião pública ou outra
concepção da história podem modificar a concepção da personagem”. (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 338).
Nesse estudo, trabalha-se com a hipótese de ato motivado pelo desejo de salvaguarda dos
direitos da geração recém-liberta, hipótese essa que pode se alicerçar no seguinte fato:
quando Rui Barbosa atuava como Ministro da Fazenda do governo republicano e os exproprietários de escravos enviaram-lhe um requerimento (no qual estava expresso o desejo de
formular a possível criação de um banco cujos fundos seriam utilizados como indenização
para si e seus descendentes pelas perdas advindas da Abolição da Escravatura de 13 de maio
de 1888), o então ministro respondeu: “Mais justo seria e melhor se consultaria o sentimento
nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o tesouro.
Indeferido, 11 de novembro de 1890.”(Diário Oficial, 12 de novembro de 1890, p.5.216). É,
somente após esse episódio, que se dá a referida queima de uma seleção de arquivos2.
Fato pouco desprezado, em contrapartida, é o descaso com que os acervos históricos são
tratados nacionalmente, há relatos bem conhecidos de perda de significativa parte do que seria
legado histórico pela inadequação em se armazenar, ou pelo manuseio impróprio, pelas
condições insalubres do espaço físico ou ainda pela demora na contratação do trabalho de
restauradores. Portanto, muito possivelmente, se não pela queima intencional, o referido
arquivo poderia ter tido o alegado fim pela ação do tempo aliada à inatividade dos poderes
responsáveis pela sua conservação.
No entanto, um argumento definitivo vem de um fato já estudado pela academia há algumas
décadas3: esses registros de compra e posse de escravos solicitados para queima no Diário
Oficial de 14 de dezembro de 1890 possuíam duas vias e graças a atenção aos trâmites
2
Para mais detalhes, conferir O Abolicionista Rui Barbosa, uma coletânea de escritos feita em comemoração ao
centenário da abolição, a cronologia das ações abolicionistas ruianas exposta em seus capítulos, com destaque
para as páginas 37 e 38, integrante do capítulo 2, de Homero Pires, intitulado Rui Barbosa e a Abolição dos
Escravos que traz a citação do referido trecho do Diário Oficial.
3
Conferir artigos de Robert W. Slenes, Escravos, cartórios e desburocratização: o que Rui Barbosa não
queimou será destruído agora? Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, no. 10, pp.166-196, março/agosto
1985 e O que Rui Barbosa não queimou. Novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. Revista
Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 117-149, 1983.
13
burocráticos, as cópias são recuperáveis por terem sido anexadas “a processos de herança e
inventário post-mortem”.4
Sendo assim, não se escolheu nesse estudo a imagem do Rui Barbosa5 pseudoabolicionista, ou
abolicionista de ocasião, mas a imagem do Rui Barbosa antiescravista, alicerçada pela pessoa
e seus atos (incluindo-se neste segundo elemento os juízos constantes em seus escritos). É na
rigidez imagética permitida por essa bifurcação, sobretudo em seus textos, que o abolicionista
Rui Barbosa é estudado. Não se deseja fazer, com isso, uma apologia às intenções
verdadeiras, uma defesa autenticatória ou um exercício laudatório. Busca-se o que é patente
na linguagem, aquilo que se pode depreender pelo estudo da argumentação, vista como
estratégias textuais em conjunto pelo aporte teórico apropriado – principalmente os estudos de
Chaïm Perelmane Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005); por um lado, ocupando-se de
alicerçar os estudos argumentativos da Nova Retórica, por outro, com os de Ducrot ([1969]
1987; [1977]1989) esclarecendo os dispositivos da Argumentação na Língua, porém não
deixando de se recorrer ao trabalho biográfico de historiadores para se acessar a imagem
ruiana em análise.
Um estudo que aborde o histórico dos feitos de Rui Barbosa como antiescravista já seria algo
que fugiria ao que é comumente praticado, já que há uma corrente questionadora das reais
intenções desse parlamentar, jornalista e político. Percebe-se que pode ter sido deixada uma
lacuna histórica quando não se fez um exame mais extenso da vertente parlamentar do Rui
Barbosa como relator do Parecer ao Projeto Dantas (1884)6 em nome das comissões de
orçamento (da qual fazia parte) e da justiça civil.
4
Informação obtida na matéria O dia em que Rui Barbosa virou Nero, de Nívia Pombo, publicada na Revista de
História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº29, fev. 2008, p.21.
5
Preferiu-se adotar neste trabalho a grafia predominante nas fontes de pesquisa, a saber, a com “i” (não a sua
variante com “y”, “Ruy Barbosa”) e recomendada pela própria FCRB conforme Instruções para a Organização
do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (12 de agosto de 1943) e Lei número 5.765, de 18/12/1971,
que aprova alterações na ortografia da língua portuguesa. Além disso, procurou-se conservar a grafia dos
excertos apresentados em conformidade com o encontrado nas Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB), que
não é a originalmente seguida por Rui Barbosa, mas a adotada então, quando se convencionou retirar os ditongos
em “oi” e substituí-los em ditongos em “ou”, mais correntemente usados em 1944 (Cf. nota sobre isso em FCRB,
[1884] 1945, v.11, t.1, p.42, prefácio).
6
Recuperou-se esse documento pela consulta ao fac-símile das Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB),
Volume 11 (1884), Tomo 1, 409 páginas, intitulado Discursos parlamentares: emancipação dos escravos, na
edição produzida pelo Ministério da educação e saúde, Rio de Janeiro, 1945 (data de publicação sob o regime de
Getúlio Vargas e do ministro Gustavo Capanema). O prefácio e a revisão ficaram sob a responsabilidade de
Astrojildo Pereira. De um modo geral, esse volume é assim estruturado: 1) abre-se com uma caricatura de Rui
Barbosa feita por Belmiro de Almeida para O Binóculo de 06 de maio de 1882, Ano II, nº I, “’S. Ex. o Sr. Rui
Barbosa’ (Sua Excelência, o Sr. Rui Barbosa). Talvez o maior cabeça do parlamento atual” – legenda que faz uso
do atualmente já desgastado trocadilho entre as proporções de sua cabeça e sua posição de chefia; 2) prefácio de
Astrojildo Pereira que lista historicamente parlamentares e sua posição diante do escravagismo, destacando Rui
14
Enfatiza-se, nesse trabalho, os mesmos conceitos de escravidão e abolicionismo do
movimento emancipatório da década de 1880. Nas palavras de Joaquim Nabuco7 [1883] 2011,
em sua obra O Abolicionismo8:
Esta [a palavra escravidão] não significa sómente a relação do escravo para
com o senhor; significa muito mais: a somma do poderio, influencia, capital,
a clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a
dependencia em que o commercio, a religião, a pobreza, a industria, o
Parlamento, a Corôa, o Estado enfim, se acham perante o poder agregado da
minoria aristocrática em cujas senzalas centenas de milhar de entes humanos
vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regimen a que
estão sujeitos; e por ultimo, o espirito, o principio vital que anima a
instituição toda, sobretudo no momento em que ella entra a recear pela posse
imemorial em que se acha investida, espirito que há sido, em toda a historia
dos paizes de escravos a causa do seu atraso e da sua ruina. (NABUCO,
[1883] 2011, p.71).
Então a escravidão é tratada nesse estudo como uma instituição que alimentava os diversos
setores da sociedade, contudo fadada à falência, por ser um modo de produção incapaz de
sustentação econômica perene9: uma instituição de poder dos senhores, como um conjunto, ou
um modo de produção. Era uma instituição cujo desmantelamento ainda se pensava, nos anos
1880, de modo gradual, por alforrias esparsas, motivadas pela iniciativa dos senhores ou pelo
pleito dos escravos (MENDONÇA, 2008). Se havia o escravagismo caído em outros países
(França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo) haveria de ser derrubado no Brasil.
A abolição, por outro lado, demandava libertação, principalmente via iniciativa jurídica, e
adaptação, mediante educação do negro para a sua adequação ao máximo de setores da vida
de liberto. Quando da época do Parecer ao Projeto Dantas, os argumentos dos parlamentares
apontavam para uma tendência abolicionista geral; sendo abolicionismo visto como um
continuum, em que se alocavam as posturas mais ou menos liberais. Alguns dos que aceitaram
Barbosa, caracteriza o Parecer ao Projeto Dantas e levanta os motivos para a queda do escravagismo; 3)
colocação de 03 primeiros discursos, menos polêmicos; 4) compilação dos “Anais dos Srs. Deputados do
Império do Brasil”, ano de 1884 e texto do Parecer, o mesmo desses anais; 5) apêndice composto pelo texto
original do Projeto Dantas com alterações manuscritas por Rui Barbosa, o histórico desde a apresentação do
projeto em 15 de julho até a dissolução da câmara em 30 de julho, a exposição sobre a dissolução também
redigida por Rui Barbosa, e, por fim, a circular de Rui Barbosa candidatando-se às eleições como deputado geral
de 1º de dezembro de 1884.
7
Contemporâneo de Rui Barbosa.
8
Essa obra foi inicialmente pensada como componente de um programa sobre reformas políticas e teria como
volumes complementares textos de Rui Barbosa, Rodolfo Dantas e Sancho Pimentel membros do Partido
Liberal. (MARSON e TASINAFO, 2011) A transcrição conservou a grafia original.
9
Interpretação baseada no conceito de Nabuco, mas cada estudioso elege um aspecto saliente para formular suas
definições de escravagismo/abolição.
15
a anterior Lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre10, por exemplo,
identificavam-se como abolicionistas, mas recusavam as propostas do Projeto Dantas. O
abolicionismo era um conceito suprapartidário, pois havia tanto abolicionistas liberais, quanto
conservadores; monarquistas e republicanos.
Contudo, utilizando-se desse histórico das ações antiescravistas ruianas, apontando para sua
existência, mas não se restringindo a ele, o que se pretende é apresentar um estudo da figura do
orador/locutor abolicionista Rui Barbosa, um acúmulo de temas não explorados11 que encobre a
Linguística, a Nova Retórica e a Argumentação na Língua. O movimento de prestígiodesprestígio-represtígio da dialética de Aristóteles é exemplar das mudanças de paradigma
científico, entendidas como necessárias para seu avanço. Equiparada ao raciocínio analítico, a
dialética aristotélica era entendida como um modo de pensar que se fundava em argumentos
prováveis condutores de conclusões não verdadeiras, mas verossímeis, razoáveis. Por trabalhar
com a noção de verossimilhança – e não com as noções dos filósofos clássicos, como a noção
de “verdade” – não fora objeto de apreço pelo senso comum. Os sofistas eram encarados como
formuladores de raciocínios falsos com fins desonestos. Baseados nas declamações literárias de
alguns retóricos da antiguidade, filósofos atribuíam à Retórica o mero papel de enfeite da
linguagem. Sua interpretação pelos posteriores cristianismo e racionalismo também não lhe era
favorável: entendiam-na como forma de raciocínio amoral ou antiético, que conduziam a
conclusões falsas. Essa filosofia posterior estabeleceu um confronto entre ela e o raciocínio
analítico, esse sim valorizado. Ainda no fim do século XIX, a academia também rejeitava essa
área, vista como não científica, contemplando somente sua história.
Todavia, em meados do século XX, surge a Nova Retórica, encabeçada por Chaïm Perelman,
que, relendo a Retórica e a Dialética de Aristóteles, ao mesmo tempo, restringe seu interesse –
focaliza o trabalho com a argumentação de provas, não científica; bem como amplia sua
extensão – o auditório aristotélico, visto como algo “heterogêneo”, um grupo indistinto
reunido em público, e de “baixo nível”, sem instrução perita, não habilitado então a seguir
raciocínios mais complexos é revisto por Perelmane Olbrechts-Tyteca ([1958], 2005) como o
alvo da argumentação.
10
A remissão a essa lei é recorrente para a montagem da estratégia argumentativa por Rui Barbosa em defesa do
Projeto Dantas.
11
Não se localizou, com as pesquisas prévias, nenhum estudo que traga o recorte analítico do trabalho Rui
Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas.
16
Marco do reavivamento do pensamento dialético de Aristóteles, em 1958, a publicação do
Tratado de Argumentação de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca resgatou a dialética
aristotélica em três movimentos: retomada, abrangência e ressignificação, tudo isso num
momento em que a razão era vista como algo nem estritamente lógico nem estritamente
metafísico. O nome Nova Dialética, contudo, foi preterido devido à cristalização semântica
que o termo “dialética” carregava pós-estudos de Marx e Hegel; por isso “Nova Retórica”
com um termo menos impregnado ideologicamente (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA
[1958] 2005; PERELMAN, [1977]1999; PLANTIN, 2008; MACHADO, 2011).
Já a Argumentação na Língua (ANL), teoria elaborada por Oswald Ducrot e Jean Claude
Anscombre ([1969] 1987; [1977]1989),entende que a ação sobre o outro está inscrita no
sentido do enunciado. Ducrot e Anscombre precisam seu campo de ação como a Pragmática
Semântica (ou Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação
quando se fala, mas o que a própria língua (vista pelos seus enunciados argumentativamente
estruturados) pode fazer.
Inicialmente, Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre12, em sua Teoria da Argumentação na
Língua, partiram para a reformulação do conceito tradicional de argumentação: as conclusões
de uma frase, segundo a argumentação tradicional, seriam extraídas de situações discursivas e
obtidas por leis psicológicas, lógicas, retóricas e sociológicas. Então a argumentação era
somente vista como dependente do contexto extralinguístico. Eles, em vez disso,
redirecionaram a argumentação para o âmbito intralinguístico, para a formação dum conjunto
de conclusões prováveis para uma mesma frase – teoria essa que passou por reformulações
passando pelos topoi, até o estado atual de “blocos semânticos”, ótica de análise desse
estudo(DUCROT [1969] 1987; [1977]1989; 2003).
Escapa-se à dimensão puramente subjetiva de Rui Barbosa quando seu discurso é analisado à
luz da Semântica Argumentativa: passa a ser compreendido não só como repositório de uma
corrente de ideias de uma época, mas também como repositório de um arranjo argumentativo
delas, ou como afirmou ele próprio: “[...] eu não era o indivíduo, eu era a expressão dum
conjunto de ideias” (BARBOSA, 1914. v. 41, t.2, p. 289-290). Em contrapartida, os contraargumentos mencionados no Parecer ao Projeto Dantas também são entendidos como uma
12
Nominalmente, como autor dos trabalhos, aparece a figura de Ducrot, embora ele mesmo compartilhe o mérito
dos primeiros passos da Argumentação na Língua (ANL) com Jean Claude Anscombre. A Teoria dos Blocos
Semânticos, por sua vez, teve a colaboração de Marion Carel esposa de Ducrot.
17
voz dilatada não pertencente a indivíduos particulares, mas constituintes de e ligados por uma
corrente histórica, como discursos “repetidos e renovados”. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11,
t.1, p.14).
A ANL é exemplar das transformações que acontecem em ciência, conceitos ou noções em
algum momento tidas como díspares, passam a atuar de modo complementar – a ANL pode
ser entendida como a interface do Pragmatismo com o Estruturalismo, correntes essas, a
princípio, de aplicação e tempo distanciados e de desenvolvimentos teóricos particulares: é o
extralinguístico pelo intralinguístico, o ato argumentativo pela linguagem na linguagem. Uma
quebra de paradigma.
Uma outra quebra de paradigma, o afã da desnaturalização do escravagismo, do direito de
propriedade do homem sobre outro homem,, foi a escolha de engajamento pelo Rui Barbosa
atuante em diversas frentes, sendo contemplada neste trabalho Antiescravismo Ruiano no
Parecer ao Projeto Dantas: tipos e topoi argumentativos sua atuação parlamentar.
O Projeto Dantas (1884), do qual Rui era segundo signatário, autor e relator, intentando uma
empreitada pioneira, era composto por dois artigos nos quais se recomendavam algumas
obrigações para os senhores de escravos, ao mesmo tempo em que admitia mais direitos aos
alforriados. Porém, essa proposta foi fortemente rechaçada, o que resultou na dissolução do
Gabinete Dantas e na petição de um parecer que assinalasse a sua procedência.
Ressalte-se que o antiescravismo ruiano é percebido dentro dos limites admitidos pelo corpus,
enquanto aquilo que pode ser constatado pela recorrência ao aporte teórico, seja pelas
informações de cunho extratextual que podem ser depreendidas, quanto pelo uso
argumentativo de elementos linguísticos.
Do gradual arrefecimento e resultante derrocada da convenção que sustentava o sistema
escravocrata, o Parecer ao Projeto Dantas é uma amostra significativa, com argumentos que
recobrem o mais amplamente possível a ilegitimidade da escravidão, fazendo o cruzamento de
aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos.
A organização desse trabalho é pensada da seguinte forma:
Na seção 02, intitulada Pressupostos Retóricos em Rui Barbosa – antiescravismo no Parecer
ao Projeto Dantas, são trazidas as condições históricas em um breve percurso ideológico que
18
colocaram Rui Barbosa enquanto orador fidedigno, correlacionando dados históricos e aquilo
que Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958], 2005) chamaram de os Âmbitos da Argumentação.
Em tal percurso, volta-se a dois momentos, ao das ideias do Rui Barbosa mais jovem, aos 19
anos de idade e do seu amadurecimento etário, ideológico e político, aos 35 anos, quando da
elaboração do Parecer ao Projeto Dantas. É feito também um cotejamento dos
posicionamentos dos parlamentares e de Rui Barbosa em relação às principais leis de intenção
ou repercussão antiescravista promulgadas. Além disso, o corpus desse trabalho é
contextualizado e sumamente apresentado como um todo, apontando-se a estrutura e
propósitos.
Como um desdobramento da seção 02, na seção 03, intitulada Argumentação no Parecer ao
Projeto Dantas – topoi retóricos e tipos associados, os lugares-comuns retóricos e a tipologia
argumentativa abrangem os aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos, muitas
vezes interfaceados, trazidos no Parecer ao Projeto Dantas. Esses aspectos são privilegiados
por uma questão metodológica: por permitirem a viabilidade do trabalho no tempo disponível
com a densidade desejada. Desses pontos, enfatiza-se a relação propriedade-indenização,
legitimadora da escravidão, que se confronta com o binômio liberdade-não indenização. São
apontados os expedientes argumentativos que funcionam pelo sistema da língua vistos sob a
ótica da retórica perelmiana. Uma trilha argumentativa ruiana é então apresentada.
Já na seção 04, Parecer ao Projeto Dantas: Argumentação na Língua, percebe-se que em se
tratando de argumentação, pode-se pensar não somente na Nova Retórica, mas também na
Argumentação na Língua. O texto ruiano passa a ser visto como passível de estudo então
enquanto portador de uma argumentatividade, ao mesmo tempo, dependente de fatores
extrínsecos com os tipos e topoi retóricos e autossuficiente com a abordagem dos
pressupostos ducrotianos. Oswald Ducrot, precursor da Semântica Argumentativa13, precisa
seu campo de ação como a Pragmática Semântica (ou Linguística), área em que o analista
investiga a ação pela língua, não a ação quando se fala, mas o que a própria língua (vista pelos
seus diversos elementos, seja enunciados, na primeira fase de desenvolvimento da teoria, ou o
léxico, no estado atual da ANL, compreendidos como eminentemente argumentativos) pode
fazer. Os estudos da ANL são historicizados, definem-se as noções pertinentes a cada fase da
teoria, seja a fase Padrão, ou Standard; a fase da Teoria dos Topoi ou na mais atual, a fase da
Teoria dos Blocos Semânticos.
13
Também denominada de Semântica da Enunciação, ou ainda a designação adotada neste estudo, a
Argumentação na Língua – ANL.
19
À luz da Teoria dos Blocos Semânticos, é examinado o Parecer ao Projeto Dantas na seção
05, O Parecer ao Projeto Dantas: blocos semânticos e a negação da escravidão. São
exploradas noções como blocos semânticos, argumentação normativa e transgressiva,
argumentação externa e interna, elementos modalizadores, aspectos converso, transposto,
recíproco, bem como a noção a inter-relação de tais noções.
As seções 03 e 05 debruçam-se mais no objeto executando uma análise qualitativa. O texto
ruiano é interpretado enquanto amostra argumentativa da nova retórica ou da ANL. Já as
seções 02 e 04 dão conta de traçar noções básicas até o ponto de acesso às teorias.
Inicialmente há um entrelace entre os desenvolvimentos teóricos da Nova Retórica e histórico,
que contribuiu para a formatação da imagem do Rui Barbosa enquanto abolicionista e
legislativo, que desembocou no Projeto Dantas. Na seção 04, em contrapartida, dados os
percursos históricos e legislativos, é feita uma incursão nos modos ducrotianos de encarar a
relação argumentação e língua e no como se assenta nesse âmbito o Parecer ao Projeto
Dantas.
Conclui-se o trabalho, trilhando a argumentação no Parecer ao Projeto Dantas: como uma
amostra de que as teorias da argumentação, ou seja, Argumentação Retórica e Argumentação
na Língua, embora pertencentes a campos distintos – Retórica e Semântica Argumentativa –
são complementares por permitirem uma visão menos parcial do fenômeno argumentativo.
Quando postas em conjunto, permitem a constatação de uma argumentação que se baseia em
aspectos mais ou menos lógicos, nas sucessivas relações de predominância de valores
convencionalmente formados, de um Parecer como meio e como fim argumentativo – na
língua instrumento, na língua discursiva, polifônica, por exemplo.
20
2 PRESSUPOSTOS RETÓRICOS EM RUI BARBOSA –
ANTIESCRAVISMO NO PARECER AO PROJETO DANTAS
“concedendo certo valor a um juízo, formula-se,
por isso mesmo, uma apreciação sobre seu autor” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p. 338)
Estudar a Argumentação Retórica é centrar-se na linguagem. E esse é um fechamento imposto
pelo próprio aporte teórico que, paradoxalmente, mune o analista de recursos para um estudo
rico dos possíveis juízos circulantes em certa época, aceitos, refutados e manejados por um
grupo social específico. Pelo intratextual, obtêm-se informações sobre determinados espaço,
tempo e sociedade. No caso do presente estudo, busca-se a imagem do abolicionista Rui
Barbosa, pelos seus juízos expressos em seus textos. Sendo assim, o recorte analítico
contempla essa estabilidade na imagem de Rui Barbosa – embora se perceba que tal
estabilidade é somente condicionada e presumida, neste caso, pelo desejo de se fazer um
estudo, pois “a ideia” de “pessoa” introduz um elemento de estabilidade. “Todo argumento
sobre a pessoa explicita essa estabilidade: presumimo-la ao interpretar o ato em função da
pessoa”. A própria qualificação de “abolicionista” para Rui Barbosa, ou seja, “a designação
da pessoa por certos traços” confere essa “impressão de permanência” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.334, 335). Caso seja modificado o olhar sobre o
objeto de análise, por exemplo, há a possibilidade de alteração dessa imagem em graus
diversos, chegando-se até a uma inversão. Por isso essa estabilidade não é uma característica
inerente.
Consultam-se primordialmente os estudos da argumentação, mas não se desprezam, porém,
como complemento, dados históricos que concorram para a elaboração desse quadro, já que
eles também podem se configurar em instrumentos argumentativos, pois o fato de a Nova
Retórica se centrar nos “recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos” não diminui
a influência exercida pela “experiência externa” que, apoiada ou interpretada pelo uso da
linguagem, também visa obter a adesão (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958]
2005, p.8).
A adesão, ou a participação mental consentida do interlocutor, é o que propõe o orador,
aquele de quem parte a iniciativa da argumentação. Interagindo com ele, há um auditório,
entendido não como ouvintes ou pessoas posicionadas perante o orador, mas o seu alvo, o
21
destino da sua argumentação. Esses dois elementos, que se definem um pelo outro, formam a
base do sistema argumentativo: o objetivo do orador é o de convencer e /ou persuadir seu
auditório, configurado, por sua vez, com base em sua própria experiência (pois o orador tende
a supor a sua formatação – suas características, daquilo que ele ansiaria, de seu
enquadramento social, de seus hábitos culturais, e, neste caso, de suas expectativas políticas):
A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão
próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada do
auditório pode ter as mais desagradáveis consequências. Uma
argumentação considerada persuasiva pode vir a ter um efeito
revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de fato,
razões contra [...] O conhecimento daqueles que se pretende
conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22,23).
Tal inferência sobre a formatação “do conjunto daqueles que o orador quer influenciar com
sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22) é útil na
medida em que modaliza o uso de certos expedientes argumentativos, precavendo um
discurso inadequado e contraproducente. No entanto, com isso, o orador não se esquece de
que esse “auditório presumido” pode ser composto de pessoas que carreguem individualmente
diferenças entre si, afinal, “uma só pessoa constitui-se em um complexo de contradições, de
diferenças de posições a depender, por exemplo, da época de sua vida em que se é
apresentada a tese” (MACHADO, 2011, p.19). “É a arte de levar em conta, na argumentação,
esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador” (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 24).
O orador Rui Barbosa tinha então de perceber as diferentes nuances em seu auditório. Durante
a sua militância político-ideológica, tinha de filtrar essas diferenças até mesmo pela
abrangência do grupo que deveria ser tocado por sua argumentação: deveria diferenciar
membros/subgrupos da população como um todo, ou do meio político geral, ou de um partido
político específico. No período da defesa do Projeto Dantas por meio de seu Parecer, o
auditório eram os parlamentares, liberais ou conservadores pretensamente influenciáveis pelos
argumentos levantados.
Ainda que a fim de facilitar sua atuação argumentativa, o orador vise a exploração dos
aspectos comuns do auditório, não significa, reitera-se, que as palavras devam ser
direcionadas a um público visto como homogêneo e/ou moldado unicamente segundo as suas
expectativas, idealizado. “É bom que se perceba que do auditório emanam anseios múltiplos e
22
muito diversos entre si e que solicitações diversas exigem argumentos igualmente
múltiplos”(MACHADO, 2011, p.19). O orador tem de ter em mente que o auditório
heterogêneo reúne “pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.24).
O trunfo do bom orador então é trabalhar com a unidade que permite a visão de um
agrupamento, mas não desprezar as singularidades constitutivas desse mesmo grupo. Uma
classe, qualquer classe, demanda a reunião de elementos por características comuns. Na
década de 1880, as pessoas, como é aprofundado mais adiante neste trabalho, não se
percebiam como escravistas. Em geral viam-se abolicionistas. Então, ao formular sua fala, o
orador Rui Barbosa deveria, como o fez, dirigir-se ao grupo designando-o como abolicionista.
No entanto, dentro dessa classe, sabia-se das posições individuais ou de subgrupos e ainda das
mudanças de posicionamento de um mesmo elemento, formando subauditórios, e isso, aliado
à noção do abolicionismo admitido como comum a todos construiria seus argumentos.
Tal procedimento é necessário já que o intento do orador é adensar gradativamente a adesão
que deve ir de um mero interesse prévio em se participar de um diálogo para a incorporação
das ideias apresentadas – tanto mentalmente, o que configuraria o convencimento, quanto na
conduta do outro, obtendo-se assim a persuasão –, portanto vale empenhar todo o esforço
permitido14. Afinal, o processo comunicativo demanda tal aceitação, por isso ela é vista pelo
orador como preciosa. (ABREU, 2007; PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA; [1958]
2005; PERELMAN, [1977]1999).
Não haveria, segundo alguns estudiosos15, a necessária relação de anterioridade, hierarquia ou
interdependência entre persuadir e convencer, considerados, apenas como dois resultados
diversos. Haquira Osakabe (1979, p.161) diz que a persuasão e o convencimento (chamado de
“convicção”) são dois tipos de adesões distintas diretamente relacionadas com o auditório
presumido pelo orador. A intenção do orador muda a depender do tipo de auditório que ele
entende que está em questão. Além do mais, alguém pode ser convencido, porém não ser
persuadido e vice-versa. Intentando obter essa adesão, o orador não se limita a apresentar os
14
Etimologicamente, convencer vem de “cum + vincere”, i. e., vencer o outro mediante sua colaboração e
persuadir vem de “per + suadere”, significando a partícula “per”, “de modo completo” e “suadere”,
“aconselhar”14 (TRINGALI, 1988, p.20).
15
Dante Tringali (1988, p.21) preocupa-se, por exemplo, em trazer a persuasão segundo a tria officia de Cícero,
a saber, composta por três dimensões a lógica (convencimento), a que age sobre os afetos (comoção) e a estética
(agrado), trazendo o convencimento apenas como um componente da persuasão. Nessa seção, consideram-se
esses necessariamente como componentes da retórica, obtendo-se a comoção e o agrado pelo logos, sendo
persuasão e convencimento efeitos diferentes da argumentação.
23
fatos, achando que eles, por si só, suscitariam o interesse do interlocutor em participar da
interação. Em adição, numa atitude modesta, deve admitir a natureza limitada de sua
proposição, não se considera o portador de verdades inquestionáveis nem universais:
Com efeito, para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do
interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental [...] querer
convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem
argumenta, o que ele diz não constitui uma “palavra do Evangelho”, ele não
dispõe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutível e obtém
imediatamente a convicção. Ele admite que deve persuadir, pensar nos
argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocupar-se com ele,
interessar-se por seu estado de espírito (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958]2005, p. 18).
O orador então precipita as respostas do outro, considera-as previamente, a fim de formular
em sua tese as adaptações requeridas pelo auditório. Sendo assim, naquele que se propõe a
argumentar, deve haver as seguintes predisposições: modéstia, para reconhecer a
incompletude de sua tese, as falhas a serem ajustadas pelas reações do auditório e interesse
pelo auditório que no momento da ação do orador reage reformulando o seu discurso.
A esses procedimentos de base para sedimentar a argumentação, que Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958], 2005) expõem na primeira parte de seu Tratado intitulada Os âmbitos da
argumentação, podem ser agregados outros. Na introdução ao Tratado de Argumentação, por
exemplo, há a referência ao uso da “experiência externa” como recurso auxiliar, vinculada aos
“discursivos” para se obter a adesão. Dá-se então credibilidade ao orador não só pelo uso de
expedientes linguísticos, mas também pelo exame de sua conduta que, aliada ao discurso, é
vista como expediente argumentativo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p.8). A própria figura de Rui Barbosa servia para validar seu local de fala abolicionista –
informações biográficas16 esclarecem que ele apresentava um histórico de ações tanto na
imprensa, quanto na política, e ainda no meio maçom que reforçava sua imagem de
abolicionista anteriormente, quando mais novo, em grupos mais restritos e, em tempos
16
Dados biográficos de base (breves): nascido em 5 de novembro de 1849, na rua que hoje leva seu nome, em
Salvador/BA, Rui Barbosa de Oliveira, filho de João Barbosa de Oliveira, médico, educador e político e Maria
Adélia Barbosa de Oliveira, faleceu em Petrópolis, RJ, em 10 de março de 1923. Foi, dentre outras atribuições,
membro fundador da Academia Brasileira de Letras, jurisconsulto, orador e parlamentar. Para mais informações,
consultar: BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL. Rui Barbosa- Biografia. Disponível em: <
http://bndigital.bn.br/redememoria/bio-ruibarbosa.html >. Acesso em: 18 de julho de 2013; RUI BARBOSA –
BIOGRAFIA
(Fundador,
Fundador
da
cadeira
10).
Disponível
em:<
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=193&sid=146>. Acesso em: 15 de janeiro de
2013;
RUI
BARBOSA.
Disponível
em:
<http://www.casaruibarbosa.gov.br/template_
01/default.asp?VID_Secao=2>. Acesso em: 28 de set. de 2010.
24
posteriores, de modo mais abrangente. Quando da elaboração do Parecer ao Projeto Dantas,
então, Rui Barbosa era um abolicionista declarado e reconhecido, falando da inestimável
relevância da abolição a um grupo de abolicionistas declarados, e nem sempre reconhecidos17.
Sendo assim, são vistos, nessa seção, tanto seu histórico de engajamento ao moto
antiescravagista, o que permitiu que o grupo em seu entorno o visse e o validasse enquanto
abolicionista, bem como o histórico da cadeia argumentativa escravocrata que se opunha a
cada iniciativa jurídica emancipatória. Enquanto que o delineamento de sua conduta, feito
mediante consulta à sua biografia e de parte de sua extensa obra18 alicerça sua posição como
orador, conferindo-lhe fidedignidade, o detalhamento de contra-argumentos na cronologia
legislativa abolicionista19, anterior ao Projeto Dantas, apresenta-os como preparatórios e
antecedentes dos demais argumentos “repetidos e renovados” (BARBOSA, [1884] 1945,
v.11, t.1, p.14) evocados quando desse Projeto e motivadores da escrita do seu Parecer.
