UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL FERNANDA DA SILVA MACHADO RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884: ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS Salvador 2014 1 FERNANDA DA SILVA MACHADO RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884: ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – PPGEL/Uneb como requisito final para obtenção de grau de mestrado. Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto. Salvador 2014 2 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592 Machado, Fernanda da Silva Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas/ Fernanda da Silva Machado. - Salvador, 2013. 135f. Orientador: João Antonio de Santana Neto. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2013. Contêm referências, apêndice e anexos. 1. Barbosa, Rui, 1849-1923. 2. Retórica. 3. Linguística. 4. Escravos - Emancipação - Brasil. 5. Discursos parlamentares - Brasil. I. Santana Neto, João Antonio de. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 808.3 3 FERNANDA DA SILVA MACHADO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – PPGEL/Uneb como requisito final para obtenção de grau de mestrado. Aprovada, ________ de ___________________________ de 2014 BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________ Prof. Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto (PPGEL/UNEB) ___________________________________________________ Profa. Dra. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque (PPGH/UFBA) ___________________________________________________ Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira (PPGEL/UNEB) Salvador Mar/2014 4 Dedico este trabalho a meu pai, José (in memoriam) e a Luzia-mãe, por entender que eles representam o alicerce de minha identidade, de minha vida. 5 AGRADECIMENTOS A Jeová Deus, agradeço por permitir o cumprimento de mais um objetivo, mais uma superação. A minha mãe, Luzia, pelo apoio incondicional e por ser a fonte de força para que eu prosseguisse. Pela preocupação altruísta e eterna com meu bem-estar, por ser, enfim, literalmente a luz da minha vida. A minha família lato sensu, tias, primos, irmãos, mães e pais, amigos para toda a hora, auxílios fortificantes. A meus amigos de curso, inclusive os que o são desde a graduação, pela resistência à desagregação, pelos risos, pelo aprendizado derivado do convívio. A meu amigo Cláudio Ribeiro, especialmente pela revisão do Abstract. Às instituições Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – Fapesb e ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – PPGEL, por acreditarem em minha proposta investindo nela. Aos funcionários do PPGEL, Camila, Geysa e Danilo, pelo apoio permanente, pelos momentos de descontração e pelo profissionalismo. Aos funcionários da Biblioteca do Instituto de Economia do Centro de Documentação, Lucas Gamboa – UNICAMP, Mirian Clavico Alves, Diretora de Serviços e Francisco Orlandini, bem como a Sabrina Pinheiro da Revista Estudos Econômicos – USP, pela seriedade e solicitude. Ao corpo docente do PPGEL pelas discussões travadas e por não dissociar valores humanos e construção de conhecimento. Aos professores Wlamyra Albuquerque, e à professora Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira e Gilberto Sobral pelas considerações atentas na fase do Exame de Qualificação e/ou Defesa. Sou-lhes grata pelo interesse real e sugestões esclarecedoras. Ao Prof. Dr. João Antônio de Santanna Neto, pela contínua confiança em meu trabalho, acompanhando-me generosamente desde a fase em que se apresentava como um projeto até sua concretização em dissertação, generosidade e ponderação essas responsáveis por meu amadurecimento acadêmico. Por cada participação discreta que em conjunto (porque toda conquista é conjunta) foram decisivas para o impulso que é este trabalho. 6 RESUMO Com a dissertação intitulada “Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas”, intenta-se uma análise que enfoque o caráter argumentativo do referido Parecer de Rui Barbosa – pelo viés da Retórica e da Semântica Argumentativa, tomando como principais trabalhos, respectivamente, os elaborados por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958]2005) (que fizeram um exaustivo levantamento de estratégias argumentativas) e os de Oswald Ducrot ([1969] 1987, [1977]1989, 2003) (Semântica Argumentativa/ Teoria da Argumentação na Língua) – tomando como amostra o Parecer ao Projeto Dantas redigido por Rui Barbosa enquanto deputado no ano de 1884. Esse texto de 200 páginas, favorável ao projeto homônimo, também elaborado por ele, previa, em suma, a libertação de escravos sexagenários sem a indenização dos seus então proprietários. Embora os principais pontos do Projeto Dantas (1884) tenham sido reformulados na Lei dos Sexagenários (1885), examina-se o esforço argumentativo no Parecer que enfeixa os pontos de vista frontalmente colidentes, paradoxais ou gradualmente diferenciados. Trabalham-se noções como os topoi retóricos e tipos argumentativos perelmianos. Sob o prisma linguístico, analisa-se o texto ruiano com base naquilo que se considera permanente na ANL, como a polifonia discursiva com as figuras de locutor e enunciadores presentes nos blocos semânticos mais representativos do Parecer. Palavras-chave: Argumentação. Nova Retórica. Semântica Argumentativa. Parecer ao Projeto Dantas. Rui Barbosa. 7 ABSTRACT With a dissertation entitled Antislavery’s Rui Barbosa in the Opinion to Project Dantas: arguments intends an analysis that focuses on the argumentative character of that Opinion of Rui Barbosa – by the Rethoric and the Semantic Argumentative, taking as main works , respectively, the prepared by Chaim Perelman and Lucie Olbrechts - Tyteca [1958] 2005 (which made an exhaustive survey of argumentative strategies) and Oswald Ducrot ([1969] 1987, [1977] 1989, 2003) (Semantic argumentative/Argumentation Theory in Language) – taking as sample the Opinion to Project Dantas written by Rui Barbosa as a Member in 1884 . This 200-page text, in favor of the eponymous project, also written by him, provided, in short, the liberation of sexagenarian slaves without compensation its then owners. Although the main points of the Project Dantas (1884) have been reformulated in the Sixties Law (1885), examines the arguments in Opinion wich gathers the views frontally conflicting, paradoxical or gradually differentiated. Work up notions as rhetorical topoi and argumentative types perelmianos. Under the linguistic perspective, we analyze the ruiano text based on what is considered permanent in ANL as the discursive polyphony with the figures of the speaker and enunciators in semantic blocks more representative of Opinion. Keywords: Argumentation. New Rhetoric. Argumentative Semantics. Opinion to Dantas Project. Rui Barbosa. 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES (ESQUEMA E QUADROS) Quadro 01 – Analogias no Parecer ao Projeto Dantas ..................................................................... 56 Quadro 02 – Argumentações normativa e transgressiva ................................................................. 87 Quadro 03 – Encadeamentos do bloco semântico propriedade-indenização ................................. 91 Quadro 04 – Descrição do evento enunciativo 1 ............................................................................... 93 Quadro 05 – Descrição do evento enunciativo 2 ............................................................................... 94 Quadro 06 – Descrição do evento enunciativo 3 ............................................................................... 95 Quadro 07 – Descrição do evento enunciativo 4 ............................................................................... 96 Quadro 08 – Esquema de AI de “escravidão” ................................................................................ 100 Quadro 09 – Esquema de AI de “abolição” .................................................................................... 101 Quadro 10 – Argumentações externas do bloco semântico abolição-humanitarismo................. 103 Quadro 11 – Argumentações externas do bloco semântico escravidão-humanitarismo............. 103 Quadro 12 – Argumentações externas recíprocas .......................................................................... 103 Quadro 13 – Argumentos externos “abolição” ............................................................................... 104 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 11 2 PRESSUPOSTOS RETÓRICOSEM RUI BARBOSA – ANTIESCRAVISMO NO PARECER AO PROJETO DANTAS .............................................................................................. 20 2.1 RUI BARBOSA – HISTÓRICO ANTIESCRAVISTA .............................................................. 24 2.1.1 Radicalismo e Liberalismo ................................................................................................ 25 2.1.2 Projeto Dantas ..................................................................................................................... 30 2.2 O PARECER EM FOCO ............................................................................................................ 32 2.2.1 Cronologia legislativa emancipatória – contra-argumentos escravocratas .................. 35 3 ARGUMENTAÇÃO NO PARECER AO PROJETO DANTAS – TOPOI RETÓRICOS E TIPOS ASSOCIADOS ..................................................................................................................... 43 3.1 DIREITO DE PROPRIEDADE EM QUESTÃO ....................................................................... 45 3.2 TOPOI RETÓRICOS NO PARECER AO PROJETO DANTAS ................................................. 47 3.3 VALORES E HIERARQUIASNOPARECER AO PROJETO DANTAS .................................... 48 3.4.1 Socialismo, comunismo e retorsão .................................................................................... 60 3.4.2 Sobre a liberdade restrita .................................................................................................. 62 3.5 OPOSIÇÃO OSCILANTE: O CASO MURITIBA E OUTROS EXEMPLOS .......................... 66 3.5.1 O passado em outras nações/colônias ............................................................................... 67 3.6 A AÇÃO DO ORADOR RUI BARBOSA ................................................................................. 71 4 PARECER AO PROJETO DANTAS: ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA .................................. 73 4.1 ARGUMENTAÇÃOSEGUNDO DUCROT: IDEIAS DE BASE .............................................. 74 4.1.1 “Enunciado” e “frase” ....................................................................................................... 75 4.1.2 “Locutor” e “enunciador” ................................................................................................. 76 4.1.3 “Pressuposto” e “subentendido” ....................................................................................... 78 4.2ARGUMENTAÇÃO “TRADICIONAL” E ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA ....................... 79 4. 3 O ATO ARGUMENTATIVO DA LINGUAGEM .................................................................... 81 4.4 DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES AOS BLOCOS SEMÂNTICOS .................................. 85 5. O PARECER AO PROJETO DANTAS: BLOCOS SEMÂNTICOS E A NEGAÇÃO DA ESCRAVIDÃO ................................................................................................................................. 90 5.1 O PARECER E A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS..................................................... 90 5.1.1 Encadeamento propriedade-indenização: norma e transgressão .................................. 91 5.1.2 Modificadores realizantes e desrealizantes ...................................................................... 97 5. 1.3 Argumentos internos, externos e suas relações............................................................... 99 6. CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 107 10 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 110 APÊNDICE – LINHA DO TEMPO (MEDIDAS LEGAIS) .......................................................... 115 ANEXO A – “PROJETO DANTAS/RUI BARBOSA” ..................................................................... 116 ANEXO B – O PROJETO ORIGINAL .............................................................................................. 117 ANEXO C – O PROJETO ORIGINAL .............................................................................................. 118 ANEXO D – LEI DOS SEXAGENÁRIOS ........................................................................................ 124 ANEXO E – LEI DO VENTRE LIVRE ............................................................................................. 130 ANEXO F – PROIBIÇÃO DE LEILÕES DE ESCRAVOS............................................................... 134 ANEXO G – PROIBIÇÃO DE PENAS DE AÇOITES AOS RÉUS ESCRAVOS ........................... 135 11 1 INTRODUÇÃO “Será lícito extrapolar do discurso científico uma imagem de mundo que corresponda aos meus desejos?” (CALVINO, 1990, p.20) Pouco contemplado pelos linguistas é o exercício de pensar seu campo de atuação para além de sua prática acadêmica – quer como um fazer científico em constante processo de rearrumação teórica, ou seja, como algo que extrapola o cômodo conhecimento antes adquirido, não cerceado por referências somente eleitas e mantidas por gosto pessoal ou por uma tradição espistemológica hegemônica; quer por refletir sobre os processos de construção de saber em sua área, ou ainda por cogitar um diálogo entre teorias já sedimentadas na universidade e senso comum, entre a cátedra e a sociedade. Isso ocorre porque a prática acadêmica, de modo reiterado, tem imposto um modelo de trabalho limitado ao uso instrumental, isto é, não reflexivo, das teorias correntes, em voga por serem prestigiadas num determinado período (BACHELARD, 1996; RAJAGOPALAN, 2004). Devido a essa exígua autocrítica, incorre-se num risco de realizar um trabalho hermético, em que o objeto de análise resulte impregnado por uma visão estritamente pessoal/institucional, o qual muito facilmente pode se colocar numa escala que vai da inutilidade da pesquisa ao equívoco ou ostracismo científico (RAJAGOPALAN, 2004; SOUSA SANTOS, 2004). Como uma tentativa de evitar isso, cabe o uso desta como questão-guia: “Será lícito extrapolar do discurso científico uma imagem de mundo que corresponda aos meus desejos?” (CALVINO, 1990, p.20), desejos antes acolhidos pelos pesquisadores individualmente ou em grupo, incluindo-se aí a ciência já naturalizada em senso comum (RAJAGOPALAN, 2004). Ao trabalhar com as noções interdependentes de ato e pessoa, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p.337) esclarecem que “quanto mais recuada uma personagem está na história, mais rígida se torna a imagem que dela formamos”. Mas isso não quer dizer que a imagem da pessoa se torne imutável, fixa, e sim “rígida”, estável. Há uma imagem de Rui Barbosa estabelecida para determinado grupo de estudiosos em muito baseada no mal-afamado episódio da queima de arquivos1 sobre a escravidão, os quais assegurariam aos afrodescendentes, por exemplo, a elaboração de árvores genealógicas. Ter conhecimento de sua ascendência, de sua base étnica e cultural, seria algo espoliado de toda a geração de negros subsequente à incineração desse acervo documental, intencionalmente efetuada. Essa 1 Decisão S/N de 14 de dezembro de 1890: “Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério Público”. 12 imagem se liga à suposição de que foi pelo cálculo de uma pessoa mal-intencionada, disposta a efetuar esse suposto apagamento histórico que a destruição se deu. Todavia, essa imagem é de uma rigidez maleável, pois é relativa, mutável, já que “não só novos documentos podem determinar uma revisão, mas afora todo fato novo, uma evolução da opinião pública ou outra concepção da história podem modificar a concepção da personagem”. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 338). Nesse estudo, trabalha-se com a hipótese de ato motivado pelo desejo de salvaguarda dos direitos da geração recém-liberta, hipótese essa que pode se alicerçar no seguinte fato: quando Rui Barbosa atuava como Ministro da Fazenda do governo republicano e os exproprietários de escravos enviaram-lhe um requerimento (no qual estava expresso o desejo de formular a possível criação de um banco cujos fundos seriam utilizados como indenização para si e seus descendentes pelas perdas advindas da Abolição da Escravatura de 13 de maio de 1888), o então ministro respondeu: “Mais justo seria e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o tesouro. Indeferido, 11 de novembro de 1890.”(Diário Oficial, 12 de novembro de 1890, p.5.216). É, somente após esse episódio, que se dá a referida queima de uma seleção de arquivos2. Fato pouco desprezado, em contrapartida, é o descaso com que os acervos históricos são tratados nacionalmente, há relatos bem conhecidos de perda de significativa parte do que seria legado histórico pela inadequação em se armazenar, ou pelo manuseio impróprio, pelas condições insalubres do espaço físico ou ainda pela demora na contratação do trabalho de restauradores. Portanto, muito possivelmente, se não pela queima intencional, o referido arquivo poderia ter tido o alegado fim pela ação do tempo aliada à inatividade dos poderes responsáveis pela sua conservação. No entanto, um argumento definitivo vem de um fato já estudado pela academia há algumas décadas3: esses registros de compra e posse de escravos solicitados para queima no Diário Oficial de 14 de dezembro de 1890 possuíam duas vias e graças a atenção aos trâmites 2 Para mais detalhes, conferir O Abolicionista Rui Barbosa, uma coletânea de escritos feita em comemoração ao centenário da abolição, a cronologia das ações abolicionistas ruianas exposta em seus capítulos, com destaque para as páginas 37 e 38, integrante do capítulo 2, de Homero Pires, intitulado Rui Barbosa e a Abolição dos Escravos que traz a citação do referido trecho do Diário Oficial. 3 Conferir artigos de Robert W. Slenes, Escravos, cartórios e desburocratização: o que Rui Barbosa não queimou será destruído agora? Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, no. 10, pp.166-196, março/agosto 1985 e O que Rui Barbosa não queimou. Novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. Revista Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 117-149, 1983. 13 burocráticos, as cópias são recuperáveis por terem sido anexadas “a processos de herança e inventário post-mortem”.4 Sendo assim, não se escolheu nesse estudo a imagem do Rui Barbosa5 pseudoabolicionista, ou abolicionista de ocasião, mas a imagem do Rui Barbosa antiescravista, alicerçada pela pessoa e seus atos (incluindo-se neste segundo elemento os juízos constantes em seus escritos). É na rigidez imagética permitida por essa bifurcação, sobretudo em seus textos, que o abolicionista Rui Barbosa é estudado. Não se deseja fazer, com isso, uma apologia às intenções verdadeiras, uma defesa autenticatória ou um exercício laudatório. Busca-se o que é patente na linguagem, aquilo que se pode depreender pelo estudo da argumentação, vista como estratégias textuais em conjunto pelo aporte teórico apropriado – principalmente os estudos de Chaïm Perelmane Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005); por um lado, ocupando-se de alicerçar os estudos argumentativos da Nova Retórica, por outro, com os de Ducrot ([1969] 1987; [1977]1989) esclarecendo os dispositivos da Argumentação na Língua, porém não deixando de se recorrer ao trabalho biográfico de historiadores para se acessar a imagem ruiana em análise. Um estudo que aborde o histórico dos feitos de Rui Barbosa como antiescravista já seria algo que fugiria ao que é comumente praticado, já que há uma corrente questionadora das reais intenções desse parlamentar, jornalista e político. Percebe-se que pode ter sido deixada uma lacuna histórica quando não se fez um exame mais extenso da vertente parlamentar do Rui Barbosa como relator do Parecer ao Projeto Dantas (1884)6 em nome das comissões de orçamento (da qual fazia parte) e da justiça civil. 4 Informação obtida na matéria O dia em que Rui Barbosa virou Nero, de Nívia Pombo, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº29, fev. 2008, p.21. 5 Preferiu-se adotar neste trabalho a grafia predominante nas fontes de pesquisa, a saber, a com “i” (não a sua variante com “y”, “Ruy Barbosa”) e recomendada pela própria FCRB conforme Instruções para a Organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (12 de agosto de 1943) e Lei número 5.765, de 18/12/1971, que aprova alterações na ortografia da língua portuguesa. Além disso, procurou-se conservar a grafia dos excertos apresentados em conformidade com o encontrado nas Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB), que não é a originalmente seguida por Rui Barbosa, mas a adotada então, quando se convencionou retirar os ditongos em “oi” e substituí-los em ditongos em “ou”, mais correntemente usados em 1944 (Cf. nota sobre isso em FCRB, [1884] 1945, v.11, t.1, p.42, prefácio). 6 Recuperou-se esse documento pela consulta ao fac-símile das Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB), Volume 11 (1884), Tomo 1, 409 páginas, intitulado Discursos parlamentares: emancipação dos escravos, na edição produzida pelo Ministério da educação e saúde, Rio de Janeiro, 1945 (data de publicação sob o regime de Getúlio Vargas e do ministro Gustavo Capanema). O prefácio e a revisão ficaram sob a responsabilidade de Astrojildo Pereira. De um modo geral, esse volume é assim estruturado: 1) abre-se com uma caricatura de Rui Barbosa feita por Belmiro de Almeida para O Binóculo de 06 de maio de 1882, Ano II, nº I, “’S. Ex. o Sr. Rui Barbosa’ (Sua Excelência, o Sr. Rui Barbosa). Talvez o maior cabeça do parlamento atual” – legenda que faz uso do atualmente já desgastado trocadilho entre as proporções de sua cabeça e sua posição de chefia; 2) prefácio de Astrojildo Pereira que lista historicamente parlamentares e sua posição diante do escravagismo, destacando Rui 14 Enfatiza-se, nesse trabalho, os mesmos conceitos de escravidão e abolicionismo do movimento emancipatório da década de 1880. Nas palavras de Joaquim Nabuco7 [1883] 2011, em sua obra O Abolicionismo8: Esta [a palavra escravidão] não significa sómente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a somma do poderio, influencia, capital, a clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependencia em que o commercio, a religião, a pobreza, a industria, o Parlamento, a Corôa, o Estado enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática em cujas senzalas centenas de milhar de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regimen a que estão sujeitos; e por ultimo, o espirito, o principio vital que anima a instituição toda, sobretudo no momento em que ella entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida, espirito que há sido, em toda a historia dos paizes de escravos a causa do seu atraso e da sua ruina. (NABUCO, [1883] 2011, p.71). Então a escravidão é tratada nesse estudo como uma instituição que alimentava os diversos setores da sociedade, contudo fadada à falência, por ser um modo de produção incapaz de sustentação econômica perene9: uma instituição de poder dos senhores, como um conjunto, ou um modo de produção. Era uma instituição cujo desmantelamento ainda se pensava, nos anos 1880, de modo gradual, por alforrias esparsas, motivadas pela iniciativa dos senhores ou pelo pleito dos escravos (MENDONÇA, 2008). Se havia o escravagismo caído em outros países (França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo) haveria de ser derrubado no Brasil. A abolição, por outro lado, demandava libertação, principalmente via iniciativa jurídica, e adaptação, mediante educação do negro para a sua adequação ao máximo de setores da vida de liberto. Quando da época do Parecer ao Projeto Dantas, os argumentos dos parlamentares apontavam para uma tendência abolicionista geral; sendo abolicionismo visto como um continuum, em que se alocavam as posturas mais ou menos liberais. Alguns dos que aceitaram Barbosa, caracteriza o Parecer ao Projeto Dantas e levanta os motivos para a queda do escravagismo; 3) colocação de 03 primeiros discursos, menos polêmicos; 4) compilação dos “Anais dos Srs. Deputados do Império do Brasil”, ano de 1884 e texto do Parecer, o mesmo desses anais; 5) apêndice composto pelo texto original do Projeto Dantas com alterações manuscritas por Rui Barbosa, o histórico desde a apresentação do projeto em 15 de julho até a dissolução da câmara em 30 de julho, a exposição sobre a dissolução também redigida por Rui Barbosa, e, por fim, a circular de Rui Barbosa candidatando-se às eleições como deputado geral de 1º de dezembro de 1884. 7 Contemporâneo de Rui Barbosa. 8 Essa obra foi inicialmente pensada como componente de um programa sobre reformas políticas e teria como volumes complementares textos de Rui Barbosa, Rodolfo Dantas e Sancho Pimentel membros do Partido Liberal. (MARSON e TASINAFO, 2011) A transcrição conservou a grafia original. 9 Interpretação baseada no conceito de Nabuco, mas cada estudioso elege um aspecto saliente para formular suas definições de escravagismo/abolição. 15 a anterior Lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre10, por exemplo, identificavam-se como abolicionistas, mas recusavam as propostas do Projeto Dantas. O abolicionismo era um conceito suprapartidário, pois havia tanto abolicionistas liberais, quanto conservadores; monarquistas e republicanos. Contudo, utilizando-se desse histórico das ações antiescravistas ruianas, apontando para sua existência, mas não se restringindo a ele, o que se pretende é apresentar um estudo da figura do orador/locutor abolicionista Rui Barbosa, um acúmulo de temas não explorados11 que encobre a Linguística, a Nova Retórica e a Argumentação na Língua. O movimento de prestígiodesprestígio-represtígio da dialética de Aristóteles é exemplar das mudanças de paradigma científico, entendidas como necessárias para seu avanço. Equiparada ao raciocínio analítico, a dialética aristotélica era entendida como um modo de pensar que se fundava em argumentos prováveis condutores de conclusões não verdadeiras, mas verossímeis, razoáveis. Por trabalhar com a noção de verossimilhança – e não com as noções dos filósofos clássicos, como a noção de “verdade” – não fora objeto de apreço pelo senso comum. Os sofistas eram encarados como formuladores de raciocínios falsos com fins desonestos. Baseados nas declamações literárias de alguns retóricos da antiguidade, filósofos atribuíam à Retórica o mero papel de enfeite da linguagem. Sua interpretação pelos posteriores cristianismo e racionalismo também não lhe era favorável: entendiam-na como forma de raciocínio amoral ou antiético, que conduziam a conclusões falsas. Essa filosofia posterior estabeleceu um confronto entre ela e o raciocínio analítico, esse sim valorizado. Ainda no fim do século XIX, a academia também rejeitava essa área, vista como não científica, contemplando somente sua história. Todavia, em meados do século XX, surge a Nova Retórica, encabeçada por Chaïm Perelman, que, relendo a Retórica e a Dialética de Aristóteles, ao mesmo tempo, restringe seu interesse – focaliza o trabalho com a argumentação de provas, não científica; bem como amplia sua extensão – o auditório aristotélico, visto como algo “heterogêneo”, um grupo indistinto reunido em público, e de “baixo nível”, sem instrução perita, não habilitado então a seguir raciocínios mais complexos é revisto por Perelmane Olbrechts-Tyteca ([1958], 2005) como o alvo da argumentação. 10 A remissão a essa lei é recorrente para a montagem da estratégia argumentativa por Rui Barbosa em defesa do Projeto Dantas. 11 Não se localizou, com as pesquisas prévias, nenhum estudo que traga o recorte analítico do trabalho Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas. 16 Marco do reavivamento do pensamento dialético de Aristóteles, em 1958, a publicação do Tratado de Argumentação de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca resgatou a dialética aristotélica em três movimentos: retomada, abrangência e ressignificação, tudo isso num momento em que a razão era vista como algo nem estritamente lógico nem estritamente metafísico. O nome Nova Dialética, contudo, foi preterido devido à cristalização semântica que o termo “dialética” carregava pós-estudos de Marx e Hegel; por isso “Nova Retórica” com um termo menos impregnado ideologicamente (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA [1958] 2005; PERELMAN, [1977]1999; PLANTIN, 2008; MACHADO, 2011). Já a Argumentação na Língua (ANL), teoria elaborada por Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre ([1969] 1987; [1977]1989),entende que a ação sobre o outro está inscrita no sentido do enunciado. Ducrot e Anscombre precisam seu campo de ação como a Pragmática Semântica (ou Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação quando se fala, mas o que a própria língua (vista pelos seus enunciados argumentativamente estruturados) pode fazer. Inicialmente, Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre12, em sua Teoria da Argumentação na Língua, partiram para a reformulação do conceito tradicional de argumentação: as conclusões de uma frase, segundo a argumentação tradicional, seriam extraídas de situações discursivas e obtidas por leis psicológicas, lógicas, retóricas e sociológicas. Então a argumentação era somente vista como dependente do contexto extralinguístico. Eles, em vez disso, redirecionaram a argumentação para o âmbito intralinguístico, para a formação dum conjunto de conclusões prováveis para uma mesma frase – teoria essa que passou por reformulações passando pelos topoi, até o estado atual de “blocos semânticos”, ótica de análise desse estudo(DUCROT [1969] 1987; [1977]1989; 2003). Escapa-se à dimensão puramente subjetiva de Rui Barbosa quando seu discurso é analisado à luz da Semântica Argumentativa: passa a ser compreendido não só como repositório de uma corrente de ideias de uma época, mas também como repositório de um arranjo argumentativo delas, ou como afirmou ele próprio: “[...] eu não era o indivíduo, eu era a expressão dum conjunto de ideias” (BARBOSA, 1914. v. 41, t.2, p. 289-290). Em contrapartida, os contraargumentos mencionados no Parecer ao Projeto Dantas também são entendidos como uma 12 Nominalmente, como autor dos trabalhos, aparece a figura de Ducrot, embora ele mesmo compartilhe o mérito dos primeiros passos da Argumentação na Língua (ANL) com Jean Claude Anscombre. A Teoria dos Blocos Semânticos, por sua vez, teve a colaboração de Marion Carel esposa de Ducrot. 17 voz dilatada não pertencente a indivíduos particulares, mas constituintes de e ligados por uma corrente histórica, como discursos “repetidos e renovados”. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.14). A ANL é exemplar das transformações que acontecem em ciência, conceitos ou noções em algum momento tidas como díspares, passam a atuar de modo complementar – a ANL pode ser entendida como a interface do Pragmatismo com o Estruturalismo, correntes essas, a princípio, de aplicação e tempo distanciados e de desenvolvimentos teóricos particulares: é o extralinguístico pelo intralinguístico, o ato argumentativo pela linguagem na linguagem. Uma quebra de paradigma. Uma outra quebra de paradigma, o afã da desnaturalização do escravagismo, do direito de propriedade do homem sobre outro homem,, foi a escolha de engajamento pelo Rui Barbosa atuante em diversas frentes, sendo contemplada neste trabalho Antiescravismo Ruiano no Parecer ao Projeto Dantas: tipos e topoi argumentativos sua atuação parlamentar. O Projeto Dantas (1884), do qual Rui era segundo signatário, autor e relator, intentando uma empreitada pioneira, era composto por dois artigos nos quais se recomendavam algumas obrigações para os senhores de escravos, ao mesmo tempo em que admitia mais direitos aos alforriados. Porém, essa proposta foi fortemente rechaçada, o que resultou na dissolução do Gabinete Dantas e na petição de um parecer que assinalasse a sua procedência. Ressalte-se que o antiescravismo ruiano é percebido dentro dos limites admitidos pelo corpus, enquanto aquilo que pode ser constatado pela recorrência ao aporte teórico, seja pelas informações de cunho extratextual que podem ser depreendidas, quanto pelo uso argumentativo de elementos linguísticos. Do gradual arrefecimento e resultante derrocada da convenção que sustentava o sistema escravocrata, o Parecer ao Projeto Dantas é uma amostra significativa, com argumentos que recobrem o mais amplamente possível a ilegitimidade da escravidão, fazendo o cruzamento de aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos. A organização desse trabalho é pensada da seguinte forma: Na seção 02, intitulada Pressupostos Retóricos em Rui Barbosa – antiescravismo no Parecer ao Projeto Dantas, são trazidas as condições históricas em um breve percurso ideológico que 18 colocaram Rui Barbosa enquanto orador fidedigno, correlacionando dados históricos e aquilo que Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958], 2005) chamaram de os Âmbitos da Argumentação. Em tal percurso, volta-se a dois momentos, ao das ideias do Rui Barbosa mais jovem, aos 19 anos de idade e do seu amadurecimento etário, ideológico e político, aos 35 anos, quando da elaboração do Parecer ao Projeto Dantas. É feito também um cotejamento dos posicionamentos dos parlamentares e de Rui Barbosa em relação às principais leis de intenção ou repercussão antiescravista promulgadas. Além disso, o corpus desse trabalho é contextualizado e sumamente apresentado como um todo, apontando-se a estrutura e propósitos. Como um desdobramento da seção 02, na seção 03, intitulada Argumentação no Parecer ao Projeto Dantas – topoi retóricos e tipos associados, os lugares-comuns retóricos e a tipologia argumentativa abrangem os aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos, muitas vezes interfaceados, trazidos no Parecer ao Projeto Dantas. Esses aspectos são privilegiados por uma questão metodológica: por permitirem a viabilidade do trabalho no tempo disponível com a densidade desejada. Desses pontos, enfatiza-se a relação propriedade-indenização, legitimadora da escravidão, que se confronta com o binômio liberdade-não indenização. São apontados os expedientes argumentativos que funcionam pelo sistema da língua vistos sob a ótica da retórica perelmiana. Uma trilha argumentativa ruiana é então apresentada. Já na seção 04, Parecer ao Projeto Dantas: Argumentação na Língua, percebe-se que em se tratando de argumentação, pode-se pensar não somente na Nova Retórica, mas também na Argumentação na Língua. O texto ruiano passa a ser visto como passível de estudo então enquanto portador de uma argumentatividade, ao mesmo tempo, dependente de fatores extrínsecos com os tipos e topoi retóricos e autossuficiente com a abordagem dos pressupostos ducrotianos. Oswald Ducrot, precursor da Semântica Argumentativa13, precisa seu campo de ação como a Pragmática Semântica (ou Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação quando se fala, mas o que a própria língua (vista pelos seus diversos elementos, seja enunciados, na primeira fase de desenvolvimento da teoria, ou o léxico, no estado atual da ANL, compreendidos como eminentemente argumentativos) pode fazer. Os estudos da ANL são historicizados, definem-se as noções pertinentes a cada fase da teoria, seja a fase Padrão, ou Standard; a fase da Teoria dos Topoi ou na mais atual, a fase da Teoria dos Blocos Semânticos. 13 Também denominada de Semântica da Enunciação, ou ainda a designação adotada neste estudo, a Argumentação na Língua – ANL. 19 À luz da Teoria dos Blocos Semânticos, é examinado o Parecer ao Projeto Dantas na seção 05, O Parecer ao Projeto Dantas: blocos semânticos e a negação da escravidão. São exploradas noções como blocos semânticos, argumentação normativa e transgressiva, argumentação externa e interna, elementos modalizadores, aspectos converso, transposto, recíproco, bem como a noção a inter-relação de tais noções. As seções 03 e 05 debruçam-se mais no objeto executando uma análise qualitativa. O texto ruiano é interpretado enquanto amostra argumentativa da nova retórica ou da ANL. Já as seções 02 e 04 dão conta de traçar noções básicas até o ponto de acesso às teorias. Inicialmente há um entrelace entre os desenvolvimentos teóricos da Nova Retórica e histórico, que contribuiu para a formatação da imagem do Rui Barbosa enquanto abolicionista e legislativo, que desembocou no Projeto Dantas. Na seção 04, em contrapartida, dados os percursos históricos e legislativos, é feita uma incursão nos modos ducrotianos de encarar a relação argumentação e língua e no como se assenta nesse âmbito o Parecer ao Projeto Dantas. Conclui-se o trabalho, trilhando a argumentação no Parecer ao Projeto Dantas: como uma amostra de que as teorias da argumentação, ou seja, Argumentação Retórica e Argumentação na Língua, embora pertencentes a campos distintos – Retórica e Semântica Argumentativa – são complementares por permitirem uma visão menos parcial do fenômeno argumentativo. Quando postas em conjunto, permitem a constatação de uma argumentação que se baseia em aspectos mais ou menos lógicos, nas sucessivas relações de predominância de valores convencionalmente formados, de um Parecer como meio e como fim argumentativo – na língua instrumento, na língua discursiva, polifônica, por exemplo. 20 2 PRESSUPOSTOS RETÓRICOS EM RUI BARBOSA – ANTIESCRAVISMO NO PARECER AO PROJETO DANTAS “concedendo certo valor a um juízo, formula-se, por isso mesmo, uma apreciação sobre seu autor” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p. 338) Estudar a Argumentação Retórica é centrar-se na linguagem. E esse é um fechamento imposto pelo próprio aporte teórico que, paradoxalmente, mune o analista de recursos para um estudo rico dos possíveis juízos circulantes em certa época, aceitos, refutados e manejados por um grupo social específico. Pelo intratextual, obtêm-se informações sobre determinados espaço, tempo e sociedade. No caso do presente estudo, busca-se a imagem do abolicionista Rui Barbosa, pelos seus juízos expressos em seus textos. Sendo assim, o recorte analítico contempla essa estabilidade na imagem de Rui Barbosa – embora se perceba que tal estabilidade é somente condicionada e presumida, neste caso, pelo desejo de se fazer um estudo, pois “a ideia” de “pessoa” introduz um elemento de estabilidade. “Todo argumento sobre a pessoa explicita essa estabilidade: presumimo-la ao interpretar o ato em função da pessoa”. A própria qualificação de “abolicionista” para Rui Barbosa, ou seja, “a designação da pessoa por certos traços” confere essa “impressão de permanência” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.334, 335). Caso seja modificado o olhar sobre o objeto de análise, por exemplo, há a possibilidade de alteração dessa imagem em graus diversos, chegando-se até a uma inversão. Por isso essa estabilidade não é uma característica inerente. Consultam-se primordialmente os estudos da argumentação, mas não se desprezam, porém, como complemento, dados históricos que concorram para a elaboração desse quadro, já que eles também podem se configurar em instrumentos argumentativos, pois o fato de a Nova Retórica se centrar nos “recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos” não diminui a influência exercida pela “experiência externa” que, apoiada ou interpretada pelo uso da linguagem, também visa obter a adesão (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.8). A adesão, ou a participação mental consentida do interlocutor, é o que propõe o orador, aquele de quem parte a iniciativa da argumentação. Interagindo com ele, há um auditório, entendido não como ouvintes ou pessoas posicionadas perante o orador, mas o seu alvo, o 21 destino da sua argumentação. Esses dois elementos, que se definem um pelo outro, formam a base do sistema argumentativo: o objetivo do orador é o de convencer e /ou persuadir seu auditório, configurado, por sua vez, com base em sua própria experiência (pois o orador tende a supor a sua formatação – suas características, daquilo que ele ansiaria, de seu enquadramento social, de seus hábitos culturais, e, neste caso, de suas expectativas políticas): A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório pode ter as mais desagradáveis consequências. Uma argumentação considerada persuasiva pode vir a ter um efeito revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de fato, razões contra [...] O conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22,23). Tal inferência sobre a formatação “do conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22) é útil na medida em que modaliza o uso de certos expedientes argumentativos, precavendo um discurso inadequado e contraproducente. No entanto, com isso, o orador não se esquece de que esse “auditório presumido” pode ser composto de pessoas que carreguem individualmente diferenças entre si, afinal, “uma só pessoa constitui-se em um complexo de contradições, de diferenças de posições a depender, por exemplo, da época de sua vida em que se é apresentada a tese” (MACHADO, 2011, p.19). “É a arte de levar em conta, na argumentação, esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador” (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 24). O orador Rui Barbosa tinha então de perceber as diferentes nuances em seu auditório. Durante a sua militância político-ideológica, tinha de filtrar essas diferenças até mesmo pela abrangência do grupo que deveria ser tocado por sua argumentação: deveria diferenciar membros/subgrupos da população como um todo, ou do meio político geral, ou de um partido político específico. No período da defesa do Projeto Dantas por meio de seu Parecer, o auditório eram os parlamentares, liberais ou conservadores pretensamente influenciáveis pelos argumentos levantados. Ainda que a fim de facilitar sua atuação argumentativa, o orador vise a exploração dos aspectos comuns do auditório, não significa, reitera-se, que as palavras devam ser direcionadas a um público visto como homogêneo e/ou moldado unicamente segundo as suas expectativas, idealizado. “É bom que se perceba que do auditório emanam anseios múltiplos e 22 muito diversos entre si e que solicitações diversas exigem argumentos igualmente múltiplos”(MACHADO, 2011, p.19). O orador tem de ter em mente que o auditório heterogêneo reúne “pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.24). O trunfo do bom orador então é trabalhar com a unidade que permite a visão de um agrupamento, mas não desprezar as singularidades constitutivas desse mesmo grupo. Uma classe, qualquer classe, demanda a reunião de elementos por características comuns. Na década de 1880, as pessoas, como é aprofundado mais adiante neste trabalho, não se percebiam como escravistas. Em geral viam-se abolicionistas. Então, ao formular sua fala, o orador Rui Barbosa deveria, como o fez, dirigir-se ao grupo designando-o como abolicionista. No entanto, dentro dessa classe, sabia-se das posições individuais ou de subgrupos e ainda das mudanças de posicionamento de um mesmo elemento, formando subauditórios, e isso, aliado à noção do abolicionismo admitido como comum a todos construiria seus argumentos. Tal procedimento é necessário já que o intento do orador é adensar gradativamente a adesão que deve ir de um mero interesse prévio em se participar de um diálogo para a incorporação das ideias apresentadas – tanto mentalmente, o que configuraria o convencimento, quanto na conduta do outro, obtendo-se assim a persuasão –, portanto vale empenhar todo o esforço permitido14. Afinal, o processo comunicativo demanda tal aceitação, por isso ela é vista pelo orador como preciosa. (ABREU, 2007; PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA; [1958] 2005; PERELMAN, [1977]1999). Não haveria, segundo alguns estudiosos15, a necessária relação de anterioridade, hierarquia ou interdependência entre persuadir e convencer, considerados, apenas como dois resultados diversos. Haquira Osakabe (1979, p.161) diz que a persuasão e o convencimento (chamado de “convicção”) são dois tipos de adesões distintas diretamente relacionadas com o auditório presumido pelo orador. A intenção do orador muda a depender do tipo de auditório que ele entende que está em questão. Além do mais, alguém pode ser convencido, porém não ser persuadido e vice-versa. Intentando obter essa adesão, o orador não se limita a apresentar os 14 Etimologicamente, convencer vem de “cum + vincere”, i. e., vencer o outro mediante sua colaboração e persuadir vem de “per + suadere”, significando a partícula “per”, “de modo completo” e “suadere”, “aconselhar”14 (TRINGALI, 1988, p.20). 15 Dante Tringali (1988, p.21) preocupa-se, por exemplo, em trazer a persuasão segundo a tria officia de Cícero, a saber, composta por três dimensões a lógica (convencimento), a que age sobre os afetos (comoção) e a estética (agrado), trazendo o convencimento apenas como um componente da persuasão. Nessa seção, consideram-se esses necessariamente como componentes da retórica, obtendo-se a comoção e o agrado pelo logos, sendo persuasão e convencimento efeitos diferentes da argumentação. 23 fatos, achando que eles, por si só, suscitariam o interesse do interlocutor em participar da interação. Em adição, numa atitude modesta, deve admitir a natureza limitada de sua proposição, não se considera o portador de verdades inquestionáveis nem universais: Com efeito, para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental [...] querer convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta, o que ele diz não constitui uma “palavra do Evangelho”, ele não dispõe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutível e obtém imediatamente a convicção. Ele admite que deve persuadir, pensar nos argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocupar-se com ele, interessar-se por seu estado de espírito (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, [1958]2005, p. 18). O orador então precipita as respostas do outro, considera-as previamente, a fim de formular em sua tese as adaptações requeridas pelo auditório. Sendo assim, naquele que se propõe a argumentar, deve haver as seguintes predisposições: modéstia, para reconhecer a incompletude de sua tese, as falhas a serem ajustadas pelas reações do auditório e interesse pelo auditório que no momento da ação do orador reage reformulando o seu discurso. A esses procedimentos de base para sedimentar a argumentação, que Perelman e OlbrechtsTyteca ([1958], 2005) expõem na primeira parte de seu Tratado intitulada Os âmbitos da argumentação, podem ser agregados outros. Na introdução ao Tratado de Argumentação, por exemplo, há a referência ao uso da “experiência externa” como recurso auxiliar, vinculada aos “discursivos” para se obter a adesão. Dá-se então credibilidade ao orador não só pelo uso de expedientes linguísticos, mas também pelo exame de sua conduta que, aliada ao discurso, é vista como expediente argumentativo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.8). A própria figura de Rui Barbosa servia para validar seu local de fala abolicionista – informações biográficas16 esclarecem que ele apresentava um histórico de ações tanto na imprensa, quanto na política, e ainda no meio maçom que reforçava sua imagem de abolicionista anteriormente, quando mais novo, em grupos mais restritos e, em tempos 16 Dados biográficos de base (breves): nascido em 5 de novembro de 1849, na rua que hoje leva seu nome, em Salvador/BA, Rui Barbosa de Oliveira, filho de João Barbosa de Oliveira, médico, educador e político e Maria Adélia Barbosa de Oliveira, faleceu em Petrópolis, RJ, em 10 de março de 1923. Foi, dentre outras atribuições, membro fundador da Academia Brasileira de Letras, jurisconsulto, orador e parlamentar. Para mais informações, consultar: BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL. Rui Barbosa- Biografia. Disponível em: < http://bndigital.bn.br/redememoria/bio-ruibarbosa.html >. Acesso em: 18 de julho de 2013; RUI BARBOSA – BIOGRAFIA (Fundador, Fundador da cadeira 10). Disponível em:< http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=193&sid=146>. Acesso em: 15 de janeiro de 2013; RUI BARBOSA. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/template_ 01/default.asp?VID_Secao=2>. Acesso em: 28 de set. de 2010. 24 posteriores, de modo mais abrangente. Quando da elaboração do Parecer ao Projeto Dantas, então, Rui Barbosa era um abolicionista declarado e reconhecido, falando da inestimável relevância da abolição a um grupo de abolicionistas declarados, e nem sempre reconhecidos17. Sendo assim, são vistos, nessa seção, tanto seu histórico de engajamento ao moto antiescravagista, o que permitiu que o grupo em seu entorno o visse e o validasse enquanto abolicionista, bem como o histórico da cadeia argumentativa escravocrata que se opunha a cada iniciativa jurídica emancipatória. Enquanto que o delineamento de sua conduta, feito mediante consulta à sua biografia e de parte de sua extensa obra18 alicerça sua posição como orador, conferindo-lhe fidedignidade, o detalhamento de contra-argumentos na cronologia legislativa abolicionista19, anterior ao Projeto Dantas, apresenta-os como preparatórios e antecedentes dos demais argumentos “repetidos e renovados” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.14) evocados quando desse Projeto e motivadores da escrita do seu Parecer. 2.1 RUI BARBOSA – HISTÓRICO ANTIESCRAVISTA De argumentos movidos pelo pensamento de vanguarda de sua geração20 – é esse o Rui Barbosa patente em suas obras. Nelas, tem-se acesso ao homem que defendeu a causa antiescravagista em um período amplo, que correspondeu a praticamente toda a sua vida. Para um breve panorama, são enfocados dois momentos: a sua exposição de motivos antisservis quando dos seus 19 anos de idade, como uma amostra de seu interesse em causas abolicionistas e quando adulto, já aos 35 anos, durante sua polêmica participação no Gabinete Dantas, por ele entendido como momento político crucial para a posterior abolição de 13 de maio de 1888. 17 Por exemplo, para se consultar esse escorço biográfico abolicionista de Rui Barbosa, cf. Emília Viotti da Costa, A Abolição (São Paulo: UNESP, 2008. 8ª ed. rev. e ampl.); a coletânea publicada pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), O abolicionista Rui Barbosa (Ed. comemorativa do Centenário da Abolição. Rio de Janeiro, 1988); bem como a introdução de Izabel A. Marson e Célio R. Tasinafo, na obra de Joaquim Nabuco ([1883]2011), O abolicionismo (Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1ª reimpressão). 18 A base de dados Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB) coleciona textos em fac-simile, não necessariamente reunidos cronologicamente, mas pela relevância temática e pelo acesso às fontes. São 50 volumes (que podem ser divididos em mais de um tomo) distribuídos da seguinte forma: volume 1: trabalhos feitos até o ano de 1871; volume 2: trabalhos relativos ao período de 1872-1874; volume 3: de 1875-1876; demais volumes cada um correspondendo a um dos anos posteriores, de 1877 (volume 4), até 1923 (volume 50), perfazendo 137 tomos. Essa organização foi prevista pelo Decreto-Lei nº 3.668, em 30 de setembro de 1941 assinado pelo presidente Getúlio Vargas. 19 Assim denominadas nesta dissertação as leis que tiveram repercussão abolicionista ou que interferiram no processo escravagista. 20 Um pensamento vanguardista na medida em que militava contra um modo de produção e uma relação social incrustrada pela tradição que era o escravagismo. 25 2.1.1 Radicalismo e Liberalismo Rui Barbosa se apresentava como um jovem que surgia assumindo uma defesa antiescravocrata veemente, ao mesmo tempo comumente praticada pelo grupo abolicionista radical e rebatida pelo grupo mais moderado porque era percebida por esse último como excessiva frente às supostas necessidades daquele período. Ingressou em uma associação maçônica – conseguindo ocupar, em pouco tempo, o ponto mais alto da hierarquia mediante a autorização de seu grupo – onde fez propostas até então inovadoras concernentes à escravidão. Além disso, nessa mesma época, em 1869, fez um discurso considerado impactante, a conferência “O Elemento Servil”, que mesmo não sendo preservado na íntegra, ainda é recordado como uma atitude marcante pela postura audaz do orador (CARVALHO, 1949, vol. 1., t. 1; FCRB, 1988). Logo aos 19 anos de idade, ele, juntamente com alguns jovens, todos a favor dos ideais liberais, fundou, em São Paulo, o jornal do Clube Radical, o Radical Paulistano, que se servia de uma produção semanal de artigos e de ideias que, embora não fossem individuais, propagavam em uníssono o pensamento do Clube. Os redatores desse jornal (a “comissão de redação”) eram, além do destacado Luís Gama e o próprio Rui Barbosa; Américo de Campos; Bernardino Pamplona, o presidente do clube, e Freitas Coutinho. As principais ideias propostas eram: a descentralização, o ensino livre, a abolição da Guarda Nacional, senado temporário e eletivo, a extinção do poder moderador, separação da judicatura da polícia, substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, eleição dos presidentes de província, suspensão e responsabilidade dos magistrados pelos tribunais superiores e poder legislativo, magistratura independente, e a escolha de seus membros fora da ação do governo, proibição dos representantes da nação de aceitarem a nomeação para empregos públicos e igualmente títulos e condecorações; os funcionários públicos, uma vez eleitos, deverão optar pelo emprego ou cargo de representação nacional (CARVALHO, 1949, vol. 1., t. 1, prefácio, grifo nosso). Agindo coerentemente com essa postura abolicionista do Clube, mantida no Jornal Radical Paulistano, em 1869 21 21 , o jovem Rui Barbosa propôs ao público por meio da conferência O O volume 1, tomo 1, ao trazer o resumo desse discurso, incorre num equívoco de datar a Conferência em 12 de setembro de 1669, algo logo resolvido pela leitura inicial do trecho que explana : “Domingo, 12 do corrente, teve lugar a 5ª Conferência do Clube Radical Paulistano, orando o Sr. Rui Barbosa sobre a tese – o elemento servil” (OCRB, v. 1, t.1 , p. 171). O próprio contexto histórico de Rui Barbosa já esclarece isso. 26 Elemento Servil22, um olhar diferenciado para a realidade dos escravos. Seu discurso repercutiu na imprensa local, ganhando espaço a forma laudatória com a qual os jornalistas tratavam sua argumentação. O Correio Paulistano dizia que a exposição de Rui Barbosa contara com “uma ilustração não vulgar” enquanto que o Ipiranga, de modo menos conciso, assim relata o evento: “o distinto e ilustrado Sr. Rui Barbosa, ocupando anteontem a tribuna das conferências populares para tratar do elemento servil, se houve por tal forma na discussão de sua tese que mais uma vez confirmou os foros de que merecidamente goza de talento superior”. O resumo publicado no Jornal Radical Paulistano fornece uma ideia, ainda que provavelmente menos entusiástica do que a própria conferência de Rui Barbosa, acerca do que foi dito (CARVALHO, 1949, v. 1, t. 1, prefácio). O texto orientava seus argumentos de modo que eles recobrissem o mais amplamente possível a ilegitimidade da escravidão, fazendo o cruzamento de aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos. O início dessa conferência de Rui Barbosa (1869, v. 1, t.1 p.171172), de acordo com tal resumo, enfocou a vertente amoral em que se fundamentava a escravidão, que seria “uma abominação moral, um núcleo de corrupção na vida pública e doméstica”, passando a explorar aspectos econômicos, segundo os quais e seguindo o exemplo estadunidense, se “estabelece a infinita superioridade do trabalho livre sobre o trabalho servil”, apontando ainda “o escasseamento da população livre nos estados escravistas” norte-americanos. Rui Barbosa recorre à argumentação de base demográficohistórica para comprovar sua tese. Seguindo em sua incursão histórica, o orador esclarece que na França e nos Estados Unidos, no ano de 1874, a abolição trouxe, em vez da turbulência civil, o aquietamento dos ânimos, bem como o progresso em vários setores econômicos. Rui Barbosa conduz então o abolicionismo ao contexto local quando diz que a emancipação dos escravos: é muito mais fácil em nosso país que em todos aqueles onde se tem efetuado até hoje: – 1º, porque uma porção imensa da propriedade servil existente entre nós (mais de um terço), além de ilegítima, como toda a escravidão, é também ilegal, em virtude da Lei de 07 de novembro de 1831, e do regulamento respectivo que declaram expressamente “que são livres todos os africanos importados daquela data em diante”, donde se conclui que o governo tem obrigação de verificar escrupulosamente os títulos dos senhores e proceder na forma de decretos sobre a escravatura introduzida pelo contrabando; – 2º, porque a população escrava no Brasil acha-se, para com a 22 A acepção do termo “servil” e derivados, com o sentido de “escravo”, foi preservado na citação das fontes, não obstante a abertura do termo. 27 população livre em uma proporção incomparavelmente inferior àquela em que se achava nas colônias francesas e inglesas, nem entre nós se dá a circunstância de grande luta civil no meio da qual foi proclamada a emancipação nos Estados Unidos (BARBOSA, 1869, v. 1, t.1, p.171,172). Neste ponto do excerto, Rui Barbosa procede a uma comparação entre as realidades préabolicionistas das colônias francesas e inglesas e no Brasil. Demonstra que a densidade populacional livre, quando cotejada com a escrava no Brasil, mostrava-se elevada. Além disso, não haveria de ocorrer uma generalizada guerra civil no Brasil para que todos os cativos recebessem manumissões. Distanciada no tempo, a historiadora Emília Viotti da Costa confirma as previsões de Rui Barbosa: Por mais longos e difíceis que tivessem sido os caminhos da abolição, chegava-se ao fim, sem que fosse preciso lançar o país em uma guerra civil, como sucedera nos Estados Unidos. Lá os escravos só conquistaram sua liberdade depois de longa e cruenta guerra, na qual os proprietários de escravos e seus aliados defenderam, de armas na mão, sua propriedade ameaçada pelo governo da União. E, a despeito dos receios que alguns proprietários de escravos sentiram por ocasião da abolição, o país não se viu às voltas com uma guerra entre as raças [...] As catástrofes anunciadas por aqueles que esperavam ver a economia do país destruída também não ocorreram. Depois de breve período de desorganização, a vida se normalizou. Nas cidades e nas fazendas, a produção reassumiu o ritmo anterior (COSTA, 2008, p.10,11). Contudo, o que desperta maior interesse é que Barbosa lança mão de uma lei antes somente pro forma, a lei de 07 de novembro de 1831, a Lei Feijó – elaborada com a finalidade de atender às novas exigências internacionais, feitas pela Inglaterra, concernentes ao tráfico negreiro (o Parlamento inglês abolira o tráfico negreiro em suas colônias em 1807) – decorrente do fato de que, após a independência, em 07 de setembro de 1822, o Brasil passou a depender economicamente da nação inglesa ainda mais, tanto que, ela assim pôde legislar sobre a abolição do tráfico negreiro: declarava livres todos os escravos introduzidos no território brasileiro vindos de país estrangeiro. Como um modo de burlar a Lei Feijó, intensifica-se o contrabando de cativos que passam a entrar no Brasil, trazidos por navios com bandeiras falsas, como forma de escapar da proscrição das patrulhas inglesas. Em 1826, a Inglaterra impôs ao Brasil o compromisso de eliminar o tráfico num prazo de três anos após essa renovação do acordo. A Lei de 1831 foi o cumprimento oficial do Brasil a esse 28 contrato, mas ela foi praticamente ignorada, algo reiterado pelas estatísticas crescentes de escravos em terras nacionais. Porém, anos depois, Rui Barbosa não só trouxe à lembrança essa lei, como também Osório Duque Estrada (1870 apud LACOMBE, 1988), segundo o qual, Rui Barbosa teria sido: O primeiro abolicionista que, baseado na lei de 07 de novembro de 1831, proclamou, desde 1869, a ilegalidade da escravidão no Brasil, fornecendo o principal argumento de que serviriam mais tarde os propagandistas radicais de 188023, no início da fase revolucionária que terminou com a conquista de 13 de maio de 1888 (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.72). Quase meio século após a sanção dessa lei que extinguiria o tráfico negreiro para sedimentar a pugna antiescravagista, alguém a cita: Rui Barbosa fora o pioneiro 24 em aludir a essa lei que ratificava o convênio anglo-brasileiro de 1826, quando o acordo comercial, iniciado desde 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, possível pelo auxílio inglês, foi ratificado (FCRB, 1988). Outra ação inseriu Rui Barbosa em um mote pioneiro, um ano antes. Ele, quando sócio da Loja América, uma associação maçônica de São Paulo, a qual era integrada por parte do alunado e do corpo docente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, sugeriu aos seus companheiros a libertação do ventre de suas escravas, algo que causou certa indisposição no Venerável da Loja, o Professor Antônio Carlos, que sai então daquele grupo. Com essa proposta, Rui Barbosa antecipa uma prática que só seria formalizada em lei em 28 de setembro de 1871 pela Lei do Ventre Livre25 (FCRB, 1988). 23 O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, formou com O Parecer ao Projeto Dantas (1884), duas obras de fundamental importância para a propaganda abolicionista. 24 Isso não é ponto pacífico, é embasado nas informações contidas em FCRB, 1988. 25 A Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871 (redação definitiva em sessão do senado de 27 de setembro do mesmo ano), Carta de Lei nº 2.040 do Terceiro Período Imperial, declarava liberdade condicionada aos filhos das escravas. A partir de então, esses nascituros libertos ficariam sob a tutela dos senhores até seus 08 anos de idade. Após esse período os senhores poderiam escolher entre indenização pecuniária ou por prestação de serviços até os 21 anos de idade. O texto reza, no Art.1, três primeiros parágrafos, o seguinte: A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte: Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. § 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita 29 Esses dois pontos destacados no histórico de Rui são dignos de atenção, pois medidas como a extinção do tráfico e a libertação do ventre imprimiram à escravidão uma finitude. Representando o “estancamento das fontes”, tais medidas, por elas próprias, determinaram um tempo no qual a escravidão inevitavelmente chegaria a seu termo. (MENDONÇA, 2008, p.308) Esses dois momentos legislativos são evocados como “o estancamento das fontes”; com o tráfico extinto e com a interdição da escravização de nascituros, não haveria renovação da mão-de-obra escrava, o que representaria o fim da escravidão, mas por diferentes óticas: para alguns, os que confessavam acreditar na infalível aplicação dessas leis e na igual resposta punitiva em caso de infração, elas por si só seriam suficientes para a abolição geral admitindo-se que com o tempo o plantel de escravos se extinguiria pela restrita expectativa de vida; para outros, essas leis formavam um precedente impulsionador de futuras leis que permitissem, com o tempo, novas formas de libertação. Rui Barbosa encontrava-se nesse segundo grupo. Desde aquela conferência, ele tentava desencadear, por meio de seus argumentos, uma quebra de valores estagnados pelo aspecto menos questionável e ainda não explorado – a lei. Da instância jurídica, que pode ser encarada como um objeto refletor das disposições acomodadas num determinado espaço-tempo, anteriormente e até então amplamente acobertando a realidade escravocrata, legitimando assim a postura escravagista, é percebida uma lei cujo alcance ainda era tímido, mas que se configurava em exceção, que, mesmo sob a forma de uma brecha, já acolhia as disposições abolicionistas. A partir de então, tendo sua ação abolicionista coberta pelo aparato legal existente, Rui Barbosa prossegue, agora empreendendo uma tentativa ainda mais ousada: a continuação da dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. § 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização pecuniaria, que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização. § 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter quando aquellas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mãis. Se estas fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo.[...] 30 reestruturação interna da legislação nacional para que ela continuasse a acomodar a causa antiescravagista. 2.1.2 Projeto Dantas No ano de 1884, em torno de seus 35 anos de idade, demonstrando uma maturidade etária que redundou em uma maturidade político-ideológica, Rui Barbosa é convocado para redigir um projeto de lei para o Gabinete de Manuel Pinto de Sousa Dantas26. Ao Ministério Dantas de 6 de junho de 1884, precederam : 1) o Ministério Saraiva, que não cogitava a inclusão da questão abolicionista na sua pauta de trabalho, 2) o Ministério Martinho Campos, totalmente contrário às disposições antiescravistas, a ponto de declarar, segundo Brício Filho: “sou escravocrata da gema” , 3) o Paranaguá e 4) o instável Lafayette, que, quando perguntado sobre a existência de plano de ação referente ao escravagismo, respondeu “pode ser que sim, pode ser que não” (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.43). No entanto, de forma incisiva, após a leitura do projeto em 15 de julho de 1884, a proposta fora refutada tanto por conservadores quanto, surpreendentemente, por liberais. Rui Barbosa foi chamado de comunista e teve de enfrentar até mesmo a oposição da Igreja. Devido a tudo isso, cai o Gabinete Dantas, que só durou onze meses e ascende ao poder o Gabinete Saraiva. Sobre isso, Rui Barbosa comentou mais tarde: “Ontem um gabinete liberal não podia achar apoio mesmo em uma câmara liberal para uma transação abolicionista” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1 p.146). E ainda: O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros tentamens de transação, estar em ser ele o único onde, proscrevendo-se a indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da liberdade gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão compreendeu-o; viu nesse ensaio libertador a célula da abolição incondicional; e, percebendo que jogava a sua sorte, envidou assomos inauditos, no delírio de um desespero descomunal, para subverter a audácia dessa iniciativa numa catástrofe exemplar (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.153). Mas, Rui Barbosa, diante da onda reacionária a esse projeto e do crescente apoio ao abolicionismo, declarou que a tensão emancipatória logo chegaria ao seu clímax. Devido aos 26 Então Primeiro Ministro do Império. Rui Barbosa era um líder do governo da Câmara. 31 fatos, disse em um livreto intitulado O Ano Político de 1887: “está, pois, consumada a grande revolução. Para um, para dois anos? Eis a questão apenas” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1). O Projeto Dantas, antes considerado odioso por sugerir ações muito “avançadas”, repentinamente assumiu uma aparência tímida diante das mudanças ocorridas. Até mesmo alguns ministros que eram contrários à abolição mudam rapidamente de posição. Um caso exemplar é o do então ministro da agricultura e conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, antes escravista integrante do Gabinete Cotegipe e, em 10 de março de1888, integrante libertador de João Alfredo: em cerca de dois meses depois, isto é, em 8 de maio, ele apresentou e sozinho subscreveu o projeto do Executivo que extinguia a escravidão no Brasil, proposta essa encaminhada a noventa e dois deputados, dos quais apenas nove votaram contra e, por fim, aos senadores, que a aprovou em tempo recorde: 13 de maio (COSTA, 2008; FCRB, 1988). Porém, ressalte-se mais uma vez que encarar o evento de 13 de maio de 1888 somente como resultado da atuação de um segmento populacional engajado politicamente e/ou da vontade parlamentar, não é dar conta, nem aproximar-se, da complexidade das variáveis envolvidas em todo o processo da abolição. Além do mais, a liberdade daqueles indivíduos ainda não era plena: Para a maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela abolição, a questão estava encerrada. Os ex-escravos foram abandonados a sua própria sorte. Caberia a eles, daí por diante, converter sua emancipação em realidade. Se a lei lhes garantia o status jurídico de homens livres, ela não lhes fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva. A igualdade jurídica não era suficiente para eliminar as enormes distâncias sociais e os preconceitos que mais de trezentos anos de cativeiro haviam criado. A Lei Áurea abolia a escravidão, mas não o seu legado (COSTA, 2008, p.12). Sim, antes, enquanto escravos, esses indivíduos foram se apropriando dos avanços legais disponíveis, poucos, mas gradualmente ampliados até o status de libertos. Não de “homens livres”, mas quase isso, de libertos. Nesse tocante, o quadro é menos animador do que apontam essas palavras da historiadora Emília Viotti da Costa já que os prejuízos sociais pós libertação da Lei Áurea seriam agravados pelo descompasso jurídico, não havendo sequer a apontada “igualdade jurídica”. Os libertos sofreriam, pois, duplamente: nos âmbitos jurídico e social. 27 27 Tal crítica a Emília Viotti só foi possível após recordar a observação atenta da Profa. Dra. Wlamyra Albuquerque sobre a diferença terminológica entre “homens livres” e “libertos”. Segundo ela, os escravos receberiam pós lei o status de libertos, jamais de homens livres, assim nascidos e com ampla cidadania, como o direito a voto. 32 Feita essa breve consulta aos estudos históricos, pelos quais foram levantados dados biográficos que servem como amostrada atuação antiescravista de Rui Barbosa e/ou da validação dessa sua imagem nos meios social e jornalístico e que permitem a visão de suas disposições argumentativas preliminares, passa-se à apresentação do Parecer ao Projeto Dantas: de seu entorno legislativo, seu contexto social, seu auditório e sua constituição argumentativa, os argumentos principais elaborados por Rui Barbosa como refutação aos contra-argumentos mais comuns à época. 