2.1 RUI BARBOSA – HISTÓRICO ANTIESCRAVISTA
De argumentos movidos pelo pensamento de vanguarda de sua geração20 – é esse o Rui
Barbosa patente em suas obras. Nelas, tem-se acesso ao homem que defendeu a causa
antiescravagista em um período amplo, que correspondeu a praticamente toda a sua vida. Para
um breve panorama, são enfocados dois momentos: a sua exposição de motivos antisservis
quando dos seus 19 anos de idade, como uma amostra de seu interesse em causas
abolicionistas e quando adulto, já aos 35 anos, durante sua polêmica participação no Gabinete
Dantas, por ele entendido como momento político crucial para a posterior abolição de 13 de
maio de 1888.
17
Por exemplo, para se consultar esse escorço biográfico abolicionista de Rui Barbosa, cf. Emília Viotti da Costa,
A Abolição (São Paulo: UNESP, 2008. 8ª ed. rev. e ampl.); a coletânea publicada pela Fundação Casa de Rui
Barbosa (FCRB), O abolicionista Rui Barbosa (Ed. comemorativa do Centenário da Abolição. Rio de Janeiro,
1988); bem como a introdução de Izabel A. Marson e Célio R. Tasinafo, na obra de Joaquim Nabuco
([1883]2011), O abolicionismo (Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1ª reimpressão).
18
A base de dados Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB) coleciona textos em fac-simile, não
necessariamente reunidos cronologicamente, mas pela relevância temática e pelo acesso às fontes. São 50
volumes (que podem ser divididos em mais de um tomo) distribuídos da seguinte forma: volume 1: trabalhos
feitos até o ano de 1871; volume 2: trabalhos relativos ao período de 1872-1874; volume 3: de 1875-1876;
demais volumes cada um correspondendo a um dos anos posteriores, de 1877 (volume 4), até 1923 (volume 50),
perfazendo 137 tomos. Essa organização foi prevista pelo Decreto-Lei nº 3.668, em 30 de setembro de 1941
assinado pelo presidente Getúlio Vargas.
19
Assim denominadas nesta dissertação as leis que tiveram repercussão abolicionista ou que interferiram no
processo escravagista.
20
Um pensamento vanguardista na medida em que militava contra um modo de produção e uma relação social
incrustrada pela tradição que era o escravagismo.
25
2.1.1 Radicalismo e Liberalismo
Rui Barbosa se apresentava como um jovem que surgia assumindo uma defesa
antiescravocrata veemente, ao mesmo tempo comumente praticada pelo grupo abolicionista
radical e rebatida pelo grupo mais moderado porque era percebida por esse último como
excessiva frente às supostas necessidades daquele período. Ingressou em uma associação
maçônica – conseguindo ocupar, em pouco tempo, o ponto mais alto da hierarquia mediante a
autorização de seu grupo – onde fez propostas até então inovadoras concernentes à
escravidão. Além disso, nessa mesma época, em 1869, fez um discurso considerado
impactante, a conferência “O Elemento Servil”, que mesmo não sendo preservado na íntegra,
ainda é recordado como uma atitude marcante pela postura audaz do orador (CARVALHO,
1949, vol. 1., t. 1; FCRB, 1988).
Logo aos 19 anos de idade, ele, juntamente com alguns jovens, todos a favor dos ideais
liberais, fundou, em São Paulo, o jornal do Clube Radical, o Radical Paulistano, que se servia
de uma produção semanal de artigos e de ideias que, embora não fossem individuais,
propagavam em uníssono o pensamento do Clube. Os redatores desse jornal (a “comissão de
redação”) eram, além do destacado Luís Gama e o próprio Rui Barbosa; Américo de Campos;
Bernardino Pamplona, o presidente do clube, e Freitas Coutinho. As principais ideias
propostas eram:
a descentralização, o ensino livre, a abolição da Guarda Nacional, senado
temporário e eletivo, a extinção do poder moderador, separação da judicatura
da polícia, substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, eleição dos
presidentes de província, suspensão e responsabilidade dos magistrados
pelos tribunais superiores e poder legislativo, magistratura independente, e a
escolha de seus membros fora da ação do governo, proibição dos
representantes da nação de aceitarem a nomeação para empregos públicos e
igualmente títulos e condecorações; os funcionários públicos, uma vez
eleitos, deverão optar pelo emprego ou cargo de representação nacional
(CARVALHO, 1949, vol. 1., t. 1, prefácio, grifo nosso).
Agindo coerentemente com essa postura abolicionista do Clube, mantida no Jornal Radical
Paulistano, em 1869
21
21
, o jovem Rui Barbosa propôs ao público por meio da conferência O
O volume 1, tomo 1, ao trazer o resumo desse discurso, incorre num equívoco de datar a Conferência em 12 de
setembro de 1669, algo logo resolvido pela leitura inicial do trecho que explana : “Domingo, 12 do corrente, teve
lugar a 5ª Conferência do Clube Radical Paulistano, orando o Sr. Rui Barbosa sobre a tese – o elemento servil”
(OCRB, v. 1, t.1 , p. 171). O próprio contexto histórico de Rui Barbosa já esclarece isso.
26
Elemento Servil22, um olhar diferenciado para a realidade dos escravos. Seu discurso
repercutiu na imprensa local, ganhando espaço a forma laudatória com a qual os jornalistas
tratavam sua argumentação. O Correio Paulistano dizia que a exposição de Rui Barbosa
contara com “uma ilustração não vulgar” enquanto que o Ipiranga, de modo menos conciso,
assim relata o evento: “o distinto e ilustrado Sr. Rui Barbosa, ocupando anteontem a tribuna
das conferências populares para tratar do elemento servil, se houve por tal forma na discussão
de sua tese que mais uma vez confirmou os foros de que merecidamente goza de talento
superior”. O resumo publicado no Jornal Radical Paulistano fornece uma ideia, ainda que
provavelmente menos entusiástica do que a própria conferência de Rui Barbosa, acerca do
que foi dito (CARVALHO, 1949, v. 1, t. 1, prefácio).
O texto orientava seus argumentos de modo que eles recobrissem o mais amplamente possível
a ilegitimidade da escravidão, fazendo o cruzamento de aspectos éticos, econômicos,
demográficos e históricos. O início dessa conferência de Rui Barbosa (1869, v. 1, t.1 p.171172), de acordo com tal resumo, enfocou a vertente amoral em que se fundamentava a
escravidão, que seria “uma abominação moral, um núcleo de corrupção na vida pública e
doméstica”, passando a explorar aspectos econômicos, segundo os quais e seguindo o
exemplo estadunidense, se “estabelece a infinita superioridade do trabalho livre sobre o
trabalho servil”, apontando ainda “o escasseamento da população livre nos estados
escravistas” norte-americanos. Rui Barbosa recorre à argumentação de base demográficohistórica para comprovar sua tese. Seguindo em sua incursão histórica, o orador esclarece que
na França e nos Estados Unidos, no ano de 1874, a abolição trouxe, em vez da turbulência
civil, o aquietamento dos ânimos, bem como o progresso em vários setores econômicos. Rui
Barbosa conduz então o abolicionismo ao contexto local quando diz que a emancipação dos
escravos:
é muito mais fácil em nosso país que em todos aqueles onde se tem efetuado
até hoje: – 1º, porque uma porção imensa da propriedade servil existente
entre nós (mais de um terço), além de ilegítima, como toda a escravidão, é
também ilegal, em virtude da Lei de 07 de novembro de 1831, e do
regulamento respectivo que declaram expressamente “que são livres todos os
africanos importados daquela data em diante”, donde se conclui que o
governo tem obrigação de verificar escrupulosamente os títulos dos senhores
e proceder na forma de decretos sobre a escravatura introduzida pelo
contrabando; – 2º, porque a população escrava no Brasil acha-se, para com a
22
A acepção do termo “servil” e derivados, com o sentido de “escravo”, foi preservado na citação das fontes, não
obstante a abertura do termo.
27
população livre em uma proporção incomparavelmente inferior àquela em
que se achava nas colônias francesas e inglesas, nem entre nós se dá a
circunstância de grande luta civil no meio da qual foi proclamada a
emancipação nos Estados Unidos (BARBOSA, 1869, v. 1, t.1, p.171,172).
Neste ponto do excerto, Rui Barbosa procede a uma comparação entre as realidades préabolicionistas das colônias francesas e inglesas e no Brasil. Demonstra que a densidade
populacional livre, quando cotejada com a escrava no Brasil, mostrava-se elevada. Além
disso, não haveria de ocorrer uma generalizada guerra civil no Brasil para que todos os
cativos recebessem manumissões. Distanciada no tempo, a historiadora Emília Viotti da
Costa confirma as previsões de Rui Barbosa:
Por mais longos e difíceis que tivessem sido os caminhos da abolição,
chegava-se ao fim, sem que fosse preciso lançar o país em uma guerra civil,
como sucedera nos Estados Unidos. Lá os escravos só conquistaram sua
liberdade depois de longa e cruenta guerra, na qual os proprietários de
escravos e seus aliados defenderam, de armas na mão, sua propriedade
ameaçada pelo governo da União. E, a despeito dos receios que alguns
proprietários de escravos sentiram por ocasião da abolição, o país não se viu
às voltas com uma guerra entre as raças [...] As catástrofes anunciadas por
aqueles que esperavam ver a economia do país destruída também não
ocorreram. Depois de breve período de desorganização, a vida se
normalizou. Nas cidades e nas fazendas, a produção reassumiu o ritmo
anterior (COSTA, 2008, p.10,11).
Contudo, o que desperta maior interesse é que Barbosa lança mão de uma lei antes somente
pro forma, a lei de 07 de novembro de 1831, a Lei Feijó – elaborada com a finalidade de
atender às novas exigências internacionais, feitas pela Inglaterra, concernentes ao tráfico
negreiro (o Parlamento inglês abolira o tráfico negreiro em suas colônias em 1807) –
decorrente do fato de que, após a independência, em 07 de setembro de 1822, o Brasil passou
a depender economicamente da nação inglesa ainda mais, tanto que, ela assim pôde legislar
sobre a abolição do tráfico negreiro: declarava livres todos os escravos introduzidos no
território brasileiro vindos de país estrangeiro.
Como um modo de burlar a Lei Feijó,
intensifica-se o contrabando de cativos que passam a entrar no Brasil, trazidos por navios com
bandeiras falsas, como forma de escapar da proscrição das patrulhas inglesas.
Em 1826, a Inglaterra impôs ao Brasil o compromisso de eliminar o tráfico num prazo de três
anos após essa renovação do acordo. A Lei de 1831 foi o cumprimento oficial do Brasil a esse
28
contrato, mas ela foi praticamente ignorada, algo reiterado pelas estatísticas crescentes de
escravos em terras nacionais. Porém, anos depois, Rui Barbosa não só trouxe à lembrança
essa lei, como também Osório Duque Estrada (1870 apud LACOMBE, 1988), segundo o
qual, Rui Barbosa teria sido:
O primeiro abolicionista que, baseado na lei de 07 de novembro de 1831,
proclamou, desde 1869, a ilegalidade da escravidão no Brasil, fornecendo o
principal argumento de que serviriam mais tarde os propagandistas radicais
de 188023, no início da fase revolucionária que terminou com a conquista de
13 de maio de 1888 (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.72).
Quase meio século após a sanção dessa lei que extinguiria o tráfico negreiro para sedimentar a
pugna antiescravagista, alguém a cita: Rui Barbosa fora o pioneiro 24 em aludir a essa lei que
ratificava o convênio anglo-brasileiro de 1826, quando o acordo comercial, iniciado desde
1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, possível pelo auxílio inglês, foi ratificado
(FCRB, 1988). Outra ação inseriu Rui Barbosa em um mote pioneiro, um ano antes. Ele,
quando sócio da Loja América, uma associação maçônica de São Paulo, a qual era integrada
por parte do alunado e do corpo docente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
sugeriu aos seus companheiros a libertação do ventre de suas escravas, algo que causou certa
indisposição no Venerável da Loja, o Professor Antônio Carlos, que sai então daquele grupo.
Com essa proposta, Rui Barbosa antecipa uma prática que só seria formalizada em lei em 28
de setembro de 1871 pela Lei do Ventre Livre25 (FCRB, 1988).
23
O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, formou com O Parecer ao Projeto Dantas (1884), duas obras de
fundamental importância para a propaganda abolicionista.
24
Isso não é ponto pacífico, é embasado nas informações contidas em FCRB, 1988.
25
A Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871 (redação definitiva em sessão do senado de 27 de setembro
do mesmo ano), Carta de Lei nº 2.040 do Terceiro Período Imperial, declarava liberdade condicionada aos filhos
das escravas. A partir de então, esses nascituros libertos ficariam sob a tutela dos senhores até seus 08 anos de
idade. Após esse período os senhores poderiam escolher entre indenização pecuniária ou por prestação de
serviços até os 21 anos de idade. O texto reza, no Art.1, três primeiros parágrafos, o seguinte:
A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os
subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte:
Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de
condição livre.
§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão
obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o
senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do
menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em
conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro
annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita
29
Esses dois pontos destacados no histórico de Rui são dignos de atenção, pois
medidas como a extinção do tráfico e a libertação do ventre imprimiram à
escravidão uma finitude. Representando o “estancamento das fontes”, tais
medidas, por elas próprias, determinaram um tempo no qual a escravidão
inevitavelmente chegaria a seu termo. (MENDONÇA, 2008, p.308)
Esses dois momentos legislativos são evocados como “o estancamento das fontes”; com o
tráfico extinto e com a interdição da escravização de nascituros, não haveria renovação da
mão-de-obra escrava, o que representaria o fim da escravidão, mas por diferentes óticas: para
alguns, os que confessavam acreditar na infalível aplicação dessas leis e na igual resposta
punitiva em caso de infração, elas por si só seriam suficientes para a abolição geral
admitindo-se que com o tempo o plantel de escravos se extinguiria pela restrita expectativa de
vida; para outros, essas leis formavam um precedente impulsionador de futuras leis que
permitissem, com o tempo, novas formas de libertação.
Rui Barbosa encontrava-se nesse segundo grupo. Desde aquela conferência, ele tentava
desencadear, por meio de seus argumentos, uma quebra de valores estagnados pelo aspecto
menos questionável e ainda não explorado – a lei. Da instância jurídica, que pode ser encarada
como um objeto refletor das disposições acomodadas num determinado espaço-tempo,
anteriormente e até então amplamente acobertando a realidade escravocrata, legitimando
assim a postura escravagista, é percebida uma lei cujo alcance ainda era tímido, mas que se
configurava em exceção, que, mesmo sob a forma de uma brecha, já acolhia as disposições
abolicionistas.
A partir de então, tendo sua ação abolicionista coberta pelo aparato legal existente, Rui
Barbosa prossegue, agora empreendendo uma tentativa ainda mais ousada: a continuação da
dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará
entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização pecuniaria,
que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que
lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização.
§ 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter quando
aquellas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços
das mãis. Se estas fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo.[...]
30
reestruturação interna da legislação nacional para que ela continuasse a acomodar a causa
antiescravagista.
2.1.2 Projeto Dantas
No ano de 1884, em torno de seus 35 anos de idade, demonstrando uma maturidade etária que
redundou em uma maturidade político-ideológica, Rui Barbosa é convocado para redigir um
projeto de lei para o Gabinete de Manuel Pinto de Sousa Dantas26. Ao Ministério Dantas de 6
de junho de 1884, precederam : 1) o Ministério Saraiva, que não cogitava a inclusão da
questão abolicionista na sua pauta de trabalho, 2) o Ministério Martinho Campos, totalmente
contrário às disposições antiescravistas, a ponto de declarar, segundo Brício Filho: “sou
escravocrata da gema” , 3) o Paranaguá e 4) o instável Lafayette, que, quando perguntado
sobre a existência de plano de ação referente ao escravagismo, respondeu “pode ser que sim,
pode ser que não” (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.43).
No entanto, de forma incisiva, após a leitura do projeto em 15 de julho de 1884, a proposta
fora refutada tanto por conservadores quanto, surpreendentemente, por liberais. Rui Barbosa
foi chamado de comunista e teve de enfrentar até mesmo a oposição da Igreja. Devido a tudo
isso, cai o Gabinete Dantas, que só durou onze meses e ascende ao poder o Gabinete Saraiva.
Sobre isso, Rui Barbosa comentou mais tarde: “Ontem um gabinete liberal não podia achar
apoio mesmo em uma câmara liberal para uma transação abolicionista” (BARBOSA, 1888,
v.15, t.1 p.146). E ainda:
O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros
tentamens de transação, estar em ser ele o único onde, proscrevendo-se a
indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da liberdade
gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão compreendeu-o; viu
nesse ensaio libertador a célula da abolição incondicional; e, percebendo que
jogava a sua sorte, envidou assomos inauditos, no delírio de um desespero
descomunal, para subverter a audácia dessa iniciativa numa catástrofe
exemplar (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.153).
Mas, Rui Barbosa, diante da onda reacionária a esse projeto e do crescente apoio ao
abolicionismo, declarou que a tensão emancipatória logo chegaria ao seu clímax. Devido aos
26
Então Primeiro Ministro do Império. Rui Barbosa era um líder do governo da Câmara.
31
fatos, disse em um livreto intitulado O Ano Político de 1887: “está, pois, consumada a grande
revolução. Para um, para dois anos? Eis a questão apenas” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1). O
Projeto Dantas, antes considerado odioso por sugerir ações muito “avançadas”,
repentinamente assumiu uma aparência tímida diante das mudanças ocorridas. Até mesmo
alguns ministros que eram contrários à abolição mudam rapidamente de posição. Um caso
exemplar é o do então ministro da agricultura e conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, antes
escravista integrante do Gabinete Cotegipe e, em 10 de março de1888, integrante libertador de
João Alfredo: em cerca de dois meses depois, isto é, em 8 de maio, ele apresentou e sozinho
subscreveu o projeto do Executivo que extinguia a escravidão no Brasil, proposta essa
encaminhada a noventa e dois deputados, dos quais apenas nove votaram contra e, por fim,
aos senadores, que a aprovou em tempo recorde: 13 de maio (COSTA, 2008; FCRB, 1988).
Porém, ressalte-se mais uma vez que encarar o evento de 13 de maio de 1888 somente como
resultado da atuação de um segmento populacional engajado politicamente e/ou da vontade
parlamentar, não é dar conta, nem aproximar-se, da complexidade das variáveis envolvidas em
todo o processo da abolição. Além do mais, a liberdade daqueles indivíduos ainda não era
plena:
Para a maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela abolição, a
questão estava encerrada. Os ex-escravos foram abandonados a sua própria
sorte. Caberia a eles, daí por diante, converter sua emancipação em
realidade. Se a lei lhes garantia o status jurídico de homens livres, ela não
lhes fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva. A igualdade jurídica
não era suficiente para eliminar as enormes distâncias sociais e os
preconceitos que mais de trezentos anos de cativeiro haviam criado. A Lei
Áurea abolia a escravidão, mas não o seu legado (COSTA, 2008, p.12).
Sim, antes, enquanto escravos, esses indivíduos foram se apropriando dos avanços legais
disponíveis, poucos, mas gradualmente ampliados até o status de libertos. Não de “homens
livres”, mas quase isso, de libertos. Nesse tocante, o quadro é menos animador do que apontam
essas palavras da historiadora Emília Viotti da Costa já que os prejuízos sociais pós libertação
da Lei Áurea seriam agravados pelo descompasso jurídico, não havendo sequer a apontada
“igualdade jurídica”. Os libertos sofreriam, pois, duplamente: nos âmbitos jurídico e social. 27
27
Tal crítica a Emília Viotti só foi possível após recordar a observação atenta da Profa. Dra. Wlamyra
Albuquerque sobre a diferença terminológica entre “homens livres” e “libertos”. Segundo ela, os escravos
receberiam pós lei o status de libertos, jamais de homens livres, assim nascidos e com ampla cidadania, como o
direito a voto.
32
Feita essa breve consulta aos estudos históricos, pelos quais foram levantados dados
biográficos que servem como amostrada atuação antiescravista de Rui Barbosa e/ou da
validação dessa sua imagem nos meios social e jornalístico e que permitem a visão de suas
disposições argumentativas preliminares, passa-se à apresentação do Parecer ao Projeto
Dantas: de seu entorno legislativo, seu contexto social, seu auditório e sua constituição
argumentativa, os argumentos principais elaborados por Rui Barbosa como refutação aos
contra-argumentos mais comuns à época.
2.2 O PARECER EM FOCO
O Parecer foi escrito por um abolicionista e para “abolicionistas”. Pode-se afirmar que ele
fora escrito por um abolicionista, tanto pelo supracitado exame das ações e escritos de Rui
Barbosa ao longo do tempo, quanto pelo exame do Parecer ao Projeto Dantas. Em relação à
sua tese geral, o Parecer reforça o intento a uma empreitada de abolição de mais um
segmento da sociedade apresentada no Projeto Dantas, do qual Rui Barbosa era segundo
signatário e autor.
Segundo a historiadora Rejane Magalhães, nesse texto composto por dois artigos,
recomendavam-se algumas obrigações para os senhores de escravos, ao mesmo tempo em que
admitia mais direitos aos alforriados:
tratava das hipóteses da emancipação e englobava os seguintes parágrafos:
dos encargos do ex-senhor; da matrícula; do fundo de emancipação; da
localização do escravo; do direito de testar a liberdade; do penhor; da
nulidade da venda a retro; da alforria concedida pelo fundo de emancipação.
O artigo segundo tratava do trabalho, e com seus respectivos parágrafos: do
domicílio; da profissão ou emprego do liberto; da locação de serviços; da
rescisão de contrato; do salário; da duração de contratos; das questões entre
locador e locatário; da penalidade para o liberto; dos delitos e infrações; da
proibição do funcionamento de casas de compra e venda de escravos; das
colônias agrícolas para os libertos; das regras para conversão do foreiro do
Estado em proprietário dos lotes de terra (FUNDAÇÃO CASA DE RUI
BARBOSA, 1988, p.95).
Por exemplo, visando assegurar o sustento ao escravo recém-libertado que não obtivesse
ocupação nas propriedades de então, esse Projeto previa sua alocação em colônias agrícolas.
33
A ideia era limitar o tempo de exploração da força servil em sessenta anos e garantir ao
consequente ex-escravo uma velhice menos indigna porque seria provida de alguns direitos:
Dos sexagenários
§ 1º. – O escravo de 60 anos, cumpridos antes ou depois desta lei, adquire
ipso facto a liberdade.
I – Se os libertados em virtude desta condição preferirem permanecer em
casa dos seus antigos senhores, será facultativo estes retribuir-lhes, ou não,
os serviços.
II – Nos casos de enfermidade, ou invalidez, dos libertos, por fôrça dêste
parágrafo, incumbe aos ex-senhores ministrar-lhes alimento, roupa e
socorros na doença; com obrigação para os libertos de se sujeitarem às
ocupações compatíveis com as suas forças.
Cessa para o senhor, porém, esse encargo. Se voluntariamente o liberto o
deixar, ou tiver deixado sua casa e companhia.
III – O ex-senhor que furtar-se ao encargo estabelecido em o número
antecedente, desamparando, na moléstia, ou na invalidez, o liberto
sexagenário, incorre na multa de 100$000, duplicada nas reincidências, e
imposta pelo juiz de órfãos, precedendo audiência por escrito do acusado.
IV – Caso o infrator não anua em readmitir à sua companhia o liberto,
compete ao juiz de órfãos prover à sustentação e tratamento do enfermo, ou
inválido, em casa, ou estabelecimento público, ou particular; correndo as
despesas por conta do ex-senhor, de quem se cobrarão executivamente.
V- Quando o estado de pobreza do ex-senhor lhe não permita satisfazer os
encargos dêste parágrafo, nº II28.
Contudo, factual é que o Projeto Dantas (ou “Projeto Rui Barbosa”
29
) fora suplantado pela
Lei dos Sexagenários, promulgada pelo imediatamente posterior Gabinete Saraiva em 1885
(FCRB, 1988). O auditório de Rui Barbosa foi então parcialmente convencido e persuadido:
essa lei infiltrou emendas no projeto original, o que permitiu a inclusão de condições
completamente indesejáveis no Projeto Dantas. Essas diferenças são vistas, por exemplo,
quando trata da “Fixação do Valor do Escravo”, o Projeto Saraiva rezava em seus parágrafos:
§ 2º. – Os escravos de sessenta anos serão obrigados, a título de indenização
pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores por espaço de três
anos.
§ 3º. – Os escravos que, ao promulgar-se esta lei, forem maiores de sessenta
e menores de sessenta e cinco anos, logo que completarem esta idade não
serão mais sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo em que
os tenham prestado, com relação ao prazo acima declarado.
§ 4º. – É permitida a remissão dos mesmos serviços mediante o valor
arbitrado para os escravos da classe de cincoenta a sessenta anos.
28
Redação do Projeto Dantas, “O Projeto Original”, constante no Apêndice do volume 11, tomo 1, FCRB. Cf.
Anexo C.
29
Cf. Anexo A, Projeto Dantas/ Rui Barbosa, manuscrito de Rui.
34
§ 5 – Todos os libertos maiores de sessenta anos continuarão em companhia
de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimenta-los, vesti-los e trata-los
em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles
salvo se os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de subsistir, sem
necessidade de proteção de seus ex-senhores30.
Confrontando esses excertos do Projeto Dantas (1884) e do Projeto Saraiva (1885), confirmase uma alteração significativa: permanecia a alforria do escravo sexagenário, no entanto, ele
ainda teria de trabalhar por mais três anos para seus antigos senhores. Tal trabalho compulsório
serviria para manter os antigos senhores indenes, servindo de compensação pela sua alforria.
Continuando o exame das diferenças entre os projetos Dantas e Saraiva, a historiadora Rejane
Magalhães aponta que havia as determinações de uma nova matrícula de escravos – o que
invalidava a lei de 7 de novembro de 1831 – e de uma taxa para o valor do escravo na razão
inversa de sua idade ( que cessava nos escravos quinquagenários no Projeto Dantas, valorada
em 400§, mas alcançava os sexagenários no Projeto Saraiva, estipulada em 200§), garantindo a
manutenção da ideia de propriedade sobre o homem (FCRB, 1988, p.33, 34).
E assim já modificado em Lei Saraiva-Cotegipe, o Projeto Dantas se enquadra na linha do
tempo31, conforme ordenado por Lysie dos Reis Oliveira (2012, p.56):
Destacam-se as seguintes medidas legais: proibição do tráfico transatlântico
(1831), que, apesar da repressão de navios britânicos, não acabou por
tolerância das autoridades brasileiras; Lei Eusébio de Queiroz (1850) –
abolição definitiva do tráfico; lei que proibia a venda separada de escravos
casados (1869)32; Lei do Ventre Livre (1871); Lei Saraiva-Cotegipe (1885),
conhecida como Lei dos Sexagenários; lei que extingue a pena de morte
(1886); extinção da escravidão nos Estados do Ceará33 e Amazonas (1884);
Lei Áurea (1888)34.
O Parecer ao Projeto Dantas foi então redigido para “abolicionistas”. Rui Barbosa aludiu a
isso quando afirmou que “o escravismo revestiu, entre nós exterioridades insidiosas, que o
tornam mais perigoso que a franca apologia do cativeiro: declarou-se emancipador”
30
Cf. http://www2.camara.leg.br.
Cf. Apêndice, Linha do Tempo : medidas legais.
32
Decreto Nacional n.1.695, de 15 de setembro de 1869.
33
25 de março de 1884 é a data dessa alegada libertação geral,no entanto, quatro anos depois, havia registros no
Relatório do Ministério da Agricultura, de 14 de maio de 1888, de que haviam 108 escravos no Ceará
(MARSON e TASINAFO, 2011).
34
Pode-se incluir nessa cronologia a primeira iniciativa de abolição geral, na cidade de Mossoró, Rio Grande do
Norte, em 30 de setembro de 1883, após propaganda abolicionista do comerciante Joaquim Mendes. Fonte:
http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/imperio2.html.
31
35
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.75). Todos eram abolicionistas em certa medida, pois
quem estivesse a favor das manumissões era partícipe de uma suposta mentalidade
vanguardista e urbana.
No entanto, dentro dessa revestida imagem do abolicionismo sob o signo da juventude, da
vanguarda, do espírito cristão e do progresso, cabia uma gradação de adesão, num continuum
cujas extremidades referendavam posturas mais para moderadas, à esquerda e mais para
radicais, à direita.
O Parecer incide sobre a ideia que se propagava: não haveria um antiabolicionismo, mas sim
uma contrariedade instaurada pela atuação da instância legislativa para as manumissões
generalizadas. A razão para isso é que a associação do abolicionismo com ideias não tão
positivas, como anarquia, comunismo e regresso, deslocaria o indivíduo para o extremo
abolicionista mais conservador. Essa repercussão negativa das leis abolicionistas era,
sobretudo, projetada para as futuras relações interindividuais senhor-liberto. Conforme análise
de Mendonça (2008), haveria uma classe de “bons libertos” constituídos por aqueles cuja
manumissão era providenciada pela iniciativa dos próprios senhores. Essa era a libertação
ideal para a classe dos senhores, pois permitiria tanto a gratidão do manumitido, como a
disciplina dos que podem ser chamados de “manumitentes” ou de “promitentes
manumitidos”, aqueles que teriam um aquietamento pela expectativa de serem os próximos
contemplados (MENDONÇA, 2008, p. 252-256).
Oposto a esses “bons libertos” seriam os escravos libertos pelo Estado já que esses encarariam
senhores como inimigos que lhe negavam até então um direito que teve de ser resgatado pela
iniciativa externa, da lei. Sobre a oposição a esse segundo grupo, era marcada
cronologicamente, como é visto no próximo subtópico.
2.2.1 Cronologia legislativa emancipatória – contra-argumentos escravocratas
A interferência jurídica35 era vista como inoportuna e desnecessária, já que, em um prazo
próximo, segundo a concepção do grupo escravagista, haveria uma abolição em larga escala,
35
Não se faz uma referência ao Judiciário como um poder específico, já que então as decisões de cunho legal
eram tomadas pelo Estado Imperial, mas a uma lei específica ou a um conjunto delas.
36
seja pela morte de toda aquela geração cativa, seja pela soma crescente das iniciativas
individuais em se alforriar. Rui Barbosa, assim ironiza:
Ninguém, neste país, divinizou jamais a escravidão. Ninguém abertamente a
defendeu, qual nos Estados separatistas da União Americana, como pedra
angular do edifício social. Ninguém, como ali, anatematizou, na
emancipação um atentado perturbador dos desígnios providenciais. Todos
são, e têm sido emancipadores, ainda os que embaraçavam a repressão do
tráfico, e divisavam nele uma conveniência econômica, ou um mal mais
tolerável do que a extinção do comércio negreiro (BARBOSA, [1884] 1945,
v.11, t.1, p.62, grifo do autor36).
Da mesma forma que não mais se distinguiam abolicionistas e escravocratas, a dicotomia
escravidão X liberdade também era tênue. A questão era que mesmo não se desejando a
alcunha de escravagista, alguns parlamentares desejavam manter as relações de dependência
dos libertos em relação aos senhores, mimetizando a estrutura social escravocrata na dinâmica
pós-libertação. A reestruturação legislativa só seria bem aceita se manipulada a favor da
manutenção do enrijecimento social:
Quando discutiam a melhor forma de encaminhar a emancipação dos
escravos [esses parlamentares] pretendiam uma liberdade que não rompesse
de forma completa com as relações de escravidão; pretendiam uma liberdade
que preservasse muitos dos laços que a escravidão estabelecera entre
senhores e escravos. [...] Assim, ao discutirem o processo de abolição pelas
medidas encaminhadas ao poder público, aqueles parlamentares não
dissociavam, ou muito menos, não opunham escravidão e liberdade. Fosse
pela tentativa de fazer prevalecer na situação de liberdade aqueles laços que
a escravidão estabelecera entre senhores e escravos, fosse pela tentativa de
preservar as relações de escravidão para que a liberdade se introduzisse a
passos lentos na sociedade ambos os termos caminhavam comumente de
mãos dadas em suas falas e em seus projetos de emancipação
(MENDONÇA, 2008, p. 251,252).
A emancipação era vista como uma forma de revestir a escravidão de uma nova roupagem
que permitisse a demarcação de posições hierárquicas. Neste momento, o texto do Parecer
alude às disposições contrárias às leis de 1831 e 1850. Sobre isso, tem-se, em seguida,
reportada, por Rui Barbosa, a fala do deputado Cunha Matos investindo contra a Lei de 1831.
Para tal parlamentar, esse acordo era, entre outras definições, “prematuro, extemporâneo,
36
Estão sendo considerados grifos do autor aqueles constantes na edição trabalhada.