2.2 O PARECER EM FOCO O Parecer foi escrito por um abolicionista e para “abolicionistas”. Pode-se afirmar que ele fora escrito por um abolicionista, tanto pelo supracitado exame das ações e escritos de Rui Barbosa ao longo do tempo, quanto pelo exame do Parecer ao Projeto Dantas. Em relação à sua tese geral, o Parecer reforça o intento a uma empreitada de abolição de mais um segmento da sociedade apresentada no Projeto Dantas, do qual Rui Barbosa era segundo signatário e autor. Segundo a historiadora Rejane Magalhães, nesse texto composto por dois artigos, recomendavam-se algumas obrigações para os senhores de escravos, ao mesmo tempo em que admitia mais direitos aos alforriados: tratava das hipóteses da emancipação e englobava os seguintes parágrafos: dos encargos do ex-senhor; da matrícula; do fundo de emancipação; da localização do escravo; do direito de testar a liberdade; do penhor; da nulidade da venda a retro; da alforria concedida pelo fundo de emancipação. O artigo segundo tratava do trabalho, e com seus respectivos parágrafos: do domicílio; da profissão ou emprego do liberto; da locação de serviços; da rescisão de contrato; do salário; da duração de contratos; das questões entre locador e locatário; da penalidade para o liberto; dos delitos e infrações; da proibição do funcionamento de casas de compra e venda de escravos; das colônias agrícolas para os libertos; das regras para conversão do foreiro do Estado em proprietário dos lotes de terra (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.95). Por exemplo, visando assegurar o sustento ao escravo recém-libertado que não obtivesse ocupação nas propriedades de então, esse Projeto previa sua alocação em colônias agrícolas. 33 A ideia era limitar o tempo de exploração da força servil em sessenta anos e garantir ao consequente ex-escravo uma velhice menos indigna porque seria provida de alguns direitos: Dos sexagenários § 1º. – O escravo de 60 anos, cumpridos antes ou depois desta lei, adquire ipso facto a liberdade. I – Se os libertados em virtude desta condição preferirem permanecer em casa dos seus antigos senhores, será facultativo estes retribuir-lhes, ou não, os serviços. II – Nos casos de enfermidade, ou invalidez, dos libertos, por fôrça dêste parágrafo, incumbe aos ex-senhores ministrar-lhes alimento, roupa e socorros na doença; com obrigação para os libertos de se sujeitarem às ocupações compatíveis com as suas forças. Cessa para o senhor, porém, esse encargo. Se voluntariamente o liberto o deixar, ou tiver deixado sua casa e companhia. III – O ex-senhor que furtar-se ao encargo estabelecido em o número antecedente, desamparando, na moléstia, ou na invalidez, o liberto sexagenário, incorre na multa de 100$000, duplicada nas reincidências, e imposta pelo juiz de órfãos, precedendo audiência por escrito do acusado. IV – Caso o infrator não anua em readmitir à sua companhia o liberto, compete ao juiz de órfãos prover à sustentação e tratamento do enfermo, ou inválido, em casa, ou estabelecimento público, ou particular; correndo as despesas por conta do ex-senhor, de quem se cobrarão executivamente. V- Quando o estado de pobreza do ex-senhor lhe não permita satisfazer os encargos dêste parágrafo, nº II28. Contudo, factual é que o Projeto Dantas (ou “Projeto Rui Barbosa” 29 ) fora suplantado pela Lei dos Sexagenários, promulgada pelo imediatamente posterior Gabinete Saraiva em 1885 (FCRB, 1988). O auditório de Rui Barbosa foi então parcialmente convencido e persuadido: essa lei infiltrou emendas no projeto original, o que permitiu a inclusão de condições completamente indesejáveis no Projeto Dantas. Essas diferenças são vistas, por exemplo, quando trata da “Fixação do Valor do Escravo”, o Projeto Saraiva rezava em seus parágrafos: § 2º. – Os escravos de sessenta anos serão obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores por espaço de três anos. § 3º. – Os escravos que, ao promulgar-se esta lei, forem maiores de sessenta e menores de sessenta e cinco anos, logo que completarem esta idade não serão mais sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo em que os tenham prestado, com relação ao prazo acima declarado. § 4º. – É permitida a remissão dos mesmos serviços mediante o valor arbitrado para os escravos da classe de cincoenta a sessenta anos. 28 Redação do Projeto Dantas, “O Projeto Original”, constante no Apêndice do volume 11, tomo 1, FCRB. Cf. Anexo C. 29 Cf. Anexo A, Projeto Dantas/ Rui Barbosa, manuscrito de Rui. 34 § 5 – Todos os libertos maiores de sessenta anos continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimenta-los, vesti-los e trata-los em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles salvo se os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de subsistir, sem necessidade de proteção de seus ex-senhores30. Confrontando esses excertos do Projeto Dantas (1884) e do Projeto Saraiva (1885), confirmase uma alteração significativa: permanecia a alforria do escravo sexagenário, no entanto, ele ainda teria de trabalhar por mais três anos para seus antigos senhores. Tal trabalho compulsório serviria para manter os antigos senhores indenes, servindo de compensação pela sua alforria. Continuando o exame das diferenças entre os projetos Dantas e Saraiva, a historiadora Rejane Magalhães aponta que havia as determinações de uma nova matrícula de escravos – o que invalidava a lei de 7 de novembro de 1831 – e de uma taxa para o valor do escravo na razão inversa de sua idade ( que cessava nos escravos quinquagenários no Projeto Dantas, valorada em 400§, mas alcançava os sexagenários no Projeto Saraiva, estipulada em 200§), garantindo a manutenção da ideia de propriedade sobre o homem (FCRB, 1988, p.33, 34). E assim já modificado em Lei Saraiva-Cotegipe, o Projeto Dantas se enquadra na linha do tempo31, conforme ordenado por Lysie dos Reis Oliveira (2012, p.56): Destacam-se as seguintes medidas legais: proibição do tráfico transatlântico (1831), que, apesar da repressão de navios britânicos, não acabou por tolerância das autoridades brasileiras; Lei Eusébio de Queiroz (1850) – abolição definitiva do tráfico; lei que proibia a venda separada de escravos casados (1869)32; Lei do Ventre Livre (1871); Lei Saraiva-Cotegipe (1885), conhecida como Lei dos Sexagenários; lei que extingue a pena de morte (1886); extinção da escravidão nos Estados do Ceará33 e Amazonas (1884); Lei Áurea (1888)34. O Parecer ao Projeto Dantas foi então redigido para “abolicionistas”. Rui Barbosa aludiu a isso quando afirmou que “o escravismo revestiu, entre nós exterioridades insidiosas, que o tornam mais perigoso que a franca apologia do cativeiro: declarou-se emancipador” 30 Cf. http://www2.camara.leg.br. Cf. Apêndice, Linha do Tempo : medidas legais. 32 Decreto Nacional n.1.695, de 15 de setembro de 1869. 33 25 de março de 1884 é a data dessa alegada libertação geral,no entanto, quatro anos depois, havia registros no Relatório do Ministério da Agricultura, de 14 de maio de 1888, de que haviam 108 escravos no Ceará (MARSON e TASINAFO, 2011). 34 Pode-se incluir nessa cronologia a primeira iniciativa de abolição geral, na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte, em 30 de setembro de 1883, após propaganda abolicionista do comerciante Joaquim Mendes. Fonte: http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/imperio2.html. 31 35 (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.75). Todos eram abolicionistas em certa medida, pois quem estivesse a favor das manumissões era partícipe de uma suposta mentalidade vanguardista e urbana. No entanto, dentro dessa revestida imagem do abolicionismo sob o signo da juventude, da vanguarda, do espírito cristão e do progresso, cabia uma gradação de adesão, num continuum cujas extremidades referendavam posturas mais para moderadas, à esquerda e mais para radicais, à direita. O Parecer incide sobre a ideia que se propagava: não haveria um antiabolicionismo, mas sim uma contrariedade instaurada pela atuação da instância legislativa para as manumissões generalizadas. A razão para isso é que a associação do abolicionismo com ideias não tão positivas, como anarquia, comunismo e regresso, deslocaria o indivíduo para o extremo abolicionista mais conservador. Essa repercussão negativa das leis abolicionistas era, sobretudo, projetada para as futuras relações interindividuais senhor-liberto. Conforme análise de Mendonça (2008), haveria uma classe de “bons libertos” constituídos por aqueles cuja manumissão era providenciada pela iniciativa dos próprios senhores. Essa era a libertação ideal para a classe dos senhores, pois permitiria tanto a gratidão do manumitido, como a disciplina dos que podem ser chamados de “manumitentes” ou de “promitentes manumitidos”, aqueles que teriam um aquietamento pela expectativa de serem os próximos contemplados (MENDONÇA, 2008, p. 252-256). Oposto a esses “bons libertos” seriam os escravos libertos pelo Estado já que esses encarariam senhores como inimigos que lhe negavam até então um direito que teve de ser resgatado pela iniciativa externa, da lei. Sobre a oposição a esse segundo grupo, era marcada cronologicamente, como é visto no próximo subtópico. 2.2.1 Cronologia legislativa emancipatória – contra-argumentos escravocratas A interferência jurídica35 era vista como inoportuna e desnecessária, já que, em um prazo próximo, segundo a concepção do grupo escravagista, haveria uma abolição em larga escala, 35 Não se faz uma referência ao Judiciário como um poder específico, já que então as decisões de cunho legal eram tomadas pelo Estado Imperial, mas a uma lei específica ou a um conjunto delas. 36 seja pela morte de toda aquela geração cativa, seja pela soma crescente das iniciativas individuais em se alforriar. Rui Barbosa, assim ironiza: Ninguém, neste país, divinizou jamais a escravidão. Ninguém abertamente a defendeu, qual nos Estados separatistas da União Americana, como pedra angular do edifício social. Ninguém, como ali, anatematizou, na emancipação um atentado perturbador dos desígnios providenciais. Todos são, e têm sido emancipadores, ainda os que embaraçavam a repressão do tráfico, e divisavam nele uma conveniência econômica, ou um mal mais tolerável do que a extinção do comércio negreiro (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62, grifo do autor36). Da mesma forma que não mais se distinguiam abolicionistas e escravocratas, a dicotomia escravidão X liberdade também era tênue. A questão era que mesmo não se desejando a alcunha de escravagista, alguns parlamentares desejavam manter as relações de dependência dos libertos em relação aos senhores, mimetizando a estrutura social escravocrata na dinâmica pós-libertação. A reestruturação legislativa só seria bem aceita se manipulada a favor da manutenção do enrijecimento social: Quando discutiam a melhor forma de encaminhar a emancipação dos escravos [esses parlamentares] pretendiam uma liberdade que não rompesse de forma completa com as relações de escravidão; pretendiam uma liberdade que preservasse muitos dos laços que a escravidão estabelecera entre senhores e escravos. [...] Assim, ao discutirem o processo de abolição pelas medidas encaminhadas ao poder público, aqueles parlamentares não dissociavam, ou muito menos, não opunham escravidão e liberdade. Fosse pela tentativa de fazer prevalecer na situação de liberdade aqueles laços que a escravidão estabelecera entre senhores e escravos, fosse pela tentativa de preservar as relações de escravidão para que a liberdade se introduzisse a passos lentos na sociedade ambos os termos caminhavam comumente de mãos dadas em suas falas e em seus projetos de emancipação (MENDONÇA, 2008, p. 251,252). A emancipação era vista como uma forma de revestir a escravidão de uma nova roupagem que permitisse a demarcação de posições hierárquicas. Neste momento, o texto do Parecer alude às disposições contrárias às leis de 1831 e 1850. Sobre isso, tem-se, em seguida, reportada, por Rui Barbosa, a fala do deputado Cunha Matos investindo contra a Lei de 1831. Para tal parlamentar, esse acordo era, entre outras definições, “prematuro, extemporâneo, 36 Estão sendo considerados grifos do autor aqueles constantes na edição trabalhada. 37 enormemente daninho ao comércio nacional” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62). Mas ele, mesmo assim, não se considerava escravista, de modo algum: “Por modo nenhum”, dizia êle, “me proponho defender a justiça e a eterna conveniência do comércio de escravos para o Império do Brasil: eu não cairia no indesculpável absurdo de sustentar, no dia de hoje e no meio dos sábios de primeira ordem da nação brasileira, uma doutrina que repugna às luzes do século, e que se acha em contradição com os princípios de filantropia geralmente abraçados: o que me proponho é mostrar que ainda não chegou o momento de abandonarmos a importação dos escravos; pois que não obstante ser um mal, é um mal menor do que não os recebermos” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62-3). Mas não somente essa lei levantou opiniões contrárias. O Parecer também discorre sobre as posições acerca de outras dessas medidas legais, trazendo os argumentos contrários à sua promulgação em cada época. Sobre a Lei Rio Branco, que previa a libertação dos nascituros, controversa desde a sua proposta tal qual o Projeto Dantas, dizia-se que preconizava a ruína do país, que insuflaria uma divisão da mesma classe escrava, além de estarem, a partir de então, desfeitos os vínculos hierárquicos. Adicionalmente, essa lei resultaria em desordem social já que incitaria a desobediência dessa classe então dividida (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.66).Temendo os hipotéticos desdobramentos dessa proposta, posicionou-se o Sr. Perdigão Malheiro: Receio que as conseqüências desta proposta sejam piores do que os fatos que determinaram a promulgação da lei de 10 junho de 1835; sinceramente faço os votos mais fervorosos a Deus, para que esteja em êrro; mas esta proposta, se fôr lei, prevejo que há de dar em resultado a insurreição dos escravos, a princípio local ou parcial, para dentro em pouco, tornar-se geral, lastrando como incêndio em campo sêco, como rastilho de pólvora lançando ao pé da mina, que, apenas ateado, fará explosão! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 66, grifos do autor) Mais uma vez o argumento recai para o aspecto não pontual da lei, mas da sua possível repercussão em tempo previsto como breve: da abolição parcial para a abolição geral. Insurgência, desordem social e ruína são elementos mais uma vez evocados. Mas além da repetição desses mesmos argumentos, ainda contra a Lei Rio Branco, o mesmo Sr. Perdigão Malheiro, citado por Rui Barbosa, adverte: 38 A solução da proposta do govêrno, com êsse complexo de medidas absolutas, tende infalivelmente a desorganizar tudo, a precipitar com os mais graves e perigosos inconvenientes a solução, anarquizar o país, e levá-lo ao abismo, a pretexto de emancipação dos escravos, em gravissimo dano dos próprios escravos atuais, e da infeliz geração futura, que será, de fato, escrava! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69, grifo nosso) O jurisconsulto Sr. Malheiro (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69) passa então a prever danos à classe que se pretende salvaguardar pela lei. Há a soma então dos argumentos contra a intervenção legislativa nessa fala: a lei seria então contraproducente tanto no que diz respeito à população geral, que estaria a mercê de insurgências, revoltas, caindo num “abismo” socioeconômico que atrairia a si também a população escrava, a qual sofreria “gravíssimo dano” naquele momento e a longo prazo se constituiria numa “infeliz geração”. Sobre esse “abismo” a ser escavado pela Lei Rio Branco, José de Alencar 37, fornece, entre outros, o seguinte parecer: Quando chegar o dia da execução desta lei, quando surgirem as graves dificuldades, quando começarem as perturbações, que há de produzir esta reforma, quando se desvendar o abismo, que uma ilusão fatal hoje incobre ao gabinete; nessa ocasião S. Ex. há de ouvir, não o eco de além-mar, porém sim a vos severa de seu partido, o grito angustiado de sua pátria, clamando, como a voz do Senhor: “Remember what I want hee” Lembra-te do que te advirto (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69, grifos do autor). É uma previsão das consequências daquela lei que é retratada como de repercussões nefastas inevitáveis e que de tão óbvias, depois de promulgada, evocariam, com certeza, a voz dos que advertiram contra ela. Ele, seguindo a fórmula que se pregava à época, alude ainda à desordem, à revolução iminente a ser causada pela Lei Rio Branco, “mais uma prova de que se pretende provocar a desordem [...] por uma ato de ditadura” – entendida como agitadora, conspiratória, ditatorial e arruinadora do direito de propriedade (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70). Alencar via nessa “liberdade compulsória” uma espoliação dos direitos dos cidadãos, uma perturbação social, um “pretexto” falido de salvação (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70). 37 O fato de ele já ser falecido quando desse resgate de sua fala pode dar margem à suspeição de tal procedimento por Rui Barbosa. No entanto, esse trabalho compreende que a voz de Alencar fora reportada (inclusive com o registro entre parêntesis da manifestação de apoio dos partidários da oposição e em meio à convocação de outras falas de outras figuras políticas, intelectuais, etc.) como forte representação de uma classe escravocrata “moderada”. 39 Alencar que, aliás, indispôs-se à causa escravista concernente a outras iniciativas jurídicas, fez, segundo Rui Barbosa, outra menção contrária à lei, digna de nota. Em suas próprias palavras: Quando a lei do meu país houver falado essa linguagem ímpia (a da emancipação pelo ventre), o filho será para o pai a imagem de uma iniquidade; o pai será para o filho o ferrete da ignomínia; transformarei a família em um antro de discórdia; criareis um aleijão moral, extirpando do coração da escrava esta fibra, que palpita até no coração do bruto, o amor materno! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70) Dando continuidade a estas palavras, há uma extensa citação, em que José de Alencar – que se declarou empenhado em defender não “ùnicamente os interêsses das classes proprietárias”, mas “sobretudo essa raça infeliz [os escravos]” – ao falar da “sinistra” “ideia do ventre livre , até então ainda não formalizada em lei, alude ao que opinaria um “profundo jurisconsulto”, o duque de Broglie, sobre a libertação colônias francesas. Alencar julga que a lei seria de uma imoralidade que afetaria desde o âmbito familiar (pois iniciaria uma espécie de orfandade, deixaria “filhos sem pais”, além de “pais sem filhos”) até a instância econômica (com prejuízo para os proprietários que teriam somente os trabalhadores “relaxados, os péssimos trabalhadores”, já que os melhores, mais jovens seriam libertos): Esta idéia do ventre livre é sinistra, senhores: e admira-me que a ilustre comissão, tendo-a estudado tão profundamente, não se lembrasse das palavras do Duque de Broglie, escritas no memorável relatório, tantas vezes citado que ele apresentou como presidente da comissão nomeada em 1840 para tratar da emancipação dos escravos nas colônias francesas. Para o ilustre publicista e profundo jurisconsulto, a emancipação do ventre equivale a criar famílias híbridas, pais sem filhos, filhos sem pais: rouba toda a esperança aos adultos, condenando-os ao cativeiro perpétuo: desmoraliza o trabalho livre, misturando nas habitações, livres com escravos e garante ao proprietário unicamente os relaxados, os péssimos trabalhadores. [...] Por mim, com a mão na consciência, lhes digo que essa instituição, condenada e repelida, durante três séculos, que te, de existência em nosso país, nunca, nos seus dias mais lúgubres, teve o cortejo de crimes, horrores e cenas escandalosas, que há de produzir esta idéia da libertação do ventre (Apoiados da oposição) Senhores, não defendo aqui unicamente os interesses das classes proprietárias: defendo sobretudo essa raça infeliz que se quer sacrificar.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70) 40 Sob a declarada prioridade de defesa dos interesses da classe escravizada, mas não abdicando do resguardo dos direitos dos senhores, Alencar continua sua fala. Os supostos desconforto social e degradação mútua gerados pela convivência de livres e escravos também são mencionados, os escravos seriam prejudicados pelo desestímulo em conviver com a realidade liberta tão próxima, mas paradoxalmente tão distante de si ao mesmo tempo que os livres, “ao contacto dos vícios que ela [a escravidão] gera”, formariam uma nova geração contaminada. O apelo moral é o que ele evoca: o ventre livre, seria uma ideia, incivil tanto no sentido de bárbara, desumana, por ser obra de “paixões rancorosas” que agiriam “degradando a espécie humana ao nivel bruto”, quanto na acepção de ilegal, segundo esse entendimento, a lei seria utilizada para ou resultaria em fins que se desviavam das regras, ilegais, como agitação pública, violação de direitos constitucionais, como o direito à propriedade.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 71,72.). Houve, recorrendo-se a esse mesmo apelo, uma inversão – ou nas palavras do Sr. Nébias, trazidas por Rui Barbosa, essa lei seria utilizada para propósitos injustos já que “os senhores das escravas, por melhores provas que tenham dado da bondade do seu coração, ficam fora da lei, não merecem proteção alguma” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70). Essas deduções estereotipadas, acrescidas de outras, esses “sofismas do escravismo”, discursos “repetidos e renovados, durante mais de meio século, pelas vozes interessadas na manutenção do trabalho servil” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.14) também foram expressos mais tarde, em 1884, quando do Projeto Dantas, que como a Lei do Ventre Livre, estabelece um critério etário para a abolição: desta vez não só aos nascituros deveria ser aplicada a alforria em larga escala, mas também aos sexagenários. Para desbancar esses sofismas, Rui Barbosa redigiu em 19 dias o parecer sobre esse projeto (do qual ele mesmo fora autor), em 04 de agosto de 1884. As imagens de abolicionismo evocadas fornecem um quadro da mentalidade dos que se opunham ao texto do projeto. Para além da questão moral constantemente mencionada, com base no breve apanhado dos argumentos levantados contra as leis abolicionistas anteriores ao Projeto Dantas, a fim de preservar essas verdades, o grupo escravocrata lançava mão de raciocínios que especulavam, principalmente, sobre: a. Inevitáveis prejuízos econômicos. Caso se implantasse no Brasil a mudança do modo de produção, abandonando a tradição escravocrata, a economia do Brasil não se sustentaria, mesmo que isso se configurasse em uma alteração pontual, como a libertação do segmento no início (nascituros) ou no fim (sexagenários) de sua vida; 41 b. Desordem pública. Revoltas, divisões internas nas camadas sociais entre trabalhadores livres e escravos, divisões familiares, estado de insegurança generalizado, formavam as previsões funestas; c. A pretensa superioridade da qualidade de vida dos escravos quando comparada a dos proletários europeus contemporâneos. Alertavam para uma piora significativa na qualidade de vida dos escravos caso sua condição mudasse para o proletariado, trazendo a ideia forçada da superioridade da vida de um cativo sobre a vida de um proletário europeu; d. A ideia de que se deveria proceder a infindáveis pesquisa de opinião e estudos. Diziam que somente depois dessa coleta seria feita a melhor opção pelo pleito popular e/ou por análises socioeconômicas profundas; e, por fim, e. A crença de que a substituição do trabalho escravo pelo dos colonos europeus seria espontânea e gradativa/ ou ainda que o fim do trabalho escravo se daria via alforrias individuais ou mortandade. Sendo assim, não se deveria fazer nada para interferir precocemente no curso das mudanças sócio-histórico-econômicas que por si já conduziriam para a libertação dos cativos. Nesse sentido, a um antiabolicionista da época, por exemplo, era admitido o esquema de pensamento materializado num excerto como este da petição feita à Câmara em 14 de junho de 1884 pelo Imperial Instituto Bahiano de Agricultura que reunia comerciantes e lavradores: Mais que um bem patrimonial, mais que um elemento da fortuna privada, o escravo é uma instituição social, é um elemento de trabalho, é uma força de produção e da riqueza nacional em fim. A lavoura e o comércio desta província não são escravagistas, como ninguém o é no século em que vivemos. Mas a escravidão tendo entrado em nossos costumes, em nossos hábitos, em toda a nossa vida social e política, acha-se por tal forma a ela vinculada que extingui-la de momento será comprometer a vida nacional, perturbar sua economia interna, lançar esta na indigência, na tenda do crime e no precipício de uma ruína incontrolável (COSTA, 2008, p.82, grifo nosso). Rui Barbosa então teria de dirigir a sua argumentação a um auditório que se autodefinia abolicionista, mas que, diante das medidas legais já promulgadas (as quais garantiam isoladamente modalidades diferentes de alforrias parciais), declaravam entender o Projeto Dantas como desnecessário e abusivo – segundo eles, as medidas anteriores por si só, em um período curto, levariam à abolição total, além de que ao ser observado o excerto acima, a 42 preocupação não era com a manutenção de algo somente compreendido como propriedade privada, mas com a manutenção de um modo de trabalho exitoso, instituído pela tradição e crucial para a estabilidade econômica do Brasil. No entanto, para Rui Barbosa, havia a necessidade de algo mais abrangente, da extensão das alforrias a um outro grupo social, desta vez, aos sexagenários – por meio do Projeto Dantas. Os contra-argumentos de Rui Barbosa no Parecer ao Projeto Dantas abrangem aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos, muitas vezes interfaceados e incidem principalmente na ideia prevista em sua supramencionada conferência, a que afirma que a escravidão brasileira “além de ilegítima, como toda a escravidão, é também ilegal, em virtude da Lei de 07 de novembro de 1831”. Com isso o orador evoca uma ruptura dupla, de implicação mútua: tanto da legitimidade quanto da legalidade do sistema escravocrata. 43 3 ARGUMENTAÇÃO NO PARECER AO PROJETO DANTAS – TOPOI RETÓRICOS E TIPOS ASSOCIADOS “A liberdade é uma restituição, e a indenização perde rapidamente o caráter de um direito” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 105) Assim como seria simplista entender a Abolição da Escravatura como um ato definitivo, suficiente, para a posterior equiparação socioeconômica de afrodescendentes seria equivocado perceber a iniciativa oficial de se abolir a escravatura de modo pontual, ou isolado. Conforme já explicitado na seção anterior, a emancipação generalizada do elemento cativo, admitida em lei, é parte de uma cadeia de projetos abolicionistas, frustrados ou legalizados. Quaisquer que tenham sido os motivos específicos que desembocaram nesse evento de 1888, admite-se que ele não parte de uma ideia individual/principal, seja de uma pessoa ou de um grupo específico, como um grupo de parlamentares; parte de um descontentamento alastrado, seja pelo descompasso entre o modo de produção e a expectativa de lucro, seja pela elevação (mesmo que tardia) de condição humana para aquela classe escravizada, seja por percebê-la como um subterfúgio para a derrocada do sistema político monárquico para o republicano, ou ainda pela luta (mais ou menos organizada, mais ou menos cruenta, mais ou menos exitosa, mas factual), protagonizada pelos próprios negros. Equívoco seria também não entender a importância dessas leis. Mesmo de projetos que não foram legalizados ipsis litteris, como o Projeto Dantas de 1884. Evidente que a extensão de sua aplicação tem se colocado aquém da expectativa de alguns críticos de então ou de determinados estudiosos de agora, ainda mais quando examinados números que relatam a sua aplicação pro forma, mas não se pode desprezar sua importância quer para minar a legitimidade do domínio dos senhores, quer para empoderar os escravos que poderiam recorrer a leis que defendessem seus anseios (MENDONÇA, 2008). Poder-se-ia examinar o texto que elenca os motivos para que o Projeto Dantas se sustentasse de muitas outras formas, tanto pela sua extensão, quanto pelos aspectos por ele tocados. O recorte dessa seção, no entanto, incidirá sobre a dicotomia propriedade X liberdade 44 desenvolvida nos tipos e lugares argumentativos retóricos acessados por Rui Barbosa em diálogo com seus contemporâneos parlamentares/proprietários. Faz-se uma condução dos expedientes argumentativos ruianos mais condicionado pela organicidade do Tratado de Argumentação: a nova retórica de Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca do que pela ordem de apresentação do Parecer ao Projeto Dantas. Enquanto que a seção anterior se ocupa em introduzir a argumentação de Rui Barbosa com pontos da primeira parte do Tratado, Os âmbitos da argumentação, este texto se vale, principalmente, de aspectos da segunda e terceira partes do Tratado: a. com a segunda parte do Tratado de argumentação: a nova retórica, intitulada O ponto de partida da argumentação, será feita uma articulação entre os topoi (os lugares argumentativos) anti e pró Projeto Dantas, uma exposição sobre como o texto do Parecer elenca esses arranjos de certos valores e sua desconstrução/ rearranjo por Rui Barbosa; b. da terceira parte, As técnicas argumentativas, são destacados tipos de argumentos em funcionamento e a ênfase é dada aos i. Argumentos quase-lógicos, que podem se utilizar de “estruturas lógicas – contradição, identidade total ou parcial, transitividade” ou ainda de “relações matemáticas – relação da parte com o todo, do menor com o maior, relação de frequência”(PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.220), por exemplo. Como são menos formais, as relações de preponderância não são fixas. Desses tipos de argumentos, o destaque é dado aos topoi e aos procedimentos de autofagia. Além desses, utilizam-se os ii. Argumentos baseados na estrutura do real que se oporiam a esses que se relacionam com a lógica e a matemática para se utilizar de estruturas que articulam “juízos possíveis e outros que se procura promover” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.298), sendo menos racionais, mais objetivos que aqueles; mais especificamente, das ligações de coexistência, que “relaciona uma essência com suas manifestações” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.333), manobrando a essência do prestígio, como o argumento de autoridade; iii. As ligações que fundamentam a estrutura do real (como o uso de analogias e as argumentações pelo exemplo, pelo modelo e pelo antimodelo) que se ancoram em fatos de conhecimento amplo para instaurar uma regra mais geral. 45 A analogia tem a função de apresentar uma realidade conhecida de modo estruturado, sendo um recurso de presença, na medida em que vivifica na mente do auditor a tese apresentada; e iv. A dissociação das noções que se opõe à solidariedade de técnicas argumentativas, com a abordagem do par aparência-realidade. Esse é um recurso analítico necessário, que consiste em “separar articulações que são, na verdade, parte integrante de um mesmo discurso e constituem uma única argumentação de conjunto”. (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.211). Não é de se estranhar, portanto, que os assuntos do Tratado se tangenciem vez por outra, ou que possam ser percebidos como um continuum não como uma oposição – vide a autofagia e o argumento de autoridade que podem ser reunidos pelo uso do traço de prestígio, seja do raciocínio lógico ou de um elemento social – já que a preferência em seguir a macro-ordem dessa obra não implica necessariamente uma análise engessada pelos limites didáticos de cada parte desse texto. 3.1 DIREITO DE PROPRIEDADE EM QUESTÃO A fim de sedimentar o ponto do não pecúlio aos então proprietários de escravos, Rui Barbosa recorre ao desmantelamento dos pressupostos argumentativos que sustentavam, anos antes, a Lei do Ventre Livre, denominada pelo próprio parlamentar, devido à polêmica gerada, como precursora do Projeto Dantas38: “Bem vê, pois, a Câmara que do escândalo imputado ao projeto Dantas alei de 28 de setembro poderiam bem disputar as honras de mãe [...]”. No parágrafo seguinte, o próprio Rui Barbosa explica qual seria a matriz presente nas discussões sobre essa lei que poderiam ser estendidas ao Projeto Dantas: “A negação do direito de propriedade ao senhor em relação aos escravos transluz diàfanamente por entre o texto da lei de 28 de setembro” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.96). O ponto nevrálgico é a assunção ou não da ideia de propriedade sobre a escrava e também sobre o fruto de seu ventre, direito de propriedade esse posto em questão em momentos posteriores. 38 Mesmo que haja constante recorrência aos argumentos e contra-argumentos mobilizados quando da Lei do Ventre Livre e repetidos na época da defesa do Projeto Dantas, isso não significa que ela seja considerada como uma lei completa, sem falhas. Os seus artigos ainda resguardavam o direito de propriedade por se preocupar com indenização pecuniária, mais rara, ou por serviços prestados – o que daria a efetiva liberdade ao cativo a partir de sua segunda década de vida (21 anos), algo mais fequente. Por isso, na década de 1880, dizia-se que essa lei “respeitou o principio da inviolabilidade do dominio do senhor sobre o escravo” (NABUCO, [1883], 2011, p.68). 46 Tanto para o Projeto Dantas quanto para seu respectivo Parecer, o prisma da contestação do direito de propriedade se justifica da seguinte forma: o caminho escolhido seguirá um fato, uma opinião sedimentada pela tradição, pelos hábitos do povo e jurídicos, ou seja, pelo que é comumente aceito nessas instâncias – recorrendo ao texto da Constituição Imperial (ao direito português e ao brasileiro)39 assim como ao da sua antecessora, a Constituição Romana, e à opinião circulante, esclarecendo questões como a natureza dessa propriedade escrava e da indenização por valores parciais decrescentes. Busca-se por uma veracidade e uma via de assentimento construída pelo tempo, por ele solidificada e por isso amplamente acessada, por ser uma verdade submetida “aos interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121): A questão que se contende entre a indenização e a gratuidade, não é uma questão de direito, mas uma apreciação do interesse público que aconselha se repeite, até onde a ordem geral e a fortuna nacional o exigirem, a boa fé de interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo. É sob este aspecto que encararemos a libertação dos escravos de sessenta anos.” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121) O orador Rui Barbosa parte então do ponto de assentimento compreendido como comum, de aceitação ampla pelo seu auditório imediato, composto por aquela sessão plenária numérica e politicamente representativa da sociedade de então, “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com a sua argumentação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p.22). Ele percebe seus auditores não só como capazes de compreender essa verdade instituída, mas como partícipes, cada membro em diferentes graus, na sua manutenção, já que essa verdade, por ser a opinião da maioria – e possivelmente, de certo modo, a opinião geral, de todos, universal – deve tocá-los. Sobre os fatos e as verdades e sua relação com o auditório, Perelman e Olbrechts-Tyteca, assim expressam-se: 39 Após a Constituição Luso-Brasileira de 1822, válida para o então Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, o Brasil, ao todo, conta com 07 Constituições: a primeira promulgada em 1824, pós-independência de 1822, por D. Pedro I instituiu quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador, predominante) e o voto indireto, não secreto e censitário (por renda); a segunda de 1891 (da qual Rui Barbosa foi revisor, pósproclamação da República, em 1889), trouxe como modificações a queda de instituições da Monarquia, como o Poder Moderador, o Senado Vitalício e o Conselho do estado, estatuindo o Presidente como chefe do Poder Executivo, o voto por idade (homens a partir dos 21 anos), e o limite de um quadriênio para o mandato do Presidente; a terceira e 1934, pós- revolução de 30 e pós- República Velha, contemporânea da ascensão de Getúlio Vargas, regulamentou, dentre outros, os aspectos trabalhistas e incidiu sobre reformas socioeconômicas; a quarta, de 1937, veio em decorrência da implantação do Estado Novo, com um golpe de Estado, era centralizadora, autoritarista; a quinta, de 1946, veio com o fim desse regime; a sexta, de 1967, cuidava principalmente e questões de segurança nacional do regime ditatorial; e a atual, de 1988, pós- Diretas Já! de 1980, com algumas cláusulas irrevogáveis, como as eleições diretas e o voto universal, redemocratizando o Estado. Cf. http://www.brasil.gov.br/sobre/o-brasil/constituicao/constituicoes-anteriores. 47 Entre os objetos de acordo pertencentes ao real distinguiremos, de um lado, os fatos e as verdades, de outro, as presunções. Não seria possível, nem conforme ao nosso propósito dar ao fato uma definição que permita, em todos os tempos e em todos os lugares, classificar este ou aquele dado concreto como sendo um fato. Cumpre-nos, ao contrário, insistir que, na argumentação, a noção de “fato”é caracterizada unicamente pela idéia que se tem de certos gêneros de acordos a respeito de certos dados: os que se referem a uma realidade objetiva e designariam [...] “o que é comum a vários entes pensantes e poderia ser comum a todos”. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p.75). Tal verdade não pode ser, portanto, um fato atemporal e onipresente já que diz respeito ao momento histórico e local imediatos de determinado auditório. Não pode ser ainda uma verdade categórica, única e igualmente assumida para cada membro do auditório, é uma verdade que mesmo e porque assumida com variações de aderência apresenta baixo risco de perca de status de fidedignidade. Por esse caráter quase incontroverso, não se busca adesão ao fato porque ele já é concebido como tal, porque “A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos” (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p.75). E, o empenho em se utilizar do fato como recurso argumentativo imponente, a princípio indiscutível porque é a base do acordo universal, é para que o Projeto Dantas seja adotado – ainda que essa decisão de adesão escape ao orador, cabendo a cada parlamentar ser movido pessoalmente pelo convencimento consentido. 3.2TOPOI RETÓRICOS NO PARECER AO PROJETO DANTAS Perelman e Olbrechts-Tyteca compreendem os lugares-comuns, ou os topoi, como princípios argumentativos, como “ponto de partida das argumentações” (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 105, grifo dos autores) “primeiros acordos no campo do preferível, dos quais todos os outros poderiam ser deduzidos e que eles permitiriam, portanto, justificar”. Sendo assim, o acordo seria efetivado com preferências pessoais, por sua vez alicerçadas por preferências sociais: “Quando um acordo é constatado, podemos presumir que é fundado sobre os lugares mais gerais aceitos pelos interlocutores” (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, [1958] 2005, p. 95,96). Esses lugares, que podem ser entendidos como indicações classificatórias de argumentos, “são premissas de ordem geral utilizadas para reforçar a adesão a certos valores” e hierarquias (ABREU, 1999, p. 85). Quanto à sua classificação, 48 puramente didática e não exaustiva, os lugares-comuns podem ser agrupados como sendo lugares de quantidade e lugares de qualidade. Motivos quantitativos são o principal argumento da primeira classe de lugares, segundo a qual “uma coisa é melhor do que a outra por razões quantitativas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.97); opondo-se a ela e valorizando o único, o raro, o original, o que não pode se repetir, os lugares de qualidade “contestam a virtude do número” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.97). Há ainda exemplos de subclassificações que são alocadas nesses dois tipos, os lugares de ordem, de essência, de pessoa e do existente. Em linhas breves: a) os lugares-comuns de ordem são os que afirmam que uma coisa é melhor do que a outra pela precedência ou pela casualidade; b) os de essência são os que lidam com valores éticos e/ou estéticos, os que materializam melhor um padrão, uma essência, sendo, por essa materialização, portadores de um valor intrínseco; c) já os lugares de pessoa, que se originam dos valores da pessoa, recorrem à argumentação que prima pelas pessoas, pelo humanitarismo, pelo empenho, pelo mérito, pela dignidade e pela autonomia, por exemplo; e d) os do existente, por fim, primam pelo que existe, o real, o concreto, não pelo que não existe, o possível, o utópico. Tais categorias de ideias são mobilizadas em diferentes arranjos de ideias, isto é, em diversas combinações de lugares, por todos os auditores, e não seria diferente com aqueles para os quais Rui Barbosa dirigia a sua argumentação, mesmo sendo alguns deles “abolicionistas” adversários. Caberia a ele lançar mão dos lugares preferidos de seu auditório e é esse o exercício que pode ser observado a seguir. 3.3VALORES E HIERARQUIAS NO PARECER AO PROJETO DANTAS A questão da natureza da propriedade do ventre da escrava serviu de mote para que Rui Barbosa direcionasse a questão da propriedade ao sentido amplo. O raciocínio partia da ideia de que se a propriedade do nascituro poderia ser questionada, sendo esse questionamento um caso particular convertido em realidade jurídica e, com certo alcance, em realidade social, 49 então a propriedade em geral também poderia sofrer a mesma abordagem e obter os mesmos desdobramentos – ou, ao menos, poderia ser encontrado um precedente que validasse o questionamento da natureza da propriedade de um outro caso particular, o dos sexagenários. Para tanto, buscou-se a refutação dos argumentos sustentados pelos não partidários da Lei de 1871 na época de sua proposta (ou por aqueles que só aderiram à lei de modo pro forma). Eles diziam que “o fruto da escrava” equivaleria, em termos de posse, ao fruto de quaisquer fontes econômicas, como gado ou lavoura: Os adversários da lei de 1871 sustentavam então: 1º. Que o fruto da escrava pertence ao senhor pelo mesmo título que os da sua lavoira, ou os do seu gado. 2º. Que a mera possibilidade do nascimento, constitue, para o proprietário da escrava, uma propriedade perfeita. 3º. Que a pretensa indenização da lei de 28 de setembro não indenizou os senhores expropriados (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 90). O nascimento em potencial, em si, já se configuraria como propriedade, supostamente prejudicada pela troca por uma indenização não compensatória prevista em lei (títulos de renda temporária em 600$000 ou trabalho compulsório do ingênuo até os 21 anos). Por esse motivo, era evocado o partus sequitur ventrem como princípio mantenedor da legitimidade dos direitos sobre os nascidos pós-lei emancipatória – e, portanto, asseverativo – que não poderia ser desconsiderado por “razões de transcendência política, ou meramente humanitárias, como o disse o parlamentar Paulino de Sousa: Considerada juridicamente, a injustiça da disposição é atentatória do direito de propriedade [...] A questão não é de direito natural, mas de direito positivo, e à luz dos princípios dêste é que se deve discutir. O que cumpre, pois, averiguar antes de tudo, é se, com relação ao direito de propriedade, a legislação sujeitou esse ser humano, sôbre que ela recaiu, aos mesmos princípios e sistema que em geral se estabelece. O direito de propriedade abrange tudo quanto se contém naquilo que é dele objeto: quer seja o próprio objeto, quer o que dele resulte, e decorra, ainda mesmo como uma possibilidade, ou eventualidade [...] As escravas são propriedade, e propriedade são os filhos que tiverem, como são os que têm tido até hoje, sujeita aos mesmos princípios [...] sejam quais forem as razões de transcendência política, ou meramente humanitárias, que nos levem a extinguir a escravidão, não o podemos, contudo, fazer, sem indenizar os senhores dos valores dos respectivos escravos: como deixaremos de aplicar o mesmo princípio no tocante aos filhos, que 50 nascerem das escravas na constância do cativeiro? Não tem, porventura, o nosso direito reconhecido sempre, como inconclusa, a aplicação às escravas do axioma do direito partus sequitur ventrem? (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.91-93). O partus sequitur ventrem, termo latino que vertido em português seria “o parto segue o ventre” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.132), foi um princípio jurídico utilizado tanto por Paulino de Sousa nesse excerto quanto aos demais opositores à Lei do Ventre Livre para legitimar a extensão do domínio do senhor aos descendentes de suas cativas, numa relação análoga à posse das crias de seu gado, ou aos frutos de sua lavoura. Portanto seria um princípio impeditivo da alteração legal proposta em 1871. Não poderia haver “dois pesos e duas medidas”, o direito de propriedade teria igual funcionamento à tudo aquilo que se entendesse como posse, quer pessoas, quer coisas. Outro parlamentar reportado por Rui Barbosa, Pereira da Silva40, assim ironiza: [...] O nobre ministro da Agricultura levantou uma teoria nova, desconhecida na nossa legislação civil, no nosso direito público, e é que a escrava é uma propriedade sui generis, não igual a qualquer outra propriedade, e que, portanto, não se lhe estende o direito ao futuro fruto, não existente e não criado, e se pode aplicar o princípio de se conceder a liberdade a esse ente não conhecido, sem ofender as regras e doutrinas da propriedade. Onde distinguiriam a Constituição e as leis vigentes essa espécie de propriedade nova? Onde a encontra o nobre ministro, para achar-lhe diferença da mais propriedade? O direito romano, que é o exemplar de tôdas as legislações, suma sabedoria escrita, continha o incontestável preceito do partus ventrem sequitur. Não é propriedade o fruto da árvore, o fruto da terra, a colheita da sementeira?[...] A Constituição só permite a desapropriação mediante a indenização. Vossa proposta nenhuma oferece; porque a soma de 36$0 por ano, e só durante 30 anos, é a paga da criação e da educação do menor até a idade de 8 anos, e tanto que só paga os que chegarem vivos a essa idade. (Apoiados) (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.91-95). Insta, esse parlamentar, para que se aponte a procedência da diferenciação entre a propriedade escrava e a propriedade de qualquer outro tipo para que o direito à indenização escape ao senhorio. A escrava não seria uma propriedade “sui generis”, mas igual a qualquer outra. Não haveria precedência legislativa e por isso mesmo nem lugar apropriado para se tratar desse novo “ente”. Mas não era somente o partus sequitur ventrem o preceito trazido à lembrança. Nos tempos do Projeto Dantas, outro disposto evocado como crítica foi o statuliberi, os cativos jovens, em sua totalidade, com o sancionamento da lei proposta, mudariam seu status de escravos para homens libertos em potencial, já que estariam aguardando a condição de 40 Joaquim Manuel Pereira da Silva. 51 completarem 60 anos para obterem a liberdade, assim como o eram os alvos da Lei do Ventre Livre. Os opositores entendiam o statuliberi assim como o parlamentar Afonso Celso41 cuja transcrição da fala no Parecer assim o define: Decretado que entrarão no pleno gôzo da liberdade todos os escravos, que completarem uma certa idade, qual é a situação dos mais moços, segundo o direito? Já não são escravos, passam a statuliberi, isto é, a homens que adquiriram a liberdade, que já possuem esse direito inauferível, cuja efetividade, entretanto, fica dependendo de uma condição de tempo. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.130). Seriam esses homens, então, a rigor, pela interpretação dos discordantes do Projeto, homens com direito à liberdade na condição escrava, passíveis de determinados direitos antes usufruídos somente pelos cidadãos, escapando ao tratamento dados aos escravos, como as punições com açoites42, a venda e o aluguel. Haveria com isso a violação do direito à propriedade não somente dos escravos que completassem 60 anos, mas de todos os outros, que já não poderiam mais ser encarados como submetidos. Tudo isso ameaçado e fruto de um projeto calcado em transformações que punham em contradição preceitos legais e de motivações humanitárias. Há, com a recorrência tanto ao statuliberi, quanto ao partus sequitur ventrem, uma hierarquização entre valores jurídicos e filantrópicos: a tradição em jurisprudência deveria ser mantida em detrimento de motivações humanitárias ou extraconstitucionais. O auditório, o plenário, então elege, não somente valores independentes – não é a força da Carta Magna escolhida como posição argumentativa isoladamente –, mas sua configuração relacional com o valor amor à humanidade, este ordenado em grau inferior àquele por representar fraca adesão: As hierarquias de valores são, decerto, mais importantes do ponto de vista da estrutura de uma argumentação do que os próprios valores. Com efeito, a maior parte destes são comuns a um grande número de auditórios. O que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite que o modo como os hierarquiza (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.92). 41 Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto (1836/1912), chegou à Câmara aos 28 anos de idade, em 1864e participou do Partido Liberal. De vida política intensa, chegou ao cargo de Conselheiro de Estado. Cf. ATAS DO CONSELHO DE ESTADO PLENO – TERCEIRO CONSELHO DE ESTADO, 18801884. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS11Terceiro_ Conselho_de_Estado_1880-1884.pdf> . Acesso em: 10 de janeiro de 2014. 42 Os açoites só cessaram como punição aos escravos com a Lei 3.310 de 15 de outubro de 1886, que revogou o artigo nº 60 do Código Criminal de 1830 e a Lei nº 4 de 10 de Junho de 1835 e determinou que “Ao réo escravo serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais legislação em vigor para outros quaesquer delinquentes”. 52 Essa organização hierarquizante não é necessariamente fixa, visto que lida com valores individuais, de independência relativa no que concerne à sua adesão, e define a argumentação mais eficaz para determinado auditório. Os valores, mesmo que amplamente admitidos, sofrem uma adesão de intensidades diferentes numa escala de predominância. O poder legítimo, endossado pela lei suprema nacional, que, por sua vez, constitui-se em um elo de uma cadeia de longa tradição jurídica, é acessado por ser de ampla aceitação, a princípio, em detrimento de manifestações de filantropia. Desse modo, para esse auditório visado pelos parlamentares oponentes, os lugares-comuns de essência e de ordem sobrepõemse e sobrepujam o de pessoa: a precedência dos elementos do partus sequitur ventrem e do statuliberi que atravessaram séculos e se mantiveram como componentes/princípios constitucionais no Brasil do séc. XIX (Constituição essa que por si mesma já evoca autenticidade), seriam superiores a qualquer disposição humanitarista condescendente, anulando-a. Os traços de tempo e duração evocam o lugar de quantidade, enquanto que os lugares de estabilidade e segurança indicam qualidade. Esses últimos poderiam ainda ser qualitativamente reunidos como lugar do único: O único é, nesse caso, o que pode servir de norma: esta adquire um valor qualitativo em relação à multiplicidade quantitativa do diverso. Opor-se-à a unicidade da verdade à diversidade das opiniões [...] Esse mesmo lugar serve a Pascal para justificar o valor do costume: “Por que se seguem as antigas leis e as antigas opiniões? Será que são as mais sadias? Não, mas são únicas, e nos estirpam a raiz da diversidade (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, 2005, p.104-105). O único, então, opõe-se e é posto em grau superior ao diverso. Uma opinião de larga aceitação, com estatuto de verdade tem muito mais força argumentativa do que opiniões particulares diversas. O valor imperativo do único, nesse caso, mescla-se com o valor irrefutável de fato, de verdade, já que o único é a norma, o partur sequitur ventrem/ o statuliberi, como metonímia da lei. E o único, nesse caso, também é a essência, que melhor materializa a norma, a legislação. O lugar-comum qualitativo de essência também pode ser evocado como via analítica, já que se superpõe. Pode-se perceber o quantitativo como valoração por elementos de natureza contrária ao qualitativo, mas ao mesmo tempo complementar. Só se pode entender o qualitativo “único” como “norma”, como tradição, pelo seu uso quantitativo, frequente, costumeiro, “normal”: 53 O que se apresenta mais amiúde, o habitual, o normal, é objeto de um dos lugares mais utilizados com mais frequência, a tal ponto que a passagem do que se faz ao que é preciso fazer, do normal à norma, parece, para muitos, ser natural. Apenas o lugar da quantidade autoriza essa assimilação, essa passagem do normal, que expressa uma frequência, um aspecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que tal frequência é favorável e que cumpre conformar-se a ela [...] a apresentação do normal como norma exige, ademais, o uso do lugar da quantidade (PERELMAN e OLBRECHTSTYTECA, 2005, p.99). Percebendo que recorrer somente ao caráter humano dos escravos sexagenários não seria o suficiente para rebater os argumentos dos opositores ao Projeto, Rui Barbosa, no Parecer, faz uso dos mesmos lugares-comuns. Ele reconhece, inicialmente, a incompatibilidade dos valores em jogo e que a escolha de um como subordinante resulta na exclusão do outro, o subordinado (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.94). Contudo, ele admite isso apontando falhas de compreensão do texto legal e estabelecendo comparações com outros dispositivos jurídicos de sociedades também respeitadas. Primeiro, Rui Barbosa parte para a refutação dos motivos de protesto dos senhores: direito de propriedade e valor da indenização. 3.4 VALORES, HIERARQUIAS E TIPOS ARGUMENTATIVOS: QUESTIONAMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE Diferente do que se afirmava, segundo o próprio Rui Barbosa, a Lei de 28 de setembro de 1871 negava o direito de propriedade, já por não denominar assim, como “propriedade”, a posse do senhor43. Sendo assim, os proprietários já iniciavam seu pleito por algo supostamente legal, mas que sequer havia sido textualmente mencionado na lei dentro da concepção alegada, dado que o parecer sobre a proposta de 12 de maio de 1871, apresentado no dia 12 de junho do mesmo ano à Câmara dos Deputados, já definia que propriedade não era uma noção aplicada a pessoas: Varrendo, pois, da mente, essas associações de ideias ad terrorem, já desacreditadas aos olhos do senso comum, investiguemos com a jurisprudência e a história parlamentar, os caracteres que definem, entre nós, a concepção do direito do senhor sôbre o escravo. 43 Isso também não é ponto pacífico. Porém é uma afirmação extraída da fonte. 54 É uma verdadeira propriedade? de que natureza? em que limites? A legislação civil que herdamos da metrópole nunca legitimou a escravidão. Contra o disposto no direito romano ( L. 5, §2, L.24 D de statuhomin e L. 9D de Decur), a Ord. 1, I. IV, t. 82 pr. e o Alv. de 30 de julho de 1608 condenaram o cativeiro, afirmando que o legislador sempre o considerara contrário à natureza. [...] Quanto à Constituição do Império, esta não contém no seu texto uma palavra que pressuponha o cativeiro. Logo, se mais uma vez alude a libertos, parece claro que, longe de estender-se ao futuro, não se referiria senão aos preexistentes. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.98-99, grifos do autor). Admitindo-se que a lei fizesse referência à propriedade, essa não seria à propriedade escrava, já que ela sequer qualificava assim, segundo Barbosa, aquele seguimento social. E mais, foi ressaltado que todo o histórico legislativo negava esse status de propriedade ao elemento escravizado. Havia referência nominal a libertos o que demanda um deslocamento de visão para os então vistos como posse. Já acerca da indenização, Barbosa afastava a de natureza pecuniária e ressaltava que a lei só fazia menção à prestação de serviços por sete anos. Revisitando a legislação civil derivada da metrópole, que, por sua vez, provinha do direito romano (ou seja, fazendo o mesmo trajeto argumentativo que os seus opositores), ele não encontra amparo legal para a escravidão, considerando o cativeiro “contrário à natureza” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, pp.98-99). Nas palavras de Barbosa: Sob o direito romano mesmo não foi senão por uma analogia imperfeita que se estendeu a autoridade do senhor sôbre o escravo, a designação de propriedade, dominium. Nunca a legislação da antiga Roma desconheceu no escravo o homem: a assimilação entre escravo e a coisa circunscrevia-se à subordinação análoga de ambos ao arbítrio do senhor. Havia, porém, relações de família que se respeitavam no cativo; a injúria infligida ao escravo tinha uma repressão penal (L.1§3 de injur.) no actio injuriarum. A possibilidade de emancipação e o direito a uma espécie de patrimônio pessoal no pecúlio distanciavam infinitamente o domínio sôbre as coisas do que se exercia sôbre os homens privados da liberdade (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 102, grifos do autor). Esse disposto, anos antes, havia permitido a emancipação dos indígenas, primeiro pontualmente, no Pará e no Maranhão em 6 de junho de 1755, depois, em geral, em 8 de março de 1758. Assim sendo, os aspectos pleiteados supostamente amparados legalmente, o direito de propriedade e a indenização pecuniária, segundo Rui Barbosa, não encontravam respaldo jurídico tanto que havia o precedente da alforria indígena. 55 Aos que contestavam o caráter constitucional da alforria não indenizada financeiramente foi contestado o caráter constitucional da escravidão. Rui Barbosa recorreu à retorsão, segundo a qual “é preciso uma interpretação do ato pelo qual o adversário se opõe a uma regra” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.232). A retorsão é uma modalidade da autofagia que “opõe [...] uma regra a consequências resultantes do próprio fato de ter sido ela afirmada”(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.231). Mas o procedimento argumentativo não se limitou a tal uso de autofagia em que se provoca a debilidade argumentativa “ao mostrar as incompatibilidades reveladas por uma reflexão sobre condições ou consequências de sua afirmação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.233). Esse é apenas um dos modos de se refutar um argumento quase-lógico: isso poderia ser feito também de outros modos como indicação de contradição ou de fuga “do raciocínio rigoroso” (raciocínio lógico) por se recorrer a aspectos não lógicos, desprestigiados, como os passionais (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.220). Ainda refletindo sobre a Constituição Romana, habitualmente posta como base para a legitimidade do sistema escravocrata de então, Rui Barbosa entende que tal constituição vê o elemento escravo como reificado somente quando se trata de relações hierárquicas, de haver subordinação do escravo para com o senhor. No entanto, o aspecto humano do escravo era preservado, por exemplo, quando se asseguravam, legalmente, suas relações familiares. De acordo com o que sinaliza Antônio Suárez Abreu (2007, p.28), “quando queremos argumentar pela analogia, utilizamos como tese de adesão inicial um fato que tenha uma relação analógica com a tese principal”. O étimo do termo analogia traria seu sentido de proporção, de igualdade de relações, todavia, em vez dessa ideia matemática evocada, o uso da analogia é embasado na relação de semelhança, de identidade entre os elementos de dois pares ou mais. Desse modo, aqueles opositores quando revisitavam o Direito Romano para validar o estatuto social do cativo, viam as seguintes analogias: I. A propriedade do homem sobre o outro homem está para a Constituição brasileira assim como o dominium estava para o Direito Romano. II. A propriedade estava para as pessoas no Direito Romano assim como a propriedade estava para as coisas no Direito Romano. A analogia seria constituída pela correlação de elementos (mais tipicamente quatro) em que dois constituiriam o tema e os dois outros, o foro. O tema e o foro teriam de necessariamente 56 se configurar em relações paralelas, “A está para B assim como C está para D”, sendo o foro o elemento mais conhecido, servindo para esclarecer o tema ou “estribar o raciocínio” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.424). O conjunto A e B, que formaria o tema, seria a propriedade e a Constituição brasileiras ou propriedade sobre pessoas; o conjunto C e D, para dar suporte ao raciocínio, o foro, seria o dominium e o Direito Romano ou propriedade e coisas, assim: Quadro 01 – Analogias no Parecer ao Projeto Dantas ANALOGIAS TEMA A I. propriedade TEMA B FORO C FORO D Constituição dominium Constituição Brasileira II. Romana propriedade sobre Constituição propriedade sobre Constituição pessoas Romana coisas Romana A imperfeição na analogia se dava porque, segundo Barbosa, não eram, mais uma vez, resguardadas as diferenças de submissão ao senhor. O alcance da subordinação era mais restrito quando aplicado a pessoas que, diferente de coisas, tinham “a possibilidade de emancipação e o direito a uma espécie de patrimônio pessoal no pecúlio” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 102). Então já havia diferenciação e não analogia entre a propriedade de pessoas e coisas desde Direito Romano. A formulação da analogia pelos opositores ignorava aspectos que retiravam sua validade. Nesse momento, Barbosa adensa sua argumentação, por não colocar os lugares de ordem e de essência de um lado, o mais forte, e o lugar de pessoa do outro lado, no ponto mais vulnerável. Ele não só não inclui o caráter humanitário como uma prerrogativa da lei, mas expõe que o lugar de pessoa é mais que reforçado pela constituição, original e essencialmente fidedigna: o aspecto humano deveria preceder a qualquer outro. Então o humano, originalmente portador da livre existência, essencialmente senhor da propriedade de si, estava sendo espoliado quando submetido. “Pode-se dizer que uma só, dentre todas as propriedades existentes, ou possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua soberania: é a propriedade do homem sôbre si mesmo” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 103). Sendo assim, por um lado, a liberdade seria restituição de direito intrínseco, propriedade 57 essa tida como acima de qualquer deliberação jurídica; por outro lado, a indenização aos senhores deveria ser repensada já que a propriedade sobre outrem é considerada violação grave da propriedade anterior e superior, a autopropriedade. Quanto ao statuliber, que seria o novo status do anteriormente escravo se enquadrado no texto do Projeto Dantas, condição nova essa que, especulava-se, comprometeria o direito de propriedade de sujeitos que não mais seriam escravos, Rui Barbosa também aponta um equívoco de interpretação. O statuliber era um significante de significados mutáveis conforme a época. Na própria constituição romana, origem de aplicação do termo, o statuliber é qualificado como “o servo, que se acha destinado a ser livre a certo tempo, ou cumprida certa condição (L. 1º. Pr. D. de statulib.)” a ser definida segundo acordo particular entre senhor e servo “não de uma providência geral, instituída em lei” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 130, grifo do autor). A constituição romana não modificava o estatuto de escravo: “Statuliberi a coeteris servis nostris nihilo pene differunt. A tal ponto se estendia essa equiparação, que os filhos da statuliber caíam em cativeiro. Statuliber quidquid peperit, hoc servum heredis est”(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 132, grifo do autor). A percepção do código da Luisiânia, posterior ao romano, sobre o statuliber, determinava que o escravo seria libertado somente após os 30 anos de idade, e o via como um indivíduo, que após liberto, e se incapaz de prover sua própria subsistência, a ser (obrigatoriamente) amparado pelo seu ex-senhor. No Brasil, a legislação, desde 1871, previa a alforria num prazo bem inferior a Luisiânia, e não percebia o fruto do ventre na mesma condição servil de sua progenitora, mas nem por isso era um disposto legal de menor importância, como não o seriam quaisquer outros em comparação com as constituições de/para outros locais e/ou de/para outras épocas44, sendo assim: Por que regra superior de jurisprudência o Digesto [lei romana], a lei da Boa Razão e o código da Luisiânia hão de inibir a autoridade legislativa de criar uma condição nova, em que o escravo, não obstante a promessa legal da liberdade futura, não seja nem o statuliber das instituições romanas, nem o da entidade figurada pelo Sr. Perdigão Malheiro [o homem livre em condição provisória escrava, com direitos de homem livre, em prejuízo da propriedade dos senhores]? Se uma lei hoje lhe afiança essa expectativa de liberdade eventual ou condicional, que constituía o statuliber, mas, ao mesmo tempo, o declarava escravo, não é evidente que sua capacidade 44 Posteriormente, na 2ª. Conferência da Paz em Haia, convocada pelo Czar da Rússia, Rui Barbosa, como representante brasileiro, insistiu nesse princípio de equidade jurídica das nações soberanas, contrário à equivocada percepção de superioridade das grandes potências. Como é sabido, atuação diplomática nessa convenção rendeu-lhe o famoso título “Águia de Haia”. 58 jurídica há de reger-se por essa lei, não pelas antigas que ela implìcitamente alterou?(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 131, grifo do autor). Então não era o caso de a legislação que assegurava os interesses dos senhores ter de ser ignorada, e nem seria o caso de se recorrer a uma compensação que poria em risco, inclusive, o erário público, mas era necessária acurácia nas soluções de polêmicas dessa natureza. O que era convencionado na época, a “tendência emancipatória”, norteia a argumentação juntamente com o texto da lei, tão legítima quanto outros sistemas legais e portadoras de especificidades que atendiam aos reclames locais. Legislação essa que já questionava o direito de propriedade escrava desde quando previa que o valor do escravo poderia ser reduzido à metade, o que abria o precedente para outros fracionamentos, que poderiam ser gradualmente decrescentes até a gratuidade, nesse último caso, afastando totalmente o direito de propriedade (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.101); legislação essa ainda que, como visto, assim como a da Roma Antiga, e divergindo da analogia que aproximava a propriedade escrava da propriedade das lavouras e do gado, distinguia o escravo (humano) e coisa. Mas até o caráter “humano”45 era um valor alvo de controvérsia, mais especificamente, era posto dentro do binômio vulnerabilidade X gratidão. Para José de Alencar, citado por Barbosa, por exemplo, “humanos” eram aqueles que resistiam à liberdade aos sexagenários: nesta luta que infelizmente se travou no país, a civilização, o cristianismo, o culto da liberdade, a verdadeira filantropia estão do nosso lado. [...] Entendeis que libertar é ùnicamente subtrair ao cativeiro, e não vos lembrais de que a liberdade concedida a essas massas brutas é um dom funesto [...] Entre estas duas causas não há quem hesite: a nossa é benéfica, a vossa é fatal; a nossa é santa e cristã, a vossa é cruel e iníqua (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.127, grifo do autor). O mesmo Alencar, quando da Lei do Ventre Livre, lançou similar prognóstico: “Eu, por mim, confesso que estremeço; e, pensando quanto as paixões transformam os homens, prevejo uma hecatombe de inocentes” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.127, grifo do autor). Contrapondo o que qualifica de decaimento moral resultante de um afã emancipatório desenfreado, que buscava alforrias a esmo e inconsequentes, com a sua posição que pode ser vista como de alforria cautelosa, Alencar atrai a si e a seus correligionários os valores de filantropia e cristianismo. 45 O valor humanitarismo não é interpretado como o mote único, mas um valor suplementar de análise. É trazido aqui como um valor trabalhado na fonte e no aporte teórico por isso passível de análise. 