37
enormemente daninho ao comércio nacional” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62). Mas
ele, mesmo assim, não se considerava escravista, de modo algum:
“Por modo nenhum”, dizia êle, “me proponho defender a justiça e a eterna
conveniência do comércio de escravos para o Império do Brasil: eu não
cairia no indesculpável absurdo de sustentar, no dia de hoje e no meio dos
sábios de primeira ordem da nação brasileira, uma doutrina que repugna às
luzes do século, e que se acha em contradição com os princípios de
filantropia geralmente abraçados: o que me proponho é mostrar que ainda
não chegou o momento de abandonarmos a importação dos escravos; pois
que não obstante ser um mal, é um mal menor do que não os recebermos”
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62-3).
Mas não somente essa lei levantou opiniões contrárias. O Parecer também discorre sobre as
posições acerca de outras dessas medidas legais, trazendo os argumentos contrários à sua
promulgação em cada época. Sobre a Lei Rio Branco, que previa a libertação dos nascituros,
controversa desde a sua proposta tal qual o Projeto Dantas, dizia-se que preconizava a ruína
do país, que insuflaria uma divisão da mesma classe escrava, além de estarem, a partir de
então, desfeitos os vínculos hierárquicos. Adicionalmente, essa lei resultaria em desordem
social já que incitaria a desobediência dessa classe então dividida (BARBOSA, [1884] 1945,
v.11, t.1, p.66).Temendo os hipotéticos desdobramentos dessa proposta, posicionou-se o Sr.
Perdigão Malheiro:
Receio que as conseqüências desta proposta sejam piores do que os fatos que
determinaram a promulgação da lei de 10 junho de 1835; sinceramente faço
os votos mais fervorosos a Deus, para que esteja em êrro; mas esta proposta,
se fôr lei, prevejo que há de dar em resultado a insurreição dos escravos, a
princípio local ou parcial, para dentro em pouco, tornar-se geral, lastrando
como incêndio em campo sêco, como rastilho de pólvora lançando ao pé da
mina, que, apenas ateado, fará explosão! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11,
t.1, p. 66, grifos do autor)
Mais uma vez o argumento recai para o aspecto não pontual da lei, mas da sua possível
repercussão em tempo previsto como breve: da abolição parcial para a abolição geral.
Insurgência, desordem social e ruína são elementos mais uma vez evocados. Mas além da
repetição desses mesmos argumentos, ainda contra a Lei Rio Branco, o mesmo Sr. Perdigão
Malheiro, citado por Rui Barbosa, adverte:
38
A solução da proposta do govêrno, com êsse complexo de medidas
absolutas, tende infalivelmente a desorganizar tudo, a precipitar com os mais
graves e perigosos inconvenientes a solução, anarquizar o país, e levá-lo ao
abismo, a pretexto de emancipação dos escravos, em gravissimo dano dos
próprios escravos atuais, e da infeliz geração futura, que será, de fato,
escrava! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69, grifo nosso)
O jurisconsulto Sr. Malheiro (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69) passa então a prever
danos à classe que se pretende salvaguardar pela lei. Há a soma então dos argumentos contra a
intervenção legislativa nessa fala: a lei seria então contraproducente tanto no que diz respeito
à população geral, que estaria a mercê de insurgências, revoltas, caindo num “abismo”
socioeconômico que atrairia a si também a população escrava, a qual sofreria “gravíssimo
dano” naquele momento e a longo prazo se constituiria numa “infeliz geração”.
Sobre esse “abismo” a ser escavado pela Lei Rio Branco, José de Alencar 37, fornece, entre
outros, o seguinte parecer:
Quando chegar o dia da execução desta lei, quando surgirem as graves
dificuldades, quando começarem as perturbações, que há de produzir esta
reforma, quando se desvendar o abismo, que uma ilusão fatal hoje incobre ao
gabinete; nessa ocasião S. Ex. há de ouvir, não o eco de além-mar, porém
sim a vos severa de seu partido, o grito angustiado de sua pátria, clamando,
como a voz do Senhor: “Remember what I want hee” Lembra-te do que te
advirto (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69, grifos do autor).
É uma previsão das consequências daquela lei que é retratada como de repercussões nefastas
inevitáveis e que de tão óbvias, depois de promulgada, evocariam, com certeza, a voz dos que
advertiram contra ela. Ele, seguindo a fórmula que se pregava à época, alude ainda à
desordem, à revolução iminente a ser causada pela Lei Rio Branco, “mais uma prova de que
se pretende provocar a desordem [...] por uma ato de ditadura” – entendida como agitadora,
conspiratória, ditatorial e arruinadora do direito de propriedade (BARBOSA, [1884] 1945,
v.11, t.1, p. 70). Alencar via nessa “liberdade compulsória” uma espoliação dos direitos dos
cidadãos, uma perturbação social, um “pretexto” falido de salvação (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p. 70).
37
O fato de ele já ser falecido quando desse resgate de sua fala pode dar margem à suspeição de tal procedimento
por Rui Barbosa. No entanto, esse trabalho compreende que a voz de Alencar fora reportada (inclusive com o
registro entre parêntesis da manifestação de apoio dos partidários da oposição e em meio à convocação de outras
falas de outras figuras políticas, intelectuais, etc.) como forte representação de uma classe escravocrata
“moderada”.
39
Alencar que, aliás, indispôs-se à causa escravista concernente a outras iniciativas jurídicas,
fez, segundo Rui Barbosa, outra menção contrária à lei, digna de nota. Em suas próprias
palavras:
Quando a lei do meu país houver falado essa linguagem ímpia (a da
emancipação pelo ventre), o filho será para o pai a imagem de uma
iniquidade; o pai será para o filho o ferrete da ignomínia; transformarei a
família em um antro de discórdia; criareis um aleijão moral, extirpando do
coração da escrava esta fibra, que palpita até no coração do bruto, o amor
materno! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70)
Dando continuidade a estas palavras, há uma extensa citação, em que José de Alencar – que
se declarou empenhado em defender não “ùnicamente os interêsses das classes proprietárias”,
mas “sobretudo essa raça infeliz [os escravos]” – ao falar da “sinistra” “ideia do ventre livre ,
até então ainda não formalizada em lei, alude ao que opinaria um “profundo jurisconsulto”, o
duque de Broglie, sobre a libertação colônias francesas. Alencar julga que a lei seria de uma
imoralidade que afetaria desde o âmbito familiar (pois iniciaria uma espécie de orfandade,
deixaria “filhos sem pais”, além de “pais sem filhos”) até a instância econômica (com
prejuízo para os proprietários que teriam somente os trabalhadores “relaxados, os péssimos
trabalhadores”, já que os melhores, mais jovens seriam libertos):
Esta idéia do ventre livre é sinistra, senhores: e admira-me que a ilustre
comissão, tendo-a estudado tão profundamente, não se lembrasse das
palavras do Duque de Broglie, escritas no memorável relatório, tantas vezes
citado que ele apresentou como presidente da comissão nomeada em 1840
para tratar da emancipação dos escravos nas colônias francesas.
Para o ilustre publicista e profundo jurisconsulto, a emancipação do ventre
equivale a criar famílias híbridas, pais sem filhos, filhos sem pais: rouba toda
a esperança aos adultos, condenando-os ao cativeiro perpétuo: desmoraliza o
trabalho livre, misturando nas habitações, livres com escravos e garante ao
proprietário unicamente os relaxados, os péssimos trabalhadores. [...]
Por mim, com a mão na consciência, lhes digo que essa instituição,
condenada e repelida, durante três séculos, que te, de existência em nosso
país, nunca, nos seus dias mais lúgubres, teve o cortejo de crimes, horrores e
cenas escandalosas, que há de produzir esta idéia da libertação do ventre
(Apoiados da oposição)
Senhores, não defendo aqui unicamente os interesses das classes
proprietárias: defendo sobretudo essa raça infeliz que se quer
sacrificar.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70)
40
Sob a declarada prioridade de defesa dos interesses da classe escravizada, mas não abdicando
do resguardo dos direitos dos senhores, Alencar continua sua fala. Os supostos desconforto
social e degradação mútua gerados pela convivência de livres e escravos também são
mencionados, os escravos seriam prejudicados pelo desestímulo em conviver com a realidade
liberta tão próxima, mas paradoxalmente tão distante de si ao mesmo tempo que os livres, “ao
contacto dos vícios que ela [a escravidão] gera”, formariam uma nova geração contaminada.
O apelo moral é o que ele evoca: o ventre livre, seria uma ideia, incivil tanto no sentido de
bárbara, desumana, por ser obra de “paixões rancorosas” que agiriam “degradando a espécie
humana ao nivel bruto”, quanto na acepção de ilegal, segundo esse entendimento, a lei seria
utilizada para ou resultaria em fins que se desviavam das regras, ilegais, como agitação
pública, violação de direitos constitucionais, como o direito à propriedade.(BARBOSA,
[1884] 1945, v.11, t.1, p. 71,72.).
Houve, recorrendo-se a esse mesmo apelo, uma inversão – ou nas palavras do Sr. Nébias,
trazidas por Rui Barbosa, essa lei seria utilizada para propósitos injustos já que “os senhores
das escravas, por melhores provas que tenham dado da bondade do seu coração, ficam fora da
lei, não merecem proteção alguma” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70).
Essas deduções estereotipadas, acrescidas de outras, esses “sofismas do escravismo”,
discursos “repetidos e renovados, durante mais de meio século, pelas vozes interessadas na
manutenção do trabalho servil” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.14) também foram
expressos mais tarde, em 1884, quando do Projeto Dantas, que como a Lei do Ventre Livre,
estabelece um critério etário para a abolição: desta vez não só aos nascituros deveria ser
aplicada a alforria em larga escala, mas também aos sexagenários. Para desbancar esses
sofismas, Rui Barbosa redigiu em 19 dias o parecer sobre esse projeto (do qual ele mesmo
fora autor), em 04 de agosto de 1884. As imagens de abolicionismo evocadas fornecem um
quadro da mentalidade dos que se opunham ao texto do projeto. Para além da questão moral
constantemente mencionada, com base no breve apanhado dos argumentos levantados contra
as leis abolicionistas anteriores ao Projeto Dantas, a fim de preservar essas verdades, o grupo
escravocrata lançava mão de raciocínios que especulavam, principalmente, sobre:
a. Inevitáveis prejuízos econômicos. Caso se implantasse no Brasil a mudança do modo de
produção, abandonando a tradição escravocrata, a economia do Brasil não se sustentaria,
mesmo que isso se configurasse em uma alteração pontual, como a libertação do segmento no
início (nascituros) ou no fim (sexagenários) de sua vida;
41
b. Desordem pública. Revoltas, divisões internas nas camadas sociais entre trabalhadores
livres e escravos, divisões familiares, estado de insegurança generalizado, formavam as
previsões funestas;
c. A pretensa superioridade da qualidade de vida dos escravos quando comparada a dos
proletários europeus contemporâneos. Alertavam para uma piora significativa na qualidade
de vida dos escravos caso sua condição mudasse para o proletariado, trazendo a ideia forçada
da superioridade da vida de um cativo sobre a vida de um proletário europeu;
d. A ideia de que se deveria proceder a infindáveis pesquisa de opinião e estudos. Diziam
que somente depois dessa coleta seria feita a melhor opção pelo pleito popular e/ou por
análises socioeconômicas profundas; e, por fim,
e. A crença de que a substituição do trabalho escravo pelo dos colonos europeus seria
espontânea e gradativa/ ou ainda que o fim do trabalho escravo se daria via alforrias
individuais ou mortandade. Sendo assim, não se deveria fazer nada para interferir
precocemente no curso das mudanças sócio-histórico-econômicas que por si já conduziriam
para a libertação dos cativos.
Nesse sentido, a um antiabolicionista da época, por exemplo, era admitido o esquema de
pensamento materializado num excerto como este da petição feita à Câmara em 14 de junho
de 1884 pelo Imperial Instituto Bahiano de Agricultura que reunia comerciantes e lavradores:
Mais que um bem patrimonial, mais que um elemento da fortuna privada, o
escravo é uma instituição social, é um elemento de trabalho, é uma força de
produção e da riqueza nacional em fim.
A lavoura e o comércio desta província não são escravagistas, como
ninguém o é no século em que vivemos. Mas a escravidão tendo entrado
em nossos costumes, em nossos hábitos, em toda a nossa vida social e
política, acha-se por tal forma a ela vinculada que extingui-la de momento
será comprometer a vida nacional, perturbar sua economia interna, lançar
esta na indigência, na tenda do crime e no precipício de uma ruína
incontrolável (COSTA, 2008, p.82, grifo nosso).
Rui Barbosa então teria de dirigir a sua argumentação a um auditório que se autodefinia
abolicionista, mas que, diante das medidas legais já promulgadas (as quais garantiam
isoladamente modalidades diferentes de alforrias parciais), declaravam entender o Projeto
Dantas como desnecessário e abusivo – segundo eles, as medidas anteriores por si só, em um
período curto, levariam à abolição total, além de que ao ser observado o excerto acima, a
42
preocupação não era com a manutenção de algo somente compreendido como propriedade
privada, mas com a manutenção de um modo de trabalho exitoso, instituído pela tradição e
crucial para a estabilidade econômica do Brasil.
No entanto, para Rui Barbosa, havia a necessidade de algo mais abrangente, da extensão das
alforrias a um outro grupo social, desta vez, aos sexagenários – por meio do Projeto Dantas.
Os contra-argumentos de Rui Barbosa no Parecer ao Projeto Dantas abrangem aspectos
éticos, econômicos, demográficos e históricos, muitas vezes interfaceados e incidem
principalmente na ideia prevista em sua supramencionada conferência, a que afirma que a
escravidão brasileira “além de ilegítima, como toda a escravidão, é também ilegal, em virtude
da Lei de 07 de novembro de 1831”. Com isso o orador evoca uma ruptura dupla, de
implicação mútua: tanto da legitimidade quanto da legalidade do sistema escravocrata.
43
3 ARGUMENTAÇÃO NO PARECER AO PROJETO DANTAS – TOPOI
RETÓRICOS E TIPOS ASSOCIADOS
“A liberdade é uma restituição, e a indenização
perde rapidamente o caráter de um direito”
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 105)
Assim como seria simplista entender a Abolição da Escravatura como um ato definitivo,
suficiente, para a posterior equiparação socioeconômica de afrodescendentes seria equivocado
perceber a iniciativa oficial de se abolir a escravatura de modo pontual, ou isolado. Conforme
já explicitado na seção anterior, a emancipação generalizada do elemento cativo, admitida em
lei, é parte de uma cadeia de projetos abolicionistas, frustrados ou legalizados. Quaisquer que
tenham sido os motivos específicos que desembocaram nesse evento de 1888, admite-se que
ele não parte de uma ideia individual/principal, seja de uma pessoa ou de um grupo
específico, como um grupo de parlamentares; parte de um descontentamento alastrado, seja
pelo descompasso entre o modo de produção e a expectativa de lucro, seja pela elevação
(mesmo que tardia) de condição humana para aquela classe escravizada, seja por percebê-la
como um subterfúgio para a derrocada do sistema político monárquico para o republicano, ou
ainda pela luta (mais ou menos organizada, mais ou menos cruenta, mais ou menos exitosa,
mas factual), protagonizada pelos próprios negros.
Equívoco seria também não entender a importância dessas leis. Mesmo de projetos que não
foram legalizados ipsis litteris, como o Projeto Dantas de 1884. Evidente que a extensão de
sua aplicação tem se colocado aquém da expectativa de alguns críticos de então ou de
determinados estudiosos de agora, ainda mais quando examinados números que relatam a sua
aplicação pro forma, mas não se pode desprezar sua importância quer para minar a
legitimidade do domínio dos senhores, quer para empoderar os escravos que poderiam
recorrer a leis que defendessem seus anseios (MENDONÇA, 2008).
Poder-se-ia examinar o texto que elenca os motivos para que o Projeto Dantas se sustentasse
de muitas outras formas, tanto pela sua extensão, quanto pelos aspectos por ele tocados. O
recorte dessa seção, no entanto, incidirá sobre a dicotomia propriedade X liberdade
44
desenvolvida nos tipos e lugares argumentativos retóricos acessados por Rui Barbosa em
diálogo com seus contemporâneos parlamentares/proprietários. Faz-se uma condução dos
expedientes argumentativos ruianos mais condicionado pela organicidade do Tratado de
Argumentação: a nova retórica de Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca do que pela
ordem de apresentação do Parecer ao Projeto Dantas. Enquanto que a seção anterior se
ocupa em introduzir a argumentação de Rui Barbosa com pontos da primeira parte do
Tratado, Os âmbitos da argumentação, este texto se vale, principalmente, de aspectos da
segunda e terceira partes do Tratado:
a. com a segunda parte do Tratado de argumentação: a nova retórica, intitulada O ponto
de partida da argumentação, será feita uma articulação entre os topoi (os lugares
argumentativos) anti e pró Projeto Dantas, uma exposição sobre como o texto do
Parecer elenca esses arranjos de certos valores e sua desconstrução/ rearranjo por Rui
Barbosa;
b. da terceira parte, As técnicas argumentativas, são destacados tipos de argumentos em
funcionamento e a ênfase é dada aos
i.
Argumentos quase-lógicos, que podem se utilizar de “estruturas lógicas –
contradição, identidade total ou parcial, transitividade” ou ainda de “relações
matemáticas – relação da parte com o todo, do menor com o maior, relação de
frequência”(PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.220),
por exemplo. Como são menos formais, as relações de preponderância não são
fixas. Desses tipos de argumentos, o destaque é dado aos topoi e aos
procedimentos de autofagia. Além desses, utilizam-se os
ii.
Argumentos baseados na estrutura do real que se oporiam a esses que se
relacionam com a lógica e a matemática para se utilizar de estruturas que
articulam “juízos possíveis e outros que se procura promover” (PERELMAN E
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.298), sendo menos racionais, mais
objetivos que aqueles; mais especificamente, das ligações de coexistência, que
“relaciona uma essência com suas manifestações” (PERELMAN E
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.333), manobrando a essência do
prestígio, como o argumento de autoridade;
iii.
As ligações que fundamentam a estrutura do real (como o uso de analogias e
as argumentações pelo exemplo, pelo modelo e pelo antimodelo) que se
ancoram em fatos de conhecimento amplo para instaurar uma regra mais geral.
45
A analogia tem a função de apresentar uma realidade conhecida de modo
estruturado, sendo um recurso de presença, na medida em que vivifica na
mente do auditor a tese apresentada; e
iv.
A dissociação das noções que se opõe à solidariedade de técnicas
argumentativas, com a abordagem do par aparência-realidade.
Esse é um recurso analítico necessário, que consiste em “separar articulações que são, na
verdade, parte integrante de um mesmo discurso e constituem uma única argumentação de
conjunto”. (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.211). Não é de se
estranhar, portanto, que os assuntos do Tratado se tangenciem vez por outra, ou que possam ser
percebidos como um continuum não como uma oposição – vide a autofagia e o argumento de
autoridade que podem ser reunidos pelo uso do traço de prestígio, seja do raciocínio lógico ou
de um elemento social – já que a preferência em seguir a macro-ordem dessa obra não implica
necessariamente uma análise engessada pelos limites didáticos de cada parte desse texto.
3.1 DIREITO DE PROPRIEDADE EM QUESTÃO
A fim de sedimentar o ponto do não pecúlio aos então proprietários de escravos, Rui Barbosa
recorre ao desmantelamento dos pressupostos argumentativos que sustentavam, anos antes, a
Lei do Ventre Livre, denominada pelo próprio parlamentar, devido à polêmica gerada, como
precursora do Projeto Dantas38: “Bem vê, pois, a Câmara que do escândalo imputado ao
projeto Dantas alei de 28 de setembro poderiam bem disputar as honras de mãe [...]”. No
parágrafo seguinte, o próprio Rui Barbosa explica qual seria a matriz presente nas discussões
sobre essa lei que poderiam ser estendidas ao Projeto Dantas: “A negação do direito de
propriedade ao senhor em relação aos escravos transluz diàfanamente por entre o texto da lei
de 28 de setembro” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.96). O ponto nevrálgico é a
assunção ou não da ideia de propriedade sobre a escrava e também sobre o fruto de seu
ventre, direito de propriedade esse posto em questão em momentos posteriores.
38
Mesmo que haja constante recorrência aos argumentos e contra-argumentos mobilizados quando da Lei do Ventre
Livre e repetidos na época da defesa do Projeto Dantas, isso não significa que ela seja considerada como uma lei
completa, sem falhas. Os seus artigos ainda resguardavam o direito de propriedade por se preocupar com
indenização pecuniária, mais rara, ou por serviços prestados – o que daria a efetiva liberdade ao cativo a partir de
sua segunda década de vida (21 anos), algo mais fequente. Por isso, na década de 1880, dizia-se que essa lei
“respeitou o principio da inviolabilidade do dominio do senhor sobre o escravo” (NABUCO, [1883], 2011, p.68).
46
Tanto para o Projeto Dantas quanto para seu respectivo Parecer, o prisma da contestação do
direito de propriedade se justifica da seguinte forma: o caminho escolhido seguirá um fato,
uma opinião sedimentada pela tradição, pelos hábitos do povo e jurídicos, ou seja, pelo que é
comumente aceito nessas instâncias – recorrendo ao texto da Constituição Imperial (ao direito
português e ao brasileiro)39 assim como ao da sua antecessora, a Constituição Romana, e à
opinião circulante, esclarecendo questões como a natureza dessa propriedade escrava e da
indenização por valores parciais decrescentes. Busca-se por uma veracidade e uma via de
assentimento construída pelo tempo, por ele solidificada e por isso amplamente acessada, por
ser uma verdade submetida “aos interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes
do povo” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121):
A questão que se contende entre a indenização e a gratuidade, não é uma
questão de direito, mas uma apreciação do interesse público que aconselha
se repeite, até onde a ordem geral e a fortuna nacional o exigirem, a boa fé
de interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo.
É sob este aspecto que encararemos a libertação dos escravos de sessenta
anos.” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121)
O orador Rui Barbosa parte então do ponto de assentimento compreendido como comum, de
aceitação ampla pelo seu auditório imediato, composto por aquela sessão plenária numérica e
politicamente representativa da sociedade de então, “o conjunto daqueles que o orador quer
influenciar com a sua argumentação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005,
p.22). Ele percebe seus auditores não só como capazes de compreender essa verdade
instituída, mas como partícipes, cada membro em diferentes graus, na sua manutenção, já que
essa verdade, por ser a opinião da maioria – e possivelmente, de certo modo, a opinião geral,
de todos, universal – deve tocá-los. Sobre os fatos e as verdades e sua relação com o
auditório, Perelman e Olbrechts-Tyteca, assim expressam-se:
39
Após a Constituição Luso-Brasileira de 1822, válida para o então Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves,
o Brasil, ao todo, conta com 07 Constituições: a primeira promulgada em 1824, pós-independência de 1822, por
D. Pedro I instituiu quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador, predominante) e o voto
indireto, não secreto e censitário (por renda); a segunda de 1891 (da qual Rui Barbosa foi revisor, pósproclamação da República, em 1889), trouxe como modificações a queda de instituições da Monarquia, como o
Poder Moderador, o Senado Vitalício e o Conselho do estado, estatuindo o Presidente como chefe do Poder
Executivo, o voto por idade (homens a partir dos 21 anos), e o limite de um quadriênio para o mandato do
Presidente; a terceira e 1934, pós- revolução de 30 e pós- República Velha, contemporânea da ascensão de
Getúlio Vargas, regulamentou, dentre outros, os aspectos trabalhistas e incidiu sobre reformas socioeconômicas;
a quarta, de 1937, veio em decorrência da implantação do Estado Novo, com um golpe de Estado, era
centralizadora, autoritarista; a quinta, de 1946, veio com o fim desse regime; a sexta, de 1967, cuidava
principalmente e questões de segurança nacional do regime ditatorial; e a atual, de 1988, pós- Diretas Já! de
1980, com algumas cláusulas irrevogáveis, como as eleições diretas e o voto universal, redemocratizando o
Estado. Cf. http://www.brasil.gov.br/sobre/o-brasil/constituicao/constituicoes-anteriores.
47
Entre os objetos de acordo pertencentes ao real distinguiremos, de um lado,
os fatos e as verdades, de outro, as presunções. Não seria possível, nem
conforme ao nosso propósito dar ao fato uma definição que permita, em
todos os tempos e em todos os lugares, classificar este ou aquele dado
concreto como sendo um fato. Cumpre-nos, ao contrário, insistir que, na
argumentação, a noção de “fato”é caracterizada unicamente pela idéia que se
tem de certos gêneros de acordos a respeito de certos dados: os que se
referem a uma realidade objetiva e designariam [...] “o que é comum a vários
entes pensantes e poderia ser comum a todos”. (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p.75).
Tal verdade não pode ser, portanto, um fato atemporal e onipresente já que diz respeito ao
momento histórico e local imediatos de determinado auditório. Não pode ser ainda uma
verdade categórica, única e igualmente assumida para cada membro do auditório, é uma
verdade que mesmo e porque assumida com variações de aderência apresenta baixo risco de
perca de status de fidedignidade. Por esse caráter quase incontroverso, não se busca adesão ao
fato porque ele já é concebido como tal, porque “A adesão ao fato não será, para o indivíduo,
senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos” (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p.75). E, o empenho em se utilizar do fato como recurso
argumentativo imponente, a princípio indiscutível porque é a base do acordo universal, é para
que o Projeto Dantas seja adotado – ainda que essa decisão de adesão escape ao orador,
cabendo a cada parlamentar ser movido pessoalmente pelo convencimento consentido.
3.2TOPOI RETÓRICOS NO PARECER AO PROJETO DANTAS
Perelman e Olbrechts-Tyteca compreendem os lugares-comuns, ou os topoi, como princípios
argumentativos, como “ponto de partida das argumentações” (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 105, grifo dos autores) “primeiros acordos no campo do preferível,
dos quais todos os outros poderiam ser deduzidos e que eles permitiriam, portanto, justificar”.
Sendo assim, o acordo seria efetivado com preferências pessoais, por sua vez alicerçadas por
preferências sociais: “Quando um acordo é constatado, podemos presumir que é fundado
sobre os lugares mais gerais aceitos pelos interlocutores” (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 95,96). Esses lugares, que podem ser entendidos como indicações
classificatórias de argumentos, “são premissas de ordem geral utilizadas para reforçar a
adesão a certos valores” e hierarquias (ABREU, 1999, p. 85). Quanto à sua classificação,
48
puramente didática e não exaustiva, os lugares-comuns podem ser agrupados como sendo
lugares de quantidade e lugares de qualidade. Motivos quantitativos são o principal argumento
da primeira classe de lugares, segundo a qual “uma coisa é melhor do que a outra por razões
quantitativas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.97); opondo-se a ela
e valorizando o único, o raro, o original, o que não pode se repetir, os lugares de qualidade
“contestam a virtude do número” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.97). Há
ainda exemplos de subclassificações que são alocadas nesses dois tipos, os lugares de ordem,
de essência, de pessoa e do existente. Em linhas breves:
a) os lugares-comuns de ordem são os que afirmam que uma coisa é melhor do que a outra
pela precedência ou pela casualidade;
b) os de essência são os que lidam com valores éticos e/ou estéticos, os que materializam
melhor um padrão, uma essência, sendo, por essa materialização, portadores de um valor
intrínseco;
c) já os lugares de pessoa, que se originam dos valores da pessoa, recorrem à argumentação
que prima pelas pessoas, pelo humanitarismo, pelo empenho, pelo mérito, pela dignidade e
pela autonomia, por exemplo; e
d) os do existente, por fim, primam pelo que existe, o real, o concreto, não pelo que não
existe, o possível, o utópico.
Tais categorias de ideias são mobilizadas em diferentes arranjos de ideias, isto é, em diversas
combinações de lugares, por todos os auditores, e não seria diferente com aqueles para os
quais Rui Barbosa dirigia a sua argumentação, mesmo sendo alguns deles “abolicionistas”
adversários. Caberia a ele lançar mão dos lugares preferidos de seu auditório e é esse o
exercício que pode ser observado a seguir.
3.3VALORES E HIERARQUIAS NO PARECER AO PROJETO DANTAS
A questão da natureza da propriedade do ventre da escrava serviu de mote para que Rui
Barbosa direcionasse a questão da propriedade ao sentido amplo. O raciocínio partia da ideia
de que se a propriedade do nascituro poderia ser questionada, sendo esse questionamento um
caso particular convertido em realidade jurídica e, com certo alcance, em realidade social,
49
então a propriedade em geral também poderia sofrer a mesma abordagem e obter os mesmos
desdobramentos – ou, ao menos, poderia ser encontrado um precedente que validasse o
questionamento da natureza da propriedade de um outro caso particular, o dos sexagenários.
Para tanto, buscou-se a refutação dos argumentos sustentados pelos não partidários da Lei de
1871 na época de sua proposta (ou por aqueles que só aderiram à lei de modo pro forma). Eles
diziam que “o fruto da escrava” equivaleria, em termos de posse, ao fruto de quaisquer fontes
econômicas, como gado ou lavoura:
Os adversários da lei de 1871 sustentavam então:
1º. Que o fruto da escrava pertence ao senhor pelo mesmo título que os da
sua lavoira, ou os do seu gado.
2º. Que a mera possibilidade do nascimento, constitue, para o proprietário da
escrava, uma propriedade perfeita.
3º. Que a pretensa indenização da lei de 28 de setembro não indenizou os
senhores expropriados (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 90).
O nascimento em potencial, em si, já se configuraria como propriedade, supostamente
prejudicada pela troca por uma indenização não compensatória prevista em lei (títulos de
renda temporária em 600$000 ou trabalho compulsório do ingênuo até os 21 anos). Por esse
motivo, era evocado o partus sequitur ventrem como princípio mantenedor da legitimidade
dos direitos sobre os nascidos pós-lei emancipatória – e, portanto, asseverativo – que não
poderia ser desconsiderado por “razões de transcendência política, ou meramente
humanitárias, como o disse o parlamentar Paulino de Sousa:
Considerada juridicamente, a injustiça da disposição é atentatória do direito
de propriedade [...] A questão não é de direito natural, mas de direito
positivo, e à luz dos princípios dêste é que se deve discutir. O que cumpre,
pois, averiguar antes de tudo, é se, com relação ao direito de propriedade, a
legislação sujeitou esse ser humano, sôbre que ela recaiu, aos mesmos
princípios e sistema que em geral se estabelece.
O direito de propriedade abrange tudo quanto se contém naquilo que é dele
objeto: quer seja o próprio objeto, quer o que dele resulte, e decorra, ainda
mesmo como uma possibilidade, ou eventualidade [...]
As escravas são propriedade, e propriedade são os filhos que tiverem, como
são os que têm tido até hoje, sujeita aos mesmos princípios [...] sejam quais
forem as razões de transcendência política, ou meramente humanitárias, que
nos levem a extinguir a escravidão, não o podemos, contudo, fazer, sem
indenizar os senhores dos valores dos respectivos escravos: como
deixaremos de aplicar o mesmo princípio no tocante aos filhos, que
50
nascerem das escravas na constância do cativeiro? Não tem, porventura, o
nosso direito reconhecido sempre, como inconclusa, a aplicação às escravas
do axioma do direito partus sequitur ventrem? (BARBOSA, [1884] 1945,
v.11, t.1, p.91-93).
O partus sequitur ventrem, termo latino que vertido em português seria “o parto segue o
ventre” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.132), foi um princípio jurídico utilizado tanto
por Paulino de Sousa nesse excerto quanto aos demais opositores à Lei do Ventre Livre para
legitimar a extensão do domínio do senhor aos descendentes de suas cativas, numa relação
análoga à posse das crias de seu gado, ou aos frutos de sua lavoura. Portanto seria um
princípio impeditivo da alteração legal proposta em 1871. Não poderia haver “dois pesos e
duas medidas”, o direito de propriedade teria igual funcionamento à tudo aquilo que se
entendesse como posse, quer pessoas, quer coisas. Outro parlamentar reportado por Rui
Barbosa, Pereira da Silva40, assim ironiza:
[...] O nobre ministro da Agricultura levantou uma teoria nova, desconhecida
na nossa legislação civil, no nosso direito público, e é que a escrava é uma
propriedade sui generis, não igual a qualquer outra propriedade, e que,
portanto, não se lhe estende o direito ao futuro fruto, não existente e não
criado, e se pode aplicar o princípio de se conceder a liberdade a esse ente
não conhecido, sem ofender as regras e doutrinas da propriedade. Onde
distinguiriam a Constituição e as leis vigentes essa espécie de propriedade
nova? Onde a encontra o nobre ministro, para achar-lhe diferença da mais
propriedade? O direito romano, que é o exemplar de tôdas as legislações,
suma sabedoria escrita, continha o incontestável preceito do partus ventrem
sequitur. Não é propriedade o fruto da árvore, o fruto da terra, a colheita da
sementeira?[...] A Constituição só permite a desapropriação mediante a
indenização. Vossa proposta nenhuma oferece; porque a soma de 36$0 por
ano, e só durante 30 anos, é a paga da criação e da educação do menor até a
idade de 8 anos, e tanto que só paga os que chegarem vivos a essa idade.