59 Não se mostrava então, essa voz representante da oposição (com muitos “apoiados” em sua fala, inclusive), como contrário à liberdade, mas favorável desde que feita em seus supostos melhores interesses dos libertos, fossem eles os nascituros, antes, ou os sexagenários, em questão. Acreditava-se, nas épocas correspondentes de cada proposta legislativa, que a alforria desses segmentos sociais resultaria num despejo incalculado, consequentemente o despreparo os levaria a um estado de miséria e muito possivelmente à morte. Alguns qualificavam a Lei do Ventre Livre, por exemplo, como “lei de Herodes”, fazendo referência ao rei infanticida, que, sentindo-se ameaçado, e caçando Jesus Cristo, mandou assassinar as crianças de dois anos para baixo em Belém segundo o relato bíblico46. Quanto aos escravos, se libertos a partir de 60 anos, poderiam significar um prejuízo aos cofres públicos por já não serem úteis como força de trabalho (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.128). Seria, resumidamente, a iniciativa de alforria legal aos sexagenários, uma atitude desumana. Entretanto, se no caso dos filhos de escravas, a tal “hecatombe” não ocorreu, tampouco os presságios análogos aos sexagenários teriam efeito. Rui Barbosa, por sua vez, via prejuízo “senão aos proprietários cuja dureza de alma não compreenda a necessidade de estabelecer entre o cativo e o senhor liame algum de simpatia humana”. Para ele, o ato de alforriar um cativo que dedicou a vida aos trabalhos cujos frutos foram destinados ao seu senhor era um ato de gratidão. Sobre seu corpo, sobre sua mente, seu ânimo em geral só sobraria somente debilidade após 60 anos, o que inevitavelmente repercutiria em menor produtividade e reclamaria descanso da rotina exploratória. O que se previa não era um desamparo, mas àqueles que pregavam valores cristãos e filantropia em prol desses escravos (aceitando-se a procedência da preocupação real dos senhores para com seus escravos, já que, segundo se dizia, todos eram a favor da abolição), não custaria mantêlos em sua propriedade, dando-lhes asilo em troca de tanto tempo de prestação compulsória de serviços, ou ainda no caso daqueles menos generosos, em troca dos serviços possíveis pelo vigor remanescente. Como revela a ponderação de Barbosa: A providência que libertar os sexagenários não lesa interesses consideráveis da propriedade agrícola. O escravo de sessenta anos entrou numa idade inacessível ao espírito de aventuras, numa fase da vida em que os hábitos dominam quase absolutamente a nossa natureza, e a tranquilidade, sem aspirações mais que a estabilidade dela, fixa o indivíduo até o meio onde até ali lhe correrm os dias. O velho cativo, pela debilidade do corpo enfermo, pela tendência irresistível de costumes inveterados, por laços de família, pelas infinitas relações impalpáveis que afeiçoam a velhice à terra, às coisas, aos homens, em cujo seio os homens lhe declinaram para a prostração que 46 Mateus: 2: 7-10. 60 procede o fim, está prêso à fazenda onde encaneceu. A relativa exiguidade do trabalho que a tibiezada saúde e das forças lhe permite, afasta dele aliciações cobiçosas, que o chamem a condições mais vantajosas de subsistência em casa de patrões mais liberais ou empreendedores. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.125,126). O valor “filantropia”, como subordinante do, mas aliado ao “jurídico”, era o arranjo de ideias da opinião em geral; o modelo de escravagismo, como lucro decorrente de trabalho forçado alheio, já estava se desnaturalizando. Para reforçar isso, paradoxalmente, Rui Barbosa recorreu a Aristóteles para o qual o escravo, não era um estado, uma condição, mas era parte integrante de sua sociedade, mas que, apesar disso, concebia o cativo digno de liberdade pelo trabalho, principal prescrição do Projeto Dantas: “esse direito à emancipação pelo trabalho, esse preço da liberdade satisfeito com perversa usura em sessenta anos de cativeiro, é o que se reconhece no art. 1º do projeto” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.109). 3.4.1 Socialismo, comunismo e retorsão Havia os que tachavam, pelo caráter emancipatório, o Projeto Dantas de ato de “socialismo” ou de “proselitismo comunista” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.110, grifo do autor), e a definição de socialismo assumida então, é a trazida pelo Dizionario dell’Economia de Boccardo: o complexo das utopias e sistemas, que, recusando proceder, nos estudos sociais, pelo método experimental, e sob a lenta, mas segura, guia da observação, forjam um regime econômico e civil da associação humana, em que tudo se renova de cima a baixo, religião, ciência, relações entre homem e homem, direitos e deveres; sistemas e utopias esses, que, supondo não haver leis naturais e imprescritíveis na evolução da humana sociedade, acusam todas as instituições atuais de serem apenas o fruto do arbítrio, da usurpação, do monopólio, e tendem a substituí-las por uma ordem de coisas inteiramente elaborada na mente de seus inventores (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.111). O referido socialismo é concebido então como tentativa de câmbio de sistemas, de questionamento e derrubada de convenções por outras estruturas igualmente arbitrárias porque também convencionadas, mas adicionalmente impróprias, subjetivas e impensadas. O lugar do existente é acionado como preferível: é melhor confiar em instituições, estáveis, do que em ações pessoais isoladas, incipientes, sem base e por isso instáveis. O traço semântico de subjugação do bem/interesse individual ao social que caracterizaria um socialismo “bom”, 61 “positivo”, é suplantado pelo de ascensão de ideias subversivas de uma minoria descontente e despreparada – que de modo leviano intentaria a derrocada de instituições basilares com projetos utópicos, distantes da realidade e de impossível execução. Era uma percepção de socialismo negativado, da qual Rui Barbosa queria afastar a imagem do Projeto Dantas. Nesse esforço de ressignificar o socialismo, rebatendo-o, Barbosa lembra que já havia casos registrados de mudanças legislativas que favorecessem um grupo com a propriedade de algo pelo trabalho que poderiam ser consultados para a realização de um paralelo. Um caso evocado foi o da Inglaterra com o Land Act de 1870 que garantiu o tenant right, ou seja, essa lei garantiu ao camponês da Irlanda que ele tivesse, por uma espécie de usucapião, maiores direitos sobre a terra do que o senhor (tempo de serviços prestados tais que não permitissem uma expropriação sem indenização ao trabalhador rural), o que foi formalizado em copropriedade de um terreno pelo tempo de trabalho nele pelo Land Act de 1881, de Galdstone (BARBOSA, [1884] 1945). Lançando mão, novamente, do argumento por retorsão, Barbosa transfere o traço de “utopia” para o grupo que se empenhava em manter o já questionado sistema escravocrata, afirmando que “utopia é a dos que se empenham em prolongar artificialmente a existência dessa aberração, incomportável em nossos tempos” complementando que “socialistas serão os que, desconhecendo no escravo a individualidade e a liberdade, não vêm, senão a propriedade do senhor” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.112, grifo do autor). Rui Barbosa realiza assim uma inversão no argumento de comunismo/socialismo negativo: seriam então os contrários ao Projeto Dantas esses socialistas, por desprezarem o tradicional e universal direito de liberdade individual pelo de particular propriedade escrava. Rui Barbosa, mais uma vez, mantém o lugar acionado pelos opositores, contudo, fazendo uma análise que resulta em que seus argumentos recaiam contra si mesmos. 62 3.4.2 Sobre a liberdade restrita Sob o título, “Do trabalho”, assim prescreve o Projeto Dantas47: Art. 2º. – O domicílio dos libertos pelo fundo de emancipação considera-se fixado por cinco anos, a contar da data da alforria, no município onde residirem a tempo dela. § 1º. – Excetuam-se: I – Os a quem (por lhes faltar emprego no municipio) se designar ocupação em colônias, ou estabelecimentos públicos ou particulares, noutro municicio [sic], ou província. II – Os que, tendo família noutro lugar, obtiverem desta autoridade a mesma autorização. § 2º. –O liberto que transgredir o seu domicilio legal será policialmente compelido a voltar a êle, e incorrerá nas penas de dois a trinta dias de prisão, com serviço nas obras e estabelecimentos públicos, onde os houver. I – Da primeira transgressão, conhecerá a autoridade policial; cabendo-lhe impor as penas de dois a cinco dias de prisão. II – Nas reincidências julgará o juiz substituto, ou o municipal; sendo a pena de dez a trinta dias, com recurso voluntário para o juiz de direito O regulamento estabelecerá para estes casos um processo sumaríssimo, em que será preparadora a autoridade policial [...] Esse artigo segundo do Projeto Dantas é controverso. Apontava contra ele o fato de se instituir a obrigatoriedade de o sexagenário trabalhar, em domicílio restrito ao de sua alforria, por um quinquênio com salário mínimo estabelecido pelo governo. Excetuando-se situações excepcionais, como ausência de demanda de trabalho no município ou transferência condicionada à autorização judicial para o município de residência da família do liberto, haveria o limite de circulação municipal por 05 anos. Esse disposto era tão coercitivo que previa a pena em cárcere, inicialmente de 02 a 05 dias, a depender do arbitramento da autoridade policial e aumentando-se esse prazo, chegando a 30 dias, nos caso de reincidência. No entanto, pode-se perceber problema, pelo menos, em duas frentes: primeiro, porque o escravo estaria assim, do mesmo modo “à mercê dos grandes proprietários rurais” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.198), restrito em sua liberdade de ir e vir, e, segundo, 47 Excertos do Projeto Dantas na versão original e de conteúdo mantido nas posteriores. Versão trazida como apêndice do Vol 11, tomo 1, FCRB. 63 porque era algo inconstitucional que o estado se intrometesse em um acordo de natureza particular como deveria ser o preço do salário do servo a ser pago pelo senhor. Na defesa desses limites de circulação territorial, Rui Barbosa afirma que seriam “um meio de educar nela [na liberdade], por ela e para ela, uma classe de indivíduos absolutamente despreparada para sua fruição racional e profícua”, já que “Em presença da liberdade, [...] o liberto [...] carece de mão amparadora, que o guie e precate contra as atrações do desconhecido, o gôsto da indolência e o instinto inconsciente de aventuras” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.196).Conclui, Rui Barbosa, diante das intenções declaradamente protetivas ao escravo, e pela comparação com medidas abolicionistas que propunham que o liberto ficasse restrito à propriedade em que sempre trabalhara do Centro Abolicionista da Escola Politécnica, referido por ele como referência no movimento abolicionista: Ora, é conhecido o espírito extremamente abolicionista daquela associação, uma das que têm sobressaido à frente do movimento libertador. Entretanto, a medida que ali se reclama é incomparàvelmente mais restritiva, mais severa do que a admitida no projeto. Em verdade, ampliado ao município, o perímetro de locomoção que se deixa ao liberto na fase inicial da liberdade, não se pode tachar de acanhado. Versa toda a questão em saber se essa restrição prática não importa um elemento de contradição na essência da liberdade, reconhecida aos emancipados. Acreditamos que não. [...] É, portanto, frívola, fútil, grosseira a censura, já enunciada, não sabemos se na imprensa, se em debates parlamentares, de que o projeto condena o liberto a uma espécie de servidão quinquenal. Para lhe descobrir essa mácula, é mister não no ter lido. Tôdas as suas disposições são protetoras da liberdade, ainda quando aparentemente a modificam (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.195,203). O limite de salário mínimo, por sua vez, seria um controle preventivo de abusos por parte dos senhores em relação ao neomanumitido pouco (quase nada) ciente de suas garantias legais, cujos salários poderiam ser estimados em valores que prejudicariam os servos: o projeto nega ao liberto, durante os seus cinco anos de tirocínio na liberdade, o direito de trabalhar gratuitamente, ou por um salário ilusório, em proveito de patrões que lhe explorem a inexperiência, a credulidade ou a fraqueza (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.203). Haveria inclusive, uma instituição legal, “uma entidade administrativa e tutelar, incumbida especialmente de fixar ao salário um limite mínimo, coercitivo para os locatários de serviços, 64 em benefício dos libertos, quando estes, trabalhando por conta própria, ou de outrem, não encontrarem melhores vantagens” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.196), providência legal já tomada pela França em seu processo de abolição, desde 1840, contra prejuízos mútuos entre senhores e libertos, e, principalmente, já prevista na Lei Agrária , no Land Act, de 1881, segundo a qual os rendeiros ou o senhor da terra, poderiam recorrer à comissão agrária contra abusos no valor do aluguel da terra. Esses dois pontos do artigo segundo do Projeto, o da restrição inicial, por cinco anos, de locomoção do liberto e o da previsão de salário são então defendidos por Rui Barbosa como modos de proteção que habilitaria o liberto em “tirocínio”, isto é, em aprendizado inicial, a se acostumar com a vida em liberdade e o protegeria, “da vagabundagem” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 203,194). Com efeito, Rui Barbosa põe esses aspectos do Projeto Dantas em um paralelo com uma situação similar: a condição do liberto, pois, no plano da nossa reforma, será simplesmente, e isso pelo curto período de cinco anos, um símile da que o grande ato de Gladstone instituiu, sem limitação de tempo, como benefício liberalíssimo, como imensa conquista em favor do irlandês livre, na livre Inglaterra. Consiste a diferença apenas em que, num caso, é da locação do trabalho que se cogita; no outro, da locação da terra (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 202). Confirma-se que a escolha desses exemplos e analogias, por Rui Barbosa, para abordar a anulação da propriedade/transferência de propriedade pelo tempo de serviços prestados, bem como fixação de preço de salário não foi fortuita, foi estratégica. Por exemplo, “A Inglaterra não é nenhuma nação de visionários; nem as utopias hostis à propriedade e ao individualismo encontram ali meio propício na índole do povo, ou na influência das tradições” ( BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.116). Em meio aos demais recursos empregados na defesa de sua tese, como contra-argumentos às posturas dos “abolicionistas” adversários, Rui Barbosa retoma o uso do argumento de autoridade, “ o qual utiliza os atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.348) não só nesse caso – quando não só se apoia em um aparato legal, equivalente em credibilidade aos demais mencionados, não só por ser um ato jurídico, mas por ser um precedente constitucional de uma nação de seriedade reconhecida – como também o fez por 65 recorrer à sabedoria aristotélica, representante da erudição clássica, e à própria cadeia constitucional desde Roma, passando por Portugal e vigente no Brasil, cadeia esta vista agora sob a ótica da retorsão. O uso dessas duas técnicas conjuntas é recomendável já que “o mais das vezes, o argumento de autoridade, em vez de constituir a única prova, vem completar uma rica argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.350). Contudo, mesmo com a declarada prerrogativa de salvaguarda dos novos libertos, o Projeto Dantas talvez tenha sido simplista em sua ideia de proteção pelo preço do salário pelo trabalho. E no que diz respeito às condições desse trabalho autônomo ou para outros? E a duração, a carga horária, o que prevenia que ela não fosse abusiva? São questões permitidas, claro, pelo conhecimento de reformas de leis trabalhistas posteriores, mas que podem apontar uma fraqueza no disposto no Projeto. O mesmo se dá quanto à restrição do deslocamento do ex-escravo. É de se admitir que se essa não fosse uma disposição que agradasse os mais conservadores, tal limite de circulação não seria mantido do posterior Projeto Saraiva (1885), reconhecido, até mesmo pelo próprio Rui Barbosa, como uma lei que defendia, antes de tudo o interesse senhorial, algo patente na instituição da alforria do sexagenário condicionada à indenização por prestação de serviços. O liberto, com essa limitação, estava dentro de uma ótica paternalista. A ideia era de um abolicionismo gradual que permitisse a relação de “clientelismo”, “paternalismo” e “liberdade atrelada”. A abolição era garantida, somente quando houvesse um liame de gratidão entre exescravo e ex-senhor, baseado na crença da incapacidade de adequação social desse escravo à vida de liberto e na consequente e necessário resguardo. Por outro lado, o liberto deveria ser grato pela oportunidade que se apresentava como uma concessão benemérita (ainda que tardia) o que, de certa forma, em ambas as crenças, não desfazia os laços hierárquicos, somente reorganizando-os sob a roupagem de proteção (MENDONÇA, 2008). Além do mais, e se não fosse de seu interesse, desejo, necessidade de permanecer no mesmo município onde esteve durante longo tempo de trabalho compulsório, ele seria obrigado a ficar ali? Não se pode esquece que era um indivíduo submetido a condições desumanas, a elas sobrevivente no auge de seus 60 anos, portanto, dificilmente lhe restaria um tempo muito superior de vida livre, após seus 65 anos (se é que chegariam aos 65 anos). 66 3.5 OPOSIÇÃO OSCILANTE: O CASO MURITIBA E OUTROS EXEMPLOS Passando para o exame de focos isolados, Rui Barbosa analisa historicamente a ação do visconde/barão de Muritiba. O então conselheiro do Estado, então contrário veementemente à abolição geral, havia sido, em 1867, portador de uma proposta de lei que tratava da manumissão – não indenizatória – de cativos aos 55 anos de idade. O não cumprimento seria reparado por uma rigorosa multa que incidiria sobre as diárias a retro. Propôs ele como uma questão de “grande interesse”, não como medidas acessórias, “menos prudentes”: Art. 4º. Depois de publicada esta lei, os proprietários de escravos maiores de 55 anos e dos que forem sucessivamente completando esta idade, serão obrigados a libertá-los até seis meses depois, sob pena de proceder-se judicialmente à alforria, e de pagarem os dias de serviço, desde aquêle em que não derem cumprimento à obrigação, e mais uma multa de 20% dos ditos jornais (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.12248). Sendo assim, seria contraditório se no momento em que se tratasse de uma proposta de liberdade aos sexagenários esse mesmo parlamentar levantasse objeções. Isso revelaria uma brusca mudança de pensamento e inexplicável atitude. Mas foi justamente essa ausência de critério do conselheiro Muritiba, “ilustre senador”, que Rui Barbosa pôs em relevo passados dezoito anos da disposição emancipatória inicial. “Assim o que o ilustre senador, àquele tempo, reputava justo prudente e constitucional, é hoje inconstitucional, absurdo e perigoso”. BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.123) “A argumentação pelo exemplo implica – uma vez que a ela se recorre – certo desacordo acerca da regra particular que o exemplo é chamado a fundamentar, mas essa argumentação supõe um acordo prévio sobre a própria possibilidade de uma generalização a partir de casos particulares [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.399) Muritiba seria, ao mesmo tempo, uma excessão à regra da emancipação não pecuniária e um reforço à regra da falta de critérios fixos da oposição. Sendo assim, Rui Barbosa o elegeu, um membro significativo do grupo dos opositores, como exemplo do habitual câmbio injustificado de posições políticas e da geral imaturidade dos contraditores do Projeto Dantas. Alguns desses mesmos objetores, sobre a Lei de 1871, ponderavam na Câmara dos deputados naquele ano: A religião condena toda a injustiça, assim como a humanidade a condena também; e ninguém deixa de ver uma grande injustiça nesta medida. 48 Trabalhos sôbre a extinção da escravatura no Brasil. Rio de janeiro: Tip. Nac. 1868. 67 (Apoiados). Como se condena a perpétuo cativeiro, a geração que já trabalhou, que já sofreu (apoiados), que já concorreu com seus esforços para aumento da nossa fortuna [...] e vamos libertar uma geração que ainda não veio, que ainda não trabalhou, que ainda não sofreu, que ainda nada fez? O que seria preferível, já que quereis cometer um atentado contra o direito de propriedade, garantido em toda plenitude pela Constituição: decretar a ingenuidade dos nascituros, ou libertar, ainda mesmo sem indenização, os velhos escravos, maiores de 65 anos, que tendo já experimentado os horrores do cativeiro, teriam mais direito à vossa benevolência, para, no último quartel da vida, gozarem ao menos do descanso e da paz? Entre os dois alvitres, a escolha não pode razoavelmente ser duvidosa. (Apoiados da minoria) (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.135, grifos do autor). Era uma oposição que apresentava critérios oscilantes conforme à época, o que mina, quando se procede à investigação de seu histórico, sua fidedignidade. Esse grupo era, por isso, entendido por Barbosa como um “antimodelo” , um modo de conduta cuja imitação é desaconselhada: se a referência a um modelo possibilita promover certas condutas, a referência a um contraste, a um antimodelo permite afastar-se delas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.417, grifo do autor). Esse tipo de disposição pessimista não estava circunscrito aos limites geográficos do Brasil. Não era novidade opositores verem com suspeita a iniciativa legal de alforria. Em alguns casos, o desejo de frustrar o sucesso de uma lei emancipatória, quando em vigor, concretizava-se em um ímpeto cruento. 3.5.1 O passado49 em outras nações/colônias Os negros, nos Estados Unidos, resistiram a todo tipo de adversidade, à descrença, à perseguição. Desde a época da proposta da emancipação, passaram, como os negros no Brasil, por previsões de fracasso, como o temor de um ócio generalizado, já que não mais seriam incentivados (forçados) ao trabalho; isso, por sua vez, seria uma das manifestações da decadência moral, por não estarem sob a supervisão e influência supostamente benéficas de 49 Há o reconhecimento de que os processos abolicionistas em cada nação comportam diferenças entre si. A historiadora Professora Dra. Célia Marinho de Azevedo (2003) trata disso em sua tese de doutoramento editada em livro. Fazendo uma comparação entre Brasil e Estados Unidos, por exemplo, ela toca nas diferenças socioculturais, no imaginário sobre o senhor, o escravo e os ex-escravos em cada nação, confrontando o caráter belicoso da emancipação norte-americana e a brasileira, pacífica. Além disso, ressalta a nossa abolição como sendo de natureza hierarquizante e guiada por relações de apadrinhamento. No entanto, este estudo se ocupa das similaridades entre os eventos abolicionistas das nações apontadas pelo Parecer. 68 seus senhores; e, o pior, mortandade em massa, já que eles, não estariam habituados a e nem desejosos de buscar o sustento por si. Nos EUA, a fim de tornar reais esses maus presságios, após promulgada à revelia de seus exsenhores sua emancipação, houve represálias. Como retaliação, houve desde o ataque de seus meios de subsistência (mantimentos sofriam diferenciação de preço), passando pelo êxodo forçado por tal situação aos estados do Norte em 1879, até seu extermínio por chacinas. “Nos armazéns do Plantation Credit System pelas mais baratas qualidades de açúcar mascavo, que os trabalhadores agrícolas, no Norte, pagavam a 8 centésimos, o negro, operário rural do Sul, gravado à razão de 11 e 13 centésimos a libra” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.188). Quanto às mortes, Rui Barbosa relata que de 1866 a 1874, o ódio racista resultou numa soma próxima de 1000 em diversos terrritórios norte-americanos50. Porém, mesmo desabrigados, com custo de vida mais alto e vítimas de assassínio, os libertos cresceram. Demograficamente. Economicamente. Academicamente. Dados os homicídios e agravantes ao sustento e à saúde dos negros, a taxa de mortalidade em 1870 entre brancos e negros não era tão discrepante: 14,74 x 100 habitantes entre brancos e 17,28 x 100 entre negros; e o aumento demográfico da população negra, em uma década (de 1870-1880) foi de 34, 67% contra 29, 20% da população branca. Diversificaram a lavoura a ponto de ela suprir sua própria necessidade de consumo e não mais servir exclusivamente à exportação como à época do cativeiro, obtendo, por exemplo, na lavoura de algodão no Sul, de 3.656,606 fardos no ano de 1861, a um aumento de quase 100% em 1883 com a produção de 6. 959,00 fardos51. Investiram grandes somas financeiras em bancos, chegando, por exemplo, a 53 milhões de dólares depositados nos anos de 1866 a 1873 somente nos Freedmen’s Banks (Bancos de Libertos). Lotaram as escolas dirigidas aos libertos, as Freedmen’s Bureau, com 247.333 alunos, de 1865 a 1870; e com 839. 938 alunos em 1881 distribuídos em diversos níveis acadêmicos52. Poucos recorriam às associações beneficentes, por exemplo, “dentre uma população de 350.000 libertos, na Carolina do Norte, apenas 5.000, em 1865, solicitavam a caridade oficial” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.186). Soergueram-se rapidamente e adequaram-se ao sistema livre, superando as más e até mesmo as boas expectativas. 50 Rui Barbosa valeu-se de dados constantes nas obras de George Willians, History of the negro race in America from 1619 to 1880 (New York, 1883); e deP. Leroy Beaulieu, De la colonisation chez le peuples modernes (2 ª ed. Paris, 1882). Pág. 198-200. 51 Dados extraídos por Barbosa pela Correspondência de New York, no 1º de junho de 1884 ao Jornal do Comércio. 52 Dados levantados por Barbosa a partir do Report of the commissioner of Education for the Year 1881 (Washington, 1883), pág. LXXXVI. 69 Casos de sucesso também já haviam sido registrados nas colônias inglesas contra semelhantes temores então disseminados. Havia a insegurança quanto ao plantio e o futuro da economia agrícola e, por outro lado, a certeza da barbárie generalizada por parte dos povos africanos alforriados nas colônias inglesas antilhanas, por exemplo. No entanto, longe de se efetuar pelas emancipações, a grave decadência econômica já era uma realidade: de 1780 a 1787, estima-se que 15.000 negros morreram de fome causada pela queda da produção de alimentos que forçava a sua importação do Canadá. O mesmo se diz da barbárie, a predileção pelo exíguo plantio de açúcar em detrimento de outros produtos de subsistência levou os produtores à bancarrota, os escravos a sucessivas revoltas, ao abandono de propriedades em ruínas na Jamaica e em São Domingos (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.171-2.). As alforrias, ao contrário do que se dizia, foram as responsáveis por reverter esse quadro. Antígua, Barbada, Jamaica e Santa Luzia apresentaram desenvolvimento econômico-social. Relata-se que “não só medrou grandemente a prosperidade material de cada uma dessas ilhas, senão também, o que ainda mais é, houve progresso nos hábitos industriosos, aperfeiçoamento no sistema religioso e social”. De 2.114 proprietários negros na Jamaica de 1838, passou-se a 7.340, apenas dois anos depois, em 1840. Nesse mesmo ano, a Guiana contava com 15.906 proprietários negros. Isso resultou num redirecionamento da ênfase produtiva: em vez da centralização no cultivo de açúcar, cultivavam-se outros víveres, equilibrando a relação importação-exportação e a economia. Excetua-se nesse quadro, em anos subsequentes, a Jamaica: a má administração, com a terceirização da gestão das propriedades, o ranço da escravidão no regime pós-emancipação, em que se obstruía, a todo custo, o desenvolvimento do liberto, são algumas razões apontadas por Barbosa para esse fracasso pontual jamaicano, contrastante com os casos da Antígua, Maurícia, Barbada, Santa Luzia, Dominica e Trindade (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.174-179). Ao recorrer a esse histórico dos efeitos da abolição em diversos locais pelo mundo, Barbosa argumenta de modos mutuamente implicados: os dados numéricos relativos ao crescimento socioeconômico dos negros norte-americanos mesmo frente à perseguição e descrédito pósemancipação e os outros dados com a mesma repercussão nas colônias inglesas são a recorrência à maior aceitação dos valores quantitativos, o lugar de quantidade é então utilizado: O mais das vezes, o lugar da quantidade constitui uma premissa maior subentendida, mas sem a qual a conclusão não ficaria fundamentada [...] um maior número de bens é preferível a um menor número, o bem que serve ao 70 maior número de fins é preferível ao que só é útil ao mesmo grau, o que é mais duradouro e mais estável é preferível ao que o é menos (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.97). Seguindo o mesmo raciocínio, um maior número de dados sobre certos aspectos da vida dos ex-cativos é preferível a um menor número de ocorrências de confirmação de expectativas negativas, de casos excepcionais. Em contrapartida, tais números revelam que um menor número de expectativas funestas não tem tanto peso quanto um maior número de dados da realidade, podendo-se constatar que: “Quando os lugares da ordem são correlacionados com os da quantidade, o anterior é considerado mais duradouro, mais estável, mais geral” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.110). Então, vê-se o uso do lugar de ordem em que fatos sistemáticos anteriores admitem fatos similares posteriores. Sendo assim, se não podem ser contestados que os números denotam uma bem-sucedida vivência pós-emancipação fora e antes do Brasil, com uma realidade até mais veemente, porque a experiência emancipatória seria frustrada aqui? Contra as expectativas temerosas haviam os já existentes exemplos de outros locais. Melhor, havia a ideia, por parte de Barbosa, de uma ampla aceitação de uma “concepção do existente”, pois “os lugares do existente podem ser relacionados com os lugares da quantidade, vinculados ao duradouro, ao estável, ao habitual, ao normal” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.106, 110). Em resposta ao possível, havia o real presumido como aceito, visto que “a utilização dos lugares do existente pressupõe um acordo sobre a forma do real ao qual são aplicados” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.106). As melhorias constatadas se dão de modo gradativo na linha do tempo. A datação e quantificação aproximadas pela pesquisa de Rui Barbosa de dados numéricos anteriores e posteriores dão prevalência aos últimos: Dentre as sequências, a do tempo que transcorre desempenha um papel muito importante. Os fenômenos aos quais essa sequência serve de guia assumem um aspecto contínuo, homogêneo e, amiúde, também quantificável: duração, crescimento, envelhecimento, esquecimento, aperfeiçoamento podem ser quantificados em função do tempo transcorrido (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.396). Como conjunto, essa remissão à história como modelo também é uma técnica argumentativa. “Um homem, um meio, uma época, serão caracterizados pelos modelos que se propõem e pela 71 maneira pela qual os concebem” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.414). A história naqueles locais serve como modelo de credibilidade às manumissões, como conduta a ser imitada em vista dos excelentes resultados práticos comprovados. O “crescimento” e o “aperfeiçoamento” da população ex-escrava ao longo do tempo na realidade estadunidense e nas colônias inglesas foram sustentados por elementos numéricos contrapondo-se aos maus presságios de seu tempo. Era um fato, uma realidade admitida e tinha muito mais peso do que qualquer especulação não embasada. Em outras palavras: diremos que no par “aparência-realidade”, “aparência constitui o termo I e “realidade” o termo II. [...] O termo II, na medida em que se distingue dele [do termo I] é o resultado de uma dissociação, operada no seio do termo I; não é simplesmente um dado, mas uma construção que determina, quando da dissociação do termo I, uma regra que possibilita hierarquizar-lhe os múltiplos aspectos, qualificando de ilusórios, de errôneos, de aparentes, no sentido desqualificador do termo, aqueles que não são conformes a essa regra fornecida pelo real. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.473, grifos dos autores.) Em vista do exposto, o real, o fato construído pelo orador Rui Barbosa pelo levantamento de datas e de dados em números do passado em relação ao seu presente, seria um modelo calcado na distinção da antimodelar aparência das especulações de seu tempo, essas hierarquicamente inferiores por serem ilusórias, aparentes, portanto errôneas. 3.6 A AÇÃO DO ORADOR RUI BARBOSA A fim de alcançar de modo completo a ação argumentativa, para a Retórica, faz-se necessária a mobilização da tríade argumentativa: logos-pathos-ethos. Rui Barbosa então não só apresentou as razões, com o recurso à jurisprudência, examinando diacronicamente a cadeia legislativa em torno do mesmo eixo “abolição”, utilizando, como justificativa o valor de verdade, de fato, que uma lei carrega, mas aliado a isso recorreu ao pathos, com o valor “humanitarismo” e valeu-se de seu ethos para aquele círculo de auditores, de sua imagem de abolicionista sedimentada pelo seu discurso. De um modo geral, Rui Barbosa recorreu a comparações em “uma forma típica [...] aquela que menciona a perda não sofrida para apreciar as vantagens de uma solução adotada” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.278) As soluções adotadas, os casos 72 de êxito legislativo davam conta de perdas não sofridas, o que reforçava a hipótese de resultado similar no Brasil se também se sancionasse o Projeto Dantas, com os seus principais termos, em lei. O orador Rui Barbosa lança mão, concomitantemente, de alguns tipos argumentativos como os de retorsão, autoridade, pelo exemplo, pelo modelo, pelo antimodelo e por analogia e dos topoi do existente/ordem, já que exemplos concretos – nacionais ou não, contemporâneos ou não – de sucesso de aplicação legislativa abolicionista mais valiam do que fracassos cogitados, por serem entendidos como princípios, bases anteriores de fidedignidade, o real prevalece sobre o aparente; os lugares de pessoa e essência também foram acessados quando Barbosa alerta que o então escravo deveria ser valorado como essencialmente humano, portanto essencialmente livre. A noção de propriedade se perde até mesmo pela não indenização. O locutor Rui Barbosa, um outro prisma de análise de sua figura abolicionista, é observado na próxima seção segunda a visão da Argumentação na Língua (ANL). 73 4 PARECER AO PROJETO DANTAS: ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA “Toda fala, tenha ela ou não objetivos persuasivos, faz necessariamente alusão a argumentações” (DUCROT, 2003) A Semântica Estrutural é vista, nesta seção, como o desdobramento dos estudos que se iniciaram com a Teoria Polifônica da Enunciação, ou seja, a problematização da pressuposta “unicidade do sujeito falante” em que para cada enunciado haveria um único autor, derivada dos estudos literários de Mikhail Bakhtin. Para esse teórico russo, certos textos comportam várias vozes, as quais se expressam de modo simultâneo e sem uma relação de hierarquia entre si. Essas vozes seriam, em linhas breves, as diversas máscaras apropriadas pelo autor. Essa teoria, elaborada por Oswald Ducrot, em aliança com Jean Claude Anscombre, integra uma outra visão de argumentação, podendo ser denominada de Semântica Argumentativa, Semântica da Enunciação ou ainda a designação adotada nesse trabalho, a Argumentação na Língua – ANL. O campo de identificação com a ANL é a Pragmática Semântica (ou Pragmática Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação quando se fala, mas o que a própria língua (inicialmente vista pela dinâmica de seus enunciados) pode fazer. Ducrot insere-se assim numa lacuna que, segundo sua ótica, foi deixada por Bakhtin, o qual não teria estendido a polifonia a enunciados individuais, mas só a textos (DUCROT, [1969]1987, p.161): Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi aplicada a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais a enunciados de que estes textos são constituídos. De modo que ela não chegou a colocar em dúvida o postulado segundo o qual o enunciado isolado faz ouvir uma única voz. É justamente a este postulado que eu gostaria de me dedicar [...] Oswald Ducrot mantém ainda traços de afinidade com o precursor da linguística moderna, Ferdinand de Saussure – a sua delimitação do objeto intralinguístico e sistêmico é o mais patente. Além disso, o transporte e a restrição do entendimento de situação para o contexto enunciativo, ou seja, a atenção somente para aquilo que a língua registra como situação o coloca 74 na esteira de Émile Benveniste de quem conservou (mesmo só o admitindo como aporte enquanto legado para os filósofos ingleses53), certos caminhos teóricos para a enunciação. Ducrot faz assim uma descrição semântica de base estruturalista (CARNEIRO, 2008). A partir de tal percepção, Ducrot e Jean Claude Anscombre inauguram um prisma de análise dentro dos estudos da Argumentação que progride em três fases, a Forma Standard (com a publicação de L´argumentation dans la langue (1983)), a da Teoria dos Topoi Argumentativos (incluídas inicialmente numa reedição de L´argumentation dans la langue (1984) e revisitadas em trabalhos posteriores) e o atual estado, contando com as contribuições de sua colaboradora Marion Carel, a Teoria dos Blocos Semânticos54 (DUCROT,2003; SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F., 2013). O exame da organização argumentativa do discurso abolicionista de Rui Barbosa é submetido, nesta análise, ao arcabouço teórico da ANL, por aquilo que é trazido pela língua, por meio dos blocos semânticos. Previamente, porém, faz-se necessário visitar as suas ideias de base, como “locutor”, “enunciador”, “posto” e “pressuposto”, “frase e enunciado”. Isso porque, em se tratando de teorias da argumentação, pode-se pensar, entre outros caminhos, não somente na Nova Retórica, mas também na Argumentação na Língua. A língua é estudada então enquanto portadora de uma argumentatividade, ao mesmo tempo, dependente de fatores extrínsecos com os tipos e topoi retóricos (conforme abordado na seção anterior) e autossuficiente, com a abordagem da ANL, em especial com os blocos semânticos. 4.1 ARGUMENTAÇÃOSEGUNDO DUCROT: IDEIAS DE BASE A princípio, Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre, em sua Teoria da Argumentação na Língua, partiram para a reformulação do que eles denominam de conceito tradicional de argumentação: as conclusões de uma frase, segundo a argumentação tradicional seriam extraídas de situações discursivas e obtidas por leis psicológicas, lógicas, retóricas e sociológicas. Então a 53 Cf. XAVIER, Antônio Carlos. Trajetória e legado de um filósofo da linguagem: Oswald Ducrot. Revista Investigações - Vol. 25, nº 2, Julho/2012. 54 Ainda quanto à nomenclatura, há um câmbio de uso que permite, por um lado, a definição de ANL para as duas primeiras etapas da teoria e de Teoria dos Blocos Semânticos para a corrente; por outro lado, é considerada nesse trabalho a admissão dos próprios estudiosos de que as fases se constituem não só de abandonos, mas também de permanências/alterações teóricas e a ideia de argumentação na língua é uma delas. Por isso a ANL será a designação geral, das três etapas da teoria. 75 argumentação era, até esse momento, vista como dependente do contexto extralinguístico. Eles, em vez disso, redirecionaram a argumentação para o âmbito intralinguístico, para a formação de um conjunto de conclusões prováveis para uma mesma frase. Essa noção de argumentação posteriormente sofreu nova alteração, só compreendida como a consequência da escolha dos topoi argumentativos que podem ser entendidos como uma verdade cristalizada, um lugar comum, um sistema discursivo que caracterizaria determinado tipo de argumento. Logo depois, a argumentação passou a ser vista como integrante de termos da língua, não só enunciados, mas também do léxico, já que a atenção se volta para os enunciadores, para o discurso doador de sentido (DUCROT, 2002). Na voz do próprio Ducrot: “Enquanto lingüista semanticista, devo atribuir a cada frase constitutiva duma língua uma significação suscetível de explicar os sentidos de seus enunciados no discurso” (DUCROT, [1977] 1989, p.18). Sendo assim, um enunciado – ou um conjunto de enunciados – permitiria que se chegasse a outros enunciados, a conclusões em série. Antes, porém, de detalhar o pensamento teórico ducrotiano, faz-se necessário reportar certas noções basilares. 4.1.1 “Enunciado” e “frase” O enunciado é entendido como um fragmento do discurso, a frase no contexto de uso. Seria o efeito causado pelo processo de enunciação, isto é, sua ação hic et nunc. É um conceito que se difere do de frase quando se pensa que a produção desta se dá para fins teóricos, a frase seria uma construção gramatical numa determinada língua, gramatical no sentido de inteligível, que portaria uma estrutura com um sintagma nominal e/ou um sintagma verbal. Uma frase, por sua natureza gramatical, possui as pistas linguísticas, isto é, instruções, direções, para a interpretação de seus enunciados, entendidos como fragmentos de discurso. Segundo esse entendimento, a frase seria o suporte linguístico portador de significação que dá sentido ao enunciado – sendo que a distinção entre sentido e significação não é gradativa, não seria a significação parte integrante do sentido mais completo, mas sim uma distinção da natureza da significação, norteadora, da natureza do sentido, passível de decodificação pela significação. 76 As frases “indicam ao intérprete do enunciado que ele deve constituir, e atribuir ao locutor (fundamentando-se no que ele conhece da situação de discurso), uma estratégia argumentativa determinada” (DUCROT, [1977] 1989, p.14). A frase, a depender de seu contexto de uso, de sua enunciação, pode resultar em diferentes enunciados. O contexto de uso é um contexto de limites linguísticos. Submete-se àquele momento da enunciação, numa operação que inverte a preocupação funcionalista em se submeter a análise de expressões linguísticas às regras do sistema de interação verbal, os padrões pragmáticos: é o estudo da dinâmica enunciativa patente na língua para a ANL. Estruturalmente falando, enquanto o enunciado seria o correspondente da parole saussuriana, a frase seria análoga à langue. 4.1.2 “Locutor” e “enunciador” A distinção das figuras ducrotianas do locutor e do enunciador também se relaciona com os níveis de significação frase e enunciado. O próprio enunciado pode indicar, em seu próprio sentido, o autor da enunciação. O primeiro, o locutor, é concebido como aquele ao qual se pode atribuir responsabilidade pela enunciação (produção momentânea de um enunciado por um sujeito falante), e é designado pelo pronome de primeira pessoa (P1) do singular “eu” e pelas demais marcas de P1. Ressalte-se que locutor e autor não são conceitos cambiáveis, já que há a possibilidade de eles se referirem a papéis distintos: Denomino “locutor de um enunciado” ao autor que ele atribui a sua enunciação. No momento em que se admite que o enunciado mostra (diz2) em que consiste sua enunciação, ele pode fazê-lo, entre outras coisas, apresentando-a como obra de alguém que se considera ter pronunciado as palavras de que ele se compõe. Este autor pretendido da enunciação é o ser a quem fazem referência o eu e as marcas de primeira pessoa (salvo no discurso relatado em discurso direto). Muitas vezes (sobretudo na conversação oral), mas nem sempre, ele pode ser identificado pelo falante, isto é, com a pessoa que, “efetivamente”, produz o enunciado (DUCROT, [1969]1987, p.142, grifos do autor). 77 Ducrot exemplifica isso com uma hipotética circular escolar em que haveria a seguinte fórmula: “Eu, abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a [...] Assinado...” em que o “eu” não se refere ao autor empírico do texto, dificilmente identificável neste caso, já que poderia ser “o diretor da escola, sua secretária, ou a secretaria da educação” (DUCROT, [1969]1987, p.182). No Parecer ao Projeto Dantas, portanto, a figura que corresponde ao locutor ducrotiano é Rui Barbosa. O segundo, o enunciador, por sua vez, é sujeito da enunciação sem que a ele sejam atribuídas as palavras exatas. Aparece no enunciado mediante seu ponto de vista que pode se contrapor com a aparição de outro/ outros, ou apresentar afinidade entre si ou em relação às ideias do próprio locutor; a polifonia se dá, justamente, por essa multiplicidade de vozes no enunciado (DUCROT, [1969]1987, [1977]1989). Com isso, Ducrot atenta contra a unicidade do sujeito: Do locutor eu quero distinguir os enunciadores. Acabo de dizer que a enunciação – tal como a apresenta o enunciado – aparece como a realização de diversos atos, por exemplo, atos ilocutórios (asseverar, prometer, etc.). Chamo “enunciadores” às personagens que são apresentadas pelo enunciado como autores desses atos. [...] Todo o paradoxo – que denomino conforme a expressão de Bakhtin “polifonia” – prende-se ao fato de que os enunciadores não se confundem automaticamente com o locutor. Se um enunciado é assimilado ao locutor isto se dá em virtude de uma identificação particular, e a identificação pode do mesmo modo assimilar tal ou qual enunciador com outras personagens que não o locutor, por exemplo, com o alocutário (DUCROT, [1969]1987, p.142, grifos do autor). O sujeito percebido por Ducrot é, no entanto, tripartite. Um terceiro elemento, secundário por não ser inserido nas análises ducrotianas, mas cujo conceito pode ajudar na melhor identificação desses dois primeiros, é o sujeito empírico. Locutor e enunciador passam a ser a mesma entidade em determinado aspecto, quando se extrapola a organização do enunciado (o “eu” enunciativo) e se passa a considerar a ótica, o ponto de vista. Mesmo resguardadas as diferenças conceituais, outro momento de toque entre esses dois elementos é que tanto locutor quanto enunciador estão atrelados ao enunciado. Com o sujeito empírico é diferente. Ele diz respeito ao extralinguístico, ao sujeito no mundo real, numa materialidade distinta da linguística. O sujeito ducrotiano, ao invés disso, é linguístico. Para a construção de sentido em qualquer texto, portanto também no Parecer, esses dois papéis relevados são importantes já que o sentido do enunciado é descrito, conforme a 78 perspectiva da ANL pela análise do embate dos pontos de vista dos enunciadores postos em cena pela organização linguística do locutor e pela constatação do prisma assumido por tal, seja ele de confronto ou assentimento mais explícito ou implícito. 4.1.3 “Pressuposto” e “subentendido” A distinção entre frase e enunciado, depreende, em adição, outra, a existente entre pressuposto e subentendido (DUCROT, [1969]1987). Ducrot ocupa-se da análise dos “efeitos de sentido”, possivelmente derivados de dados que o linguista dispõe – as múltiplas ocorrências do enunciado. Não se concentra no componente retórico e intenta sistematizar o componente linguístico, a fim de fazer uma descrição semântica. Deriva, com isso, dois tipos de “efeito de sentido”, o pressuposto e o subentendido, diferenciados dentro do campo dos implícitos: o pressuposto seria um fato inscrito na língua, que resistiria às transformações linguísticas, não seria afetado pela transformação de uma frase declarativa em pergunta ou subordinação. Ducrot ([1969]1987, p.33) esclarece ainda que “o pressuposto pertence antes de tudo à frase: ele é transmitido da frase ao enunciado na medida em que esse deixa entender que estão satisfeitas as condições de emprego da frase do qual ele é a realização”. O subentendido, por sua vez, já traria o componente retórico, não permaneceria quando da transformação linguística e seria ausente do enunciado, pertencendo ao contexto extralinguístico. O raciocínio do ouvinte que subentende faz, segundo Ducrot ([1969]1987, p.22), esta formulação: “Se alguém julga que é adequado dizer-me isto, é, sem dúvida, porque pensa aquilo”, haveria algo a mais a ser colocado em seu enunciado “[O ouvinte] supõe, de alguma forma, que o locutor observa, na escolha de seu enunciado, uma lei da economia”. Ou seja “para que um enunciado E subentenda X, X deve aparecer como uma explicação de sua enunciação. Se, no meu exemplo de referência, Pedro parou de fumar subentende É possível parar é porque admite que uma das razões para produzir o enunciado era comunicar isso ao destinatário”. Sendo assim, o subentendido só pode aparecer no momento da enunciação (já que é a resposta sobre as perguntas das condições de possibilidade da enunciação: “Por que o locutor disse o 79 que disse?” “O que tornou possível sua fala?”) e depende do próprio enunciado: pertence ao sentido [enunciado] sem estar prefigurado ou antecipado na significação [frase]’. É um evento interpretativo não marcado na frase. A diferenciação entre pressuposto e subentendido então está diretamente e respectivamente relacionada a seu nível de significação: frase e enunciado (DUCROT, [1969]1987, p.32). 4.2 ARGUMENTAÇÃO “TRADICIONAL” E ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA A ANL é desenvolvida por Ducrot da seguinte forma, primeiro, contrapõe-se a argumentação tradicional à argumentação linguística; entendida essa distinção, passa-se à exploração não de enunciados, mas de elementos mais específicos, os operadores argumentativos (O. A.); seguindo-se a isso, há uma problematização que conduz à noção de topoi argumentativos e a sua elaboração nas chamadas formas tópicas, e, por fim, a negação dos topoi e a manutenção da teoria polifônica da enunciação pela teoria dos blocos semânticos. Para Ducrot, as argumentações retórica e linguística são abordagens distintas. A argumentação retórica é concisamente definida por ele como “a atividade verbal que objetiva fazer com que alguém acredite em alguma coisa”. A crítica a essa teoria assenta-se em duas supostas lacunas em sua elaboração: primeiro, haveria situações não de convencimento ou persuasão consensuais (tidos na leitura ducrotiana da argumentação retórica como fruto da aceitação mental do interlocutor), ou seja, situações de coação/coerção/manipulação; segundo, o fato de ela se limitar à ação da palavra, sendo que há outras formas, simbólicas ou não, de se convencer/persuadir55 (DUCROT, 2003). 55 São, de fato, abordagens diferentes (embora sob o mesmo rótulo de “Argumentação”) se forem percebidos os objetos e os desdobramentos, a cadeia teórica particular de cada teoria. No entanto, ressalve-se que a análise dos estudos retóricos perelmianos permite que se fale em distinção entre persuasão (aceitação pelas ações) e convencimento (aceitação mental), como processos autônomos e, portanto, podendo ocorrer de modo independente: persuasão sem convencimento e convencimento sem persuasão. Além disso, foram recortes teóricos as escolhas em se centrar no convencimento/persuasão consentidos, não em situações de manipulação, por exemplo, bem como na abrangência ao texto verbal, o que não impediu que estudos posteriores pudessem trabalhar essas mesmas noções, aliadas a outras teorias, em elementos pictóricos ou imagéticos. O próprio Ducrot fez a escolha de relevar aspectos linguísticos em detrimento dos extralinguísticos em sua teoria. Com isso, o que se busca expressar com este estudo não é a hierarquização das teorias argumentativas, mas uma mostra de seu funcionamento complementar e por vezes com pontos de tangência, já que ambas falam de discurso com conteúdo argumentativo, de modo que o fenômeno “Argumentação” seja visto de maneira menos parcial (nas acepções de menos completo e com menos favorecimento de uma ou outra teoria). 80 Conforme Ducrot, a argumentação tradicional é concebida como a produção, por um orador (“sujeito falante”), de um enunciado A como justificativa de um enunciado C, diferente, numa trajetória bifurcada em 1) enunciado-argumento A indica fato F (que pode, independente da intenção de se concluir C, ser verdadeiro ou falso, comprovado ou refutado) e 2) admissão, por parte do orador, do valor de verdade da conclusão C implicada pelo fato F, assim: Esquema 01 – Reprodução do esquema de argumentação tradicional Ducrot [1977] 1989, p.17 São os conectivos que indicam a conclusão: ““A logo C” ou do tipo “C já que A” (o argumento A designa o fato). A argumentação não é protagonizada pela língua também no segundo movimento, do fato à conclusão, para o qual são mobilizados “a situação de discurso e princípios lógicos, psicológicos, retóricos e sociológicos...” (DUCROT [1977] 1989, p.17). Em outras palavras, para a argumentação retórica, concorreriam argumento e conclusão no texto, sendo que o argumento indicaria o fato e a conclusão seria obtida a partir do fato, do extralinguístico. No entanto, Ducrot aponta para situações em que uma mesma frase ou frases idênticas que designam o mesmo fato caracterizam argumentos distintos ou até mesmo opostos. Pela sistematicidade desses casos, é que ele chega à conclusão geral56 de que a argumentatividade é dada pela significação da frase, pela língua. A frase indicaria os modos de argumentação, 56 Ele diz que determinadas frases têm essa direção argumentativa, mas disse ““certas” por prudência: na verdade queria dizer “todas”” (DUCROT, [1977] 1989, p.18), mas o alcance de seus estudos até então não o permitiam. 81 permitindo certos sentidos57 nos enunciados. Portanto, Ducrot elege não a argumentação obtida indiretamente pelo “esforço verbal”, mas a ANL, a argumentação “pelo seu meio direto” (DUCROT, 2003). A língua passa a ser vista como autossuficiente em termos argumentativos segundo essa nova abordagem ducrotiana. A argumentação estaria na frase e não nos fatos (ou nas situações e princípios deles decorrentes e de igual caráter extralinguístico) por ela veiculados, no mundo externo do qual a língua seria só uma referência. Nesse sentido, a argumentação seria uma atividade estruturante do discurso, pois é ela que marca as possibilidades de sua construção e lhe assegura a continuidade. É ela a responsável pelos encadeamentos discursivos, articulando entre si enunciados ou parágrafos, de modo a transformá-los em texto: a progressão do discurso se faz, exatamente, através das articulações da argumentação (KOCH, 2002, p. 159). De um elemento constituinte da língua, segundo a ótica retórica, a argumentação passa a estruturante, constituinte basal, pilar da língua: tanto no que concerne ao sistema quanto à sua progressão discursiva, com dispositivos próprios que garantem a sua continuidade em parágrafos, em sua manifestação gráfica ou em turnos enunciativos, conversacionais, para a formação de texto oral. Elementos esses então de caráter linguístico-argumentativo. 4. 3 O ATO ARGUMENTATIVO DA LINGUAGEM Quanto ao ato da argumentação, este pode ser estudado mediante os estudos ducrotianos dos atos da linguagem, mais especificamente do ato ilocucional, realizando-se no e por um enunciado, mais especificamente naqueles enunciados construídos por um argumento A e uma conclusão C relacionados por proposições sequenciadas, como na relação entre parágrafos (A então C/ A portanto C), fugindo da comum interpretação de A como validação ou justificativa de C. Os atos da linguagem de Austin58 formariam, didaticamente, uma tríade composta do ato locucional (o ato de produzir um enunciado gramatical, com sentido e referência, o ato de 57 Pelo exposto, o sentido é a ótica do enunciador no enunciado com determinado valor argumentativo. 82 dizer algo), o ilocucional (língua utilizada com finalidades determinadas, é o ato que faz algo, produz a força da enunciação) e o perlocucional (o efeito do enunciado no interlocutor) (CABRAL, 2010). Sendo assim, o ato de argumentar estaria ligado à Pragmática59 vista sob dois aspectos distintos [...] o primeiro deles, refere-se ao caráter eminentemente atuacional de cada um deles, já que evidenciam o sentido ativo de cada locutor em relação ao ouvinte; o segundo aspecto refere-se a sua complementaridade necessária, à medida que cada um deles se revela (pensada sua natureza pragmática) como incompleto para a obtenção de um efeito de sentido no ouvinte (OSAKABE, 1979, p.97). Todo enunciado seria “objeto de um ato de argumentar” que seria inscrito em seu sentido, ato esse que traria a hierarquização do locutor em relação à qualidade de determinado elemento. Essa qualidade, colocada numa escala, determinaria as conclusões que do enunciado podem ser derivadas. Por exemplo, a qualidade Q atribuída a alguém, de ser quase vencedor produz conclusões como não venceu, nunca se esforça para vencer, conclusões de natureza linguística ou discursiva (CABRAL, 2010). A qualidade não é confundida com as conclusões que dela podem ser depreendidas, e é com base nessa qualidade que se pode falar das noções de superioridade e oposição argumentativa: A noção de superioridade argumentativa estabelece que uma frase f2 é argumentativamente superior a outra f1 se, em qualquer situação em que o locutor considera um enunciado E1 de f1 como sendo um argumento utilizável para uma determinada conclusão, ele também considera o enunciado E2 de f2 como sendo um argumento utilizável para a mesma conclusão, mas não o inverso (CABRAL, 2010, p.46, grifos da autora). Então, para exemplificar, Cabral (2010) diz que na hipótese de serem atribuídas as qualidades “tanque cheio” e “tanque quase cheio” a um carro, sabe-se que se a argumentação se volta para a distância a ser percorrida. Da qualidade Q = “nível de plenitude do tanque”, tem-se em 58 Teoria apresentada inicialmente em sua obra: AUSTIN J. L. (1962). How to do things with words. Oxford. Tradução: Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Porto Alegre: ARTMED, 1990. 59 Não obstante Oswald Ducrot, em entrevista recente a Antônio Carlos Xavier tenha alegado a tentativa de combinar Saussure e Austin, ele diz o seguinte sobre a influência da Pragmática em seus trabalhos: Parece-me que há uma Semântica que pode ser desenvolvida no interior da própria língua sem implicar considerações relativas à necessidade de ações dos homens, isto se entendermos por Pragmática o estudo das ações humanas com todos os seus componentes psicológicos e sociais. Mas defendo que há uma Semântica independente da Pragmática. Minha mulher (Marion Carel), diz que minha Semântica é um pouco do tipo Pragmática, porque eu utilizo noções de atos, de discurso que são noções do tipo pragmático. Porém, se tomarmos por Pragmática o estudo geral das ações humanas, eu sei que me situo fora (da Pragmática).” (XAVIER, 2012) 83 “tanque cheio” um argumento superior ao segundo. A oposição argumentativa pode ser assim esquematizada: A noção de oposição argumentativa ligada ao conceito de ato de argumentar estabelece que duas frases f1 e f2 são argumentativamente opostas se, em nenhuma situação, as ocorrências dos enunciados E1 e E2 de f1 e f2 podem servir para conduzir à mesma qualidade R do ato de argumentar, não podendo atribuir em nenhum grau a mesma qualidade ao mesmo objeto (CABRAL, 2010, pp.46, 47, grifos da autora). Ainda sobre essa oposição/superioridade dos argumentos, Cabral (2010, pp.46, 47) retoma os seguintes exemplos de Anscombre e Ducrot: “o jantar está pronto” e “o jantar está quase pronto”. Tais enunciados argumentam para sentidos opostos, no caso do primeiro, tem-se a qualidade Q de iminência do jantar, no segundo caso, a de não iminência. Percebe-se, pelos exemplos, que o operador argumentativo quase exerce uma função argumentativa de grande importância. Por “operador argumentativo”, entende-se um determinado elemento linguístico que funciona como norteador de sentidos do enunciado, ele “indica (mostra) a força argumentativa dos enunciados, a direção (sentido) para o qual apontam” (KOCH, 2002, p. 30), seus modos de argumentação. Mais especificamente, haveria o funcionamento de elementos linguísticos pontuais cujas condições de funcionamento são três: tendo uma frase P, pode-se construir P’ com a inserção, com as necessárias adaptações ou não de um morfema x; P e P’ devem ter enunciados de valores argumentativos distintos; P e P’ devem veicular a mesma informação, o mesmo fato. Exemplificando, Ducrot diz que da frase P “Pedro trabalhou um pouco” pode-se derivar a frase P’ “Pedro trabalhou pouco”, frases essas que evocam argumentações atualizadas em diferentes momentos de enunciação e indicam o mesmo fato. Essas argumentações podem ser diferentes na acepção de serem opostas, mas não necessariamente (DUCROT [1977] 1989, p.18-22). Deste modo: A força argumentativa de um enunciado A deve ser definida como um conjunto de enunciados C1, C2... etc. que podem aparecer como conclusões de A. Assim a força argumentativa de um enunciado “Pedro trabalhou um pouco” consistiria no conjunto de enunciados que podem eventualmente lhe ser encadeados em um discurso por um portanto ou um conectivo desse tipo explícito ou implícito. Neste conjunto, encontrar-se-iam, por exemplo, os 84 enunciados “Ele está cansado”, “Ele tem o direito de descansar”, “Ele talvez tenha terminado o artigo” (DUCROT, [1977]1989, p.20). Conforme já dito, para Ducrot, o ato de argumentar seria um ato de linguagem ilocutório e teria um caráter “jurídico”, pois traria um efeito proveniente de um poder inerente e imediato como sua enunciação: Partia de uma definição de ilocutório – que não tenho nenhuma intenção de abandonar – de acordo com a qual realizar um ato ilocutório é apresentar suas próprias palavras como induzindo, imediatamente, a uma transformação jurídica da situação: apresentá-las, por exemplo, como criadoras de obrigação para o destinatário (no caso da ordem ou da interrogação), ou para o locutor, (no caso da promessa) [...] Se realizo um ato perlocutório, como o de consolar, o efeito que espero neste caso para a minha fala pode ser um efeito muito indireto, ligado a um encadeamento causal muito complexo [...] o efeito perlocutório não é, pois, imediato (DUCROT, [1969]1987, p.34, 35, grifos do autor). No entanto aqueles enunciados-conclusões (C1, C2...) que conferem força argumentativa a um enunciado A: como os supramencionados “Ele está cansado”, “Ele tem o direito de descansar” e “Ele talvez tenha terminado o artigo” que são conclusões derivadas do enunciado “Pedro trabalhou um pouco”, com a pista do operador argumentativo “um pouco” possibilitaram, no desenvolvimento da ANL, o acréscimo do entendimento da participação de vozes diversas em embate, aliando à Teoria dos Atos de Linguagem a Teoria Polifônica da Enunciação, algo explanado por Ducrot ([1969]1987) em seu prefácio em O Dizer e o Dito: No que concerne à teoria dos atos de linguagem, ela funda o sentido de um enunciado nas relações em que este estabelece entre sua enunciação e um certo número de desdobramentos “jurídicos” que esta enunciação, segundo ele, deve ter. No que concerne à teoria da polifonia, ela acrescenta a esta alteridade, por assim dizer “externa”, uma alteridade “interna” – colocando que o sentido de um enunciado descreve a enunciação como uma espécie de diálogo cristalizado, em que várias vozes se entrechocam (DUCROT, [1969]1987, p.9 (prefácio)). Portanto, esse conjunto de conclusões, ou vozes dialógicas que internalizam no enunciado uma alteridade, utilizando-se quer “pouco”, quer “um pouco” pendem para a ideia do binômio trabalho-fracasso, no primeiro exemplo, ou trabalho-sucesso nos outros dois exemplos, mas 85 sempre atualizando um discurso de cada vez. Não há exclusão de discurso, já que se podem admitir ambos os binômios, mas somente um deles é evocado no momento da enunciação. Porém, cogitaram-se ainda outras possibilidades que demandaram atualizações na teoria. Pode ser que o mesmo operador argumentativo resulte em conclusões diferentes, ou que as conclusões resultantes desses enunciados-argumento (A), que dão conta do mesmo conteúdo factual, sejam idênticas, retirando dos enunciados-argumento ou dos enunciados-conclusão (C) o poder argumentativo. Além disso, os próprios operadores argumentativos não estariam descritos a contento, para Ducrot. Nesses pontos percebeu-se a necessidade de reformulação da teoria como uma tentativa de sanar as dificuldades. 4.4 DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES AOS BLOCOS SEMÂNTICOS As lacunas percebidas, por conseguinte, demandaram uma revisão da Teoria da Argumentação na Língua; o que não significou o abandono total de seus pressupostos, somente uma reatualização. O poder argumentativo, o caráter “jurídico” não seria mais resultante das conclusões decorrentes do enunciado, mas intrínseco a ele. Tal valor argumentativo seria mais regido por princípios que os relacionam, por pontos de vista de enunciadores, os topoi – algo até então despercebido pela ANL. Chegou-se, assim, ao formato da ANL que tratava a argumentação não mais definida como o conjunto de conclusões possíveis de um enunciado, transferindo as conclusões dele depreendidas a um princípio evocado pela frase, o topos. Em outras palavras, a orientação argumentativa de A para C perpassaria um topos; o topos permitiria a passagem do argumento à conclusão. Com isso, a teoria dos topoi argumentativos desloca a atenção do enunciado aos enunciadores cujos pontos de vista são descritos, resgatando os pressupostos da Teoria Polifônica da Enunciação (DUCROT, 2003; SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F., 2013). Sendo assim: Duas condições são apresentadas para que o ponto de vista de um enunciador possa ser considerado argumentativo. A primeira é que ele sirva para justificar uma determinada conclusão, que pode estar explícita ou implícita no enunciado e pode ser assumida ou não pelo locutor. A segunda condição postula a noção de topos, fundamental nessa fase da teoria. O valor 86 argumentativo passa a ser entendido como parte constitutiva do enunciado: o princípio argumentativo, designado de topos, é o responsável pela orientação do enunciado em direção à conclusão; é o intermediário entre o argumento e a conclusão (CAMPOS, 2007). O ponto de vista do enunciador que coincidiria ou não com a ótica do locutor, intermediaria argumento e conclusão e isso é o que explicaria que operadores argumentativos diferentes chegassem a conclusões idênticas ou vice-versa. Reitere-se que a atenção do analista permanecia ao que era intrínseco à língua, já que esse topos seria interno ao enunciado. É esse topos, nesse ponto da teoria, que deveria ser descrito na análise argumentativa. O topos, esse lugar argumentativo, é portador de três propriedades: a universalidade, a generalidade e a gradualidade. O topos é universal no sentido de que se postula que ele é comum, ao menos, à fonte e ao alvo da argumentação (enunciador e destinatário), é um compartilhamento de ponto de vista suposto; é geral pela possibilidade de extensão sistemática a contextos similares, sendo a situação a qual ele se aplica uma amostragem; e é gradativo porque se movimenta em duas escalas. Essa gradação dos topoi, nesse momento, é a base da ANL juntamente com a noção de formas tópicas. Os topoi lidam com a hierarquização de valores pelos quais se apresentam as condições a contento dos enunciadores. Com tais princípios argumentativos, os topoi, argumento e conclusão começaram a ser relacionados, mas ainda eram vistos como interdependentes. A Teoria dos Blocos Semânticos, no entanto, uniu-os. Conforme Ducrot (2003), esses encadeamentos formatam um contexto específico do qual somente uma das conclusões pode ser retirada. O conteúdo do argumento A só pode ser compreendido na medida em que se compreende a consequência apontada na conclusão C por um portanto nem sempre explícito. A e C são, por isso, radicalmente interdependentes. Ressalte-se, no entanto, que o encadeamento argumentativo não é a justificação de uma afirmação por outra, mas para qualificar algo, para descrever algo de valor argumentativo. O portanto então não antecede uma justificação, mas uma descrição. O portanto C já integra o sentido de A. Sobre a importância de um logos como prova argumentativa, Ducrot salienta que além do movimento A portanto C, a língua, por meio de elementos como “pouco”, “um pouco”, “quase” ou ainda por meio de adjetivos como “longe” pode resultar em A contudo não C (como 87 em “Pedro estudou pouco, contudo será aprovado no exame”), sendo que a escolha de C ou não C é aleatória e não categórica, não definitiva, por isso o logos, a significação de A, não teria valor jurídico, autoridade o suficiente para que o resultado seja a escolha de C ou de não C, impondo somente o conectivo mediante a significação dada pelo elemento linguístico operante. Não haveria então o logos como prova discursiva (DUCROT, 2003). Com a inserção das contribuições de Marion Carel na ANL, argumentar não seria justificar, por isso, essa estudiosa acresce aos anteriormente trabalhados encadeamentos A portanto C (A DONC C/ A DC C) os do tipo A no entanto C (A POURTANT C/ A PT C). Esses elementos linguísticos seriam prototípicos de outros de funcionamento sistêmico similar, para o DONC, por exemplo, “pois”, “então”, “sendo assim”, “por isso” e etc.; para o POURTANT, “entretanto”, “mesmo que”, “mas”, “porém”, “embora”, “não obstante” e etc.. O enunciado-argumento A e o enunciado-conclusão C manteriam então uma interdependência que condicionaria o sentido: o conjunto, o todo formado por A e C – o bloco semântico –é que portaria o sentido. Não haveria, com isso, uma afirmação que levaria a uma conclusão como afirma as fases anteriores da ANL. O locutor organiza um enunciado “que contém o bloco semântico”. Dos conectivos que interligam os segmentos, Carel subdivide a argumentação em normativa e transgressiva (CABRAL, 2010, p.129; CARNEIRO, 2008): Quadro 02 – Argumentações normativa e transgressiva ARGUMENTAÇÕES – TIPOS NORMATIVA TRANSGRESSIVA A logo C A no entanto C A pois C A entretanto C A então C Embora A, C A sendo assim, C Mesmo que A, C [...] [...] A teoria dos blocos semânticos veio para dar conta de uma deficiência dos topoi para os quais a significação de uma palavra estava assente nos lugares-comuns a serem acessados por 88 enunciadores, passando a compreender a argumentação como a composição de segmentos de discursos encadeados por um conector do tipo normativo ou do tipo transgressivo, os blocos semânticos. Contudo, é importante salientar que seja na fase standard, na dos topoi ou na atual, mais lexical, Ducrot atém-se ao sentido que é permitido pelo discurso, o qual, por sua vez, é derivado do embate entre vozes anteriores ao dito e nele concretizadas: Se o sentido de uma palavra está nas suas direções argumentativas e se só o discurso é doador de sentido, então podemos entender que as direções argumentativas são dadas pelo discurso, mas estão inscritas nas palavras. Assim, a palavra evoca o discurso. E se o discurso pode ser entendido, na perspectiva de Ducrot, como o conjunto de falas anteriores, podemos entender que a noção de polifonia permanece nessa versão da teoria e que o conceito de sujeito tripartido também se mantém. Dessa forma, podemos considerar que o dizer para Ducrot, é maior que o dito; é contraditório, uma vez que evoca muitas falas anteriores, que podem estar de acordo ou não com esse dizer do presente; é argumentativo, portanto, diretivo; mas é um dizer que é captável pela língua e captado por ela, por isso é possível chegar ao dizer a partir do dito. (DIAS e SANT’ANA, s/d, p. 11) Sendo assim, é pertinente que a análise nesse trabalho se centre naquilo que é permanente na teoria, reportando-se a essa polifonia construtora dos discursos e a cada um aspecto desse sujeito tripartite ducrotiano, independente da fase de elaboração de cada aspecto teórico. Desse movimento de constante reatualização da teoria, pode-se depreender que “toda fala, tenha ela ou não objetivos persuasivos, faz necessariamente alusão a argumentações seja em contudo (não C), seja em portanto (C)”. Essa afirmação de Ducrot (2003) permite que as argumentações retórica e linguística tenham um momento de reconciliação, já que se pode recorrer à figura do locutor que organiza logicamente seus argumentos (lembrando que o locutor é definido como o responsável pela enunciação). À concessão, à capacidade de antecipação de um argumento B que poderia conduzir a “não C” em seu discurso, o locutor poderia fazer com que se seguisse um “mas”. Pode-se perceber isso implicitamente, quando Rui Barbosa afirmou que “o escravismo revestiu, entre nós exterioridades insidiosas, que o tornam mais perigoso que a franca apologia do cativeiro: declarou-se emancipador” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.75). Ele trouxe o que poderia ser um contra-argumento para seu discurso. Explicitamente, então, em vez de se ter algo como “é necessário que existam mais abolicionistas”, facilmente refutável por um “mas todos são abolicionistas”, há, no Parecer ao Projeto Dantas algo como “todos são 89 abolicionistas, mas é necessário que o grau de adesão à causa seja mais forte” ou “todos são abolicionistas, mas é necessário que sejamos mais liberais” apontando para a necessidade de implementação de medidas jurídicas complementares às já existentes e que corroboram para uma abolição geral. Essa antecipação colabora com o ethos do locutor como alguém fidedigno, preparado para o que sustenta, já que percebe de antemão as possíveis objeções, além de ser aberto a pontos de vistas divergentes, pois mesmo que sejam refutados, foram antes lembrados (DUCROT, 2003). Esse sentido pretendido pelo locutor já se inscreve na frase quando se fala de uma emancipação eminentemente escravagista, de modo negativo ressalta a abolição tolhida por interesses escravocratas. Ou de uma “quase” abolição, ou de parlamentares “um pouco” abolicionistas. Há, então, um encadeamento argumentativo cristalizado no próprio léxico, juízos exteriores incorporados na própria língua, naturalizados por estereotipia, que podem ser manobrados para fins de convencimento/persuasão. Tornam-se também eficazes quando se faz o uso evidente do portanto: ao se dizer, por exemplo, que “todos são abolicionistas, portanto todos devem ser a favor da abolição geral”, o termo “abolicionista” explícito, demonstra qual encadeamento evocado, já que o próprio termo no vocabulário da Língua Portuguesa permite associar abolição e liberdade (DUCROT, 2003). Como Ducrot disse em entrevista: “A significação das palavras se constitui pelas argumentações”60. Essa assertiva dá conta do estado atual da teoria da ANL e seu desenvolvimento por Marion Carel e Oswald Ducrot. Quaisquer elementos, sejam eles gramaticais ou lexicais portariam argumentatividade. Isso mantém então o estatuto dos operadores argumentativos, como elementos que carregam consigo conteúdos pressupostos os quais são de responsabilidade do locutor e do interlocutor, ou ainda partilhado por terceiros, ou por toda uma comunidade – sendo assim, esses operadores trazem outras vozes para o enunciado. Cabe ao analista depreender das frases da língua uma significação norteadora do sentido de seus enunciados, e esse é o exercício a ser feito no Parecer ao Projeto Dantas. 