(Apoiados) (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.91-95).
Insta, esse parlamentar, para que se aponte a procedência da diferenciação entre a propriedade
escrava e a propriedade de qualquer outro tipo para que o direito à indenização escape ao
senhorio. A escrava não seria uma propriedade “sui generis”, mas igual a qualquer outra. Não
haveria precedência legislativa e por isso mesmo nem lugar apropriado para se tratar desse
novo “ente”. Mas não era somente o partus sequitur ventrem o preceito trazido à lembrança.
Nos tempos do Projeto Dantas, outro disposto evocado como crítica foi o statuliberi, os
cativos jovens, em sua totalidade, com o sancionamento da lei proposta, mudariam seu status
de escravos para homens libertos em potencial, já que estariam aguardando a condição de
40
Joaquim Manuel Pereira da Silva.
51
completarem 60 anos para obterem a liberdade, assim como o eram os alvos da Lei do Ventre
Livre. Os opositores entendiam o statuliberi assim como o parlamentar Afonso Celso41 cuja
transcrição da fala no Parecer assim o define:
Decretado que entrarão no pleno gôzo da liberdade todos os escravos, que
completarem uma certa idade, qual é a situação dos mais moços, segundo o
direito? Já não são escravos, passam a statuliberi, isto é, a homens que
adquiriram a liberdade, que já possuem esse direito inauferível, cuja
efetividade, entretanto, fica dependendo de uma condição de tempo.
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.130).
Seriam esses homens, então, a rigor, pela interpretação dos discordantes do Projeto, homens
com direito à liberdade na condição escrava, passíveis de determinados direitos antes
usufruídos somente pelos cidadãos, escapando ao tratamento dados aos escravos, como as
punições com açoites42, a venda e o aluguel. Haveria com isso a violação do direito à
propriedade não somente dos escravos que completassem 60 anos, mas de todos os outros,
que já não poderiam mais ser encarados como submetidos. Tudo isso ameaçado e fruto de um
projeto calcado em transformações que punham em contradição preceitos legais e de
motivações humanitárias.
Há, com a recorrência tanto ao statuliberi, quanto ao partus sequitur ventrem, uma
hierarquização entre valores jurídicos e filantrópicos: a tradição em jurisprudência deveria ser
mantida em detrimento de motivações humanitárias ou extraconstitucionais. O auditório, o
plenário, então elege, não somente valores independentes – não é a força da Carta Magna
escolhida como posição argumentativa isoladamente –, mas sua configuração relacional com o
valor amor à humanidade, este ordenado em grau inferior àquele por representar fraca adesão:
As hierarquias de valores são, decerto, mais importantes do ponto de vista da
estrutura de uma argumentação do que os próprios valores. Com efeito, a
maior parte destes são comuns a um grande número de auditórios. O que
caracteriza cada auditório é menos os valores que admite que o modo como
os hierarquiza (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.92).
41
Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto (1836/1912), chegou à Câmara aos 28 anos de
idade, em 1864e participou do Partido Liberal. De vida política intensa, chegou ao cargo de Conselheiro de
Estado. Cf. ATAS DO CONSELHO DE ESTADO PLENO – TERCEIRO CONSELHO DE ESTADO, 18801884.
Disponível
em:
<http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS11Terceiro_
Conselho_de_Estado_1880-1884.pdf> . Acesso em: 10 de janeiro de 2014.
42
Os açoites só cessaram como punição aos escravos com a Lei 3.310 de 15 de outubro de 1886, que revogou o
artigo nº 60 do Código Criminal de 1830 e a Lei nº 4 de 10 de Junho de 1835 e determinou que “Ao réo escravo
serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais legislação em vigor para outros
quaesquer delinquentes”.
52
Essa organização hierarquizante não é necessariamente fixa, visto que lida com valores
individuais, de independência relativa no que concerne à sua adesão, e define a argumentação
mais eficaz para determinado auditório. Os valores, mesmo que amplamente admitidos,
sofrem uma adesão de intensidades diferentes numa escala de predominância.
O poder legítimo, endossado pela lei suprema nacional, que, por sua vez, constitui-se em um
elo de uma cadeia de longa tradição jurídica, é acessado por ser de ampla aceitação, a
princípio, em detrimento de manifestações de filantropia. Desse modo, para esse auditório
visado pelos parlamentares oponentes, os lugares-comuns de essência e de ordem sobrepõemse e sobrepujam o de pessoa: a precedência dos elementos do partus sequitur ventrem e do
statuliberi que atravessaram séculos e se mantiveram como componentes/princípios
constitucionais no Brasil do séc. XIX (Constituição essa que por si mesma já evoca
autenticidade), seriam superiores a qualquer disposição humanitarista condescendente,
anulando-a. Os traços de tempo e duração evocam o lugar de quantidade, enquanto que os
lugares de estabilidade e segurança indicam qualidade. Esses últimos poderiam ainda ser
qualitativamente reunidos como lugar do único:
O único é, nesse caso, o que pode servir de norma: esta adquire um valor
qualitativo em relação à multiplicidade quantitativa do diverso. Opor-se-à a
unicidade da verdade à diversidade das opiniões [...] Esse mesmo lugar serve
a Pascal para justificar o valor do costume: “Por que se seguem as antigas
leis e as antigas opiniões? Será que são as mais sadias? Não, mas são únicas,
e nos estirpam a raiz da diversidade (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, 2005, p.104-105).
O único, então, opõe-se e é posto em grau superior ao diverso. Uma opinião de larga
aceitação, com estatuto de verdade tem muito mais força argumentativa do que opiniões
particulares diversas. O valor imperativo do único, nesse caso, mescla-se com o valor
irrefutável de fato, de verdade, já que o único é a norma, o partur sequitur ventrem/ o
statuliberi, como metonímia da lei. E o único, nesse caso, também é a essência, que melhor
materializa a norma, a legislação. O lugar-comum qualitativo de essência também pode ser
evocado como via analítica, já que se superpõe.
Pode-se perceber o quantitativo como valoração por elementos de natureza contrária ao
qualitativo, mas ao mesmo tempo complementar. Só se pode entender o qualitativo “único”
como “norma”, como tradição, pelo seu uso quantitativo, frequente, costumeiro, “normal”:
53
O que se apresenta mais amiúde, o habitual, o normal, é objeto de um dos
lugares mais utilizados com mais frequência, a tal ponto que a passagem do
que se faz ao que é preciso fazer, do normal à norma, parece, para muitos,
ser natural. Apenas o lugar da quantidade autoriza essa assimilação, essa
passagem do normal, que expressa uma frequência, um aspecto quantitativo
das coisas, à norma que afirma que tal frequência é favorável e que cumpre
conformar-se a ela [...] a apresentação do normal como norma exige,
ademais, o uso do lugar da quantidade (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, 2005, p.99).
Percebendo que recorrer somente ao caráter humano dos escravos sexagenários não seria o
suficiente para rebater os argumentos dos opositores ao Projeto, Rui Barbosa, no Parecer, faz
uso dos mesmos lugares-comuns. Ele reconhece, inicialmente, a incompatibilidade dos
valores em jogo e que a escolha de um como subordinante resulta na exclusão do outro, o
subordinado (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.94). Contudo, ele
admite isso apontando falhas de compreensão do texto legal e estabelecendo comparações
com outros dispositivos jurídicos de sociedades também respeitadas. Primeiro, Rui Barbosa
parte para a refutação dos motivos de protesto dos senhores: direito de propriedade e valor da
indenização.
3.4 VALORES, HIERARQUIAS E TIPOS ARGUMENTATIVOS: QUESTIONAMENTO
DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Diferente do que se afirmava, segundo o próprio Rui Barbosa, a Lei de 28 de setembro de
1871 negava o direito de propriedade, já por não denominar assim, como “propriedade”, a
posse do senhor43. Sendo assim, os proprietários já iniciavam seu pleito por algo
supostamente legal, mas que sequer havia sido textualmente mencionado na lei dentro da
concepção alegada, dado que o parecer sobre a proposta de 12 de maio de 1871, apresentado
no dia 12 de junho do mesmo ano à Câmara dos Deputados, já definia que propriedade não
era uma noção aplicada a pessoas:
Varrendo, pois, da mente, essas associações de ideias ad terrorem, já
desacreditadas aos olhos do senso comum, investiguemos com a
jurisprudência e a história parlamentar, os caracteres que definem, entre nós,
a concepção do direito do senhor sôbre o escravo.
43
Isso também não é ponto pacífico. Porém é uma afirmação extraída da fonte.
54
É uma verdadeira propriedade? de que natureza? em que limites?
A legislação civil que herdamos da metrópole nunca legitimou a escravidão.
Contra o disposto no direito romano ( L. 5, §2, L.24 D de statuhomin e L. 9D
de Decur), a Ord. 1, I. IV, t. 82 pr. e o Alv. de 30 de julho de 1608
condenaram o cativeiro, afirmando que o legislador sempre o considerara
contrário à natureza. [...]
Quanto à Constituição do Império, esta não contém no seu texto uma palavra
que pressuponha o cativeiro. Logo, se mais uma vez alude a libertos, parece
claro que, longe de estender-se ao futuro, não se referiria senão aos preexistentes. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.98-99, grifos do autor).
Admitindo-se que a lei fizesse referência à propriedade, essa não seria à propriedade escrava,
já que ela sequer qualificava assim, segundo Barbosa, aquele seguimento social. E mais, foi
ressaltado que todo o histórico legislativo negava esse status de propriedade ao elemento
escravizado. Havia referência nominal a libertos o que demanda um deslocamento de visão
para os então vistos como posse. Já acerca da indenização, Barbosa afastava a de natureza
pecuniária e ressaltava que a lei só fazia menção à prestação de serviços por sete anos.
Revisitando a legislação civil derivada da metrópole, que, por sua vez, provinha do direito
romano (ou seja, fazendo o mesmo trajeto argumentativo que os seus opositores), ele não
encontra amparo legal para a escravidão, considerando o cativeiro “contrário à natureza”
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, pp.98-99). Nas palavras de Barbosa:
Sob o direito romano mesmo não foi senão por uma analogia imperfeita que
se estendeu a autoridade do senhor sôbre o escravo, a designação de
propriedade, dominium. Nunca a legislação da antiga Roma desconheceu no
escravo o homem: a assimilação entre escravo e a coisa circunscrevia-se à
subordinação análoga de ambos ao arbítrio do senhor. Havia, porém,
relações de família que se respeitavam no cativo; a injúria infligida ao
escravo tinha uma repressão penal (L.1§3 de injur.) no actio injuriarum. A
possibilidade de emancipação e o direito a uma espécie de patrimônio
pessoal no pecúlio distanciavam infinitamente o domínio sôbre as coisas do
que se exercia sôbre os homens privados da liberdade (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p. 102, grifos do autor).
Esse disposto, anos antes, havia permitido a emancipação dos indígenas, primeiro
pontualmente, no Pará e no Maranhão em 6 de junho de 1755, depois, em geral, em 8 de
março de 1758. Assim sendo, os aspectos pleiteados supostamente amparados legalmente, o
direito de propriedade e a indenização pecuniária, segundo Rui Barbosa, não encontravam
respaldo jurídico tanto que havia o precedente da alforria indígena.
55
Aos que contestavam o caráter constitucional da alforria não indenizada financeiramente foi
contestado o caráter constitucional da escravidão. Rui Barbosa recorreu à retorsão, segundo a
qual “é preciso uma interpretação do ato pelo qual o adversário se opõe a uma regra”
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.232). A retorsão é uma modalidade da
autofagia que “opõe [...] uma regra a consequências resultantes do próprio fato de ter sido ela
afirmada”(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.231).
Mas o procedimento argumentativo não se limitou a tal uso de autofagia em que se provoca a
debilidade argumentativa “ao mostrar as incompatibilidades reveladas por uma reflexão sobre
condições ou consequências de sua afirmação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p.233). Esse é apenas um dos modos de se refutar um argumento quase-lógico: isso
poderia ser feito também de outros modos como indicação de contradição ou de fuga “do
raciocínio rigoroso” (raciocínio lógico) por se recorrer a aspectos não lógicos,
desprestigiados, como os passionais (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.220).
Ainda refletindo sobre a Constituição Romana, habitualmente posta como base para a
legitimidade do sistema escravocrata de então, Rui Barbosa entende que tal constituição vê o
elemento escravo como reificado somente quando se trata de relações hierárquicas, de haver
subordinação do escravo para com o senhor. No entanto, o aspecto humano do escravo era
preservado, por exemplo, quando se asseguravam, legalmente, suas relações familiares. De
acordo com o que sinaliza Antônio Suárez Abreu (2007, p.28), “quando queremos argumentar
pela analogia, utilizamos como tese de adesão inicial um fato que tenha uma relação analógica
com a tese principal”. O étimo do termo analogia traria seu sentido de proporção, de
igualdade de relações, todavia, em vez dessa ideia matemática evocada, o uso da analogia é
embasado na relação de semelhança, de identidade entre os elementos de dois pares ou mais.
Desse modo, aqueles opositores quando revisitavam o Direito Romano para validar o estatuto
social do cativo, viam as seguintes analogias:
I.
A propriedade do homem sobre o outro homem está para a Constituição brasileira
assim como o dominium estava para o Direito Romano.
II.
A propriedade estava para as pessoas no Direito Romano assim como a
propriedade estava para as coisas no Direito Romano.
A analogia seria constituída pela correlação de elementos (mais tipicamente quatro) em que
dois constituiriam o tema e os dois outros, o foro. O tema e o foro teriam de necessariamente
56
se configurar em relações paralelas, “A está para B assim como C está para D”, sendo o foro o
elemento mais conhecido, servindo para esclarecer o tema ou “estribar o raciocínio”
(PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.424). O conjunto A e B, que formaria o
tema, seria a propriedade e a Constituição brasileiras ou propriedade sobre pessoas; o
conjunto C e D, para dar suporte ao raciocínio, o foro, seria o dominium e o Direito Romano
ou propriedade e coisas, assim:
Quadro 01 – Analogias no Parecer ao Projeto Dantas
ANALOGIAS TEMA A
I.
propriedade
TEMA B
FORO C
FORO D
Constituição
dominium
Constituição
Brasileira
II.
Romana
propriedade sobre
Constituição
propriedade sobre
Constituição
pessoas
Romana
coisas
Romana
A imperfeição na analogia se dava porque, segundo Barbosa, não eram, mais uma vez,
resguardadas as diferenças de submissão ao senhor. O alcance da subordinação era mais
restrito quando aplicado a pessoas que, diferente de coisas, tinham “a possibilidade de
emancipação e o direito a uma espécie de patrimônio pessoal no pecúlio” (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p. 102). Então já havia diferenciação e não analogia entre a propriedade de
pessoas e coisas desde Direito Romano. A formulação da analogia pelos opositores ignorava
aspectos que retiravam sua validade.
Nesse momento, Barbosa adensa sua argumentação, por não colocar os lugares de ordem e de
essência de um lado, o mais forte, e o lugar de pessoa do outro lado, no ponto mais
vulnerável. Ele não só não inclui o caráter humanitário como uma prerrogativa da lei, mas
expõe que o lugar de pessoa é mais que reforçado pela constituição, original e essencialmente
fidedigna: o aspecto humano deveria preceder a qualquer outro. Então o humano,
originalmente portador da livre existência, essencialmente senhor da propriedade de si, estava
sendo espoliado quando submetido. “Pode-se dizer que uma só, dentre todas as propriedades
existentes, ou possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua
soberania: é a propriedade do homem sôbre si mesmo” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.
103). Sendo assim, por um lado, a liberdade seria restituição de direito intrínseco, propriedade
57
essa tida como acima de qualquer deliberação jurídica; por outro lado, a indenização aos
senhores deveria ser repensada já que a propriedade sobre outrem é considerada violação
grave da propriedade anterior e superior, a autopropriedade.
Quanto ao statuliber, que seria o novo status do anteriormente escravo se enquadrado no texto
do Projeto Dantas, condição nova essa que, especulava-se, comprometeria o direito de
propriedade de sujeitos que não mais seriam escravos, Rui Barbosa também aponta um
equívoco de interpretação. O statuliber era um significante de significados mutáveis conforme
a época. Na própria constituição romana, origem de aplicação do termo, o statuliber é
qualificado como “o servo, que se acha destinado a ser livre a certo tempo, ou cumprida certa
condição (L. 1º. Pr. D. de statulib.)” a ser definida segundo acordo particular entre senhor e
servo “não de uma providência geral, instituída em lei” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,
p. 130, grifo do autor). A constituição romana não modificava o estatuto de escravo:
“Statuliberi a coeteris servis nostris nihilo pene differunt. A tal ponto se estendia essa
equiparação, que os filhos da statuliber caíam em cativeiro. Statuliber quidquid peperit, hoc
servum heredis est”(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 132, grifo do autor). A percepção
do código da Luisiânia, posterior ao romano, sobre o statuliber, determinava que o escravo
seria libertado somente após os 30 anos de idade, e o via como um indivíduo, que após
liberto, e se incapaz de prover sua própria subsistência, a ser (obrigatoriamente) amparado
pelo seu ex-senhor.
No Brasil, a legislação, desde 1871, previa a alforria num prazo bem inferior a Luisiânia, e
não percebia o fruto do ventre na mesma condição servil de sua progenitora, mas nem por isso
era um disposto legal de menor importância, como não o seriam quaisquer outros em
comparação com as constituições de/para outros locais e/ou de/para outras épocas44, sendo
assim:
Por que regra superior de jurisprudência o Digesto [lei romana], a lei da Boa
Razão e o código da Luisiânia hão de inibir a autoridade legislativa de criar
uma condição nova, em que o escravo, não obstante a promessa legal da
liberdade futura, não seja nem o statuliber das instituições romanas, nem o
da entidade figurada pelo Sr. Perdigão Malheiro [o homem livre em
condição provisória escrava, com direitos de homem livre, em prejuízo da
propriedade dos senhores]? Se uma lei hoje lhe afiança essa expectativa de
liberdade eventual ou condicional, que constituía o statuliber, mas, ao
mesmo tempo, o declarava escravo, não é evidente que sua capacidade
44
Posteriormente, na 2ª. Conferência da Paz em Haia, convocada pelo Czar da Rússia, Rui Barbosa, como
representante brasileiro, insistiu nesse princípio de equidade jurídica das nações soberanas, contrário à
equivocada percepção de superioridade das grandes potências. Como é sabido, atuação diplomática nessa
convenção rendeu-lhe o famoso título “Águia de Haia”.
58
jurídica há de reger-se por essa lei, não pelas antigas que ela implìcitamente
alterou?(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 131, grifo do autor).
Então não era o caso de a legislação que assegurava os interesses dos senhores ter de ser
ignorada, e nem seria o caso de se recorrer a uma compensação que poria em risco, inclusive,
o erário público, mas era necessária acurácia nas soluções de polêmicas dessa natureza. O que
era convencionado na época, a “tendência emancipatória”, norteia a argumentação juntamente
com o texto da lei, tão legítima quanto outros sistemas legais e portadoras de especificidades
que atendiam aos reclames locais. Legislação essa que já questionava o direito de propriedade
escrava desde quando previa que o valor do escravo poderia ser reduzido à metade, o que
abria o precedente para outros fracionamentos, que poderiam ser gradualmente decrescentes
até a gratuidade, nesse último caso, afastando totalmente o direito de propriedade (BARBOSA,
[1884] 1945, v.11, t.1, p.101); legislação essa ainda que, como visto, assim como a da Roma
Antiga, e divergindo da analogia que aproximava a propriedade escrava da propriedade das
lavouras e do gado, distinguia o escravo (humano) e coisa.
Mas até o caráter “humano”45 era um valor alvo de controvérsia, mais especificamente, era
posto dentro do binômio vulnerabilidade X gratidão. Para José de Alencar, citado por
Barbosa, por exemplo, “humanos” eram aqueles que resistiam à liberdade aos sexagenários:
nesta luta que infelizmente se travou no país, a civilização, o cristianismo, o
culto da liberdade, a verdadeira filantropia estão do nosso lado. [...]
Entendeis que libertar é ùnicamente subtrair ao cativeiro, e não vos lembrais
de que a liberdade concedida a essas massas brutas é um dom funesto [...]
Entre estas duas causas não há quem hesite: a nossa é benéfica, a vossa é
fatal; a nossa é santa e cristã, a vossa é cruel e iníqua (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p.127, grifo do autor).
O mesmo Alencar, quando da Lei do Ventre Livre, lançou similar prognóstico: “Eu, por mim,
confesso que estremeço; e, pensando quanto as paixões transformam os homens, prevejo uma
hecatombe de inocentes” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.127, grifo do autor).
Contrapondo o que qualifica de decaimento moral resultante de um afã emancipatório
desenfreado, que buscava alforrias a esmo e inconsequentes, com a sua posição que pode ser
vista como de alforria cautelosa, Alencar atrai a si e a seus correligionários os valores de
filantropia e cristianismo.
45
O valor humanitarismo não é interpretado como o mote único, mas um valor suplementar de análise. É trazido
aqui como um valor trabalhado na fonte e no aporte teórico por isso passível de análise.
59
Não se mostrava então, essa voz representante da oposição (com muitos “apoiados” em sua
fala, inclusive), como contrário à liberdade, mas favorável desde que feita em seus supostos
melhores interesses dos libertos, fossem eles os nascituros, antes, ou os sexagenários, em
questão. Acreditava-se, nas épocas correspondentes de cada proposta legislativa, que a
alforria desses segmentos sociais resultaria num despejo incalculado, consequentemente o
despreparo os levaria a um estado de miséria e muito possivelmente à morte. Alguns
qualificavam a Lei do Ventre Livre, por exemplo, como “lei de Herodes”, fazendo referência
ao rei infanticida, que, sentindo-se ameaçado, e caçando Jesus Cristo, mandou assassinar as
crianças de dois anos para baixo em Belém segundo o relato bíblico46. Quanto aos escravos,
se libertos a partir de 60 anos, poderiam significar um prejuízo aos cofres públicos por já não
serem úteis como força de trabalho (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.128). Seria,
resumidamente, a iniciativa de alforria legal aos sexagenários, uma atitude desumana.
Entretanto, se no caso dos filhos de escravas, a tal “hecatombe” não ocorreu, tampouco os
presságios análogos aos sexagenários teriam efeito.
Rui Barbosa, por sua vez, via prejuízo “senão aos proprietários cuja dureza de alma não
compreenda a necessidade de estabelecer entre o cativo e o senhor liame algum de simpatia
humana”. Para ele, o ato de alforriar um cativo que dedicou a vida aos trabalhos cujos frutos
foram destinados ao seu senhor era um ato de gratidão. Sobre seu corpo, sobre sua mente, seu
ânimo em geral só sobraria somente debilidade após 60 anos, o que inevitavelmente
repercutiria em menor produtividade e reclamaria descanso da rotina exploratória. O que se
previa não era um desamparo, mas àqueles que pregavam valores cristãos e filantropia em
prol desses escravos (aceitando-se a procedência da preocupação real dos senhores para com
seus escravos, já que, segundo se dizia, todos eram a favor da abolição), não custaria mantêlos em sua propriedade, dando-lhes asilo em troca de tanto tempo de prestação compulsória de
serviços, ou ainda no caso daqueles menos generosos, em troca dos serviços possíveis pelo
vigor remanescente. Como revela a ponderação de Barbosa:
A providência que libertar os sexagenários não lesa interesses consideráveis
da propriedade agrícola. O escravo de sessenta anos entrou numa idade
inacessível ao espírito de aventuras, numa fase da vida em que os hábitos
dominam quase absolutamente a nossa natureza, e a tranquilidade, sem
aspirações mais que a estabilidade dela, fixa o indivíduo até o meio onde até
ali lhe correrm os dias. O velho cativo, pela debilidade do corpo enfermo,
pela tendência irresistível de costumes inveterados, por laços de família,
pelas infinitas relações impalpáveis que afeiçoam a velhice à terra, às coisas,
aos homens, em cujo seio os homens lhe declinaram para a prostração que
46
Mateus: 2: 7-10.
60
procede o fim, está prêso à fazenda onde encaneceu. A relativa exiguidade
do trabalho que a tibiezada saúde e das forças lhe permite, afasta dele
aliciações cobiçosas, que o chamem a condições mais vantajosas de
subsistência em casa de patrões mais liberais ou empreendedores.
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.125,126).
O valor “filantropia”, como subordinante do, mas aliado ao “jurídico”, era o arranjo de ideias
da opinião em geral; o modelo de escravagismo, como lucro decorrente de trabalho forçado
alheio, já estava se desnaturalizando. Para reforçar isso, paradoxalmente, Rui Barbosa
recorreu a Aristóteles para o qual o escravo, não era um estado, uma condição, mas era parte
integrante de sua sociedade, mas que, apesar disso, concebia o cativo digno de liberdade pelo
trabalho, principal prescrição do Projeto Dantas: “esse direito à emancipação pelo trabalho,
esse preço da liberdade satisfeito com perversa usura em sessenta anos de cativeiro, é o que se
reconhece no art. 1º do projeto” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.109).
3.4.1 Socialismo, comunismo e retorsão
Havia os que tachavam, pelo caráter emancipatório, o Projeto Dantas de ato de “socialismo”
ou de “proselitismo comunista” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.110, grifo do autor), e
a definição de socialismo assumida então, é a trazida pelo Dizionario dell’Economia de
Boccardo:
o complexo das utopias e sistemas, que, recusando proceder, nos estudos
sociais, pelo método experimental, e sob a lenta, mas segura, guia da
observação, forjam um regime econômico e civil da associação humana, em
que tudo se renova de cima a baixo, religião, ciência, relações entre homem
e homem, direitos e deveres; sistemas e utopias esses, que, supondo não
haver leis naturais e imprescritíveis na evolução da humana sociedade,
acusam todas as instituições atuais de serem apenas o fruto do arbítrio, da
usurpação, do monopólio, e tendem a substituí-las por uma ordem de coisas
inteiramente elaborada na mente de seus inventores (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p.111).
O referido socialismo é concebido então como tentativa de câmbio de sistemas, de
questionamento e derrubada de convenções por outras estruturas igualmente arbitrárias
porque também convencionadas, mas adicionalmente impróprias, subjetivas e impensadas. O
lugar do existente é acionado como preferível: é melhor confiar em instituições, estáveis, do
que em ações pessoais isoladas, incipientes, sem base e por isso instáveis. O traço semântico
de subjugação do bem/interesse individual ao social que caracterizaria um socialismo “bom”,
61
“positivo”, é suplantado pelo de ascensão de ideias subversivas de uma minoria descontente e
despreparada – que de modo leviano intentaria a derrocada de instituições basilares com
projetos utópicos, distantes da realidade e de impossível execução. Era uma percepção de
socialismo negativado, da qual Rui Barbosa queria afastar a imagem do Projeto Dantas.
Nesse esforço de ressignificar o socialismo, rebatendo-o, Barbosa lembra que já havia casos
registrados de mudanças legislativas que favorecessem um grupo com a propriedade de algo
pelo trabalho que poderiam ser consultados para a realização de um paralelo. Um caso
evocado foi o da Inglaterra com o Land Act de 1870 que garantiu o tenant right, ou seja, essa
lei garantiu ao camponês da Irlanda que ele tivesse, por uma espécie de usucapião, maiores
direitos sobre a terra do que o senhor (tempo de serviços prestados tais que não permitissem
uma expropriação sem indenização ao trabalhador rural), o que foi formalizado em
copropriedade de um terreno pelo tempo de trabalho nele pelo Land Act de 1881, de
Galdstone (BARBOSA, [1884] 1945).
Lançando mão, novamente, do argumento por retorsão, Barbosa transfere o traço de “utopia”
para o grupo que se empenhava em manter o já questionado sistema escravocrata, afirmando
que “utopia é a dos que se empenham em prolongar artificialmente a existência dessa
aberração, incomportável em nossos tempos” complementando que “socialistas serão os que,
desconhecendo no escravo a individualidade e a liberdade, não vêm, senão a propriedade do
senhor” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.112, grifo do autor).
Rui Barbosa realiza assim uma inversão no argumento de comunismo/socialismo negativo:
seriam então os contrários ao Projeto Dantas esses socialistas, por desprezarem o tradicional
e universal direito de liberdade individual pelo de particular propriedade escrava. Rui
Barbosa, mais uma vez, mantém o lugar acionado pelos opositores, contudo, fazendo uma
análise que resulta em que seus argumentos recaiam contra si mesmos.
62
3.4.2 Sobre a liberdade restrita
Sob o título, “Do trabalho”, assim prescreve o Projeto Dantas47:
Art. 2º. – O domicílio dos libertos pelo fundo de emancipação considera-se
fixado por cinco anos, a contar da data da alforria, no município onde
residirem a tempo dela.
§ 1º. – Excetuam-se:
I – Os a quem (por lhes faltar emprego no municipio) se designar ocupação
em colônias, ou estabelecimentos públicos ou particulares, noutro municicio
[sic], ou província.
II – Os que, tendo família noutro lugar, obtiverem desta autoridade a mesma
autorização.
§ 2º. –O liberto que transgredir o seu domicilio legal será policialmente
compelido a voltar a êle, e incorrerá nas penas de dois a trinta dias de prisão,
com serviço nas obras e estabelecimentos públicos, onde os houver.
I – Da primeira transgressão, conhecerá a autoridade policial; cabendo-lhe
impor as penas de dois a cinco dias de prisão.
II – Nas reincidências julgará o juiz substituto, ou o municipal; sendo a pena
de dez a trinta dias, com recurso voluntário para o juiz de direito
O regulamento estabelecerá para estes casos um processo sumaríssimo, em
que será preparadora a autoridade policial [...]
Esse artigo segundo do Projeto Dantas é controverso. Apontava contra ele o fato de se
instituir a obrigatoriedade de o sexagenário trabalhar, em domicílio restrito ao de sua alforria,
por um quinquênio com salário mínimo estabelecido pelo governo. Excetuando-se situações
excepcionais, como ausência de demanda de trabalho no município ou transferência
condicionada à autorização judicial para o município de residência da família do liberto,
haveria o limite de circulação municipal por 05 anos. Esse disposto era tão coercitivo que
previa a pena em cárcere, inicialmente de 02 a 05 dias, a depender do arbitramento da
autoridade policial e aumentando-se esse prazo, chegando a 30 dias, nos caso de reincidência.
No entanto, pode-se perceber problema, pelo menos, em duas frentes: primeiro, porque o
escravo estaria assim, do mesmo modo “à mercê dos grandes proprietários rurais”
(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.198), restrito em sua liberdade de ir e vir, e, segundo,
47
Excertos do Projeto Dantas na versão original e de conteúdo mantido nas posteriores. Versão trazida como
apêndice do Vol 11, tomo 1, FCRB.
63
porque era algo inconstitucional que o estado se intrometesse em um acordo de natureza
particular como deveria ser o preço do salário do servo a ser pago pelo senhor.
Na defesa desses limites de circulação territorial, Rui Barbosa afirma que seriam “um meio de
educar nela [na liberdade], por ela e para ela, uma classe de indivíduos absolutamente
despreparada para sua fruição racional e profícua”, já que “Em presença da liberdade, [...] o
liberto [...] carece de mão amparadora, que o guie e precate contra as atrações do
desconhecido, o gôsto da indolência e o instinto inconsciente de aventuras” (BARBOSA,
[1884] 1945, v.11, t.1, p.196).Conclui, Rui Barbosa, diante das intenções declaradamente
protetivas ao escravo, e pela comparação com medidas abolicionistas que propunham que o
liberto ficasse restrito à propriedade em que sempre trabalhara do Centro Abolicionista da
Escola Politécnica, referido por ele como referência no movimento abolicionista:
Ora, é conhecido o espírito extremamente abolicionista daquela associação,
uma das que têm sobressaido à frente do movimento libertador. Entretanto, a
medida que ali se reclama é incomparàvelmente mais restritiva, mais severa
do que a admitida no projeto.
Em verdade, ampliado ao município, o perímetro de locomoção que se deixa
ao liberto na fase inicial da liberdade, não se pode tachar de acanhado. Versa
toda a questão em saber se essa restrição prática não importa um elemento de
contradição na essência da liberdade, reconhecida aos emancipados.
Acreditamos que não. [...]