60 DUCROT apud XAVIER, 2012. 90 5. O PARECER AO PROJETO DANTAS: BLOCOS SEMÂNTICOS E A NEGAÇÃO DA ESCRAVIDÃO “A escravidão [...] E’ a posse, o dominio, o sequestro de um homem – corpo, intelligencia, forças, movimentos, activividade – e só acaba com a morte”. (NABUCO, [1883] 2011, p.161). Saindo da ideia de que a passagem de um argumento a uma conclusão perpassaria os topoi– discursos partilhados por uma comunidade, integrantes de um enunciado pela cristalização de sentidos – e transferindo a noção de argumentação para o funcionamento conjunto do enunciado-argumento e enunciado-conclusão, que formariam um todo semântico, analisar-seão alguns enunciados produzidos sobre a relação propriedade-indenização, legitimadora da escravidão, do direito escravocrata que se confronta com o binômio liberdade-não indenização mola-mestra do direito abolicionista. A argumentação deixa de ser justificação para ser um elemento construtor da própria língua e, por analogia, do texto do Parecer ao Projeto Dantas. 5.1 O PARECER E A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS A significação do léxico é o principal alvo de estudos da Teoria dos Blocos Semânticos. Conceitos como argumentação normativa e transgressiva, argumento externo e interno, bem como o de argumentação estrutural e contextual abarcam o significado de uma palavra. Portanto, não é feita uma análise exaustiva do funcionamento de cada bloco semântico presente na definição de cada vocábulo do Parecer ao Projeto Dantas, e sim de alguns encadeamentos, escolhidos porque entende-se que comportam as ideias mais recorrentes no texto. Por essa razão, procede-se ao exame daqueles âmbitos de significação mais representativos por meio da análise do significado de determinadas palavras-chave que permitem o entendimento de certos enunciados. 91 5.1.1 Encadeamento propriedade-indenização: norma e transgressão Assumindo-se o prisma de que a argumentação seria decorrente do encadeamento de blocos discursivos por conectivos dos tipos normativos ou transgressivos, o binômio propriedadeindenização assume a roupagem de bloco semântico já que dá conta de um único conteúdo semântico. Seus encadeamentos possíveis seriam: Quadro 03 – Encadeamentos do bloco semântico propriedade-indenização I. Propriedade portanto indenização A portanto C II. Propriedade no entanto indenização A no entanto C III. Não propriedade portanto não indenização Não A portanto não C IV. Não propriedade no entanto não indenização Não A no entanto não C Norma e transgressão são argumentações resultantes da inter-relação de termos de um enunciado: “[o articulador] liga sempre duas argumentações respectivamente da forma A conector B e não-A conector não-B: elas são ou ambas normativas (“conector” é, nos dois encadeamentos do tipo de donc), ou é transgressiva (“conector” é, nos dois encadeamentos do tipo de pourtant)” (CAREL, 2002, p. 34, grifos da autora). Conforme os encadeamentos do Quadro 3, a atitude do locutor mediante os enunciadores pode ser de concordância, confirmando seu ponto de vista ou de discordância, refutando-o. Cada um desses posicionamentos corresponde a uma regra: por um lado, I. confirma o bloco semântico, constituindo a regra 1; e, por outro lado, III. refuta-o, regra 02. Cada regra comportaria aqueles dois aspectos, o normativo, quando os seguimentos são unidos por portanto e o transgressivo, quando os encadeamentos são ligados por no entanto: a regra 01 teria como aspecto normativo I e transgressivo II; a regra 02, por sua vez, tem como norma III e transgressão, IV. 92 Privilegiando um ponto aspectual e sua regra correspondente, o locutor Rui Barbosa assim se pronunciou em um evento enunciativo sobre o Projeto Dantas: O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros tentamens de transação, estar em ser ele o único onde, proscrevendo-se a indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da liberdade gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão compreendeu-o; viu nesse ensaio libertador a célula da abolição incondicional e, percebendo que jogava a sua sorte, envidou assomos inauditos, no delírio de um desespero descomunal, para subverter a audácia dessa iniciativa numa catástrofe exemplar (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p. 153, grifo nosso). Por meio desse discurso laudatório, Rui Barbosa, em retrospecto, sintetiza o que seria a ideia principal do Projeto Dantas. Mesmo que tal projeto tenha sido refutado em suas bases – em consequência de um momento histórico em que o âmbito jurídico havia sido transformado em instrumento legitimador dos interesses senhoriais revestidos de proteção à liberdade (MENDONÇA, 2008) –, ele havia sido compreendido como momentoso já que apresentara, principalmente, a ideia decisiva para o abolicionismo geral gratuita. Não há a apreciação do elemento propriedade do encadeamento isoladamente, nem de indenização também isoladamente. Percebe-se o encadeamento como interdependente, propriedade portanto indenização, como um todo significativo, um bloco semântico. O conjunto deve ser considerado pelo fato de que, ainda que o portanto ou o no entanto apontem para a norma ou transgressão do encadeamento precedente, a implicação, no caso da norma, ou a distorção/ “ambiguidade” argumentativas, no caso da transgressão, só são plenamente constatadas levando-se em conta também o seguimento subsequente (CAREL, 2002). Contudo, o locutor não assume as duas posições ao mesmo tempo: não admitiria a simultaneidade em existir um sistema de propriedade do homem sobre o homem indenizatória, A PT C, coexistente com a sua inversão, uma não propriedade do homem sobre o homem gratuita, não A PT não C. O emprego desses blocos conduz a uma restrição de sentido pelo locutor. Portanto, pode-se dizer que há, pelo locutor Rui Barbosa, a assunção de que o Projeto Dantas assume a posturado aspecto normativo da regra 02: não propriedade portanto não indenização. Portanto, a ideia de posse, de propriedade, imperativa em reivindicar uma 93 compensação financeira ou por prestação de serviços não é a defendida pelo locutor. É esse o sentido que será dado ao Projeto: Quadro 04 – Descrição do evento enunciativo 1 EVENTO ENUNCIATIVO1 Bloco Semântico propriedade-indenização Regra 02 Não propriedade PT não indenização Aspecto Normativo A portanto C Enunciador 1 (E1) O Projeto Dantas é radical, pois visa a abolição incondicional transgredindo o direito à indenização Enunciador 2 (E2) O Projeto Dantas é legítimo, pois visa a abolição incondicional sem indenização O Projeto Dantas é visto então, com base no enunciado supracitado, pelo menos, sob dois prismas: E1 seria um dos pontos de vista, escravagista, o qual se opõe ao locutor combatendoo, pela percepção de seu radicalismo por fugir à defesa dos direitos senhoriais; e E2 o outro, emancipatório, que negaria a existência de um direito à indenização, afirmando, complementarmente a liberdade interpretada pelo locutor como a genuína, a que prescinde de compensação. Por meio de asserção, locutor Rui Barbosa assume o posicionamento de E2 orientando, pelo reforço a esse ponto de vista, o sentido de que não deveria haver indenização em decorrência do fato de a escravidão ser ilegítima devendo ser substituída pela abolição geral e incondicional. No mesmo sentido, aponta o seguinte excerto: Os fatos, as reformas libertadoras desde o começo dêste século mostram no título de propriedade, atribuído ao senhorio do homem sôbre o homem, um eufemismo sem realidade no espírito humano e cada vez menos realizado nas instituições que protegem essa dependência odiosa. A liberdade é uma restituição, e a indenização perde rapidamente o caráter de um direito. O que ela é, o que pode ser, o que tem sido, por tôda a parte, é uma conveniência, conveniência mais ou menos respeitável, não tanto em homenagem aos interesses dos senhores, como em satisfação ás necessidades econômicas do Estado (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 105, grifo do autor). 94 Quadro 05 – Descrição do evento enunciativo 2 EVENTO ENUNCIATIVO 2 Bloco Semântico propriedade-indenização Regra 02 Não propriedade PT não indenização Aspecto Normativo A portanto C Enunciador 1 (E1) A liberdade é uma restituição do direito humano, universal de não ser submetido Enunciador 2 (E2) A indenização é uma restituição do direito de propriedade dos senhores A assunção do ponto de vista de E1 pelo locutor mantém, nesse excerto do texto do Parecer ao Projeto Dantas, a negação do bloco semântico propriedade-indenização pelo aspecto normativo da regra 02: liberdade é restituição de direito humano, neutralizando assim as causas para indenização. O locutor recorre ao que é amplamente aceito pela via tradição, oriunda de um modus operandi, opinião popular geral, o que é ratificado quando se diz que: A questão que se contende entre a indenização e a gratuidade, não é uma questão de direito, mas uma apreciação do interesse público que aconselha se repeite, até onde a ordem geral e a fortuna nacional o exigirem, a boa fé de interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo. É sob este aspecto que encararemos a libertação dos escravos de sessenta anos. ” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121) Reitera-se, com isso, que mesmo que o encadeamento admita arranjos argumentativos normativos ou transgressivos, o emprego de um bloco semântico por um locutor que assimila um enunciador incorre em exclusão da argumentação pela norma ou pela transgressão. 95 Quadro 06 – Descrição do evento enunciativo 3 EVENTO ENUNCIATIVO3 Bloco Semântico propriedade-indenização Regra 02 Não propriedade PT não indenização Aspecto Normativo A portanto C Enunciador 1 (E1) A contenda entre indenização e gratuidade é uma questão de interesse público que abriga verdades instituídas Enunciador 2 (E2) O Projeto Dantas se submete a uma questão de interesse público, obedecendo a verdades instituídas Sendo assim, o Projeto Dantas, ao defender a liberdade irrestrita dos sexagenários, sem indenização, obedeceria aos costumes tradicionais, um clamor popular, supraindividual, formatador da lei. No Parecer, essa afirmação trazida pelo trecho está em meio a uma análise da jurisprudência histórica, tanto romana, quanto lusitana e depois brasileira, todas apontando, segundo a análise ruiana, para a liberdade como um pressuposto moral, convencionalmente conformado e conformador das leis. Mas nem sempre a indenização era vista como algo que corroborava o direito à propriedade escrava. Como um exemplo, recuando no tempo e recorrendo à análise da Lei do Ventre Livre, de 1871 – tida como precursora do Projeto Dantas já que ambas tratariam da abolição de segmentos sociais visando o movimento da abolição gradual à abolição geral – Rui Barbosa traz a voz do parlamentar Paulino de Sousa, para o qual a indenização auferida pela libertação dos nascituros representava a expoliação ao direito de propriedade: O nosso direito pátrio, tanto o português como o brasileiro, sempre consagrou e reconheceu o princípio do partus sequitur ventrem, e sempre respeitou a jurisprudência constante e uniforme dos nossos tribunais. Logo, o fruto do ventre escravo pertence ao senhor dêste tão legalmente como a cria de qualquer animal de seu domínio. Por mais que esta conclusão ofenda os nossos sentimentos humanitários, é ela incontestavelmente lógica e conforme a lei. A proposta do governo, porém, ataca e desrespeita esse direito, decretando a liberdade dos filhos das escravas, que nascerem depois da lei, e conseguintemente desapropriando o cidadão daquilo que é legalmente do seu domínio, sem indenizá-lo previamente, na forma da Constituição. 96 Realmente senhores, a proposta fala em indenização: mas, quer se trate de indenização pecuniária, quer de indenização pelos serviços dos libertos, eu as reputo ilusórias e de nenhum modo suficientes. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.93, grifos do autor). Quadro 07 – Descrição do evento enunciativo 4 EVENTO ENUNCIATIVO 4 Bloco Semântico propriedade-indenização Regra 02 Não há propriedade DC não há indenização Aspecto Transgressivo A no entanto C/ Não propriedade NE indenização Enunciador 1 (E1) O ventre das escravas era uma propriedade, resguardada historicamente por direito e por isso requeria indenização Enunciador 2 (E2) A indenização estipulada pela Lei do Ventre Livre, por ser insuficiente, feria o direito à propriedade Nesse caso, a argumentação transgressiva propriedade no entanto indenização é o viés escolhido pelo parlamentar Paulino de Sousa. Em outras palavras, ele disse que embora houvesse a admissão legal de uma indenização, a prevista na Lei do Ventre Livre, ela não se prestava ao esperado pelos senhores, a uma reparação de direitos perdidos após manumissões dos nascituros, mas seria um engodo, um auxílio para custear a educação do menor. Porém, quanto a isso, é importante que se façam algumas observações. Falando em sentido, é cauteloso explicar que, segundo Lysie dos Reis Oliveira (2012), educação e criação podem ser vistos como termos que se diferenciam nesta época: Apesar de não discordarem de que a paz social dependia de educação, não havia um consenso sobre as estratégias. Houve negociação. Prevaleceu o interesse dos senhores. Aí, sim, uma sutil diferença entre criar e educar se fez presente. Educação, palavra que enfim aparece no texto da lei, só receberiam aqueles que os senhores entregassem ao governo, em troca da indenização de 600$000 (seiscentos mil-réis), ou os que lhes fossem retirados, em caso de comprovação de maus-tratos. Não só associações e estabelecimentos criados para tal fim estavam autorizados a recebê-los, mas também Casas de Expostos, bem como pessoas que os juízes de órfãos determinassem. [...] No texto da lei, as que ficassem na posse dos senhores, nas fazendas, seriam criadas, não educadas. Em suma: quanto à educação, sua responsabilidade estava anulada. A indenização ou a exploração de sua 97 mão de obra eram recompensas que os impediriam de vê-las como um ônus. Se assim não fosse, possivelmente muitos não teriam interesse em que escravas dessem à luz, podendo inclusive atentar contra isto.(OLIVEIRA, 2012, p.118) Educação incluiria instrumentalizar o indivíduo para a vida em sociedade, tanto no tocante à aquisição de regras morais por vias religiosas, quanto à aprendizagem de um ofício, envolvendo o letramento dos menores também. Essa autora recorda também que naquele momento histórico a educação não era obrigatória e que havia um temor generalizado de que a instrução insuflasse os negros às revoltas. Segundo essa interpretação da história, se havia motivo para que o parlamentar supracitado sentisse que os direitos dos senhores estavam sendo usurpados, seria pela obrigatoriedade de criação dos escravos menores sob a Lei de 28 de setembro de 1871, não pela obrigatoriedade de educação; seria pelo fornecimento de meios de subsistência aos menores para garantir condições da exploração de sua mão-de-obra enquanto não chegassem à idade de sua alforria efetiva aos 21 anos. (OLIVEIRA, 2012, p.118). Não obstante a diferenciação entre criar e educar que pode ser depreendida, e a não inclusão da obrigatoriedade de se educar os negros e sim de “criá-los e tratá-los”61 havia uma insatisfação pela quebra de expectativa do recebimento de um valor pelo senhores e a prescrição de outro valor, pela lei. Ainda sobre isso versa o próximo subtópico. 5.1.2 Modificadores realizantes e desrealizantes Retornando ainda à história como meio de validar o discurso escravocrata, evocando inclusive o princípio do partus sequitur ventrem, o locutor Paulino de Sousa lamenta que, mesmo que se tratasse de uma abolição prevendo indenização, a Lei do Ventre Livre não resguardaria os interesses senhoriais (o que contraria análises posteriores62), já que a indenização seria correspondente ao valor necessário para garantir a educação do menor libertando. Concordando com isso, Rui Barbosa assim expressa: Tinha razão [...] a intitulada indenização, oferecida ao senhor no artigo 1º., §1, da lei de 28 de setembro, como compensação da propriedade dos frutos do ventre, é perfeitamente imaginária [...] essa compensação se destina a 61 62 Cf. Anexo E – Lei do Ventre Livre. Cf. AZEVEDO (2003), MENDONÇA, 2008 E NABUCO, [1883], 2011, p.68. 98 ressarcir aos senhores as despesas com a criação e o tratamento do ingênuo durante os outros primeiros anos da vida. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.95). O adjetivo “imaginária” posposto ao substantivo “indenização” também atua na força argumentativa, agindo como um modificador. Quanto a essa modificação, pode-se dizer que se dá desde a atenuar a força de um enunciado até invertê-la. Acontece também de o modificador reforçar seu valor argumentativo. Nas três ações, o modificador é um termo que altera o topos de um predicado do enunciado (CABRAL, 2010). Tal modificador, “imaginária”, vai de encontro à palavra “indenização”, atenuando seu sentido, configurando-se então como um modificador desrealizante atenuador, já que se trataria de uma indenização existente, concreta, mas tão sem efeito quanto algo imaginário ou tão sem ação prática como uma “intitulada indenização”, um significante sem objeto. Do mesmo modo, atua o modificador “ilusórias”, nos termos supramencionados por Paulino de Sousa ao se referir tanto à indenização pecuniária quanto àquela por prestação de serviços. Também na direção argumentativa oposta à “indenização” está o vocábulo “sem” de Paulino de Sousa: “desapropriando o cidadão daquilo que é legalmente do seu domínio, sem indenizálo previamente, na forma da Constituição” (chefe Paulino de Sousa, apud BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.93, grifos do autor); agora como um modificador desrealizante inversor, já que pressupõe que não haveria indenização, invertendo a orientação argumentativa, equivalendo a uma negação. Esse modificador desrealizante inversor se coadunaria aos internalizadores do tipo transgressivo, enquanto que a argumentação normativa teria correspondência com os modificadores realizantes, ficando o modificador desrealizante num entre lugar por não haver um meio termo entre norma e transgressão. Como conclui Ducrot (2002, p.23): [...] os internalizadores normativos parecem aproximar-se dos modificadores “realizantes” e os transgressivos dos “desrealizantes”. Então, a indenização segundo as palavras de Rui Barbosa logo acima, seria “perfeitamente imaginária”; nesse caso, “perfeitamente” um adjetivo modificador que atua na mesma direção que “imaginária”, aumentando-lhe a força argumentativa, sendo um modificador realizante que facilita a aplicação do topos. Sobre esses modificadores, pode-se depreender que: 99 Desse modo, determinada palavra pode ser considerada um modificador desrealizante em relação a outra palavra se o sintagma em que se encontram as duas palavras juntas tem uma orientação inversa ou uma força argumentativa inferior à da segunda palavra. Diremos, ao contrário, que uma palavra é um modificador realizante quando a combinação das duas palavras tem a mesma orientação argumentativa da segunda e uma força argumentativa superior a ela (CABRAL, 2010, p. 97, 98). Com isso, o locutor Paulino de Sousa só é trazido para o enunciado ruiano para reforçar que a indenização não era suficiente. No entanto, para Paulino de Sousa, isso era motivo de protesto, já que a indenização estaria aquém do esperado, sendo equivocadamente estimada, já que feriria algo constitucionalmente assegurado; para Rui Barbosa, ao contrário, a indenização seria propositalmente insuficiente, já que essa seria a única configuração moral e legalmente possível: a existência em lei de uma indenização só poderia ser aceita enquanto “indenização imaginária” ou pseudoindenização, somente como e quando reversível para os cuidados do próprio elemento escravizado. O sentido é constituído, pois, pelo confronto da voz do locutor Rui Barbosa com a voz dos enunciadores do discurso de Paulino Sousa, locutor esse que se representa como uma amostra, materializando toda uma vocalização escravocrata. 5. 1.3 Argumentos internos, externos e suas relações O todo significativo propriedade-indenização pode ainda ser visto como bloco de argumentos internos da palavra “escravidão”, como que carregando parte constituinte de seu significado interno, de tal forma que não só é patente nos enunciados de uma língua, como na sua forma dicionarizada, que congela a dinâmica e preserva-os ao longo do tempo. Tanto que dicionários atuais assim definem a escravidão: a. O Novo Dicionário Aurélio (2004), versão eletrônica traz: escravidão [De escravo + -idão.] Substantivo feminino. 1.Estado ou condição de escravo; escravatura, escravaria, cativeiro, servidão. 100 2.Falta de liberdade; sujeição, dependência, submissão, servidão, escravatura: Os empregados daquela usina queixavam-se de viver na escravidão. 3.Regime social de sujeição do homem e utilização de sua força, explorada para fins econômicos, como propriedade privada; escravatura. b. O mesmo termo é assim definido pelo Dicionário Unesp do Português Contemporâneo (2004): ESCRAVIDÃO es-cra-vi-dão Sf 1 redução à condição de escravo; escravização [...] 2 regime de sujeição do homem e sua exploração como propriedade privada; escravatura 3 condição de escravo, servidão 4 aprisionamento; dependência[...] 5 sujeição; submissão [...] O Ant. de 2 a 4 é liberdade. As acepções 1 a 3 do Aurélio (2004) e do dicionário Unesp (2004) são mais restritas ao contexto situacional da escravatura no Brasil, resguardando os aspectos relacionados a um sistema social de trabalho compulsório, no qual um homem é sujeito a outro homem como sua propriedade, somente podendo eximir-se dessa sujeição mediante ressarcimento estipulado pelo senhor, que possui poder legitimado pelo regime escravocrata. A argumentação interna (AI) de “escravidão” não realiza essa palavra no encadeamento aspectual, seja no interior de seu antecedente, antes do PT ou do NE, ou no interior de seu consequente, depois do PT ou do NE. Sendo assim, o exame da definição interna de escravidão circulante na década de 1880 configurar-se-ia: Quadro 08 – Esquema de AI de “escravidão” AI (escravidão): propriedade PT indenização Lê-se: A argumentação interna de escravidão corresponde a propriedade portanto indenização. Baseado em CABRAL (2010). A argumentação interna de uma expressão, adicionalmente, passa por uma mudança aspectual quando inserida a negação. Assim, o esquema propriedade PT indenização, AI de “escravidão”, passa a propriedade NE NEG indenização, AI de “não escravidão” ou “abolição”: 101 Quadro 09 – Esquema de AI de “abolição” AI (abolição): propriedade NE NEG indenização Lê-se: A argumentação interna de abolição corresponde a propriedade no entanto não indenização. Baseado em CABRAL (2010). Ou seja, quando se parte da análise da AI de uma expressão (E), utiliza-se, para sua conversão um outro conector (CON) mais uma negação. De A CON C (E= escravidão), há o converso, A CON’ NEG C (E= abolição). Então não há uma gradação de sentido, mas uma mudança decorrente da negação de seus aspectos argumentativos internos e uma noção de processo feito com uma contrariedade a determinada norma. Por isso, ao enunciar que “proscrevendo-se a indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da liberdade gratuita, a negação da propriedade servil” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.153), pode-se analisar essa conversão interna à palavra funcionando também em um enunciado. Isso porque, conforme Carel: a definição da conversão pode ser ainda estendida de modo que ela possa comparar não somente argumentações e enunciados, mas também simples palavras. Assim, a palavra prudente evoca, pela sua própria significação: é perigoso, donc ele toma precauções Esse encadeamento é totalmente interior a prudente. Ele lhe é interno. Por generalização da noção de argumentações conversas, dir-se-à então que é conversa a prudente uma palavra cuja significação condensa o encadeamento converso: é perigoso, pourtant ele não toma precauções Notar-se-á que se trata da palavra imprudente. A relação de conversão que opunha os dois enunciados ligados pelo mas de A faculdade é loteria: Pedro foi aprovado, mas João foi reprovado e opunha ainda os dois seguimentos da máxima: Em abril, não deixes de usar roupas quente, em maio faz o que te agrada opõe também as palavras antitéticas como prudente e imprudente. Fatos desse gênero levam a dar à relação de conversão um status fundamental nas descrições lingüísticas [...] (CAREL, 2002, p.42, 43, grifos da autora). 102 A conversão então por ser um modo de descrição linguística sistemático, dando-se desde a processos internos de uma palavra até á relação entre enunciados de um “mas” marcado ou implícito pela relação de oposição, ou de contrate de ideias; conversão essa imediatamente consequente das relações de norma e transgressão. É nesse sentido que Ducrot (2002, p.7) afirma que o trabalho da Teoria dos Blocos Semânticos opera, ao mesmo tempo, numa micro e macrossemântica, ocupando-se das relações desses elementos que permitem uma descrição semântica interna às palavras e numa descrição semântica de enunciados constitutivos de uma língua respectivamente: seja pela convocação de discursos, seja pela modificação desses discursos. Retornando ao encadeamento IV, aspecto transgressivo da regra 02 do Quadro 02, propriedade no entanto não indenização percebe-se que ele se expressa pelo seguinte esquema: propriedade NE NEG indenização, sendo argumento interno converso de escravidão (propriedade PT indenização), passando a argumento interno de abolição pela introdução da NEG indenização. A negação do aspecto de uma regra de um vocábulo resulta na sua transposição semântica, em seu vocábulo converso. Com base nisso, se há uma forma A CON C, sua forma conversa será A CON’ NEG C. Uma outra mudança de sentido pode se dar também pela transposição de aspectos entre expressões também por meio da negação, só que elementos transpostos serão os que passam de uma forma A CON C para NEG A CON’ C, como em: propriedade PT indenização, argumento do âmbito de “escravidão” transposto em não propriedade NE indenização, argumento interno de “abolição”. Os dicionários supracitados dão conta dessa passagem de aspectos ou dessa mudança aspectual da transposição e da conversão. Para “abolição”, no Aurélio (2004) há duas acepções complementares: uma mais ampla, “ação ou efeito de abolir, extinção” e outra mais restrita “abolição da escravatura”; no Unesp (2004), as definições: “anulação ou extinção de qualquer instituição, lei, prática ou costume”, “libertação (dos escravos no Brasil), extinção, supressão. Mais especificamente quando tocam nas nuances relativas ao fim da escravidão ou não escravidão pela liberdade dos escravos, é que se percebe a negação de “escravidão” . Quanto ao funcionamento da argumentação externa, pouco explorado por Marion Carel, sendo paulatinamente objeto de estudos posteriores, o termo “abolição” ocorre no 103 encadeamento, seja normativo ou transgressivo. Como exemplos de argumentos externos de abolição, poderiam figurar, abolição PT humanitarismo ou abolição NE humanitarismo: Quadro 10 – Argumentações externas do bloco semântico abolição-humanitarismo. I. II. Abolição portanto humanitarismo A portanto C Abolição no entanto humanitarismo A no entanto C Relacionando esses encadeamentos linguísticos externos à palavra “abolição”, pode-se perceber que a introdução da negação produz reciprocidade entre: Há abolição PT há humanitarismo (AE = E) e Não há abolição PT não há humanitarismo (AE = não E); ou ainda entre Há abolição NE há humanitarismo (AE= E) e em Não há abolição NE há humanitarismo (AE= não E): Quadro 11 – Argumentações externas do bloco semântico escravidão-humanitarismo. I. II. Escravidão portanto não humanitarismo A portanto não C Escravidão no entanto não humanitarismo A no entanto não C Isso quer dizer que as argumentações externas de E e de não E, de abolição e de escravidão são recíprocas: Quadro 12 – Argumentações externas recíprocas Se A CON C AE de E então seu recíproco NEG A CON NEG C AE de não E. Lê-se: Se o encadeamento argumento-conector-conclusão pertence à argumentação externa de uma expressão então seu recíproco negação do argumento-conector-negação da conclusão pertence ao argumento externo do aspecto converso dessa expressão. Baseado em CABRAL (2010). 104 Alguns aspectos desses encadeamentos são trazidos pelo seguinte enunciado: Pode-se dizer que uma só, dentre tôdas as propriedades existentes, ou possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua soberania: é a propriedade do homem sôbre si mesmo, a propriedade por excelência [...] onde quer que uma intervenção [...] procura destruir essa propriedade suprema, a natureza íntima da humanidade reage, e, por uma série de transações crescentes com o espírito de liberdade, obriga a lei [...] a contradições [...] Mais tarde intervem o Estado como grande libertador, impondo limites de preço, ou condições de alforria gratuita. E assim se vai gradualmente desmembrando, entre reclamações cada vez mais violentas do expropriado, o direito abominável, que, sem outro título mais que a sua excepcionalidade atroz, pretende absorver,e conculcar nas vítimas do seu egoísmo todas as qualidades humanas.