É, portanto, frívola, fútil, grosseira a censura, já enunciada, não sabemos se
na imprensa, se em debates parlamentares, de que o projeto condena o
liberto a uma espécie de servidão quinquenal. Para lhe descobrir essa
mácula, é mister não no ter lido. Tôdas as suas disposições são protetoras da
liberdade, ainda quando aparentemente a modificam (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p.195,203).
O limite de salário mínimo, por sua vez, seria um controle preventivo de abusos por parte dos
senhores em relação ao neomanumitido pouco (quase nada) ciente de suas garantias legais,
cujos salários poderiam ser estimados em valores que prejudicariam os servos:
o projeto nega ao liberto, durante os seus cinco anos de tirocínio na
liberdade, o direito de trabalhar gratuitamente, ou por um salário ilusório, em
proveito de patrões que lhe explorem a inexperiência, a credulidade ou a
fraqueza (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.203).
Haveria inclusive, uma instituição legal, “uma entidade administrativa e tutelar, incumbida
especialmente de fixar ao salário um limite mínimo, coercitivo para os locatários de serviços,
64
em benefício dos libertos, quando estes, trabalhando por conta própria, ou de outrem, não
encontrarem melhores vantagens” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.196), providência
legal já tomada pela França em seu processo de abolição, desde 1840, contra prejuízos mútuos
entre senhores e libertos, e, principalmente, já prevista na Lei Agrária , no Land Act, de 1881,
segundo a qual os rendeiros ou o senhor da terra, poderiam recorrer à comissão agrária contra
abusos no valor do aluguel da terra.
Esses dois pontos do artigo segundo do Projeto, o da restrição inicial, por cinco anos, de
locomoção do liberto e o da previsão de salário são então defendidos por Rui Barbosa como
modos de proteção que habilitaria o liberto em “tirocínio”, isto é, em aprendizado inicial, a se
acostumar com a vida em liberdade e o protegeria, “da vagabundagem” (BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p. 203,194).
Com efeito, Rui Barbosa põe esses aspectos do Projeto Dantas em um paralelo com uma
situação similar:
a condição do liberto, pois, no plano da nossa reforma, será simplesmente, e
isso pelo curto período de cinco anos, um símile da que o grande ato de
Gladstone instituiu, sem limitação de tempo, como benefício liberalíssimo,
como imensa conquista em favor do irlandês livre, na livre Inglaterra.
Consiste a diferença apenas em que, num caso, é da locação do trabalho que
se cogita; no outro, da locação da terra (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,
p. 202).
Confirma-se que a escolha desses exemplos e analogias, por Rui Barbosa, para abordar a
anulação da propriedade/transferência de propriedade pelo tempo de serviços prestados, bem
como fixação de preço de salário não foi fortuita, foi estratégica. Por exemplo, “A Inglaterra
não é nenhuma nação de visionários; nem as utopias hostis à propriedade e ao individualismo
encontram ali meio propício na índole do povo, ou na influência das tradições” ( BARBOSA,
[1884] 1945, v.11, t.1, p.116).
Em meio aos demais recursos empregados na defesa de sua tese, como contra-argumentos às
posturas dos “abolicionistas” adversários, Rui Barbosa retoma o uso do argumento de
autoridade, “ o qual utiliza os atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como
meio de prova a favor de uma tese” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p.348) não só nesse caso – quando não só se apoia em um aparato legal, equivalente em
credibilidade aos demais mencionados, não só por ser um ato jurídico, mas por ser um
precedente constitucional de uma nação de seriedade reconhecida – como também o fez por
65
recorrer à sabedoria aristotélica, representante da erudição clássica, e à própria cadeia
constitucional desde Roma, passando por Portugal e vigente no Brasil, cadeia esta vista agora
sob a ótica da retorsão. O uso dessas duas técnicas conjuntas é recomendável já que “o mais
das vezes, o argumento de autoridade, em vez de constituir a única prova, vem completar uma
rica argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.350).
Contudo, mesmo com a declarada prerrogativa de salvaguarda dos novos libertos, o Projeto
Dantas talvez tenha sido simplista em sua ideia de proteção pelo preço do salário pelo
trabalho. E no que diz respeito às condições desse trabalho autônomo ou para outros? E a
duração, a carga horária, o que prevenia que ela não fosse abusiva? São questões permitidas,
claro, pelo conhecimento de reformas de leis trabalhistas posteriores, mas que podem apontar
uma fraqueza no disposto no Projeto. O mesmo se dá quanto à restrição do deslocamento do
ex-escravo. É de se admitir que se essa não fosse uma disposição que agradasse os mais
conservadores, tal limite de circulação não seria mantido do posterior Projeto Saraiva (1885),
reconhecido, até mesmo pelo próprio Rui Barbosa, como uma lei que defendia, antes de tudo
o interesse senhorial, algo patente na instituição da alforria do sexagenário condicionada à
indenização por prestação de serviços.
O liberto, com essa limitação, estava dentro de uma ótica paternalista. A ideia era de um
abolicionismo gradual que permitisse a relação de “clientelismo”, “paternalismo” e “liberdade
atrelada”. A abolição era garantida, somente quando houvesse um liame de gratidão entre exescravo e ex-senhor, baseado na crença da incapacidade de adequação social desse escravo à
vida de liberto e na consequente e necessário resguardo. Por outro lado, o liberto deveria ser
grato pela oportunidade que se apresentava como uma concessão benemérita (ainda que
tardia) o que, de certa forma, em ambas as crenças, não desfazia os laços hierárquicos,
somente reorganizando-os sob a roupagem de proteção (MENDONÇA, 2008).
Além do mais, e se não fosse de seu interesse, desejo, necessidade de permanecer no mesmo
município onde esteve durante longo tempo de trabalho compulsório, ele seria obrigado a
ficar ali? Não se pode esquece que era um indivíduo submetido a condições desumanas, a elas
sobrevivente no auge de seus 60 anos, portanto, dificilmente lhe restaria um tempo muito
superior de vida livre, após seus 65 anos (se é que chegariam aos 65 anos).
66
3.5 OPOSIÇÃO OSCILANTE: O CASO MURITIBA E OUTROS EXEMPLOS
Passando para o exame de focos isolados, Rui Barbosa analisa historicamente a ação do
visconde/barão de Muritiba. O então conselheiro do Estado, então contrário veementemente à
abolição geral, havia sido, em 1867, portador de uma proposta de lei que tratava da
manumissão – não indenizatória – de cativos aos 55 anos de idade. O não cumprimento seria
reparado por uma rigorosa multa que incidiria sobre as diárias a retro. Propôs ele como uma
questão de “grande interesse”, não como medidas acessórias, “menos prudentes”:
Art. 4º. Depois de publicada esta lei, os proprietários de escravos maiores de
55 anos e dos que forem sucessivamente completando esta idade, serão
obrigados a libertá-los até seis meses depois, sob pena de proceder-se
judicialmente à alforria, e de pagarem os dias de serviço, desde aquêle em
que não derem cumprimento à obrigação, e mais uma multa de 20% dos
ditos jornais (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.12248).
Sendo assim, seria contraditório se no momento em que se tratasse de uma proposta de
liberdade aos sexagenários esse mesmo parlamentar levantasse objeções. Isso revelaria uma
brusca mudança de pensamento e inexplicável atitude. Mas foi justamente essa ausência de
critério do conselheiro Muritiba, “ilustre senador”, que Rui Barbosa pôs em relevo passados
dezoito anos da disposição emancipatória inicial. “Assim o que o ilustre senador, àquele
tempo, reputava justo prudente e constitucional, é hoje inconstitucional, absurdo e perigoso”.
BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.123)
“A argumentação pelo exemplo implica – uma vez que a ela se recorre – certo desacordo
acerca da regra particular que o exemplo é chamado a fundamentar, mas essa argumentação
supõe um acordo prévio sobre a própria possibilidade de uma generalização a partir de casos
particulares [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.399) Muritiba
seria, ao mesmo tempo, uma excessão à regra da emancipação não pecuniária e um reforço à
regra da falta de critérios fixos da oposição. Sendo assim, Rui Barbosa o elegeu, um membro
significativo do grupo dos opositores, como exemplo do habitual câmbio injustificado de
posições políticas e da geral imaturidade dos contraditores do Projeto Dantas. Alguns desses
mesmos objetores, sobre a Lei de 1871, ponderavam na Câmara dos deputados naquele ano:
A religião condena toda a injustiça, assim como a humanidade a condena
também; e ninguém deixa de ver uma grande injustiça nesta medida.
48
Trabalhos sôbre a extinção da escravatura no Brasil. Rio de janeiro: Tip. Nac. 1868.
67
(Apoiados). Como se condena a perpétuo cativeiro, a geração que já
trabalhou, que já sofreu (apoiados), que já concorreu com seus esforços
para aumento da nossa fortuna [...] e vamos libertar uma geração que ainda
não veio, que ainda não trabalhou, que ainda não sofreu, que ainda nada fez?
O que seria preferível, já que quereis cometer um atentado contra o direito
de propriedade, garantido em toda plenitude pela Constituição: decretar a
ingenuidade dos nascituros, ou libertar, ainda mesmo sem indenização, os
velhos escravos, maiores de 65 anos, que tendo já experimentado os
horrores do cativeiro, teriam mais direito à vossa benevolência, para, no
último quartel da vida, gozarem ao menos do descanso e da paz? Entre os
dois alvitres, a escolha não pode razoavelmente ser duvidosa. (Apoiados da
minoria) (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.135, grifos do autor).
Era uma oposição que apresentava critérios oscilantes conforme à época, o que mina, quando se
procede à investigação de seu histórico, sua fidedignidade. Esse grupo era, por isso, entendido
por Barbosa como um “antimodelo” , um modo de conduta cuja imitação é desaconselhada: se a
referência a um modelo possibilita promover certas condutas, a referência a um contraste, a um
antimodelo permite afastar-se delas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p.417, grifo do autor). Esse tipo de disposição pessimista não estava circunscrito aos limites
geográficos do Brasil. Não era novidade opositores verem com suspeita a iniciativa legal de
alforria. Em alguns casos, o desejo de frustrar o sucesso de uma lei emancipatória, quando em
vigor, concretizava-se em um ímpeto cruento.
3.5.1 O passado49 em outras nações/colônias
Os negros, nos Estados Unidos, resistiram a todo tipo de adversidade, à descrença, à
perseguição. Desde a época da proposta da emancipação, passaram, como os negros no Brasil,
por previsões de fracasso, como o temor de um ócio generalizado, já que não mais seriam
incentivados (forçados) ao trabalho; isso, por sua vez, seria uma das manifestações da
decadência moral, por não estarem sob a supervisão e influência supostamente benéficas de
49
Há o reconhecimento de que os processos abolicionistas em cada nação comportam diferenças entre si. A
historiadora Professora Dra. Célia Marinho de Azevedo (2003) trata disso em sua tese de doutoramento editada
em livro. Fazendo uma comparação entre Brasil e Estados Unidos, por exemplo, ela toca nas diferenças
socioculturais, no imaginário sobre o senhor, o escravo e os ex-escravos em cada nação, confrontando o caráter
belicoso da emancipação norte-americana e a brasileira, pacífica. Além disso, ressalta a nossa abolição como
sendo de natureza hierarquizante e guiada por relações de apadrinhamento. No entanto, este estudo se ocupa das
similaridades entre os eventos abolicionistas das nações apontadas pelo Parecer.
68
seus senhores; e, o pior, mortandade em massa, já que eles, não estariam habituados a e nem
desejosos de buscar o sustento por si.
Nos EUA, a fim de tornar reais esses maus presságios, após promulgada à revelia de seus exsenhores sua emancipação, houve represálias. Como retaliação, houve desde o ataque de seus
meios de subsistência (mantimentos sofriam diferenciação de preço), passando pelo êxodo
forçado por tal situação aos estados do Norte em 1879, até seu extermínio por chacinas. “Nos
armazéns do Plantation Credit System pelas mais baratas qualidades de açúcar mascavo, que
os trabalhadores agrícolas, no Norte, pagavam a 8 centésimos, o negro, operário rural do Sul,
gravado à razão de 11 e 13 centésimos a libra” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.188).
Quanto às mortes, Rui Barbosa relata que de 1866 a 1874, o ódio racista resultou numa soma
próxima de 1000 em diversos terrritórios norte-americanos50.
Porém, mesmo desabrigados, com custo de vida mais alto e vítimas de assassínio, os libertos
cresceram. Demograficamente. Economicamente. Academicamente. Dados os homicídios e
agravantes ao sustento e à saúde dos negros, a taxa de mortalidade em 1870 entre brancos e
negros não era tão discrepante: 14,74 x 100 habitantes entre brancos e 17,28 x 100 entre
negros; e o aumento demográfico da população negra, em uma década (de 1870-1880) foi de
34, 67% contra 29, 20% da população branca. Diversificaram a lavoura a ponto de ela suprir
sua própria necessidade de consumo e não mais servir exclusivamente à exportação como à
época do cativeiro, obtendo, por exemplo, na lavoura de algodão no Sul, de 3.656,606 fardos
no ano de 1861, a um aumento de quase 100% em 1883 com a produção de 6. 959,00
fardos51. Investiram grandes somas financeiras em bancos, chegando, por exemplo, a 53
milhões de dólares depositados nos anos de 1866 a 1873 somente nos Freedmen’s Banks
(Bancos de Libertos). Lotaram as escolas dirigidas aos libertos, as Freedmen’s Bureau, com
247.333 alunos, de 1865 a 1870; e com 839. 938 alunos em 1881 distribuídos em diversos
níveis acadêmicos52. Poucos recorriam às associações beneficentes, por exemplo, “dentre uma
população de 350.000 libertos, na Carolina do Norte, apenas 5.000, em 1865, solicitavam a
caridade oficial” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.186). Soergueram-se rapidamente e
adequaram-se ao sistema livre, superando as más e até mesmo as boas expectativas.
50
Rui Barbosa valeu-se de dados constantes nas obras de George Willians, History of the negro race in America
from 1619 to 1880 (New York, 1883); e deP. Leroy Beaulieu, De la colonisation chez le peuples modernes (2 ª
ed. Paris, 1882). Pág. 198-200.
51
Dados extraídos por Barbosa pela Correspondência de New York, no 1º de junho de 1884 ao Jornal do
Comércio.
52
Dados levantados por Barbosa a partir do Report of the commissioner of Education for the Year 1881
(Washington, 1883), pág. LXXXVI.
69
Casos de sucesso também já haviam sido registrados nas colônias inglesas contra semelhantes
temores então disseminados. Havia a insegurança quanto ao plantio e o futuro da economia
agrícola e, por outro lado, a certeza da barbárie generalizada por parte dos povos africanos
alforriados nas colônias inglesas antilhanas, por exemplo. No entanto, longe de se efetuar
pelas emancipações, a grave decadência econômica já era uma realidade: de 1780 a 1787,
estima-se que 15.000 negros morreram de fome causada pela queda da produção de alimentos
que forçava a sua importação do Canadá. O mesmo se diz da barbárie, a predileção pelo
exíguo plantio de açúcar em detrimento de outros produtos de subsistência levou os
produtores à bancarrota, os escravos a sucessivas revoltas, ao abandono de propriedades em
ruínas na Jamaica e em São Domingos (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.171-2.). As
alforrias, ao contrário do que se dizia, foram as responsáveis por reverter esse quadro.
Antígua, Barbada, Jamaica e Santa Luzia apresentaram desenvolvimento econômico-social.
Relata-se que “não só medrou grandemente a prosperidade material de cada uma dessas ilhas,
senão também, o que ainda mais é, houve progresso nos hábitos industriosos,
aperfeiçoamento no sistema religioso e social”. De 2.114 proprietários negros na Jamaica de
1838, passou-se a 7.340, apenas dois anos depois, em 1840. Nesse mesmo ano, a Guiana
contava com 15.906 proprietários negros. Isso resultou num redirecionamento da ênfase
produtiva: em vez da centralização no cultivo de açúcar, cultivavam-se outros víveres,
equilibrando a relação importação-exportação e a economia.
Excetua-se nesse quadro, em anos subsequentes, a Jamaica: a má administração, com a
terceirização da gestão das propriedades, o ranço da escravidão no regime pós-emancipação,
em que se obstruía, a todo custo, o desenvolvimento do liberto, são algumas razões apontadas
por Barbosa para esse fracasso pontual jamaicano, contrastante com os casos da Antígua,
Maurícia, Barbada, Santa Luzia, Dominica e Trindade (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,
p.174-179).
Ao recorrer a esse histórico dos efeitos da abolição em diversos locais pelo mundo, Barbosa
argumenta de modos mutuamente implicados: os dados numéricos relativos ao crescimento
socioeconômico dos negros norte-americanos mesmo frente à perseguição e descrédito pósemancipação e os outros dados com a mesma repercussão nas colônias inglesas são a recorrência
à maior aceitação dos valores quantitativos, o lugar de quantidade é então utilizado:
O mais das vezes, o lugar da quantidade constitui uma premissa maior
subentendida, mas sem a qual a conclusão não ficaria fundamentada [...] um
maior número de bens é preferível a um menor número, o bem que serve ao
70
maior número de fins é preferível ao que só é útil ao mesmo grau, o que é
mais duradouro e mais estável é preferível ao que o é menos (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.97).
Seguindo o mesmo raciocínio, um maior número de dados sobre certos aspectos da vida dos
ex-cativos é preferível a um menor número de ocorrências de confirmação de expectativas
negativas, de casos excepcionais. Em contrapartida, tais números revelam que um menor
número de expectativas funestas não tem tanto peso quanto um maior número de dados da
realidade, podendo-se constatar que: “Quando os lugares da ordem são correlacionados com
os da quantidade, o anterior é considerado mais duradouro, mais estável, mais geral”
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.110). Então, vê-se o uso do lugar
de ordem em que fatos sistemáticos anteriores admitem fatos similares posteriores.
Sendo assim, se não podem ser contestados que os números denotam uma bem-sucedida
vivência pós-emancipação fora e antes do Brasil, com uma realidade até mais veemente,
porque a experiência emancipatória seria frustrada aqui? Contra as expectativas temerosas
haviam os já existentes exemplos de outros locais. Melhor, havia a ideia, por parte de
Barbosa, de uma ampla aceitação de uma “concepção do existente”, pois “os lugares do
existente podem ser relacionados com os lugares da quantidade, vinculados ao duradouro, ao
estável, ao habitual, ao normal” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p.106, 110). Em resposta ao possível, havia o real presumido como aceito, visto que “a
utilização dos lugares do existente pressupõe um acordo sobre a forma do real ao qual são
aplicados” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.106).
As melhorias constatadas se dão de modo gradativo na linha do tempo. A datação e
quantificação aproximadas pela pesquisa de Rui Barbosa de dados numéricos anteriores e
posteriores dão prevalência aos últimos:
Dentre as sequências, a do tempo que transcorre desempenha um papel
muito importante. Os fenômenos aos quais essa sequência serve de guia
assumem um aspecto contínuo, homogêneo e, amiúde, também
quantificável: duração, crescimento, envelhecimento, esquecimento,
aperfeiçoamento podem ser quantificados em função do tempo transcorrido
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.396).
Como conjunto, essa remissão à história como modelo também é uma técnica argumentativa.
“Um homem, um meio, uma época, serão caracterizados pelos modelos que se propõem e pela
71
maneira pela qual os concebem” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,
p.414). A história naqueles locais serve como modelo de credibilidade às manumissões,
como conduta a ser imitada em vista dos excelentes resultados práticos comprovados. O
“crescimento” e o “aperfeiçoamento” da população ex-escrava ao longo do tempo na
realidade estadunidense e nas colônias inglesas foram sustentados por elementos numéricos
contrapondo-se aos maus presságios de seu tempo. Era um fato, uma realidade admitida e
tinha muito mais peso do que qualquer especulação não embasada. Em outras palavras:
diremos que no par “aparência-realidade”, “aparência constitui o termo I e
“realidade” o termo II. [...] O termo II, na medida em que se distingue dele
[do termo I] é o resultado de uma dissociação, operada no seio do termo I;
não é simplesmente um dado, mas uma construção que determina, quando da
dissociação do termo I, uma regra que possibilita hierarquizar-lhe os
múltiplos aspectos, qualificando de ilusórios, de errôneos, de aparentes, no
sentido desqualificador do termo, aqueles que não são conformes a essa
regra fornecida pelo real. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958]
2005, p.473, grifos dos autores.)
Em vista do exposto, o real, o fato construído pelo orador Rui Barbosa pelo levantamento de
datas e de dados em números do passado em relação ao seu presente, seria um modelo calcado
na distinção da antimodelar aparência das especulações de seu tempo, essas hierarquicamente
inferiores por serem ilusórias, aparentes, portanto errôneas.
3.6 A AÇÃO DO ORADOR RUI BARBOSA
A fim de alcançar de modo completo a ação argumentativa, para a Retórica, faz-se necessária
a mobilização da tríade argumentativa: logos-pathos-ethos. Rui Barbosa então não só
apresentou as razões, com o recurso à jurisprudência, examinando diacronicamente a cadeia
legislativa em torno do mesmo eixo “abolição”, utilizando, como justificativa o valor de
verdade, de fato, que uma lei carrega, mas aliado a isso recorreu ao pathos, com o valor
“humanitarismo” e valeu-se de seu ethos para aquele círculo de auditores, de sua imagem de
abolicionista sedimentada pelo seu discurso.
De um modo geral, Rui Barbosa recorreu a comparações em “uma forma típica [...] aquela
que menciona a perda não sofrida para apreciar as vantagens de uma solução adotada”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.278) As soluções adotadas, os casos
72
de êxito legislativo davam conta de perdas não sofridas, o que reforçava a hipótese de
resultado similar no Brasil se também se sancionasse o Projeto Dantas, com os seus
principais termos, em lei.
O orador Rui Barbosa lança mão, concomitantemente, de alguns tipos argumentativos como
os de retorsão, autoridade, pelo exemplo, pelo modelo, pelo antimodelo e por analogia e dos
topoi do existente/ordem, já que exemplos concretos – nacionais ou não, contemporâneos ou
não – de sucesso de aplicação legislativa abolicionista mais valiam do que fracassos
cogitados, por serem entendidos como princípios, bases anteriores de fidedignidade, o real
prevalece sobre o aparente; os lugares de pessoa e essência também foram acessados quando
Barbosa alerta que o então escravo deveria ser valorado como essencialmente humano,
portanto essencialmente livre. A noção de propriedade se perde até mesmo pela não
indenização.
O locutor Rui Barbosa, um outro prisma de análise de sua figura abolicionista, é observado na
próxima
seção
segunda
a
visão
da
Argumentação
na
Língua
(ANL).
73
4 PARECER AO PROJETO DANTAS: ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA
“Toda fala, tenha ela ou não objetivos persuasivos,
faz necessariamente alusão a argumentações” (DUCROT, 2003)
A Semântica Estrutural é vista, nesta seção, como o desdobramento dos estudos que se
iniciaram com a Teoria Polifônica da Enunciação, ou seja, a problematização da pressuposta
“unicidade do sujeito falante” em que para cada enunciado haveria um único autor, derivada
dos estudos literários de Mikhail Bakhtin. Para esse teórico russo, certos textos comportam
várias vozes, as quais se expressam de modo simultâneo e sem uma relação de hierarquia
entre si. Essas vozes seriam, em linhas breves, as diversas máscaras apropriadas pelo autor.
Essa teoria, elaborada por Oswald Ducrot, em aliança com Jean Claude Anscombre, integra
uma outra visão de argumentação, podendo ser denominada de Semântica Argumentativa,
Semântica da Enunciação ou ainda a designação adotada nesse trabalho, a Argumentação na
Língua – ANL. O campo de identificação com a ANL é a Pragmática Semântica (ou
Pragmática Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação
quando se fala, mas o que a própria língua (inicialmente vista pela dinâmica de seus
enunciados) pode fazer.
Ducrot insere-se assim numa lacuna que, segundo sua ótica, foi deixada por Bakhtin, o qual
não teria estendido a polifonia a enunciados individuais, mas só a textos (DUCROT,
[1969]1987, p.161):
Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi
aplicada a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais a enunciados
de que estes textos são constituídos. De modo que ela não chegou a colocar
em dúvida o postulado segundo o qual o enunciado isolado faz ouvir uma
única voz.
É justamente a este postulado que eu gostaria de me dedicar [...]
Oswald Ducrot mantém ainda traços de afinidade com o precursor da linguística moderna,
Ferdinand de Saussure – a sua delimitação do objeto intralinguístico e sistêmico é o mais
patente. Além disso, o transporte e a restrição do entendimento de situação para o contexto
enunciativo, ou seja, a atenção somente para aquilo que a língua registra como situação o coloca
74
na esteira de Émile Benveniste de quem conservou (mesmo só o admitindo como aporte
enquanto legado para os filósofos ingleses53), certos caminhos teóricos para a enunciação.
Ducrot faz assim uma descrição semântica de base estruturalista (CARNEIRO, 2008).
A partir de tal percepção, Ducrot e Jean Claude Anscombre inauguram um prisma de análise
dentro dos estudos da Argumentação que progride em três fases, a Forma Standard (com a
publicação de L´argumentation dans la langue (1983)), a da Teoria dos Topoi
Argumentativos (incluídas inicialmente numa reedição de L´argumentation dans la langue
(1984) e revisitadas em trabalhos posteriores) e o atual estado, contando com as contribuições
de sua colaboradora Marion Carel, a Teoria dos Blocos Semânticos54 (DUCROT,2003;
SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F., 2013).
O exame da organização argumentativa do discurso abolicionista de Rui Barbosa é submetido,
nesta análise, ao arcabouço teórico da ANL, por aquilo que é trazido pela língua, por meio dos
blocos semânticos. Previamente, porém, faz-se necessário visitar as suas ideias de base, como
“locutor”, “enunciador”, “posto” e “pressuposto”, “frase e enunciado”. Isso porque, em se
tratando de teorias da argumentação, pode-se pensar, entre outros caminhos, não somente na
Nova Retórica, mas também na Argumentação na Língua. A língua é estudada então enquanto
portadora de uma argumentatividade, ao mesmo tempo, dependente de fatores extrínsecos
com os tipos e topoi retóricos (conforme abordado na seção anterior) e autossuficiente, com a
abordagem da ANL, em especial com os blocos semânticos.
4.1 ARGUMENTAÇÃOSEGUNDO DUCROT: IDEIAS DE BASE
A princípio, Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre, em sua Teoria da Argumentação na
Língua, partiram para a reformulação do que eles denominam de conceito tradicional de
argumentação: as conclusões de uma frase, segundo a argumentação tradicional seriam extraídas
de situações discursivas e obtidas por leis psicológicas, lógicas, retóricas e sociológicas. Então a
53
Cf. XAVIER, Antônio Carlos. Trajetória e legado de um filósofo da linguagem: Oswald Ducrot. Revista
Investigações - Vol. 25, nº 2, Julho/2012.
54
Ainda quanto à nomenclatura, há um câmbio de uso que permite, por um lado, a definição de ANL para as duas
primeiras etapas da teoria e de Teoria dos Blocos Semânticos para a corrente; por outro lado, é considerada nesse
trabalho a admissão dos próprios estudiosos de que as fases se constituem não só de abandonos, mas também de
permanências/alterações teóricas e a ideia de argumentação na língua é uma delas. Por isso a ANL será a
designação geral, das três etapas da teoria.
75
argumentação era, até esse momento, vista como dependente do contexto extralinguístico. Eles,
em vez disso, redirecionaram a argumentação para o âmbito intralinguístico, para a formação de
um conjunto de conclusões prováveis para uma mesma frase.
Essa noção de argumentação posteriormente sofreu nova alteração, só compreendida como a
consequência da escolha dos topoi argumentativos que podem ser entendidos como uma
verdade cristalizada, um lugar comum, um sistema discursivo que caracterizaria determinado
tipo de argumento. Logo depois, a argumentação passou a ser vista como integrante de termos
da língua, não só enunciados, mas também do léxico, já que a atenção se volta para os
enunciadores, para o discurso doador de sentido (DUCROT, 2002).
Na voz do próprio Ducrot: “Enquanto lingüista semanticista, devo atribuir a cada frase
constitutiva duma língua uma significação suscetível de explicar os sentidos de seus
enunciados no discurso” (DUCROT, [1977] 1989, p.18). Sendo assim, um enunciado – ou um
conjunto de enunciados – permitiria que se chegasse a outros enunciados, a conclusões em
série. Antes, porém, de detalhar o pensamento teórico ducrotiano, faz-se necessário reportar
certas noções basilares.
4.1.1 “Enunciado” e “frase”
O enunciado é entendido como um fragmento do discurso, a frase no contexto de uso. Seria o
efeito causado pelo processo de enunciação, isto é, sua ação hic et nunc. É um conceito que se
difere do de frase quando se pensa que a produção desta se dá para fins teóricos, a frase seria
uma construção gramatical numa determinada língua, gramatical no sentido de inteligível, que
portaria uma estrutura com um sintagma nominal e/ou um sintagma verbal.
Uma frase, por sua natureza gramatical, possui as pistas linguísticas, isto é, instruções,
direções, para a interpretação de seus enunciados, entendidos como fragmentos de discurso.
Segundo esse entendimento, a frase seria o suporte linguístico portador de significação que dá
sentido ao enunciado – sendo que a distinção entre sentido e significação não é gradativa, não
seria a significação parte integrante do sentido mais completo, mas sim uma distinção da
natureza da significação, norteadora, da natureza do sentido, passível de decodificação pela
significação.
76
As frases “indicam ao intérprete do enunciado que ele deve constituir, e atribuir ao locutor
(fundamentando-se no que ele conhece da situação de discurso), uma estratégia argumentativa
determinada” (DUCROT, [1977] 1989, p.14).
A frase, a depender de seu contexto de uso, de sua enunciação, pode resultar em diferentes
enunciados. O contexto de uso é um contexto de limites linguísticos. Submete-se àquele
momento da enunciação, numa operação que inverte a preocupação funcionalista em se
submeter a análise de expressões linguísticas às regras do sistema de interação verbal, os
padrões pragmáticos: é o estudo da dinâmica enunciativa patente na língua para a ANL.
Estruturalmente falando, enquanto o enunciado seria o correspondente da parole saussuriana,
a frase seria análoga à langue.
4.1.2 “Locutor” e “enunciador”
A distinção das figuras ducrotianas do locutor e do enunciador também se relaciona com os
níveis de significação frase e enunciado. O próprio enunciado pode indicar, em seu próprio
sentido, o autor da enunciação.
O primeiro, o locutor, é concebido como aquele ao qual se pode atribuir responsabilidade pela
enunciação (produção momentânea de um enunciado por um sujeito falante), e é designado
pelo pronome de primeira pessoa (P1) do singular “eu” e pelas demais marcas de P1.
Ressalte-se que locutor e autor não são conceitos cambiáveis, já que há a possibilidade de eles
se referirem a papéis distintos:
Denomino “locutor de um enunciado” ao autor que ele atribui a sua
enunciação. No momento em que se admite que o enunciado mostra (diz2)
em que consiste sua enunciação, ele pode fazê-lo, entre outras coisas,
apresentando-a como obra de alguém que se considera ter pronunciado as
palavras de que ele se compõe. Este autor pretendido da enunciação é o ser a
quem fazem referência o eu e as marcas de primeira pessoa (salvo no
discurso relatado em discurso direto). Muitas vezes (sobretudo na
conversação oral), mas nem sempre, ele pode ser identificado pelo falante,
isto é, com a pessoa que, “efetivamente”, produz o enunciado (DUCROT,
[1969]1987, p.142, grifos do autor).
77
Ducrot exemplifica isso com uma hipotética circular escolar em que haveria a seguinte
fórmula: “Eu, abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a [...] Assinado...” em que o “eu” não se
refere ao autor empírico do texto, dificilmente identificável neste caso, já que poderia ser “o
diretor da escola, sua secretária, ou a secretaria da educação” (DUCROT, [1969]1987, p.182).
No Parecer ao Projeto Dantas, portanto, a figura que corresponde ao locutor ducrotiano é Rui
Barbosa.
O segundo, o enunciador, por sua vez, é sujeito da enunciação sem que a ele sejam atribuídas
as palavras exatas. Aparece no enunciado mediante seu ponto de vista que pode se contrapor
com a aparição de outro/ outros, ou apresentar afinidade entre si ou em relação às ideias do
próprio locutor; a polifonia se dá, justamente, por essa multiplicidade de vozes no enunciado
(DUCROT, [1969]1987, [1977]1989). Com isso, Ducrot atenta contra a unicidade do sujeito:
Do locutor eu quero distinguir os enunciadores. Acabo de dizer que a
enunciação – tal como a apresenta o enunciado – aparece como a realização
de diversos atos, por exemplo, atos ilocutórios (asseverar, prometer, etc.).
Chamo “enunciadores” às personagens que são apresentadas pelo enunciado
como autores desses atos. [...] Todo o paradoxo – que denomino conforme a
expressão de Bakhtin “polifonia” – prende-se ao fato de que os enunciadores
não se confundem automaticamente com o locutor. Se um enunciado é
assimilado ao locutor isto se dá em virtude de uma identificação particular, e
a identificação pode do mesmo modo assimilar tal ou qual enunciador com
outras personagens que não o locutor, por exemplo, com o alocutário
(DUCROT, [1969]1987, p.142, grifos do autor).
O sujeito percebido por Ducrot é, no entanto, tripartite. Um terceiro elemento, secundário por
não ser inserido nas análises ducrotianas, mas cujo conceito pode ajudar na melhor
identificação desses dois primeiros, é o sujeito empírico. Locutor e enunciador passam a ser a
mesma entidade em determinado aspecto, quando se extrapola a organização do enunciado (o
“eu” enunciativo) e se passa a considerar a ótica, o ponto de vista.
Mesmo resguardadas as diferenças conceituais, outro momento de toque entre esses dois
elementos é que tanto locutor quanto enunciador estão atrelados ao enunciado. Com o sujeito
empírico é diferente. Ele diz respeito ao extralinguístico, ao sujeito no mundo real, numa
materialidade distinta da linguística. O sujeito ducrotiano, ao invés disso, é linguístico.
Para a construção de sentido em qualquer texto, portanto também no Parecer, esses dois
papéis relevados são importantes já que o sentido do enunciado é descrito, conforme a
78
perspectiva da ANL pela análise do embate dos pontos de vista dos enunciadores postos em
cena pela organização linguística do locutor e pela constatação do prisma assumido por tal,
seja ele de confronto ou assentimento mais explícito ou implícito.
4.1.3 “Pressuposto” e “subentendido”
A distinção entre frase e enunciado, depreende, em adição, outra, a existente entre pressuposto
e subentendido (DUCROT, [1969]1987). Ducrot ocupa-se da análise dos “efeitos de sentido”,
possivelmente derivados de dados que o linguista dispõe – as múltiplas ocorrências do
enunciado. Não se concentra no componente retórico e intenta sistematizar o componente
linguístico, a fim de fazer uma descrição semântica.
Deriva, com isso, dois tipos de “efeito de sentido”, o pressuposto e o subentendido,
diferenciados dentro do campo dos implícitos: o pressuposto seria um fato inscrito na língua,
que resistiria às transformações linguísticas, não seria afetado pela transformação de uma
frase declarativa em pergunta ou subordinação.
Ducrot ([1969]1987, p.33) esclarece ainda que “o pressuposto pertence antes de tudo à frase:
ele é transmitido da frase ao enunciado na medida em que esse deixa entender que estão
satisfeitas as condições de emprego da frase do qual ele é a realização”.
O subentendido, por sua vez, já traria o componente retórico, não permaneceria quando da
transformação linguística e seria ausente do enunciado, pertencendo ao contexto
extralinguístico. O raciocínio do ouvinte que subentende faz, segundo Ducrot ([1969]1987,
p.22), esta formulação: “Se alguém julga que é adequado dizer-me isto, é, sem dúvida, porque
pensa aquilo”, haveria algo a mais a ser colocado em seu enunciado “[O ouvinte] supõe, de
alguma forma, que o locutor observa, na escolha de seu enunciado, uma lei da economia”. Ou
seja “para que um enunciado E subentenda X, X deve aparecer como uma explicação de sua
enunciação. Se, no meu exemplo de referência, Pedro parou de fumar subentende É possível
parar é porque admite que uma das razões para produzir o enunciado era comunicar isso ao
destinatário”.
Sendo assim, o subentendido só pode aparecer no momento da enunciação (já que é a resposta
sobre as perguntas das condições de possibilidade da enunciação: “Por que o locutor disse o
79
que disse?” “O que tornou possível sua fala?”) e depende do próprio enunciado: pertence ao
sentido [enunciado] sem estar prefigurado ou antecipado na significação [frase]’. É um evento
interpretativo não marcado na frase. A diferenciação entre pressuposto e subentendido então
está diretamente e respectivamente relacionada a seu nível de significação: frase e enunciado
(DUCROT, [1969]1987, p.32).
4.2 ARGUMENTAÇÃO “TRADICIONAL” E ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA
A ANL é desenvolvida por Ducrot da seguinte forma, primeiro, contrapõe-se a argumentação
tradicional à argumentação linguística; entendida essa distinção, passa-se à exploração não de
enunciados, mas de elementos mais específicos, os operadores argumentativos (O. A.);
seguindo-se a isso, há uma problematização que conduz à noção de topoi argumentativos e a
sua elaboração nas chamadas formas tópicas, e, por fim, a negação dos topoi e a manutenção
da teoria polifônica da enunciação pela teoria dos blocos semânticos.
Para Ducrot, as argumentações retórica e linguística são abordagens distintas. A
argumentação retórica é concisamente definida por ele como “a atividade verbal que objetiva
fazer com que alguém acredite em alguma coisa”.
A crítica a essa teoria assenta-se em duas supostas lacunas em sua elaboração: primeiro,
haveria situações não de convencimento ou persuasão consensuais (tidos na leitura ducrotiana
da argumentação retórica como fruto da aceitação mental do interlocutor), ou seja, situações
de coação/coerção/manipulação; segundo, o fato de ela se limitar à ação da palavra, sendo que
há outras formas, simbólicas ou não, de se convencer/persuadir55 (DUCROT, 2003).
55
São, de fato, abordagens diferentes (embora sob o mesmo rótulo de “Argumentação”) se forem percebidos os
objetos e os desdobramentos, a cadeia teórica particular de cada teoria. No entanto, ressalve-se que a análise dos
estudos retóricos perelmianos permite que se fale em distinção entre persuasão (aceitação pelas ações) e
convencimento (aceitação mental), como processos autônomos e, portanto, podendo ocorrer de modo
independente: persuasão sem convencimento e convencimento sem persuasão. Além disso, foram recortes
teóricos as escolhas em se centrar no convencimento/persuasão consentidos, não em situações de manipulação,
por exemplo, bem como na abrangência ao texto verbal, o que não impediu que estudos posteriores pudessem
trabalhar essas mesmas noções, aliadas a outras teorias, em elementos pictóricos ou imagéticos. O próprio
Ducrot fez a escolha de relevar aspectos linguísticos em detrimento dos extralinguísticos em sua teoria. Com
isso, o que se busca expressar com este estudo não é a hierarquização das teorias argumentativas, mas uma
mostra de seu funcionamento complementar e por vezes com pontos de tangência, já que ambas falam de
discurso com conteúdo argumentativo, de modo que o fenômeno “Argumentação” seja visto de maneira menos
parcial (nas acepções de menos completo e com menos favorecimento de uma ou outra teoria).
80
Conforme Ducrot, a argumentação tradicional é concebida como a produção, por um orador
(“sujeito falante”), de um enunciado A como justificativa de um enunciado C, diferente, numa
trajetória bifurcada em 1) enunciado-argumento A indica fato F (que pode, independente da
intenção de se concluir C, ser verdadeiro ou falso, comprovado ou refutado) e 2) admissão,
por parte do orador, do valor de verdade da conclusão C implicada pelo fato F, assim:
Esquema 01 – Reprodução do esquema de argumentação tradicional
Ducrot [1977] 1989, p.17
São os conectivos que indicam a conclusão: ““A logo C” ou do tipo “C já que A” (o
argumento A designa o fato). A argumentação não é protagonizada pela língua também no
segundo movimento, do fato à conclusão, para o qual são mobilizados “a situação de discurso
e princípios lógicos, psicológicos, retóricos e sociológicos...” (DUCROT [1977] 1989, p.17).
Em outras palavras, para a argumentação retórica, concorreriam argumento e conclusão no
texto, sendo que o argumento indicaria o fato e a conclusão seria obtida a partir do fato, do
extralinguístico.
No entanto, Ducrot aponta para situações em que uma mesma frase ou frases idênticas que
designam o mesmo fato caracterizam argumentos distintos ou até mesmo opostos. Pela
sistematicidade desses casos, é que ele chega à conclusão geral56 de que a argumentatividade
é dada pela significação da frase, pela língua. A frase indicaria os modos de argumentação,
56
Ele diz que determinadas frases têm essa direção argumentativa, mas disse ““certas” por prudência: na verdade
queria dizer “todas”” (DUCROT, [1977] 1989, p.18), mas o alcance de seus estudos até então não o permitiam.
81
permitindo certos sentidos57 nos enunciados. Portanto, Ducrot elege não a argumentação
obtida indiretamente pelo “esforço verbal”, mas a ANL, a argumentação “pelo seu meio
direto” (DUCROT, 2003).
A língua passa a ser vista como autossuficiente em termos argumentativos segundo essa nova
abordagem ducrotiana. A argumentação estaria na frase e não nos fatos (ou nas situações e
princípios deles decorrentes e de igual caráter extralinguístico) por ela veiculados, no mundo
externo do qual a língua seria só uma referência. Nesse sentido, a argumentação seria
uma atividade estruturante do discurso, pois é ela que marca as
possibilidades de sua construção e lhe assegura a continuidade. É ela a
responsável pelos encadeamentos discursivos, articulando entre si
enunciados ou parágrafos, de modo a transformá-los em texto: a progressão
do discurso se faz, exatamente, através das articulações da argumentação
(KOCH, 2002, p. 159).
De um elemento constituinte da língua, segundo a ótica retórica, a argumentação passa a
estruturante, constituinte basal, pilar da língua: tanto no que concerne ao sistema quanto à sua
progressão discursiva, com dispositivos próprios que garantem a sua continuidade em
parágrafos, em sua manifestação gráfica ou em turnos enunciativos, conversacionais, para a
formação de texto oral. Elementos esses então de caráter linguístico-argumentativo.
4. 3 O ATO ARGUMENTATIVO DA LINGUAGEM
Quanto ao ato da argumentação, este pode ser estudado mediante os estudos ducrotianos dos
atos da linguagem, mais especificamente do ato ilocucional, realizando-se no e por um
enunciado, mais especificamente naqueles enunciados construídos por um argumento A e
uma conclusão C relacionados por proposições sequenciadas, como na relação entre
parágrafos (A então C/ A portanto C), fugindo da comum interpretação de A como validação
ou justificativa de C.
Os atos da linguagem de Austin58 formariam, didaticamente, uma tríade composta do ato
locucional (o ato de produzir um enunciado gramatical, com sentido e referência, o ato de
57
Pelo exposto, o sentido é a ótica do enunciador no enunciado com determinado valor argumentativo.
82
dizer algo), o ilocucional (língua utilizada com finalidades determinadas, é o ato que faz algo,
produz a força da enunciação) e o perlocucional (o efeito do enunciado no interlocutor)
(CABRAL, 2010). Sendo assim, o ato de argumentar estaria ligado à Pragmática59
vista sob dois aspectos distintos [...] o primeiro deles, refere-se ao caráter
eminentemente atuacional de cada um deles, já que evidenciam o sentido
ativo de cada locutor em relação ao ouvinte; o segundo aspecto refere-se a
sua complementaridade necessária, à medida que cada um deles se revela
(pensada sua natureza pragmática) como incompleto para a obtenção de um
efeito de sentido no ouvinte (OSAKABE, 1979, p.97).
Todo enunciado seria “objeto de um ato de argumentar” que seria inscrito em seu sentido, ato
esse que traria a hierarquização do locutor em relação à qualidade de determinado elemento.
Essa qualidade, colocada numa escala, determinaria as conclusões que do enunciado podem
ser derivadas. Por exemplo, a qualidade Q atribuída a alguém, de ser quase vencedor produz
conclusões como não venceu, nunca se esforça para vencer, conclusões de natureza
linguística ou discursiva (CABRAL, 2010). A qualidade não é confundida com as conclusões
que dela podem ser depreendidas, e é com base nessa qualidade que se pode falar das noções
de superioridade e oposição argumentativa:
A noção de superioridade argumentativa estabelece que uma frase f2 é
argumentativamente superior a outra f1 se, em qualquer situação em que o locutor
considera um enunciado E1 de f1 como sendo um argumento utilizável para uma
determinada conclusão, ele também considera o enunciado E2 de f2 como sendo
um argumento utilizável para a mesma conclusão, mas não o inverso (CABRAL,
2010, p.46, grifos da autora).
Então, para exemplificar, Cabral (2010) diz que na hipótese de serem atribuídas as qualidades
“tanque cheio” e “tanque quase cheio” a um carro, sabe-se que se a argumentação se volta
para a distância a ser percorrida. Da qualidade Q = “nível de plenitude do tanque”, tem-se em
58
Teoria apresentada inicialmente em sua obra: AUSTIN J. L. (1962). How to do things with words. Oxford.
Tradução: Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Porto Alegre: ARTMED, 1990.
59
Não obstante Oswald Ducrot, em entrevista recente a Antônio Carlos Xavier tenha alegado a tentativa de
combinar Saussure e Austin, ele diz o seguinte sobre a influência da Pragmática em seus trabalhos: Parece-me
que há uma Semântica que pode ser desenvolvida no interior da própria língua sem implicar considerações
relativas à necessidade de ações dos homens, isto se entendermos por Pragmática o estudo das ações humanas
com todos os seus componentes psicológicos e sociais. Mas defendo que há uma Semântica independente da
Pragmática. Minha mulher (Marion Carel), diz que minha Semântica é um pouco do tipo Pragmática, porque eu
utilizo noções de atos, de discurso que são noções do tipo pragmático. Porém, se tomarmos por Pragmática o
estudo geral das ações humanas, eu sei que me situo fora (da Pragmática).” (XAVIER, 2012)
83
“tanque cheio” um argumento superior ao segundo. A oposição argumentativa pode ser assim
esquematizada:
A noção de oposição argumentativa ligada ao conceito de ato de argumentar
estabelece que duas frases f1 e f2 são argumentativamente opostas se, em nenhuma
situação, as ocorrências dos enunciados E1 e E2 de f1 e f2 podem servir para
conduzir à mesma qualidade R do ato de argumentar, não podendo atribuir em
nenhum grau a mesma qualidade ao mesmo objeto (CABRAL, 2010, pp.46, 47,
grifos da autora).
Ainda sobre essa oposição/superioridade dos argumentos, Cabral (2010, pp.46, 47) retoma os
seguintes exemplos de Anscombre e Ducrot: “o jantar está pronto” e “o jantar está quase
pronto”. Tais enunciados argumentam para sentidos opostos, no caso do primeiro, tem-se a
qualidade Q de iminência do jantar, no segundo caso, a de não iminência.
Percebe-se, pelos exemplos, que o operador argumentativo quase exerce uma função
argumentativa de grande importância. Por “operador argumentativo”, entende-se um
determinado elemento linguístico que funciona como norteador de sentidos do enunciado, ele
“indica (mostra) a força argumentativa dos enunciados, a direção (sentido) para o qual
apontam” (KOCH, 2002, p. 30), seus modos de argumentação. Mais especificamente, haveria
o funcionamento de elementos linguísticos pontuais cujas condições de funcionamento são
três: tendo uma frase P, pode-se construir P’ com a inserção, com as necessárias adaptações
ou não de um morfema x; P e P’ devem ter enunciados de valores argumentativos distintos; P
e P’ devem veicular a mesma informação, o mesmo fato.
Exemplificando, Ducrot diz que da frase P “Pedro trabalhou um pouco” pode-se derivar a
frase P’ “Pedro trabalhou pouco”, frases essas que evocam argumentações atualizadas em
diferentes momentos de enunciação e indicam o mesmo fato.
Essas argumentações podem
ser diferentes na acepção de serem opostas, mas não necessariamente (DUCROT [1977]
1989, p.18-22). Deste modo:
A força argumentativa de um enunciado A deve ser definida como um
conjunto de enunciados C1, C2... etc. que podem aparecer como conclusões
de A. Assim a força argumentativa de um enunciado “Pedro trabalhou um
pouco” consistiria no conjunto de enunciados que podem eventualmente lhe
ser encadeados em um discurso por um portanto ou um conectivo desse tipo
explícito ou implícito. Neste conjunto, encontrar-se-iam, por exemplo, os
84
enunciados “Ele está cansado”, “Ele tem o direito de descansar”, “Ele talvez
tenha terminado o artigo” (DUCROT, [1977]1989, p.20).
Conforme já dito, para Ducrot, o ato de argumentar seria um ato de linguagem ilocutório e
teria um caráter “jurídico”, pois traria um efeito proveniente de um poder inerente e imediato
como sua enunciação:
Partia de uma definição de ilocutório – que não tenho nenhuma intenção de
abandonar – de acordo com a qual realizar um ato ilocutório é apresentar
suas próprias palavras como induzindo, imediatamente, a uma transformação
jurídica da situação: apresentá-las, por exemplo, como criadoras de
obrigação para o destinatário (no caso da ordem ou da interrogação), ou para
o locutor, (no caso da promessa) [...] Se realizo um ato perlocutório, como o
de consolar, o efeito que espero neste caso para a minha fala pode ser um
efeito muito indireto, ligado a um encadeamento causal muito complexo [...]
o efeito perlocutório não é, pois, imediato (DUCROT, [1969]1987, p.34, 35,
grifos do autor).
No entanto aqueles enunciados-conclusões (C1, C2...) que conferem força argumentativa a um
enunciado A: como os supramencionados “Ele está cansado”, “Ele tem o direito de
descansar” e “Ele talvez tenha terminado o artigo” que são conclusões derivadas do enunciado
“Pedro trabalhou um pouco”, com a pista do operador argumentativo “um pouco”
possibilitaram, no desenvolvimento da ANL, o acréscimo do entendimento da participação de
vozes diversas em embate, aliando à Teoria dos Atos de Linguagem a Teoria Polifônica da
Enunciação, algo explanado por Ducrot ([1969]1987) em seu prefácio em O Dizer e o Dito:
No que concerne à teoria dos atos de linguagem, ela funda o sentido de um
enunciado nas relações em que este estabelece entre sua enunciação e um
certo número de desdobramentos “jurídicos” que esta enunciação, segundo
ele, deve ter. No que concerne à teoria da polifonia, ela acrescenta a esta
alteridade, por assim dizer “externa”, uma alteridade “interna” – colocando
que o sentido de um enunciado descreve a enunciação como uma espécie de
diálogo cristalizado, em que várias vozes se entrechocam (DUCROT,
[1969]1987, p.9 (prefácio)).
Portanto, esse conjunto de conclusões, ou vozes dialógicas que internalizam no enunciado
uma alteridade, utilizando-se quer “pouco”, quer “um pouco” pendem para a ideia do binômio
trabalho-fracasso, no primeiro exemplo, ou trabalho-sucesso nos outros dois exemplos, mas
85
sempre atualizando um discurso de cada vez. Não há exclusão de discurso, já que se podem
admitir ambos os binômios, mas somente um deles é evocado no momento da enunciação.
Porém, cogitaram-se ainda outras possibilidades que demandaram atualizações na teoria. Pode
ser que o mesmo operador argumentativo resulte em conclusões diferentes, ou que as
conclusões resultantes desses enunciados-argumento (A), que dão conta do mesmo conteúdo
factual, sejam idênticas, retirando dos enunciados-argumento ou dos enunciados-conclusão
(C) o poder argumentativo.
Além disso, os próprios operadores argumentativos não estariam descritos a contento, para
Ducrot. Nesses pontos percebeu-se a necessidade de reformulação da teoria como uma
tentativa de sanar as dificuldades.
4.4 DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES AOS BLOCOS SEMÂNTICOS
As lacunas percebidas, por conseguinte, demandaram uma revisão da Teoria da
Argumentação na Língua; o que não significou o abandono total de seus pressupostos,
somente uma reatualização. O poder argumentativo, o caráter “jurídico” não seria mais
resultante das conclusões decorrentes do enunciado, mas intrínseco a ele. Tal valor
argumentativo seria mais regido por princípios que os relacionam, por pontos de vista de
enunciadores, os topoi – algo até então despercebido pela ANL.
Chegou-se, assim, ao formato da ANL que tratava a argumentação não mais definida como o
conjunto de conclusões possíveis de um enunciado, transferindo as conclusões dele
depreendidas a um princípio evocado pela frase, o topos. Em outras palavras, a orientação
argumentativa de A para C perpassaria um topos; o topos permitiria a passagem do argumento
à conclusão. Com isso, a teoria dos topoi argumentativos desloca a atenção do enunciado aos
enunciadores cujos pontos de vista são descritos, resgatando os pressupostos da Teoria
Polifônica da Enunciação (DUCROT, 2003; SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F., 2013).
Sendo assim:
Duas condições são apresentadas para que o ponto de vista de um
enunciador possa ser considerado argumentativo. A primeira é que ele sirva
para justificar uma determinada conclusão, que pode estar explícita ou
implícita no enunciado e pode ser assumida ou não pelo locutor. A segunda
condição postula a noção de topos, fundamental nessa fase da teoria. O valor
86
argumentativo passa a ser entendido como parte constitutiva do enunciado: o
princípio argumentativo, designado de topos, é o responsável pela orientação
do enunciado em direção à conclusão; é o intermediário entre o argumento e
a conclusão (CAMPOS, 2007).
O ponto de vista do enunciador que coincidiria ou não com a ótica do locutor, intermediaria
argumento e conclusão e isso é o que explicaria que operadores argumentativos diferentes
chegassem a conclusões idênticas ou vice-versa. Reitere-se que a atenção do analista
permanecia ao que era intrínseco à língua, já que esse topos seria interno ao enunciado. É esse
topos, nesse ponto da teoria, que deveria ser descrito na análise argumentativa.
O topos, esse lugar argumentativo, é portador de três propriedades: a universalidade, a
generalidade e a gradualidade. O topos é universal no sentido de que se postula que ele é
comum, ao menos, à fonte e ao alvo da argumentação (enunciador e destinatário), é um
compartilhamento de ponto de vista suposto; é geral pela possibilidade de extensão
sistemática a contextos similares, sendo a situação a qual ele se aplica uma amostragem; e é
gradativo porque se movimenta em duas escalas.
Essa gradação dos topoi, nesse momento, é a base da ANL juntamente com a noção de formas
tópicas. Os topoi lidam com a hierarquização de valores pelos quais se apresentam as
condições a contento dos enunciadores.
Com tais princípios argumentativos, os topoi, argumento e conclusão começaram a ser
relacionados, mas ainda eram vistos como interdependentes. A Teoria dos Blocos Semânticos,
no entanto, uniu-os. Conforme Ducrot (2003), esses encadeamentos formatam um contexto
específico do qual somente uma das conclusões pode ser retirada. O conteúdo do argumento
A só pode ser compreendido na medida em que se compreende a consequência apontada na
conclusão C por um portanto nem sempre explícito. A e C são, por isso, radicalmente
interdependentes.
Ressalte-se, no entanto, que o encadeamento argumentativo não é a justificação de uma
afirmação por outra, mas para qualificar algo, para descrever algo de valor argumentativo. O
portanto então não antecede uma justificação, mas uma descrição. O portanto C já integra o
sentido de A. Sobre a importância de um logos como prova argumentativa, Ducrot salienta que
além do movimento A portanto C, a língua, por meio de elementos como “pouco”, “um pouco”,
“quase” ou ainda por meio de adjetivos como “longe” pode resultar em A contudo não C (como
87
em “Pedro estudou pouco, contudo será aprovado no exame”), sendo que a escolha de C ou não
C é aleatória e não categórica, não definitiva, por isso o logos, a significação de A, não teria
valor jurídico, autoridade o suficiente para que o resultado seja a escolha de C ou de não C,
impondo somente o conectivo mediante a significação dada pelo elemento linguístico operante.
Não haveria então o logos como prova discursiva (DUCROT, 2003).
Com a inserção das contribuições de Marion Carel na ANL, argumentar não seria justificar,
por isso, essa estudiosa acresce aos anteriormente trabalhados encadeamentos A portanto C
(A DONC C/ A DC C) os do tipo A no entanto C (A POURTANT C/ A PT C). Esses
elementos linguísticos seriam prototípicos de outros de funcionamento sistêmico similar, para
o DONC, por exemplo, “pois”, “então”, “sendo assim”, “por isso” e etc.; para o POURTANT,
“entretanto”, “mesmo que”, “mas”, “porém”, “embora”, “não obstante” e etc..
O enunciado-argumento A e o enunciado-conclusão C manteriam então uma interdependência
que condicionaria o sentido: o conjunto, o todo formado por A e C – o bloco semântico –é
que portaria o sentido. Não haveria, com isso, uma afirmação que levaria a uma conclusão
como afirma as fases anteriores da ANL. O locutor organiza um enunciado “que contém o
bloco semântico”. Dos conectivos que interligam os segmentos, Carel subdivide a
argumentação em normativa e transgressiva (CABRAL, 2010, p.129; CARNEIRO, 2008):
Quadro 02 – Argumentações normativa e transgressiva
ARGUMENTAÇÕES – TIPOS
NORMATIVA
TRANSGRESSIVA
A logo C
A no entanto C
A pois C
A entretanto C
A então C
Embora A, C
A sendo assim, C
Mesmo que A, C
[...]
[...]
A teoria dos blocos semânticos veio para dar conta de uma deficiência dos topoi para os quais
a significação de uma palavra estava assente nos lugares-comuns a serem acessados por
88
enunciadores, passando a compreender a argumentação como a composição de segmentos de
discursos encadeados por um conector do tipo normativo ou do tipo transgressivo, os blocos
semânticos.
Contudo, é importante salientar que seja na fase standard, na dos topoi ou na atual, mais
lexical, Ducrot atém-se ao sentido que é permitido pelo discurso, o qual, por sua vez, é
derivado do embate entre vozes anteriores ao dito e nele concretizadas:
Se o sentido de uma palavra está nas suas direções argumentativas e se só o
discurso é doador de sentido, então podemos entender que as direções
argumentativas são dadas pelo discurso, mas estão inscritas nas palavras.
Assim, a palavra evoca o discurso. E se o discurso pode ser entendido, na
perspectiva de Ducrot, como o conjunto de falas anteriores, podemos
entender que a noção de polifonia permanece nessa versão da teoria e que o
conceito de sujeito tripartido também se mantém. Dessa forma, podemos
considerar que o dizer para Ducrot, é maior que o dito; é contraditório, uma
vez que evoca muitas falas anteriores, que podem estar de acordo ou não
com esse dizer do presente; é argumentativo, portanto, diretivo; mas é um
dizer que é captável pela língua e captado por ela, por isso é possível chegar
ao dizer a partir do dito. (DIAS e SANT’ANA, s/d, p. 11)
Sendo assim, é pertinente que a análise nesse trabalho se centre naquilo que é permanente na
teoria, reportando-se a essa polifonia construtora dos discursos e a cada um aspecto desse
sujeito tripartite ducrotiano, independente da fase de elaboração de cada aspecto teórico.
Desse movimento de constante reatualização da teoria, pode-se depreender que “toda fala,
tenha ela ou não objetivos persuasivos, faz necessariamente alusão a argumentações seja em
contudo (não C), seja em portanto (C)”. Essa afirmação de Ducrot (2003) permite que as
argumentações retórica e linguística tenham um momento de reconciliação, já que se pode
recorrer à figura do locutor que organiza logicamente seus argumentos (lembrando que o
locutor é definido como o responsável pela enunciação).
À concessão, à capacidade de antecipação de um argumento B que poderia conduzir a “não
C” em seu discurso, o locutor poderia fazer com que se seguisse um “mas”. Pode-se perceber
isso implicitamente, quando Rui Barbosa afirmou que “o escravismo revestiu, entre nós
exterioridades insidiosas, que o tornam mais perigoso que a franca apologia do cativeiro:
declarou-se emancipador” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.75). Ele trouxe o que
poderia ser um contra-argumento para seu discurso. Explicitamente, então, em vez de se ter
algo como “é necessário que existam mais abolicionistas”, facilmente refutável por um “mas
todos são abolicionistas”, há, no Parecer ao Projeto Dantas algo como “todos são
89
abolicionistas, mas é necessário que o grau de adesão à causa seja mais forte” ou “todos são
abolicionistas, mas é necessário que sejamos mais liberais” apontando para a necessidade de
implementação de medidas jurídicas complementares às já existentes e que corroboram para
uma abolição geral. Essa antecipação colabora com o ethos do locutor como alguém
fidedigno, preparado para o que sustenta, já que percebe de antemão as possíveis objeções,
além de ser aberto a pontos de vistas divergentes, pois mesmo que sejam refutados, foram
antes lembrados (DUCROT, 2003).
Esse sentido pretendido pelo locutor já se inscreve na frase quando se fala de uma
emancipação eminentemente escravagista, de modo negativo ressalta a abolição tolhida por
interesses escravocratas. Ou de uma “quase” abolição, ou de parlamentares “um pouco”
abolicionistas. Há, então, um encadeamento argumentativo cristalizado no próprio léxico,
juízos exteriores incorporados na própria língua, naturalizados por estereotipia, que podem ser
manobrados para fins de convencimento/persuasão. Tornam-se também eficazes quando se
faz o uso evidente do portanto: ao se dizer, por exemplo, que “todos são abolicionistas,
portanto todos devem ser a favor da abolição geral”, o termo “abolicionista” explícito,
demonstra qual encadeamento evocado, já que o próprio termo no vocabulário da Língua
Portuguesa permite associar abolição e liberdade (DUCROT, 2003).
Como Ducrot disse em entrevista: “A significação das palavras se constitui pelas
argumentações”60. Essa assertiva dá conta do estado atual da teoria da ANL e seu
desenvolvimento por Marion Carel e Oswald Ducrot. Quaisquer elementos, sejam eles
gramaticais ou lexicais portariam argumentatividade.
Isso mantém então o estatuto dos
operadores argumentativos, como elementos que carregam consigo conteúdos pressupostos os
quais são de responsabilidade do locutor e do interlocutor, ou ainda partilhado por terceiros,
ou por toda uma comunidade – sendo assim, esses operadores trazem outras vozes para o
enunciado. Cabe ao analista depreender das frases da língua uma significação norteadora do
sentido de seus enunciados, e esse é o exercício a ser feito no Parecer ao Projeto Dantas.
60
DUCROT apud XAVIER, 2012.
90
5. O PARECER AO PROJETO DANTAS: BLOCOS SEMÂNTICOS E A
NEGAÇÃO DA ESCRAVIDÃO
“A escravidão [...] E’ a posse, o dominio, o sequestro de um homem – corpo,
intelligencia, forças, movimentos, activividade – e só acaba com a morte”.
(NABUCO, [1883] 2011, p.161).
Saindo da ideia de que a passagem de um argumento a uma conclusão perpassaria os topoi–
discursos partilhados por uma comunidade, integrantes de um enunciado pela cristalização de
sentidos – e transferindo a noção de argumentação para o funcionamento conjunto do
enunciado-argumento e enunciado-conclusão, que formariam um todo semântico, analisar-seão alguns enunciados produzidos sobre a relação propriedade-indenização, legitimadora da
escravidão, do direito escravocrata que se confronta com o binômio liberdade-não
indenização mola-mestra do direito abolicionista. A argumentação deixa de ser justificação
para ser um elemento construtor da própria língua e, por analogia, do texto do Parecer ao
Projeto Dantas.
5.1 O PARECER E A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS
A significação do léxico é o principal alvo de estudos da Teoria dos Blocos Semânticos.
Conceitos como argumentação normativa e transgressiva, argumento externo e interno, bem
como o de argumentação estrutural e contextual abarcam o significado de uma palavra.
Portanto, não é feita uma análise exaustiva do funcionamento de cada bloco semântico
presente na definição de cada vocábulo do Parecer ao Projeto Dantas, e sim de alguns
encadeamentos, escolhidos porque entende-se que comportam as ideias mais recorrentes no
texto. Por essa razão, procede-se ao exame daqueles âmbitos de significação mais
representativos por meio da análise do significado de determinadas palavras-chave que
permitem o entendimento de certos enunciados.
91
5.1.1 Encadeamento propriedade-indenização: norma e transgressão
Assumindo-se o prisma de que a argumentação seria decorrente do encadeamento de blocos
discursivos por conectivos dos tipos normativos ou transgressivos, o binômio propriedadeindenização assume a roupagem de bloco semântico já que dá conta de um único conteúdo
semântico. Seus encadeamentos possíveis seriam:
Quadro 03 – Encadeamentos do bloco semântico propriedade-indenização
I.
Propriedade portanto indenização
A portanto C
II.
Propriedade no entanto indenização
A no entanto C
III.
Não propriedade portanto não indenização
Não A portanto não C
IV.
Não propriedade no entanto não indenização
Não A no entanto não C
Norma e transgressão são argumentações resultantes da inter-relação de termos de um
enunciado: “[o articulador] liga sempre duas argumentações respectivamente da forma A
conector B e não-A conector não-B: elas são ou ambas normativas (“conector” é, nos dois
encadeamentos do tipo de donc), ou é transgressiva (“conector” é, nos dois encadeamentos do
tipo de pourtant)” (CAREL, 2002, p. 34, grifos da autora).
Conforme os encadeamentos do Quadro 3, a atitude do locutor mediante os enunciadores
pode ser de concordância, confirmando seu ponto de vista ou de discordância, refutando-o.
Cada um desses posicionamentos corresponde a uma regra: por um lado, I. confirma o bloco
semântico, constituindo a regra 1; e, por outro lado, III. refuta-o, regra 02.
Cada regra comportaria aqueles dois aspectos, o normativo, quando os seguimentos são
unidos por portanto e o transgressivo, quando os encadeamentos são ligados por no entanto:
a regra 01 teria como aspecto normativo I e transgressivo II; a regra 02, por sua vez, tem
como norma III e transgressão, IV.
92
Privilegiando um ponto aspectual e sua regra correspondente, o locutor Rui Barbosa assim se
pronunciou em um evento enunciativo sobre o Projeto Dantas:
O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros
tentamens de transação, estar em ser ele o único onde, proscrevendo-se a
indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da
liberdade gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão
compreendeu-o; viu nesse ensaio libertador a célula da abolição
incondicional e, percebendo que jogava a sua sorte, envidou assomos
inauditos, no delírio de um desespero descomunal, para subverter a audácia
dessa iniciativa numa catástrofe exemplar (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.
153, grifo nosso).
Por meio desse discurso laudatório, Rui Barbosa, em retrospecto, sintetiza o que seria a ideia
principal do Projeto Dantas. Mesmo que tal projeto tenha sido refutado em suas bases – em
consequência de um momento histórico em que o âmbito jurídico havia sido transformado em
instrumento legitimador dos interesses senhoriais revestidos de proteção à liberdade
(MENDONÇA, 2008) –, ele havia sido compreendido como momentoso já que apresentara,
principalmente, a ideia decisiva para o abolicionismo geral gratuita.
Não há a apreciação do elemento propriedade do encadeamento isoladamente, nem de
indenização também isoladamente. Percebe-se o encadeamento como interdependente,
propriedade portanto indenização, como um todo significativo, um bloco semântico.
O conjunto deve ser considerado pelo fato de que, ainda que o portanto ou o no entanto apontem
para a norma ou transgressão do encadeamento precedente, a implicação, no caso da norma, ou a
distorção/ “ambiguidade” argumentativas, no caso da transgressão, só são plenamente constatadas
levando-se em conta também o seguimento subsequente (CAREL, 2002).
Contudo, o locutor não assume as duas posições ao mesmo tempo: não admitiria a
simultaneidade em existir um sistema de propriedade do homem sobre o homem
indenizatória, A PT C, coexistente com a sua inversão, uma não propriedade do homem sobre
o homem gratuita, não A PT não C. O emprego desses blocos conduz a uma restrição de
sentido pelo locutor.
Portanto, pode-se dizer que há, pelo locutor Rui Barbosa, a assunção de que o Projeto Dantas
assume a posturado aspecto normativo da regra 02: não propriedade portanto não
indenização. Portanto, a ideia de posse, de propriedade, imperativa em reivindicar uma
93
compensação financeira ou por prestação de serviços não é a defendida pelo locutor. É esse o
sentido que será dado ao Projeto:
Quadro 04 – Descrição do evento enunciativo 1
EVENTO ENUNCIATIVO1
Bloco Semântico
propriedade-indenização
Regra 02
Não propriedade PT não indenização
Aspecto Normativo
A portanto C
Enunciador 1 (E1)
O Projeto Dantas é radical, pois visa a abolição
incondicional
transgredindo
o
direito
à
indenização
Enunciador 2 (E2)
O Projeto Dantas é legítimo, pois visa a
abolição incondicional sem indenização
O Projeto Dantas é visto então, com base no enunciado supracitado, pelo menos, sob dois
prismas: E1 seria um dos pontos de vista, escravagista, o qual se opõe ao locutor combatendoo, pela percepção de seu radicalismo por fugir à defesa dos direitos senhoriais; e E2 o outro,
emancipatório, que negaria a existência de um direito à indenização, afirmando,
complementarmente a liberdade interpretada pelo locutor como a genuína, a que prescinde de
compensação.
Por meio de asserção, locutor Rui Barbosa assume o posicionamento de E2 orientando, pelo
reforço a esse ponto de vista, o sentido de que não deveria haver indenização em decorrência
do fato de a escravidão ser ilegítima devendo ser substituída pela abolição geral e
incondicional. No mesmo sentido, aponta o seguinte excerto:
Os fatos, as reformas libertadoras desde o começo dêste século mostram no
título de propriedade, atribuído ao senhorio do homem sôbre o homem, um
eufemismo sem realidade no espírito humano e cada vez menos realizado
nas instituições que protegem essa dependência odiosa. A liberdade é uma
restituição, e a indenização perde rapidamente o caráter de um direito. O que
ela é, o que pode ser, o que tem sido, por tôda a parte, é uma conveniência,
conveniência mais ou menos respeitável, não tanto em homenagem aos
interesses dos senhores, como em satisfação ás necessidades econômicas do
Estado (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 105, grifo do autor).
94
Quadro 05 – Descrição do evento enunciativo 2
EVENTO ENUNCIATIVO 2
Bloco Semântico
propriedade-indenização
Regra 02
Não propriedade PT não indenização
Aspecto Normativo
A portanto C
Enunciador 1 (E1)
A liberdade é uma restituição do direito humano,
universal de não ser submetido
Enunciador 2 (E2)
A indenização é uma restituição do direito de
propriedade dos senhores
A assunção do ponto de vista de E1 pelo locutor mantém, nesse excerto do texto do Parecer
ao Projeto Dantas, a negação do bloco semântico propriedade-indenização pelo aspecto
normativo da regra 02: liberdade é restituição de direito humano, neutralizando assim as
causas para indenização. O locutor recorre ao que é amplamente aceito pela via tradição,
oriunda de um modus operandi, opinião popular geral, o que é ratificado quando se diz que:
A questão que se contende entre a indenização e a gratuidade, não é uma
questão de direito, mas uma apreciação do interesse público que aconselha
se repeite, até onde a ordem geral e a fortuna nacional o exigirem, a boa fé
de interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo.
É sob este aspecto que encararemos a libertação dos escravos de sessenta
anos. ” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121)
Reitera-se, com isso, que mesmo que o encadeamento admita arranjos argumentativos
normativos ou transgressivos, o emprego de um bloco semântico por um locutor que assimila
um enunciador incorre em exclusão da argumentação pela norma ou pela transgressão.
95
Quadro 06 – Descrição do evento enunciativo 3
EVENTO ENUNCIATIVO3
Bloco Semântico
propriedade-indenização
Regra 02
Não propriedade PT não indenização
Aspecto Normativo
A portanto C
Enunciador 1 (E1)
A contenda entre indenização e gratuidade é uma questão de
interesse público que abriga verdades instituídas
Enunciador 2 (E2)
O Projeto Dantas se submete a uma questão de interesse
público, obedecendo a verdades instituídas
Sendo assim, o Projeto Dantas, ao defender a liberdade irrestrita dos sexagenários, sem
indenização, obedeceria aos costumes tradicionais, um clamor popular, supraindividual,
formatador da lei. No Parecer, essa afirmação trazida pelo trecho está em meio a uma análise
da jurisprudência histórica, tanto romana, quanto lusitana e depois brasileira, todas apontando,
segundo a análise ruiana, para a liberdade como um pressuposto moral, convencionalmente
conformado e conformador das leis.
Mas nem sempre a indenização era vista como algo que corroborava o direito à propriedade
escrava. Como um exemplo, recuando no tempo e recorrendo à análise da Lei do Ventre
Livre, de 1871 – tida como precursora do Projeto Dantas já que ambas tratariam da abolição
de segmentos sociais visando o movimento da abolição gradual à abolição geral – Rui
Barbosa traz a voz do parlamentar Paulino de Sousa, para o qual a indenização auferida pela
libertação dos nascituros representava a expoliação ao direito de propriedade:
O nosso direito pátrio, tanto o português como o brasileiro, sempre
consagrou e reconheceu o princípio do partus sequitur ventrem, e sempre
respeitou a jurisprudência constante e uniforme dos nossos tribunais. Logo, o
fruto do ventre escravo pertence ao senhor dêste tão legalmente como a cria
de qualquer animal de seu domínio. Por mais que esta conclusão ofenda os
nossos sentimentos humanitários, é ela incontestavelmente lógica e
conforme a lei.
A proposta do governo, porém, ataca e desrespeita esse direito, decretando a
liberdade dos filhos das escravas, que nascerem depois da lei, e
conseguintemente desapropriando o cidadão daquilo que é legalmente do seu
domínio, sem indenizá-lo previamente, na forma da Constituição.
96
Realmente senhores, a proposta fala em indenização: mas, quer se trate de
indenização pecuniária, quer de indenização pelos serviços dos libertos, eu
as reputo ilusórias e de nenhum modo suficientes. (BARBOSA, [1884] 1945,
v.11, t.1, p.93, grifos do autor).
Quadro 07 – Descrição do evento enunciativo 4
EVENTO ENUNCIATIVO 4
Bloco Semântico
propriedade-indenização
Regra 02
Não há propriedade DC não há indenização
Aspecto Transgressivo
A no entanto C/ Não propriedade NE indenização
Enunciador 1 (E1)
O ventre das escravas era uma propriedade, resguardada
historicamente por direito e por isso requeria indenização
Enunciador 2 (E2)
A indenização estipulada pela Lei do Ventre Livre, por ser
insuficiente, feria o direito à propriedade
Nesse caso, a argumentação transgressiva propriedade no entanto indenização é o viés
escolhido pelo parlamentar Paulino de Sousa. Em outras palavras, ele disse que embora
houvesse a admissão legal de uma indenização, a prevista na Lei do Ventre Livre, ela não se
prestava ao esperado pelos senhores, a uma reparação de direitos perdidos após manumissões
dos nascituros, mas seria um engodo, um auxílio para custear a educação do menor.
Porém, quanto a isso, é importante que se façam algumas observações. Falando em sentido, é
cauteloso explicar que, segundo Lysie dos Reis Oliveira (2012), educação e criação podem ser
vistos como termos que se diferenciam nesta época:
Apesar de não discordarem de que a paz social dependia de educação, não
havia um consenso sobre as estratégias. Houve negociação. Prevaleceu o
interesse dos senhores. Aí, sim, uma sutil diferença entre criar e educar se
fez presente. Educação, palavra que enfim aparece no texto da lei, só
receberiam aqueles que os senhores entregassem ao governo, em troca da
indenização de 600$000 (seiscentos mil-réis), ou os que lhes fossem
retirados, em caso de comprovação de maus-tratos. Não só associações e
estabelecimentos criados para tal fim estavam autorizados a recebê-los, mas
também Casas de Expostos, bem como pessoas que os juízes de órfãos
determinassem. [...] No texto da lei, as que ficassem na posse dos senhores,
nas fazendas, seriam criadas, não educadas. Em suma: quanto à educação,
sua responsabilidade estava anulada. A indenização ou a exploração de sua
97
mão de obra eram recompensas que os impediriam de vê-las como um ônus.
Se assim não fosse, possivelmente muitos não teriam interesse em que
escravas dessem à luz, podendo inclusive atentar contra isto.(OLIVEIRA,
2012, p.118)
Educação incluiria instrumentalizar o indivíduo para a vida em sociedade, tanto no tocante à
aquisição de regras morais por vias religiosas, quanto à aprendizagem de um ofício, envolvendo
o letramento dos menores também. Essa autora recorda também que naquele momento histórico
a educação não era obrigatória e que havia um temor generalizado de que a instrução insuflasse
os negros às revoltas. Segundo essa interpretação da história, se havia motivo para que o
parlamentar supracitado sentisse que os direitos dos senhores estavam sendo usurpados, seria
pela obrigatoriedade de criação dos escravos menores sob a Lei de 28 de setembro de 1871, não
pela obrigatoriedade de educação; seria pelo fornecimento de meios de subsistência aos
menores para garantir condições da exploração de sua mão-de-obra enquanto não chegassem à
idade de sua alforria efetiva aos 21 anos. (OLIVEIRA, 2012, p.118).
Não obstante a diferenciação entre criar e educar que pode ser depreendida, e a não inclusão
da obrigatoriedade de se educar os negros e sim de “criá-los e tratá-los”61 havia uma
insatisfação pela quebra de expectativa do recebimento de um valor pelo senhores e a
prescrição de outro valor, pela lei. Ainda sobre isso versa o próximo subtópico.
5.1.2 Modificadores realizantes e desrealizantes
Retornando ainda à história como meio de validar o discurso escravocrata, evocando inclusive
o princípio do partus sequitur ventrem, o locutor Paulino de Sousa lamenta que, mesmo que
se tratasse de uma abolição prevendo indenização, a Lei do Ventre Livre não resguardaria os
interesses senhoriais (o que contraria análises posteriores62), já que a indenização seria
correspondente ao valor necessário para garantir a educação do menor libertando.
Concordando com isso, Rui Barbosa assim expressa:
Tinha razão [...] a intitulada indenização, oferecida ao senhor no artigo 1º.,
§1, da lei de 28 de setembro, como compensação da propriedade dos frutos
do ventre, é perfeitamente imaginária [...] essa compensação se destina a
61
62
Cf. Anexo E – Lei do Ventre Livre.
Cf. AZEVEDO (2003), MENDONÇA, 2008 E NABUCO, [1883], 2011, p.68.
98
ressarcir aos senhores as despesas com a criação e o tratamento do ingênuo
durante os outros primeiros anos da vida. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11,
t.1, p.95).
O adjetivo “imaginária” posposto ao substantivo “indenização” também atua na força
argumentativa, agindo como um modificador. Quanto a essa modificação, pode-se dizer que
se dá desde a atenuar a força de um enunciado até invertê-la. Acontece também de o
modificador reforçar seu valor argumentativo. Nas três ações, o modificador é um termo que
altera o topos de um predicado do enunciado (CABRAL, 2010).
Tal modificador, “imaginária”, vai de encontro à palavra “indenização”, atenuando seu
sentido, configurando-se então como um modificador desrealizante atenuador, já que se
trataria de uma indenização existente, concreta, mas tão sem efeito quanto algo imaginário ou
tão sem ação prática como uma “intitulada indenização”, um significante sem objeto. Do
mesmo modo, atua o modificador “ilusórias”, nos termos supramencionados por Paulino de
Sousa ao se referir tanto à indenização pecuniária quanto àquela por prestação de serviços.
Também na direção argumentativa oposta à “indenização” está o vocábulo “sem” de Paulino
de Sousa: “desapropriando o cidadão daquilo que é legalmente do seu domínio, sem indenizálo previamente, na forma da Constituição” (chefe Paulino de Sousa, apud BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p.93, grifos do autor); agora como um modificador desrealizante inversor, já
que pressupõe que não haveria indenização, invertendo a orientação argumentativa,
equivalendo a uma negação.
Esse modificador desrealizante inversor se coadunaria aos internalizadores do tipo
transgressivo, enquanto que a argumentação normativa teria correspondência com os
modificadores realizantes, ficando o modificador desrealizante num entre lugar por não haver
um meio termo entre norma e transgressão. Como conclui Ducrot (2002, p.23): [...] os
internalizadores normativos parecem aproximar-se dos modificadores “realizantes” e os
transgressivos dos “desrealizantes”.
Então, a indenização segundo as palavras de Rui Barbosa logo acima, seria “perfeitamente
imaginária”; nesse caso, “perfeitamente” um adjetivo modificador que atua na mesma direção
que “imaginária”, aumentando-lhe a força argumentativa, sendo um modificador realizante
que facilita a aplicação do topos. Sobre esses modificadores, pode-se depreender que:
99
Desse modo, determinada palavra pode ser considerada um modificador
desrealizante em relação a outra palavra se o sintagma em que se encontram
as duas palavras juntas tem uma orientação inversa ou uma força
argumentativa inferior à da segunda palavra.
Diremos, ao contrário, que uma palavra é um modificador realizante quando a
combinação das duas palavras tem a mesma orientação argumentativa da
segunda e uma força argumentativa superior a ela (CABRAL, 2010, p. 97, 98).
Com isso, o locutor Paulino de Sousa só é trazido para o enunciado ruiano para reforçar que a
indenização não era suficiente. No entanto, para Paulino de Sousa, isso era motivo de
protesto, já que a indenização estaria aquém do esperado, sendo equivocadamente estimada, já
que feriria algo constitucionalmente assegurado; para Rui Barbosa, ao contrário, a
indenização seria propositalmente insuficiente, já que essa seria a única configuração moral e
legalmente possível: a existência em lei de uma indenização só poderia ser aceita enquanto
“indenização imaginária” ou pseudoindenização, somente como e quando reversível para os
cuidados do próprio elemento escravizado.
O sentido é constituído, pois, pelo confronto da voz do locutor Rui Barbosa com a voz dos
enunciadores do discurso de Paulino Sousa, locutor esse que se representa como uma amostra,
materializando toda uma vocalização escravocrata.
5. 1.3 Argumentos internos, externos e suas relações
O todo significativo propriedade-indenização pode ainda ser visto como bloco de argumentos
internos da palavra “escravidão”, como que carregando parte constituinte de seu significado
interno, de tal forma que não só é patente nos enunciados de uma língua, como na sua forma
dicionarizada, que congela a dinâmica e preserva-os ao longo do tempo. Tanto que dicionários
atuais assim definem a escravidão:
a. O Novo Dicionário Aurélio (2004), versão eletrônica traz:
escravidão
[De escravo + -idão.]
Substantivo feminino.
1.Estado ou condição de escravo; escravatura, escravaria, cativeiro, servidão.
100
2.Falta de liberdade; sujeição, dependência, submissão, servidão,
escravatura:
Os empregados daquela usina queixavam-se de viver na escravidão.
3.Regime social de sujeição do homem e utilização de sua força, explorada
para fins econômicos, como propriedade privada; escravatura.
b. O mesmo termo é assim definido pelo Dicionário Unesp do Português
Contemporâneo (2004):
ESCRAVIDÃO es-cra-vi-dão Sf 1 redução à condição de escravo;
escravização [...] 2 regime de sujeição do homem e sua exploração como
propriedade privada; escravatura 3 condição de escravo, servidão 4
aprisionamento; dependência[...] 5 sujeição; submissão [...] O Ant. de 2 a 4 é
liberdade.
As acepções 1 a 3 do Aurélio (2004) e do dicionário Unesp (2004) são mais restritas ao
contexto situacional da escravatura no Brasil, resguardando os aspectos relacionados a um
sistema social de trabalho compulsório, no qual um homem é sujeito a outro homem como sua
propriedade, somente podendo eximir-se dessa sujeição mediante ressarcimento estipulado
pelo senhor, que possui poder legitimado pelo regime escravocrata.
A argumentação interna (AI) de “escravidão” não realiza essa palavra no encadeamento
aspectual, seja no interior de seu antecedente, antes do PT ou do NE, ou no interior de seu
consequente, depois do PT ou do NE. Sendo assim, o exame da definição interna de
escravidão circulante na década de 1880 configurar-se-ia:
Quadro 08 – Esquema de AI de “escravidão”
AI (escravidão): propriedade PT indenização
Lê-se: A argumentação interna de escravidão corresponde a propriedade portanto indenização.
Baseado em CABRAL (2010).
A argumentação interna de uma expressão, adicionalmente, passa por uma mudança aspectual
quando inserida a negação. Assim, o esquema propriedade PT indenização, AI de
“escravidão”, passa a propriedade NE NEG indenização, AI de “não escravidão” ou
“abolição”:
101
Quadro 09 – Esquema de AI de “abolição”
AI (abolição): propriedade NE NEG indenização
Lê-se: A argumentação interna de abolição corresponde a propriedade no entanto não
indenização.
Baseado em CABRAL (2010).
Ou seja, quando se parte da análise da AI de uma expressão (E), utiliza-se, para sua
conversão um outro conector (CON) mais uma negação. De A CON C (E= escravidão), há o
converso, A CON’ NEG C (E= abolição). Então não há uma gradação de sentido, mas uma
mudança decorrente da negação de seus aspectos argumentativos internos e uma noção de
processo feito com uma contrariedade a determinada norma. Por isso, ao enunciar que
“proscrevendo-se a indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da
liberdade gratuita, a negação da propriedade servil” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.153),
pode-se analisar essa conversão interna à palavra funcionando também em um enunciado. Isso
porque, conforme Carel:
a definição da conversão pode ser ainda estendida de modo que ela possa
comparar não somente argumentações e enunciados, mas também simples
palavras. Assim, a palavra prudente evoca, pela sua própria significação:
é perigoso, donc ele toma precauções
Esse encadeamento é totalmente interior a prudente. Ele lhe é interno. Por
generalização da noção de argumentações conversas, dir-se-à então que é
conversa a prudente uma palavra cuja significação condensa o encadeamento
converso:
é perigoso, pourtant ele não toma precauções
Notar-se-á que se trata da palavra imprudente. A relação de conversão que
opunha os dois enunciados ligados pelo mas de
A faculdade é loteria: Pedro foi aprovado, mas João foi reprovado
e opunha ainda os dois seguimentos da máxima:
Em abril, não deixes de usar roupas quente, em maio faz o que te agrada
opõe também as palavras antitéticas como prudente e imprudente. Fatos
desse gênero levam a dar à relação de conversão um status fundamental nas
descrições lingüísticas [...] (CAREL, 2002, p.42, 43, grifos da autora).
102
A conversão então por ser um modo de descrição linguística sistemático, dando-se desde a
processos internos de uma palavra até á relação entre enunciados de um “mas” marcado ou
implícito pela relação de oposição, ou de contrate de ideias; conversão essa imediatamente
consequente das relações de norma e transgressão.
É nesse sentido que Ducrot (2002, p.7) afirma que o trabalho da Teoria dos Blocos
Semânticos opera, ao mesmo tempo, numa micro e macrossemântica, ocupando-se das
relações desses elementos que permitem uma descrição semântica interna às palavras e numa
descrição semântica de enunciados constitutivos de uma língua respectivamente: seja pela
convocação de discursos, seja pela modificação desses discursos.
Retornando ao encadeamento IV, aspecto transgressivo da regra 02 do Quadro 02,
propriedade no entanto não indenização percebe-se que ele se expressa pelo seguinte
esquema: propriedade NE NEG indenização, sendo argumento interno converso de escravidão
(propriedade PT indenização), passando a argumento interno de abolição pela introdução da
NEG indenização. A negação do aspecto de uma regra de um vocábulo resulta na sua
transposição semântica, em seu vocábulo converso. Com base nisso, se há uma forma A CON
C, sua forma conversa será A CON’ NEG C.
Uma outra mudança de sentido pode se dar também pela transposição de aspectos entre
expressões também por meio da negação, só que elementos transpostos serão os que passam
de uma forma A CON C para NEG A CON’ C, como em: propriedade PT indenização,
argumento do âmbito de “escravidão”
transposto em não propriedade NE indenização,
argumento interno de “abolição”.
Os dicionários supracitados dão conta dessa passagem de aspectos ou dessa mudança
aspectual da transposição e da conversão. Para “abolição”, no Aurélio (2004) há duas
acepções complementares: uma mais ampla, “ação ou efeito de abolir, extinção” e outra mais
restrita “abolição da escravatura”; no Unesp (2004), as definições: “anulação ou extinção de
qualquer instituição, lei, prática ou costume”, “libertação (dos escravos no Brasil), extinção,
supressão. Mais especificamente quando tocam nas nuances relativas ao fim da escravidão ou
não escravidão pela liberdade dos escravos, é que se percebe a negação de “escravidão” .
Quanto ao funcionamento da argumentação externa, pouco explorado por Marion Carel,
sendo paulatinamente objeto de estudos posteriores, o termo “abolição” ocorre no
103
encadeamento, seja normativo ou transgressivo. Como exemplos de argumentos externos de
abolição, poderiam figurar, abolição PT humanitarismo ou abolição NE humanitarismo:
Quadro 10 – Argumentações externas do bloco semântico abolição-humanitarismo.
I.
II.
Abolição portanto humanitarismo
A portanto C
Abolição no entanto humanitarismo
A no entanto C
Relacionando esses encadeamentos linguísticos externos à palavra “abolição”, pode-se
perceber que a introdução da negação produz reciprocidade entre: Há abolição PT há
humanitarismo (AE = E) e Não há abolição PT não há humanitarismo (AE = não E); ou ainda
entre Há abolição NE há humanitarismo (AE= E) e em Não há abolição NE há humanitarismo
(AE= não E):
Quadro 11 – Argumentações externas do bloco semântico escravidão-humanitarismo.
I.
II.
Escravidão portanto não humanitarismo
A portanto não C
Escravidão no entanto não humanitarismo
A no entanto não C
Isso quer dizer que as argumentações externas de E e de não E, de abolição e de escravidão
são recíprocas:
Quadro 12 – Argumentações externas recíprocas
Se A CON C  AE de E então seu recíproco NEG A CON NEG C  AE de não E.
Lê-se: Se o encadeamento argumento-conector-conclusão pertence à argumentação externa de
uma expressão então seu recíproco negação do argumento-conector-negação da conclusão
pertence ao argumento externo do aspecto converso dessa expressão.
Baseado em CABRAL (2010).
104
Alguns aspectos desses encadeamentos são trazidos pelo seguinte enunciado:
Pode-se dizer que uma só, dentre tôdas as propriedades existentes, ou
possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua
soberania: é a propriedade do homem sôbre si mesmo, a propriedade por
excelência [...] onde quer que uma intervenção [...] procura destruir essa
propriedade suprema, a natureza íntima da humanidade reage, e, por uma
série de transações crescentes com o espírito de liberdade, obriga a lei [...] a
contradições [...] Mais tarde intervem o Estado como grande libertador,
impondo limites de preço, ou condições de alforria gratuita. E assim se vai
gradualmente desmembrando, entre reclamações cada vez mais violentas do
expropriado, o direito abominável, que, sem outro título mais que a sua
excepcionalidade atroz, pretende absorver,e conculcar nas vítimas do seu
egoísmo todas as qualidades humanas.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,
p.103, 104)
Barbosa se refere a um humanitarismo aviltado, menosprezado, conculcado pelo direito
bárbaro, desumano, cruel, da propriedade do homem sobre o homem que infringe o direito
hierarquicamente superior, acima inclusive de deliberação jurídica porque intrinsecamente
humano, da “propriedade do homem sôbre si mesmo”. Existe, pois, uma relação aspectual
entre as expressões humanitarismo, direito e liberdade que a depender de sua arrumação em
blocos semânticos tendem mais para o significado de abolição ou de escravidão.
Já no que diz respeito à argumentação externa, a conversão tem um funcionamento diverso do
da interna. Tanto o A CON C, quanto o seu converso o A CON’ NEG C fazem parte da
argumentação externa de uma expressão. Assim tanto: abolição PT humanitarismo, quanto
abolição NE não humanitarismo fazem parte da AE de “abolição”, perfazendo o seguinte
quadro de argumentos externos em que I e IV e II e III são os conversos:
Quadro 13 – Argumentos externos “abolição”
I.
Abolição portanto humanitarismo
A portanto C
Abolição no entanto humanitarismo
A no entanto C
III.
Abolição portanto não humanitarismo
A portanto não C
IV.
Abolição no entanto não humanitarismo
A no entanto não C
II.
105
Os encadeamentos II e III, A CON’ C e ACON NEG C são paradoxais, assim como seria o
encadeamento externo NEG A CON C: Não há abolicionismo, portanto há humanitarismo.
Esse viés paradoxal é trazido na fala de José de Alencar, quando afirma que a libertação de
nascituros seria uma modalidade de abolição desumana, porque impediria o convívio familiar,
além de provocar a incivilidade pela desigualdade do trato aos cativos, já que alguns teriam a
liberdade mais palpável do que outros:
Eu acrescento que essa idéia da libertação do ventre desorganiza o trabalho
livre, dando-lhe por exemplo e mestre o trabalho escravo: ao mesmo tempo
aniquila o trabalho escravo, pondo-lhe em face, a todo instante, a imagem da
liberdade. Finalmente contamina a nova geração, criando-a no seio da
escravidão, ao contacto dos vícios que ela gera (Muitos apoiados da
oposição)
Não é de certo, por êsses meios, subvertendo os dogmas sociais, aniquilando
a família, degradando a espécie humana ao nível do bruto, destruindo os
mais nobres estímulos do coração, e substituindo-os por paixões rancorosas:
não é dêste modo que os pretensos apóstolos da liberdade e da civilização
hão de consumar sua obra. [...] (José de Alencar apud BARBOSA, [1884]
1945, v.11, t.1, p. 72, grifos do autor)
Então Alencar e outros opositores à Lei do Ventre Livre eram um grupo que embora
abolicionista que não era a favor da libertação do ventre livre. Rui Barbosa o traz como
representante das objeções sempre presentes em cada avanço legislativo concernente às
manumissões graduais. O que se discute é que o que eles pretendiam, na verdade, era a
instauração de leis que mesmo que resultassem em abolição, resguardasse os interesses dos
senhores (MENDONÇA, 2008). Esses parlamentares, como um todo, formavam então um
grupo de abolicionistas, no entanto, não eram a favor da libertação por iniciativa jurídica. A
palavra abolição então, para designá-los ganha traços paradoxais, quando se pensa em libertar
PT não libertar ou libertar NE libertar sem a lei, por exemplo.
Baseando-se no exposto, pode-se dizer que sobre o funcionamento de regra e aspecto, a regra
diz respeito a um modo de ver as coisas, seja em portanto, seja em no entanto e que ela se
bifurca em aspectos, um que a confirma –
normativo, obediente à regra, e que pode
disponibilizar de modificadores realizantes – e outro que a refuta – o transgressivo, que
contaria com modificadores desrealizantes inversores, obstáculo a ela. Essa análise pode se
referir ao significado interno de uma palavra, seus argumentos internos ou aos significados
dela depreendidos, os argumentos externos; pode se aplicar ao significado de uma palavra ou
de um enunciado. O encadeamento como um outro conector, como partindo do normativo
106
para o do tipo transgressivo no entanto/ NE juntamente com uma partícula de negação
transforma os aspectos internos em seus conversos, a significação de um vocábulo passa por
uma conversão de significado, formando antônimos pelo enfeixe de ideias antitéticas.
Pode-se afirmar pelo exposto, que a argumentação não se dá pela ligação de um termo
argumento A e de um termo conclusão C, mas é evocada pela própria predicação interna de
um termo que convoca a norma ou denuncia a transgressão, assim, os próprios argumentos
internos de propriedade evocam a necessidade de indenização, e comporta como distorção
transgressiva a não indenização, gratuidade essa admitida normativamente como argumento
interno de abolição.
Essa significação, esse modo diferente de ver as coisas, é resultante do posicionamento dos
enunciadores e do seu embate com a posição eleita pelo locutor que organiza o sentido dos
enunciados. É então polifônica. É discursiva. A língua então não é entendida como
nomenclatura do mundo, conforme viés interpretativo referencialista. Retomando Saussure, o
precursor da ciência linguística, não haveria então uma relação entre palavras e coisas, mas
entre significante (imagem acústica) e significado (conceito). Reelaborando Saussure, Ducrot
e colaboradores dizem que o significado está incrustrado no significante. A língua, pelo seu
léxico, representa o mundo via discurso polifônico doador de sentidos.
107
6. CONCLUSÃO
O todo semântico propriedade portanto indenização, carrega uma relação normativa dos
aspectos internos da expressão linguística “escravidão”, que pode ser modalizada para o
realce ou o rechaço, que pode ser alterada a depender da posição dos enunciadores e da
condução do locutor. O locutor, assimilado por Rui Barbosa, diante da asserção “Se há
propriedade, há indenização” encontra o ponto de partida para o trabalho efetuado tanto no
Projeto Dantas, quanto no respectivo Parecer: a recíproca não propriedade portanto não
indenização é o arranjo argumentativo do locutor, caminhando para o incentivo à gratuidade
como um impulso à abolição, naquele momento ainda gradual, mas depois, previa-se,
generalizada.
No Projeto Dantas, a negação veio pela ausência de uma cláusula que indicasse o
ressarcimento, a compensação ao ex-senhorio. No Parecer, veio com as justificativas de base
moral, legal, humanitária. Em ambos, a negação foi trazida com o auxílio da língua.
Os argumentos neorretóricos do Parecer ao Projeto Dantas, ao advogar que a abolição dos
sexagenários teria de ser não indenizatória e ao acrescentar que essa gratuidade responderia a
um anseio coletivo, mobilizou a análise da história legislativa do Brasil, de Portugal e da
Roma Antiga, entendendo tanto a gratuidade para a liberdade quanto a liberdade em si como
um princípio moral, base da civilização, coletivamente constituído e constituinte das leis.
Falando no que é coletivo e validando-o, os topoi retóricos, lugares-comuns, sejam de ordem,
de lugar, de pessoa ou do existente são instrumentos úteis evocados na argumentação ruiana.
A adesão do auditório, buscada pelo orador, é uma forma individual de reação a uma verdade
coletiva, esta, por sua vez também relativa porque assumida subjetivamente (ou por grupos
menores) com graus variados de aderência. Os lugares-comuns retóricos, as indicações
hierarquizantes de certos valores, auxiliam na adesão à verdade social que tende a ser mais
acessada.
Pela análise do texto ruiano, ainda via estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca([1958] 2005),
pode-se perceber que o orador Rui Barbosa buscou refutar o que chamou de sofismas da
escravidão, raciocínios especulativos e reincidentes, que se processavam em cada iniciativa
manumitente legal mais expressiva. Esses sofismas giravam sempre em torno dos supostos
danos na economia, dos transtornos sociais, da acomodação à ideia de abolição geral
108
expontânea... E esses topoi retóricos, esses arranjos de valores contrários ao Projeto Dantas,
são expostos para serem reconstruídos ou desconstruídos por outros topoi conclamados por
Rui, ou pelos mesmos submetidos a sua ótica. Assim é com o partus sequitur ventrem a
princípio apoiado pelo statuliberi, axioma esse depois remanejado para a re-hierarquização
dos lugares de ordem, de essência e de pessoa. Deste modo também se aborda a
complementaridade argumentativa entre os lugares quantitativos e qualitativos.
Mas recorde-se que, sobretudo, na década de 1880, as ideias dos parlamentares, por mais
paradoxais que fossem, eram declaradas pró-abolição. Esses abolicionistas eram contrários a
uma forma de abolição os quais acusavam de triplamente criminosa: “lesa-razão, lesa pátria e
lesa-humanidade” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.89).
Sim, todos eram abolicionistas. Eram abolicionistas de uma abolição com aspectos
semânticos internos e externos paradoxais, porque relativa, contínua e não absoluta, mais ou
menos radical, mais ou menos moderada. Era uma abolição que admitia a não abolição: se ela
defendesse os direitos dos escravos e ofendesse os direitos igualmente válidos do senhorio; se
ela pela gratuidade negasse a indenização que era o selo da escravidão, já que só se
indenizava a quem fosse expropriado, a quem anteriormente mantinha a propriedade do
homem sobre o homem.
Contudo, não se indeniza quem não possuiu, por isso nega-se a propriedade por consequência
e, na mesma linha, nega-se a escravidão. A abolição gratuita nega a escravidão. O Parecer era
então a fuga desse paradoxo.
O paradoxo é uma noção alocada num ponto mais atual da ANL. Ducrot e Anscombre,
inicialmente; e Ducrot e Carel, no desdobramento mais recente, trabalharam no campo da
Semântica Argumentativa: a. durante a forma padrão ou standard da teoria deslocaram a
argumentação extralíngua para a argumentação pela língua obtida mediante sentido,
mediante orientação argumentativa em determinados elementos linguísticos, os operadores
argumentativos; b. na fase da teoria dos topoi argumentativos, a argumentação passou a ser da
língua, do discurso, lugar dos topoi, do movimento de acesso a esses princípios
argumentativos na passagem do enunciado-argumento para o enunciado-conclusão; c.
finalmente, com a Teoria dos Blocos Semânticos, a argumentação passou a ser na língua,
parte integrante do bloco argumentativo que comporta argumentos conclusivos.
109
Nessa fase se manteve o status dos operadores argumentativos, mas se reconheceu que todo
elemento lexical também porta argumentação, porque essa seria inscrita no sentido, parte
integrante do discurso, voltando-se a atenção à argumentação estrututal (desprezando-se a
contextual) e galgando-se a adequação ao nome da teoria, argumentação na língua (FIORIN,
2003; DUCROT [1969] 1987; [1977]1989; 2003; XAVIER, 2012). Os estudos de Ducrot
denotam, portanto uma intervenção cada vez menos decisiva de propriedades extrínsecas à
língua, até anulá-las e converter a argumentação em algo estritamente linguístico.
Tal língua-argumentação é de sentido obtido por vias discursivas, o discurso, por sua vez,
constituído pelo embate entre vozes enunciativas. Essa língua-argumentação é de uma
impregnação polifônica constitutiva de todas as suas expressões linguísticas.
O estudo do Parecer ao Projeto Dantas é visto, por conseguinte, como uma amostra de que as
teorias da argumentação, ou seja, Argumentação Retórica e Argumentação na Língua, embora
pertencentes a campos distintos – Retórica e Semântica Argumentativa – são complementares.
Constata-se que quando postas em conjunto, privilegiando-se um cotejamento de
determinadas noções a elas pertencentes, tais teorias, em vez de serem excludentes, permitem
uma visão mais holística dos fenômenos argumentativos. Sendo assim é trilhada a ação tanto
do orador Rui Barbosa, enquanto sujeito empírico que maneja estratégias retóricas para a
persuasão e/ou convencimento de seu auditório, quanto o locutor Rui Barbosa, que organiza o
discurso pela sua postura diante do embate de vozes dos enunciadores.
O Parecer ao Projeto Dantas então é um objeto que quando assim analisado mimetiza a
relação que se tem com a análise nos campos da Linguística ou da Argumentação; constitui-se
um ponto de contemplação. Não o único olhar possível, nem o absoluto; sequer o verdadeiro.
É um modo de análise permitido pelas e submetido às teorias escolhidas.
110
REFERÊNCIAS
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SP: Ateliê, 2007.
ATAS DO CONSELHO DE ESTADO PLENO – TERCEIRO CONSELHO DE ESTADO,
1880-1884. Disponível em:
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do_1880-1884.pdf> . Acesso em: 10 de janeiro de 2014.
AZEVEDO, Célia Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (séc. XIX). São Paulo: Annablume, 2003.
BACHELARD, Gaston. A noção de obstáculo epistemológico (plano da obra) e O primeiro
obstáculo: a experiência primeira. In: BACHELARD, Gaston. A formação do espírito
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115
APÊNDICE – LINHA DO TEMPO (MEDIDAS LEGAIS)
MEDIDAS LEGAIS1
Abolição nos
Proibição do
Lei Eusébio
Lei do
tráfico
de Queiroz
Ventre Livre
Estados do
Ceará e
1831
1
1850
1869
1871
Lei Áurea
Amazonas
transatlântico
1883
1884
1885
Lei
Lei que proibia a
Abolição
venda separada
geral, na
PROJETO
de escravos
cidade de
DANTAS
casados
Mossoró, RN
SaraivaCotegipe
Cronologia legislativa relacionada ao elemento negro no Brasil. As medidas de cunho/repercussão abolicionistas se iniciam em 1871.
1888
116
ANEXO A – “PROJETO DANTAS/RUI BARBOSA”
117
ANEXO B – O PROJETO ORIGINAL
118
ANEXO C – O PROJETO ORIGINAL
119
120
121
122
123
124
ANEXO D – LEI DOS SEXAGENÁRIOS
Lei nº 3.270, de 28 de Setembro de 1885
Regula a extincção gradual do elemento servil.
D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e
Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos subditos que a Assembléa Geral
Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:
DA MATRICULA
Art. 1º Proceder-se-ha em todo o Imperrio a nova matricula dos escravos, com declaração do nome,
nacionalidade, sexo, filiação, si fôr conhecida, occupação ou serviço em que fôr empregado, idade e
valor, calculado conforme a tabella do § 3º.
§ 1º A inscripção para a nova matricula far-se-ha á vista das relações que serviram de base á
matricula especial ou averbação effectuada em virtude da Lei de 28 de Setembro de 1871, ou á vista
das certidões da mesma matricula, ou da averbação, ou á vista do titulo do dominio, quando nelle
estiver exarada a matricula do escravo.
§ 2º A' idade declarada na antiga matricula se addicionará o tempo decorrido até o dia em que fôr
apresentada na Repartição competente a relação para a matricula ordenada por esta Lei.
A matricula que fôr effectuada em contravenção ás disposições dos §§ 1º e 2º será nulla, e o
Collector ou Agente fiscal que a effectuar incorrerá em uma multa de cem mil réis a tresentos mil réis,
sem prejuizo de outras penas em que possa incorrer.
§ 3º O valor a que se refere o art. 1º será declarado pelo senhor do escravo, não excedendo o
Maximo regulado pela idade do matriculando, conforme a seguinte tabella:
Escravos menores de 30 annos............................................................................................
» de 30 a 40 » .............................................................................................
» » 40 a 50 » .............................................................................................
» » 50 a 55 » .............................................................................................
» » 55 a 60 » .............................................................................................
900$000
800$000
600$000
400$000
200$000
§ 4º O valor dos individuos do sexo feminino se regulará do mesmo modo, fazendo-se, porém, o
abatimento de 25% sobre os preços acima estabelecidos.
§ 5º Não serão dados á matricula os escravos de 60 annos de idade em diante; serão, porém,
inscriptos em arrolamento especial para os fins dos §§ 10 a 12 do art. 3º.
§ 6º Será de um anno o prazo concedido para a matricula, devendo ser este annunciado por editaes
affixados nos logares mais publicos com antecedencia de 90 dias, e publicos pela imprensa, onde a
houver.
125
§ 7º Serão considerados libertos os escravos que no prazo marcado não tiverem sido dados á
matricula, e esta clausula será expressa e integralmente declarada nos editaes e nos annuncios pela
imprensa.
Serão isentos de prestação de serviços os escravos de 60 a 65 annos que não tiverem sido arrolados.
§ 8º As pessoas a quem incumbe a obrigação de dar á matricula escravos alheios, na fórma do art. 3º
do Decreto n. 4835 de 1 de Dezembro de 1871, indemnizarão aos respectivos senhores o valor do
escravo que, por não ter sido matriculado no devido prazo, ficar livre.
Ao credor hypothecario ou pignoraticio cabe igualmente dar á matricula os escravos constituidos
em garantia.
Os Collectores e mais Agentes fiscaes serão obrigados a dar recibo dos documentos que lhes forem
entregues para a inscripção da nova matricula, e os que deixarem de effectual-a no prazo legal
incorrerão nas penas do art. 154 do Codigo Criminal, ficando salvo aos senhores o direito de requerer
de novo a matricula, a qual, para os effeitos legaes, vigorará como si tivesse sido effectuada no tempo
designado.
§ 9º Pela inscripção ou arrolamento de cada escravo pagar-se-ha 1$ de emolumentos, cuja
importancia será destinada ao fundo de emancipação, depois de satisfeitas as despezas da matricula.
§ 10. Logo que fôr annunciado o prazo para a matricula, ficarão relevadas as multas incorridas por
inobservancia das disposições da Lei de 28 de Setembro de 1871, relativas á matricula e declarações
prescriptas por ella e pelos respectivos regulamentos.
A quem libertar ou tiver libertado, a titulo gratuito, algum escravo, fica remittida qualquer divida á
Fazenda Publica por impostos referentes ao mesmo escravo.
O Governo no Regulamento que expedir para execução desta Lei, marcará um só e o mesmo prazo
para a apuração da matricula em todo o Imperio.
Art. 2º O fundo de emancipação será formado:
I. Das taxas e rendas para elle destinadas na legislação vigente.
II. Da taxa de 5% addicionaes a todos os impostos geraes, excepto os de exportação.
Esta taxa será cobrada desde já livre de despezas de arrecadação, e annualmente inscripta no
orçamento da receita apresentado á Assembléa Geral Legislativa pelo Ministro e Secretario de Estado
dos Negocios da Fazenda.
III. De titulos da divida publica emittidos a 5%, com amortização annual de 1/2 %, sendo os juros e
amortização pagos pela referida taxa de 5%.
§ 1º A taxa addicional será arrecadada ainda depois da libertação de todos os escravos e até se
extinguir a divida proveniente da emissão dos titulos autorizados por esta Lei.
§ 2º O fundo de emancipação, de que trata o n. I deste artigo, continuará a ser applicado de
conformidade ao disposto no art. 27 do Regulamento approvado pelo Decreto n. 5135 de 13 de
Novembro de 1872.
§ 3º O producto da taxa addicional será dividido em tres partes iguaes:
126
A 1ª parte será applicada á emancipação dos escravos de maior idade, conforme o que fôr
estabelecido em regulamento do Governo.
A 2ª parte será applicada á libertação por metade ou menos de metade de seu valor, dos escravos de
lavoura e mineração cujos senhores quizerem converter em livres os estabelecimentos mantidos por
escravos.
A 3ª parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de
colonos que forem effectivamente collocados em estabelecimentos agricolas de qualquer natureza.
§ 4º Para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos agricolas
servidos por escravos em estabelecimentos livres e para auxiliar o desenvolvimento da colonização
agricola, poderá o Governo emittir os titulos de que trata o n. 3 deste artigo.
Os juros e amortização desses titulos não poderão absorver mais dos dous terços do producto da
taxa addicional consignada no n. 2 do mesmo artigo.
DAS ALFORRIAS E DOS LIBERTOS
Art. 3º Os escravos inscriptos na matricula serão libertados mediante indemnização de seu valor
pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra fórma legal.
§ 1º Do valor primitivo com que fôr matriculado o escravo se deduzirão:
No primeiro anno.............................................................................................................
No segundo................................................................................................................... ..
No terceiro........................................................................................................................
No quarto.................................................................................................................... ......
No quinto.................................................................................................................... .......
No sexto.............................................................................................................................
No setimo..........................................................................................................................
No oitavo.................................................................................................................... .......
No nono...................................................................................................................... ......
No decimo...................................................................................................... ...................
No undecimo.................................................................................................................. ...
No decimo segundo..........................................................................................................
No decimo terceiro..........................................................................................................
2%
3%
4%
5%
6%
7%
8%
9%
10%
10%
12%
12%
12%
Contar-se-ha para esta deducção annual qualquer prazo decorrido, seja feita a libertação pelo fundo
de emancipação ou por qualquer outra fórma legal.
§ 2º Não será libertado pelo fundo de emancipação o escravo invalido, considerado incapaz de
qualquer serviço pela Junta classificadora, com recurso voluntario para o Juiz de Direito.
O escravo assim considerado permanecerá na companhia de seu senhor.
§ 3º Os escravos empregados nos estabelecimentos agricolas serão libertados pelo fundo de
emancipação indicado no art. 2º, § 4º, segunda parte, si seus senhores se propuzerem a substituir nos
mesmos estabelecimentos o trabalho escravo pelo trabalho livre, observadas as seguintes disposições:
a) Libertação de todos os escravos existentes nos mesmos estabelecimentos e obrigação de não
admittir outros, sob pena de serem estes declarados libertos;
127
b) Indemnização pelo Estado de metade do valor dos escravos assim libertados, em titulos de 5%,
preferidos os senhores que reduzirem mais a indemnização;
c) Usufruição dos serviços dos libertos por tempo de cinco annos.
§ 4º Os libertos obrigados a serviço nos termos do paragrapho anterior, serão alimentados, vestidos
e tratados pelos seus ex-senhores, e gozarão de uma gratificação pecuniaria por dia de serviço, que
será arbitrada pelo ex-senhor com approvação do Juiz de Orphãos.
§ 5º Esta gratificação, que constituirá peculio do liberto, será dividida em duas partes, sendo uma
disponivel desde logo, e outra recolhida a uma Caixa Economia ou Collectoria, para lhe ser entregue,
terminado o prazo da prestação dos serviços a que se refere o § 3º, ultima parte.
§ 6º As libertações pelo peculio serão concedidas em vista das certidões do valor do escravo,
apurado na fórma do art. 3º, § 1º, e da certidão do deposito desse valor nas estações fiscaes designadas
pelo Governo.
Essas certidões serão passadas gratuitamente.
§ 7º Emquanto se não encerrar a nova matricula, continuará em vigor o processo actual de avaliação
dos escravos, para os diversos meios de libertação, com o limite fixado no art. 1º, § 3º.
§ 8º São válidas as alforrias concedidas, ainda que o seu valor exceda ao da terça do outorgante e
sejam ou não necessarios os herdeiros que porventura tiver.
§ 9º E' permittida a liberalidade directa de terceiro para a alforria do escravo, uma vez que se exhiba
preço deste.
§ 10. São libertos os escravos de 60 annos de idade, completos antes e depois da data em que entrar
em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indemnização pela sua alforria, a prestar
serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos.
§ 11. Os que forem maiores de 60 e menores de 65 annos, logo que completarem esta idade, não
serão sujeitos aos alludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação
ao prazo acima declarado.
§ 12. E' permittida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente á metade do
valor arbitrado para os escravos da classe de 55 a 60 annos de idade.
§ 13. Todos os libertos maiores de 60 annos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10,
continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimental-os, vestil-os, e tratalos em suas molestias, usufruindo os serviços compativeis com as forças delles, salvo si preferirem
obter em outra parte os meios de subsistencia, e os Juizes de Orphãos os julgarem capazes de o fazer.
§ 14. E' domicilio obrigado por tempo de cinco annos, contados da data da libertação do liberto pelo
fundo de emancipação, o municipio onde tiver sido alforriado, excepto o das capitaes.
§ 15. O que se ausentar de seu domicilio será considerado vagabundo e apprehendido pela Policia
para ser empregado em trabalhos publicos ou colonias agricolas.
§ 16. O Juiz de Orphãos poderá permittir a mudança do liberto no caso de molestia ou por outro
motivo attendivel, si o mesmo liberto tiver bom procedimento e declarar o logar para onde pretende
transferir seu domicilio.
128
§ 17. Qualquer liberto encontrado sem occupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus
serviços no prazo que lhe fôr marcado pela Policia.
§ 18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da Policia, será por
esta enviado ao Juiz de Orphãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob
pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colonia agricola no caso de
reincidencia.
§ 19. O domicilio do escravo é intransferivel para Provincia diversa da em que estiver matriculado
ao tempo de promulgação desta Lei.
A mudança importará acquisição da liberdade, excepto nos seguintes casos:
1º Transferencia do escravo de um para outro estabelecimento do mesmo senhor.
2º Si o escravo tiver sido obtido por herança ou por adjudicação forçada em outra Provincia.
3º Mudança de domicilio do senhor.
4º Evasão do escravo.
§ 20. O escravo evadido da casa do senhor ou d'onde estiver empregado não poderá, emquanto
estiver ausente, ser alforriado pelo fundo de emancipação.
§ 21. A obrigação de prestação de serviços de escravos, de que trata o § 3º deste artigo, ou como
condição de liberdade, não vigorará por tempo maior do que aquelle em que a escravidão fôr
considerada extincta.
DISPOSIÇÕES GERAES
Art. 4º Nos regulamentos que expedir para execução desta Lei o Governo determinará:
1º Os direitos e obrigações dos libertos a que se refere o § 3º do art. 3º para com os seus ex-senhores
e vice-versa.
2º Os direitos e obrigações dos demais libertos sujeitos á prestação de serviços e daquelles a quem
esses serviços devam ser prestados.
3º A intervenção dos Curados geraes por parte do escravo, quando este fôr obrigado á prestação de
serviços, e as attribuições dos Juizes de Direito, Juizes Municipaes e de Orphãos e Juizes de Paz nos
casos de que trata a presente Lei.
§ 1º A infracção das obrigações a que se referem os ns. 1 e 2 deste artigo será punida conforme a
sua gravidade, com multa de 200$ ou prisão com trabalho até 30 dias.
§ 2º São competentes para a imposição dessas penas os Juizes de Paz dos respectivos districtos,
sendo o processo o do Decreto n. 4824 de 29 de Novembro de 1871, art. 45 e seus paragraphos.
§ 3º O acoutamento de escravos será capitulado no art. 260 do Codigo Criminal.
§ 4º O direito dos senhores de escravos á prestação de serviços dos ingenuos ou á indemnização em
titulos de renda, na fórma do art. 1º, § 1º, da lei de 28 de Setembro de 1871, cessará com a extincção
da escravidão.
129
§ 5º O Governo estabelecerá em diversos pontos do Imperio ou nas Provincias fronteiras colonias
agricolas, regidas com disciplina militar, para as quaes serão enviados os libertos sem occupação.
§ 6º A occupação effectiva nos trabalhos da lavoura constituirá legitima isenção do serviço militar.
§ 7º Nenhuma Provincia, nem mesmo as que gozarem de tarifa especial, ficará isenta do pagamento
do imposto addicional de que trata o art. 2º.
§ 8º Os regulamentos que forem expedidos pelo Governo serão logo postos em execução e sujeitos
á approvação do Poder Legislativo, consolidadas todas as disposições relativas ao elemento servil
constantes da Lei de 28 de Setembro de 1871 e respectivos Regulamentos que não forem revogados.
Art. 5º Ficam revogadas as disposições em contrario.
Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei
pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nella se contém. O
Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir,
publicar e correr.
Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 28 de Setembro de 1885, 64º da Independencia e do Imperio.
Imperador com rubrica e guarda.
Antonio a Silva Prado.
Carta de lei, pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléa Geral, que
Houve por bem Sanccionar, regulando a extincção gradual do elemento servil, como nelle se
declara. Para Vossa Magestade Imperial Ver.João Capistrano do Amaral a fez. Chancellaria-mór do
Imperio. - Joaquim Delfino Ribeiro da Luz.
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ANEXO E– LEI DO VENTRE LIVRE
Lei nº 2.040, de 28 de Setembro de 1871
Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os
escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e
sobre a libertação annual de escravos.
A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber
a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte:
Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão
considerados de condição livre.
§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os
quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a
indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos.
No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente
lei.
A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os
quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos.
A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar
á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos
serviços do mesmo menor.
§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização
pecuniaria, que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos
serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma
indemnização.
§ 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter
quando aquellas estiverem prestando serviços.
Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mãis. Se estas
fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo.
§ 4º Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito annos, que estejam em poder
do senhor della por virtude do § 1º, lhe serão entregues, excepto se preferir deixal-os, e o senhor
annuir a ficar com elles.
§ 5º No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos livres, menores de 12 annos, a
acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava subrogado nos direitos e obrigações do
antecessor.
§ 6º Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1°, se, por
sentença do juizo criminal, reconhecer-se que os senhores das mãis os maltratam, infligindo-lhes
castigos excessivos.
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§ 7º O direito conferido aos senhores no § 1º transfere-se nos casos de successão necessaria,
devendo o filho da escrava prestar serviços á pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma escrava.
Art. 2º O Governo poderá entregar a associações por elle autorizadas, os filhos das escravas,
nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores dellas, ou tirados do
poder destes em virtude do art. 1º § 6º.
§ 1º As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 annos
completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:
1º A criar e tratar os mesmos menores;
2º A constituir para cada um delles um peculio, consistente na quota que para este fim fôr reservada
nos respectivos estatutos;
3º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada collocação.
§ 2º As associações de que trata o paragrapho antecedente serão sujeitas á inspecção dos Juizes de
Orphãos, quanto aos menores.
§ 3º A disposição deste artigo é applicavel ás casas de expostos, e ás pessoas a quem os Juizes de
Orphãos encarregarem da educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos
creados para tal fim.
§ 4º Fica salvo ao Governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos
publicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o § 1º impõe ás associações
autorizadas.
Art. 3º Serão annualmente libertados em cada Provincia do Imperio tantos escravos quantos
corresponderem á quota annualmente disponivel do fundo destinado para a emancipação.
§ 1º O fundo de emancipação compõe-se:
1º Da taxa de escravos.
2º Dos impostos geraes sobre transmissão de propriedade dos escravos.
3º Do producto de seis loterias annuaes, isentas de impostos, e da decima parte das que forem
concedidas d'ora em diante para correrem na capital do Imperio.
4º Das multas impostas em virtude desta lei.
5º Das quotas que sejam marcadas no Orçamento geral e nos provinciaes e municipaes.
6º De subscripções, doações e legados com esse destino.
§ 2º As quotas marcadas nos Orçamentos provinciaes e municipaes, assim como as subscripções,
doações e legados com destino local, serão applicadas á emancipação nas Provincias, Comarcas,
Municipios e Freguezias designadas.
Art. 4º É permittido ao escravo a formação de um peculio com o que lhe provier de doações,
legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O
Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo peculio.
§ 1º Por morte do escravo, a metade do seu peculio pertencerá ao conjuge sobrevivente, se o
houver, e a outra metade se transmittirá aos seus herdeiros, na fórma da lei civil.
132
Na falta de herdeiros, o peculio será adjudicado ao fundo de emancipação, de que trata o art. 3º.
§ 2º O escravo que, por meio de seu peculio, obtiver meios para indemnização de seu valor, tem
direito a alforria. Se a indemnização não fôr fixada por accôrdo, o será por arbitramento. Nas vendas
judiciaes ou nos inventarios o preço da alforria será o da avaliação.
§ 3º É, outrossim, permittido ao escravo, em favor da sua liberdade, contractar com terceiro a
prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete annos, mediante o consentimento do
senhor e approvação do Juiz de Orphãos.
§ 4º O escravo que pertencer a condominos, e fôr libertado por um destes, terá direito á sua alforria,
indemnizando os outros senhores da quota do valor que lhes pertencer. Esta indemnização poderá ser
paga com serviços prestados por prazo não maior de sete annos, em conformidade do paragrapho
antecedente.
§ 5º A alforria com a clausula de serviços durante certo tempo não ficará annullada pela falta de
implemento da mesma clausula, mas o liberto será compellido a cumpril-a por meio de trabalho nos
estabelecimentos publicos ou por contractos de serviços a particulares.
§ 6º As alforrias, quér gratuitas, quér a titulo oneroso, serão isentas de quaesquer direitos,
emolumentos ou despezas.
§ 7º Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é prohibido, sob pena de nullidade,
separar os conjuges, e os filhos menores de 12 annos, do pai ou da mãi.
§ 8º Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não comportar a reunião de uma familia, e
nenhum delles preferir conserval-a sob o seu dominio, mediante reposição da quota parte dos outros
interessados, será a mesma famlia vendida e o seu producto rateado.
§ 9º Fica derogada a Ord. liv. 4º, titl 63, na parte que revoga as alforrias por ingratidão.
Art. 5º Serão sujeitas á inspecção dos Juizes de Orphãos as sociedades de emancipação já
organizadas e que de futuro se organizarem.
Paragrapho unico. As ditas sociedades terão privilegio sobre os serviços dos escravos que
libertarem, para indemnização do preço da compra.
Art. 6º Serão declarados libertos:
§ 1º Os escravos pertencentes á nação, dando-lhes o Governo a occupação que julgar conveniente.
§ 2º Os escravos dados em usufructo à Corôa.
§ 3º Os escravos das heranças vagas.
§ 4º Os escravos abandonados por seus senhores.
Se estes os abandonarem por invalidos, serão obrigados a alimental-os, salvo o caso de penuria,
sendo os alimentos taxados pelo Juiz de Orphãos.
133
§ 5º Em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco annos sob a
inspecção do Governo. Elles são obrigados a contractar seus serviços sob pena de serem
constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos publicos.
Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exhibir contracto de serviço.
Art. 7º Nas causas em favor da liberdade:
§ 1º O processo será summario.
§ 2º Haverá appellações ex-officio quando as decisões forem contrarias á liberdade.
Art. 8º O Governo mandará proceder á matricula especial de todos os escravos existentes do
Imperio, com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se fôr
conhecida.
§ 1º O prazo em que deve começar e encerrar-se a matricula será annunciado com a maior
antecedencia possivel por meio de editaes repetidos, nos quaes será inserta a disposição do paragrapho
seguinte.
§ 2º Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados á matricula, até um
anno depois do encerramento desta, serão por este facto considerados libertos.
§ 3º Pela matricula de cada escravo pagará o senhor por uma vez sómente o emolumento de 500
réis, se o fizer dentro do prazo marcado, e de 1$000 se exceder o dito prazo. O producto deste
emolumento será destinado ás despezas da matricula e o excedente ao fundo de emancipação.
§ 4º Serão tambem matriculados em livro distincto os filhos da mulher escrava, que por esta lei
ficam livres.
Incorrerão os senhores omissos, por negligencia, na multa de 100$ a 200$, repetida tantas vezes
quantos forem os individuos omittidos, e, por fraude nas penas do art. 179 do codigo criminal.
§ 5º Os parochos serão obrigados a ter livros especiaes para o registro dos nascimentos e obitos dos
filhos de escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os parochos á multa de
100$000.
Art. 9º O Governo em seus regulamentos poderá impôr multas até 100$ e penas de prisão simples
até um mez.
Art. 10. Ficam revogadas as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei
pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O
Secretario de Estado de Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir,
publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de Setembro de mil oitocentos
setenta e um, quinquagesimo da Independencia e o Imperio.
PRINCEZA IMPERIAL REGENTE
Theodoro Machado Freire Pereira da Silva.
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ANEXO F – PROIBIÇÃO DE LEILÕES DE ESCRAVOS
Decreto nº 1.695, de 15 de Setembro de 1869
Prohibe as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição publica.
Hei por bem Sanccionar e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléa Geral:
Art. 1º Todas as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição publica, ficão prohibidas. Os
leilões commerciaes de escravos ficão prohibidos, sob pena de nullidade de taes vendas e de multa de
100$000 a 300$000, contra o leiloeiro, por cada um escravo que vender em leilão. As praças judiciaes
em virtude de execuções por divida, ou de partilha entre herdeiros, serão substituidas por propostas
escriptas, que os juizes receberáõ dos arrematantes por espaço de 30 dias, annunciando os juizes por
editaes, contendo os nomes, idades, profissões, avaliações e mais caracteristicos dos escravos que
tenhão de ser arrematados. Findo aquelle prazo de 30 dias do annuncio judicial, o juiz poderá renovar
o annuncio por novo prazo, publicando em audiencia as propostas se forem insignificantes os preços
offerecidos, ou se forem impugnados por herdeiros ou credores que requeirão adjudicação por preço
maior.
Art. 2º Em todas as vendas de escravos, ou sejão particulares ou judiciaes, é prohibido, sob pena de
nullidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãi, salvo sendo os filhos maiores de 15
annos.
Art. 3º Nos inventarios em que não forem interessados como herdeiros ascendentes ou
descendentes, e ficarem salvos por outros bens os direitos dos credores, poderá o juiz do inventario
conceder cartas de liberdade aos escravos inventariados que exhibirem á vista o preço de suas
avaliações judiciaes.
Art. 4º Ficão revogadas as disposições em contrario.
José Martiniano de Alencar, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da
Justiça, assim o tenha entendido e faça executar.
Palacio do Rio de Janeiro, em quinze de Setembro de mil oitocentos sessenta e nove, quadragesimo
oitavo da Independencia e do Imperio.
Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador.
José Martiniano de Alencar.
Chancellaria-mór do Imperio. - José Martiniano de Alencar.
Transitou em 20 de Setembro de 1869. - José da Cunha Barbosa.
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ANEXO G – PROIBIÇÃO DE PENAS DE AÇOITES AOS RÉUS
ESCRAVOS
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 3.310 DE 15 DE OUTUBRO DE 1886.
Revoga o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de
10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a
pena de açoutes.
D. Pedro II, por Graça de Deus e Umanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e
Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos que a Assembléa Geral
Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:
Art. 1º São revogados o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte
em que impoem a pena de açoutes.
Ao réo escravo serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais
legislação em vigor para outros quaesquer delinquentes, segundo a especie dos delictos
commettidos, menos quando forem essas penas de degredo, de desterro ou de multa, as quaes
serão substituidas pela de prisão; sendo nos casos das duas primeiras por prisão simples pelo
mesmo tempo para ellas fixado, e no de multa, si não fôr ella satisfeita pelos respectivos senhores,
por prisão simples ou com trabalho, conforme se acha estabelecido nos arts. 431, 432, 433 e 434 do
Regulamento n. 120 de 31 de Janeiro de 1842.
Art. 2º Ficam revogadas as disposições em contrario.
Mandamos, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei
pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O
Secretario de Estado dos Negocios da Justiça a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do
Rio de Janeiro aos 15 de Outubro de 1886, 65º da Independencia e do Imperio.
IMPERADOR, com rubrica e guarda.
JOAQUIM DELFINO RIBEIRO DA LUZ.
Carta de lei pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléa Geral
Legislativa, que Houve por bem Sanccionar, revogando o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de
10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes.
Para Vossa Magestade Imperial Ver. Benedicto Antonio Bueno a fez.Chancellaria-mór do Imperio. Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. Transitou em 16 de Outubro de 1886. - José Julio da Albuquerque
Barros. - Registrada
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