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.103, 104) Barbosa se refere a um humanitarismo aviltado, menosprezado, conculcado pelo direito bárbaro, desumano, cruel, da propriedade do homem sobre o homem que infringe o direito hierarquicamente superior, acima inclusive de deliberação jurídica porque intrinsecamente humano, da “propriedade do homem sôbre si mesmo”. Existe, pois, uma relação aspectual entre as expressões humanitarismo, direito e liberdade que a depender de sua arrumação em blocos semânticos tendem mais para o significado de abolição ou de escravidão. Já no que diz respeito à argumentação externa, a conversão tem um funcionamento diverso do da interna. Tanto o A CON C, quanto o seu converso o A CON’ NEG C fazem parte da argumentação externa de uma expressão. Assim tanto: abolição PT humanitarismo, quanto abolição NE não humanitarismo fazem parte da AE de “abolição”, perfazendo o seguinte quadro de argumentos externos em que I e IV e II e III são os conversos: Quadro 13 – Argumentos externos “abolição” I. Abolição portanto humanitarismo A portanto C Abolição no entanto humanitarismo A no entanto C III. Abolição portanto não humanitarismo A portanto não C IV. Abolição no entanto não humanitarismo A no entanto não C II. 105 Os encadeamentos II e III, A CON’ C e ACON NEG C são paradoxais, assim como seria o encadeamento externo NEG A CON C: Não há abolicionismo, portanto há humanitarismo. Esse viés paradoxal é trazido na fala de José de Alencar, quando afirma que a libertação de nascituros seria uma modalidade de abolição desumana, porque impediria o convívio familiar, além de provocar a incivilidade pela desigualdade do trato aos cativos, já que alguns teriam a liberdade mais palpável do que outros: Eu acrescento que essa idéia da libertação do ventre desorganiza o trabalho livre, dando-lhe por exemplo e mestre o trabalho escravo: ao mesmo tempo aniquila o trabalho escravo, pondo-lhe em face, a todo instante, a imagem da liberdade. Finalmente contamina a nova geração, criando-a no seio da escravidão, ao contacto dos vícios que ela gera (Muitos apoiados da oposição) Não é de certo, por êsses meios, subvertendo os dogmas sociais, aniquilando a família, degradando a espécie humana ao nível do bruto, destruindo os mais nobres estímulos do coração, e substituindo-os por paixões rancorosas: não é dêste modo que os pretensos apóstolos da liberdade e da civilização hão de consumar sua obra. [...] (José de Alencar apud BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 72, grifos do autor) Então Alencar e outros opositores à Lei do Ventre Livre eram um grupo que embora abolicionista que não era a favor da libertação do ventre livre. Rui Barbosa o traz como representante das objeções sempre presentes em cada avanço legislativo concernente às manumissões graduais. O que se discute é que o que eles pretendiam, na verdade, era a instauração de leis que mesmo que resultassem em abolição, resguardasse os interesses dos senhores (MENDONÇA, 2008). Esses parlamentares, como um todo, formavam então um grupo de abolicionistas, no entanto, não eram a favor da libertação por iniciativa jurídica. A palavra abolição então, para designá-los ganha traços paradoxais, quando se pensa em libertar PT não libertar ou libertar NE libertar sem a lei, por exemplo. Baseando-se no exposto, pode-se dizer que sobre o funcionamento de regra e aspecto, a regra diz respeito a um modo de ver as coisas, seja em portanto, seja em no entanto e que ela se bifurca em aspectos, um que a confirma – normativo, obediente à regra, e que pode disponibilizar de modificadores realizantes – e outro que a refuta – o transgressivo, que contaria com modificadores desrealizantes inversores, obstáculo a ela. Essa análise pode se referir ao significado interno de uma palavra, seus argumentos internos ou aos significados dela depreendidos, os argumentos externos; pode se aplicar ao significado de uma palavra ou de um enunciado. O encadeamento como um outro conector, como partindo do normativo 106 para o do tipo transgressivo no entanto/ NE juntamente com uma partícula de negação transforma os aspectos internos em seus conversos, a significação de um vocábulo passa por uma conversão de significado, formando antônimos pelo enfeixe de ideias antitéticas. Pode-se afirmar pelo exposto, que a argumentação não se dá pela ligação de um termo argumento A e de um termo conclusão C, mas é evocada pela própria predicação interna de um termo que convoca a norma ou denuncia a transgressão, assim, os próprios argumentos internos de propriedade evocam a necessidade de indenização, e comporta como distorção transgressiva a não indenização, gratuidade essa admitida normativamente como argumento interno de abolição. Essa significação, esse modo diferente de ver as coisas, é resultante do posicionamento dos enunciadores e do seu embate com a posição eleita pelo locutor que organiza o sentido dos enunciados. É então polifônica. É discursiva. A língua então não é entendida como nomenclatura do mundo, conforme viés interpretativo referencialista. Retomando Saussure, o precursor da ciência linguística, não haveria então uma relação entre palavras e coisas, mas entre significante (imagem acústica) e significado (conceito). Reelaborando Saussure, Ducrot e colaboradores dizem que o significado está incrustrado no significante. A língua, pelo seu léxico, representa o mundo via discurso polifônico doador de sentidos. 107 6. CONCLUSÃO O todo semântico propriedade portanto indenização, carrega uma relação normativa dos aspectos internos da expressão linguística “escravidão”, que pode ser modalizada para o realce ou o rechaço, que pode ser alterada a depender da posição dos enunciadores e da condução do locutor. O locutor, assimilado por Rui Barbosa, diante da asserção “Se há propriedade, há indenização” encontra o ponto de partida para o trabalho efetuado tanto no Projeto Dantas, quanto no respectivo Parecer: a recíproca não propriedade portanto não indenização é o arranjo argumentativo do locutor, caminhando para o incentivo à gratuidade como um impulso à abolição, naquele momento ainda gradual, mas depois, previa-se, generalizada. No Projeto Dantas, a negação veio pela ausência de uma cláusula que indicasse o ressarcimento, a compensação ao ex-senhorio. No Parecer, veio com as justificativas de base moral, legal, humanitária. Em ambos, a negação foi trazida com o auxílio da língua. Os argumentos neorretóricos do Parecer ao Projeto Dantas, ao advogar que a abolição dos sexagenários teria de ser não indenizatória e ao acrescentar que essa gratuidade responderia a um anseio coletivo, mobilizou a análise da história legislativa do Brasil, de Portugal e da Roma Antiga, entendendo tanto a gratuidade para a liberdade quanto a liberdade em si como um princípio moral, base da civilização, coletivamente constituído e constituinte das leis. Falando no que é coletivo e validando-o, os topoi retóricos, lugares-comuns, sejam de ordem, de lugar, de pessoa ou do existente são instrumentos úteis evocados na argumentação ruiana. A adesão do auditório, buscada pelo orador, é uma forma individual de reação a uma verdade coletiva, esta, por sua vez também relativa porque assumida subjetivamente (ou por grupos menores) com graus variados de aderência. Os lugares-comuns retóricos, as indicações hierarquizantes de certos valores, auxiliam na adesão à verdade social que tende a ser mais acessada. Pela análise do texto ruiano, ainda via estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca([1958] 2005), pode-se perceber que o orador Rui Barbosa buscou refutar o que chamou de sofismas da escravidão, raciocínios especulativos e reincidentes, que se processavam em cada iniciativa manumitente legal mais expressiva. Esses sofismas giravam sempre em torno dos supostos danos na economia, dos transtornos sociais, da acomodação à ideia de abolição geral 108 expontânea... E esses topoi retóricos, esses arranjos de valores contrários ao Projeto Dantas, são expostos para serem reconstruídos ou desconstruídos por outros topoi conclamados por Rui, ou pelos mesmos submetidos a sua ótica. Assim é com o partus sequitur ventrem a princípio apoiado pelo statuliberi, axioma esse depois remanejado para a re-hierarquização dos lugares de ordem, de essência e de pessoa. Deste modo também se aborda a complementaridade argumentativa entre os lugares quantitativos e qualitativos. Mas recorde-se que, sobretudo, na década de 1880, as ideias dos parlamentares, por mais paradoxais que fossem, eram declaradas pró-abolição. Esses abolicionistas eram contrários a uma forma de abolição os quais acusavam de triplamente criminosa: “lesa-razão, lesa pátria e lesa-humanidade” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.89). Sim, todos eram abolicionistas. Eram abolicionistas de uma abolição com aspectos semânticos internos e externos paradoxais, porque relativa, contínua e não absoluta, mais ou menos radical, mais ou menos moderada. Era uma abolição que admitia a não abolição: se ela defendesse os direitos dos escravos e ofendesse os direitos igualmente válidos do senhorio; se ela pela gratuidade negasse a indenização que era o selo da escravidão, já que só se indenizava a quem fosse expropriado, a quem anteriormente mantinha a propriedade do homem sobre o homem. Contudo, não se indeniza quem não possuiu, por isso nega-se a propriedade por consequência e, na mesma linha, nega-se a escravidão. A abolição gratuita nega a escravidão. O Parecer era então a fuga desse paradoxo. O paradoxo é uma noção alocada num ponto mais atual da ANL. Ducrot e Anscombre, inicialmente; e Ducrot e Carel, no desdobramento mais recente, trabalharam no campo da Semântica Argumentativa: a. durante a forma padrão ou standard da teoria deslocaram a argumentação extralíngua para a argumentação pela língua obtida mediante sentido, mediante orientação argumentativa em determinados elementos linguísticos, os operadores argumentativos; b. na fase da teoria dos topoi argumentativos, a argumentação passou a ser da língua, do discurso, lugar dos topoi, do movimento de acesso a esses princípios argumentativos na passagem do enunciado-argumento para o enunciado-conclusão; c. finalmente, com a Teoria dos Blocos Semânticos, a argumentação passou a ser na língua, parte integrante do bloco argumentativo que comporta argumentos conclusivos. 109 Nessa fase se manteve o status dos operadores argumentativos, mas se reconheceu que todo elemento lexical também porta argumentação, porque essa seria inscrita no sentido, parte integrante do discurso, voltando-se a atenção à argumentação estrututal (desprezando-se a contextual) e galgando-se a adequação ao nome da teoria, argumentação na língua (FIORIN, 2003; DUCROT [1969] 1987; [1977]1989; 2003; XAVIER, 2012). Os estudos de Ducrot denotam, portanto uma intervenção cada vez menos decisiva de propriedades extrínsecas à língua, até anulá-las e converter a argumentação em algo estritamente linguístico. Tal língua-argumentação é de sentido obtido por vias discursivas, o discurso, por sua vez, constituído pelo embate entre vozes enunciativas. Essa língua-argumentação é de uma impregnação polifônica constitutiva de todas as suas expressões linguísticas. O estudo do Parecer ao Projeto Dantas é visto, por conseguinte, como uma amostra de que as teorias da argumentação, ou seja, Argumentação Retórica e Argumentação na Língua, embora pertencentes a campos distintos – Retórica e Semântica Argumentativa – são complementares. Constata-se que quando postas em conjunto, privilegiando-se um cotejamento de determinadas noções a elas pertencentes, tais teorias, em vez de serem excludentes, permitem uma visão mais holística dos fenômenos argumentativos. Sendo assim é trilhada a ação tanto do orador Rui Barbosa, enquanto sujeito empírico que maneja estratégias retóricas para a persuasão e/ou convencimento de seu auditório, quanto o locutor Rui Barbosa, que organiza o discurso pela sua postura diante do embate de vozes dos enunciadores. O Parecer ao Projeto Dantas então é um objeto que quando assim analisado mimetiza a relação que se tem com a análise nos campos da Linguística ou da Argumentação; constitui-se um ponto de contemplação. Não o único olhar possível, nem o absoluto; sequer o verdadeiro. É um modo de análise permitido pelas e submetido às teorias escolhidas. 110 REFERÊNCIAS ABREU, Antônio Suarez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 10. ed. Cotia, SP: Ateliê, 2007. ATAS DO CONSELHO DE ESTADO PLENO – TERCEIRO CONSELHO DE ESTADO, 1880-1884. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS11Terceiro_Conselho_de_Esta do_1880-1884.pdf> . Acesso em: 10 de janeiro de 2014. 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As medidas de cunho/repercussão abolicionistas se iniciam em 1871. 1888 116 ANEXO A – “PROJETO DANTAS/RUI BARBOSA” 117 ANEXO B – O PROJETO ORIGINAL 118 ANEXO C – O PROJETO ORIGINAL 119 120 121 122 123 124 ANEXO D – LEI DOS SEXAGENÁRIOS Lei nº 3.270, de 28 de Setembro de 1885 Regula a extincção gradual do elemento servil. D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos subditos que a Assembléa Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte: DA MATRICULA Art. 1º Proceder-se-ha em todo o Imperrio a nova matricula dos escravos, com declaração do nome, nacionalidade, sexo, filiação, si fôr conhecida, occupação ou serviço em que fôr empregado, idade e valor, calculado conforme a tabella do § 3º. § 1º A inscripção para a nova matricula far-se-ha á vista das relações que serviram de base á matricula especial ou averbação effectuada em virtude da Lei de 28 de Setembro de 1871, ou á vista das certidões da mesma matricula, ou da averbação, ou á vista do titulo do dominio, quando nelle estiver exarada a matricula do escravo. § 2º A' idade declarada na antiga matricula se addicionará o tempo decorrido até o dia em que fôr apresentada na Repartição competente a relação para a matricula ordenada por esta Lei. A matricula que fôr effectuada em contravenção ás disposições dos §§ 1º e 2º será nulla, e o Collector ou Agente fiscal que a effectuar incorrerá em uma multa de cem mil réis a tresentos mil réis, sem prejuizo de outras penas em que possa incorrer. § 3º O valor a que se refere o art. 1º será declarado pelo senhor do escravo, não excedendo o Maximo regulado pela idade do matriculando, conforme a seguinte tabella: Escravos menores de 30 annos............................................................................................ » de 30 a 40 » ............................................................................................. » » 40 a 50 » ............................................................................................. » » 50 a 55 » ............................................................................................. » » 55 a 60 » ............................................................................................. 900$000 800$000 600$000 400$000 200$000 § 4º O valor dos individuos do sexo feminino se regulará do mesmo modo, fazendo-se, porém, o abatimento de 25% sobre os preços acima estabelecidos. § 5º Não serão dados á matricula os escravos de 60 annos de idade em diante; serão, porém, inscriptos em arrolamento especial para os fins dos §§ 10 a 12 do art. 3º. § 6º Será de um anno o prazo concedido para a matricula, devendo ser este annunciado por editaes affixados nos logares mais publicos com antecedencia de 90 dias, e publicos pela imprensa, onde a houver. 125 § 7º Serão considerados libertos os escravos que no prazo marcado não tiverem sido dados á matricula, e esta clausula será expressa e integralmente declarada nos editaes e nos annuncios pela imprensa. Serão isentos de prestação de serviços os escravos de 60 a 65 annos que não tiverem sido arrolados. § 8º As pessoas a quem incumbe a obrigação de dar á matricula escravos alheios, na fórma do art. 3º do Decreto n. 4835 de 1 de Dezembro de 1871, indemnizarão aos respectivos senhores o valor do escravo que, por não ter sido matriculado no devido prazo, ficar livre. Ao credor hypothecario ou pignoraticio cabe igualmente dar á matricula os escravos constituidos em garantia. Os Collectores e mais Agentes fiscaes serão obrigados a dar recibo dos documentos que lhes forem entregues para a inscripção da nova matricula, e os que deixarem de effectual-a no prazo legal incorrerão nas penas do art. 154 do Codigo Criminal, ficando salvo aos senhores o direito de requerer de novo a matricula, a qual, para os effeitos legaes, vigorará como si tivesse sido effectuada no tempo designado. § 9º Pela inscripção ou arrolamento de cada escravo pagar-se-ha 1$ de emolumentos, cuja importancia será destinada ao fundo de emancipação, depois de satisfeitas as despezas da matricula. § 10. Logo que fôr annunciado o prazo para a matricula, ficarão relevadas as multas incorridas por inobservancia das disposições da Lei de 28 de Setembro de 1871, relativas á matricula e declarações prescriptas por ella e pelos respectivos regulamentos. A quem libertar ou tiver libertado, a titulo gratuito, algum escravo, fica remittida qualquer divida á Fazenda Publica por impostos referentes ao mesmo escravo. O Governo no Regulamento que expedir para execução desta Lei, marcará um só e o mesmo prazo para a apuração da matricula em todo o Imperio. Art. 2º O fundo de emancipação será formado: I. Das taxas e rendas para elle destinadas na legislação vigente. II. Da taxa de 5% addicionaes a todos os impostos geraes, excepto os de exportação. Esta taxa será cobrada desde já livre de despezas de arrecadação, e annualmente inscripta no orçamento da receita apresentado á Assembléa Geral Legislativa pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda. III. De titulos da divida publica emittidos a 5%, com amortização annual de 1/2 %, sendo os juros e amortização pagos pela referida taxa de 5%. § 1º A taxa addicional será arrecadada ainda depois da libertação de todos os escravos e até se extinguir a divida proveniente da emissão dos titulos autorizados por esta Lei. § 2º O fundo de emancipação, de que trata o n. I deste artigo, continuará a ser applicado de conformidade ao disposto no art. 27 do Regulamento approvado pelo Decreto n. 5135 de 13 de Novembro de 1872. § 3º O producto da taxa addicional será dividido em tres partes iguaes: 126 A 1ª parte será applicada á emancipação dos escravos de maior idade, conforme o que fôr estabelecido em regulamento do Governo. A 2ª parte será applicada á libertação por metade ou menos de metade de seu valor, dos escravos de lavoura e mineração cujos senhores quizerem converter em livres os estabelecimentos mantidos por escravos. A 3ª parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de colonos que forem effectivamente collocados em estabelecimentos agricolas de qualquer natureza. § 4º Para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos agricolas servidos por escravos em estabelecimentos livres e para auxiliar o desenvolvimento da colonização agricola, poderá o Governo emittir os titulos de que trata o n. 3 deste artigo. Os juros e amortização desses titulos não poderão absorver mais dos dous terços do producto da taxa addicional consignada no n. 2 do mesmo artigo. DAS ALFORRIAS E DOS LIBERTOS Art. 3º Os escravos inscriptos na matricula serão libertados mediante indemnização de seu valor pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra fórma legal. § 1º Do valor primitivo com que fôr matriculado o escravo se deduzirão: No primeiro anno............................................................................................................. No segundo................................................................................................................... .. No terceiro........................................................................................................................ No quarto.................................................................................................................... ...... No quinto.................................................................................................................... ....... No sexto............................................................................................................................. No setimo.......................................................................................................................... No oitavo.................................................................................................................... ....... No nono...................................................................................................................... ...... No decimo...................................................................................................... ................... No undecimo.................................................................................................................. ... No decimo segundo.......................................................................................................... No decimo terceiro.......................................................................................................... 2% 3% 4% 5% 6% 7% 8% 9% 10% 10% 12% 12% 12% Contar-se-ha para esta deducção annual qualquer prazo decorrido, seja feita a libertação pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra fórma legal. § 2º Não será libertado pelo fundo de emancipação o escravo invalido, considerado incapaz de qualquer serviço pela Junta classificadora, com recurso voluntario para o Juiz de Direito. O escravo assim considerado permanecerá na companhia de seu senhor. § 3º Os escravos empregados nos estabelecimentos agricolas serão libertados pelo fundo de emancipação indicado no art. 2º, § 4º, segunda parte, si seus senhores se propuzerem a substituir nos mesmos estabelecimentos o trabalho escravo pelo trabalho livre, observadas as seguintes disposições: a) Libertação de todos os escravos existentes nos mesmos estabelecimentos e obrigação de não admittir outros, sob pena de serem estes declarados libertos; 127 b) Indemnização pelo Estado de metade do valor dos escravos assim libertados, em titulos de 5%, preferidos os senhores que reduzirem mais a indemnização; c) Usufruição dos serviços dos libertos por tempo de cinco annos. § 4º Os libertos obrigados a serviço nos termos do paragrapho anterior, serão alimentados, vestidos e tratados pelos seus ex-senhores, e gozarão de uma gratificação pecuniaria por dia de serviço, que será arbitrada pelo ex-senhor com approvação do Juiz de Orphãos. § 5º Esta gratificação, que constituirá peculio do liberto, será dividida em duas partes, sendo uma disponivel desde logo, e outra recolhida a uma Caixa Economia ou Collectoria, para lhe ser entregue, terminado o prazo da prestação dos serviços a que se refere o § 3º, ultima parte. § 6º As libertações pelo peculio serão concedidas em vista das certidões do valor do escravo, apurado na fórma do art. 3º, § 1º, e da certidão do deposito desse valor nas estações fiscaes designadas pelo Governo. Essas certidões serão passadas gratuitamente. § 7º Emquanto se não encerrar a nova matricula, continuará em vigor o processo actual de avaliação dos escravos, para os diversos meios de libertação, com o limite fixado no art. 1º, § 3º. § 8º São válidas as alforrias concedidas, ainda que o seu valor exceda ao da terça do outorgante e sejam ou não necessarios os herdeiros que porventura tiver. § 9º E' permittida a liberalidade directa de terceiro para a alforria do escravo, uma vez que se exhiba preço deste. § 10. São libertos os escravos de 60 annos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indemnização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos. § 11. Os que forem maiores de 60 e menores de 65 annos, logo que completarem esta idade, não serão sujeitos aos alludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação ao prazo acima declarado. § 12. E' permittida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente á metade do valor arbitrado para os escravos da classe de 55 a 60 annos de idade. § 13. Todos os libertos maiores de 60 annos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimental-os, vestil-os, e tratalos em suas molestias, usufruindo os serviços compativeis com as forças delles, salvo si preferirem obter em outra parte os meios de subsistencia, e os Juizes de Orphãos os julgarem capazes de o fazer. § 14. E' domicilio obrigado por tempo de cinco annos, contados da data da libertação do liberto pelo fundo de emancipação, o municipio onde tiver sido alforriado, excepto o das capitaes. § 15. O que se ausentar de seu domicilio será considerado vagabundo e apprehendido pela Policia para ser empregado em trabalhos publicos ou colonias agricolas. § 16. O Juiz de Orphãos poderá permittir a mudança do liberto no caso de molestia ou por outro motivo attendivel, si o mesmo liberto tiver bom procedimento e declarar o logar para onde pretende transferir seu domicilio. 128 § 17. Qualquer liberto encontrado sem occupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que lhe fôr marcado pela Policia. § 18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da Policia, será por esta enviado ao Juiz de Orphãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colonia agricola no caso de reincidencia. § 19. O domicilio do escravo é intransferivel para Provincia diversa da em que estiver matriculado ao tempo de promulgação desta Lei. A mudança importará acquisição da liberdade, excepto nos seguintes casos: 1º Transferencia do escravo de um para outro estabelecimento do mesmo senhor. 2º Si o escravo tiver sido obtido por herança ou por adjudicação forçada em outra Provincia. 3º Mudança de domicilio do senhor. 4º Evasão do escravo. § 20. O escravo evadido da casa do senhor ou d'onde estiver empregado não poderá, emquanto estiver ausente, ser alforriado pelo fundo de emancipação. § 21. A obrigação de prestação de serviços de escravos, de que trata o § 3º deste artigo, ou como condição de liberdade, não vigorará por tempo maior do que aquelle em que a escravidão fôr considerada extincta. DISPOSIÇÕES GERAES Art. 4º Nos regulamentos que expedir para execução desta Lei o Governo determinará: 1º Os direitos e obrigações dos libertos a que se refere o § 3º do art. 3º para com os seus ex-senhores e vice-versa. 2º Os direitos e obrigações dos demais libertos sujeitos á prestação de serviços e daquelles a quem esses serviços devam ser prestados. 3º A intervenção dos Curados geraes por parte do escravo, quando este fôr obrigado á prestação de serviços, e as attribuições dos Juizes de Direito, Juizes Municipaes e de Orphãos e Juizes de Paz nos casos de que trata a presente Lei. § 1º A infracção das obrigações a que se referem os ns. 1 e 2 deste artigo será punida conforme a sua gravidade, com multa de 200$ ou prisão com trabalho até 30 dias. § 2º São competentes para a imposição dessas penas os Juizes de Paz dos respectivos districtos, sendo o processo o do Decreto n. 4824 de 29 de Novembro de 1871, art. 45 e seus paragraphos. § 3º O acoutamento de escravos será capitulado no art. 260 do Codigo Criminal. § 4º O direito dos senhores de escravos á prestação de serviços dos ingenuos ou á indemnização em titulos de renda, na fórma do art. 1º, § 1º, da lei de 28 de Setembro de 1871, cessará com a extincção da escravidão. 129 § 5º O Governo estabelecerá em diversos pontos do Imperio ou nas Provincias fronteiras colonias agricolas, regidas com disciplina militar, para as quaes serão enviados os libertos sem occupação. § 6º A occupação effectiva nos trabalhos da lavoura constituirá legitima isenção do serviço militar. § 7º Nenhuma Provincia, nem mesmo as que gozarem de tarifa especial, ficará isenta do pagamento do imposto addicional de que trata o art. 2º. § 8º Os regulamentos que forem expedidos pelo Governo serão logo postos em execução e sujeitos á approvação do Poder Legislativo, consolidadas todas as disposições relativas ao elemento servil constantes da Lei de 28 de Setembro de 1871 e respectivos Regulamentos que não forem revogados. Art. 5º Ficam revogadas as disposições em contrario. Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 28 de Setembro de 1885, 64º da Independencia e do Imperio. Imperador com rubrica e guarda. Antonio a Silva Prado. Carta de lei, pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléa Geral, que Houve por bem Sanccionar, regulando a extincção gradual do elemento servil, como nelle se declara. Para Vossa Magestade Imperial Ver.João Capistrano do Amaral a fez. Chancellaria-mór do Imperio. - Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. 130 ANEXO E– LEI DO VENTRE LIVRE Lei nº 2.040, de 28 de Setembro de 1871 Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annual de escravos. A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte: Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. § 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. § 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização pecuniaria, que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização. § 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter quando aquellas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mãis. Se estas fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo. § 4º Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito annos, que estejam em poder do senhor della por virtude do § 1º, lhe serão entregues, excepto se preferir deixal-os, e o senhor annuir a ficar com elles. § 5º No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos livres, menores de 12 annos, a acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava subrogado nos direitos e obrigações do antecessor. § 6º Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1°, se, por sentença do juizo criminal, reconhecer-se que os senhores das mãis os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos. 131 § 7º O direito conferido aos senhores no § 1º transfere-se nos casos de successão necessaria, devendo o filho da escrava prestar serviços á pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma escrava. Art. 2º O Governo poderá entregar a associações por elle autorizadas, os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores dellas, ou tirados do poder destes em virtude do art. 1º § 6º. § 1º As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 annos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas: 1º A criar e tratar os mesmos menores; 2º A constituir para cada um delles um peculio, consistente na quota que para este fim fôr reservada nos respectivos estatutos; 3º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada collocação. § 2º As associações de que trata o paragrapho antecedente serão sujeitas á inspecção dos Juizes de Orphãos, quanto aos menores. § 3º A disposição deste artigo é applicavel ás casas de expostos, e ás pessoas a quem os Juizes de Orphãos encarregarem da educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos creados para tal fim. § 4º Fica salvo ao Governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos publicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o § 1º impõe ás associações autorizadas. Art. 3º Serão annualmente libertados em cada Provincia do Imperio tantos escravos quantos corresponderem á quota annualmente disponivel do fundo destinado para a emancipação. § 1º O fundo de emancipação compõe-se: 1º Da taxa de escravos. 2º Dos impostos geraes sobre transmissão de propriedade dos escravos. 3º Do producto de seis loterias annuaes, isentas de impostos, e da decima parte das que forem concedidas d'ora em diante para correrem na capital do Imperio. 4º Das multas impostas em virtude desta lei. 5º Das quotas que sejam marcadas no Orçamento geral e nos provinciaes e municipaes. 6º De subscripções, doações e legados com esse destino. § 2º As quotas marcadas nos Orçamentos provinciaes e municipaes, assim como as subscripções, doações e legados com destino local, serão applicadas á emancipação nas Provincias, Comarcas, Municipios e Freguezias designadas. Art. 4º É permittido ao escravo a formação de um peculio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo peculio. § 1º Por morte do escravo, a metade do seu peculio pertencerá ao conjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmittirá aos seus herdeiros, na fórma da lei civil. 132 Na falta de herdeiros, o peculio será adjudicado ao fundo de emancipação, de que trata o art. 3º. § 2º O escravo que, por meio de seu peculio, obtiver meios para indemnização de seu valor, tem direito a alforria. Se a indemnização não fôr fixada por accôrdo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciaes ou nos inventarios o preço da alforria será o da avaliação. § 3º É, outrossim, permittido ao escravo, em favor da sua liberdade, contractar com terceiro a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete annos, mediante o consentimento do senhor e approvação do Juiz de Orphãos. § 4º O escravo que pertencer a condominos, e fôr libertado por um destes, terá direito á sua alforria, indemnizando os outros senhores da quota do valor que lhes pertencer. Esta indemnização poderá ser paga com serviços prestados por prazo não maior de sete annos, em conformidade do paragrapho antecedente. § 5º A alforria com a clausula de serviços durante certo tempo não ficará annullada pela falta de implemento da mesma clausula, mas o liberto será compellido a cumpril-a por meio de trabalho nos estabelecimentos publicos ou por contractos de serviços a particulares. § 6º As alforrias, quér gratuitas, quér a titulo oneroso, serão isentas de quaesquer direitos, emolumentos ou despezas. § 7º Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é prohibido, sob pena de nullidade, separar os conjuges, e os filhos menores de 12 annos, do pai ou da mãi. § 8º Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não comportar a reunião de uma familia, e nenhum delles preferir conserval-a sob o seu dominio, mediante reposição da quota parte dos outros interessados, será a mesma famlia vendida e o seu producto rateado. § 9º Fica derogada a Ord. liv. 4º, titl 63, na parte que revoga as alforrias por ingratidão. Art. 5º Serão sujeitas á inspecção dos Juizes de Orphãos as sociedades de emancipação já organizadas e que de futuro se organizarem. Paragrapho unico. As ditas sociedades terão privilegio sobre os serviços dos escravos que libertarem, para indemnização do preço da compra. Art. 6º Serão declarados libertos: § 1º Os escravos pertencentes á nação, dando-lhes o Governo a occupação que julgar conveniente. § 2º Os escravos dados em usufructo à Corôa. § 3º Os escravos das heranças vagas. § 4º Os escravos abandonados por seus senhores. Se estes os abandonarem por invalidos, serão obrigados a alimental-os, salvo o caso de penuria, sendo os alimentos taxados pelo Juiz de Orphãos. 133 § 5º Em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco annos sob a inspecção do Governo. Elles são obrigados a contractar seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos publicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exhibir contracto de serviço. Art. 7º Nas causas em favor da liberdade: § 1º O processo será summario. § 2º Haverá appellações ex-officio quando as decisões forem contrarias á liberdade. Art. 8º O Governo mandará proceder á matricula especial de todos os escravos existentes do Imperio, com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se fôr conhecida. § 1º O prazo em que deve começar e encerrar-se a matricula será annunciado com a maior antecedencia possivel por meio de editaes repetidos, nos quaes será inserta a disposição do paragrapho seguinte. § 2º Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados á matricula, até um anno depois do encerramento desta, serão por este facto considerados libertos. § 3º Pela matricula de cada escravo pagará o senhor por uma vez sómente o emolumento de 500 réis, se o fizer dentro do prazo marcado, e de 1$000 se exceder o dito prazo. O producto deste emolumento será destinado ás despezas da matricula e o excedente ao fundo de emancipação. § 4º Serão tambem matriculados em livro distincto os filhos da mulher escrava, que por esta lei ficam livres. Incorrerão os senhores omissos, por negligencia, na multa de 100$ a 200$, repetida tantas vezes quantos forem os individuos omittidos, e, por fraude nas penas do art. 179 do codigo criminal. § 5º Os parochos serão obrigados a ter livros especiaes para o registro dos nascimentos e obitos dos filhos de escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os parochos á multa de 100$000. Art. 9º O Governo em seus regulamentos poderá impôr multas até 100$ e penas de prisão simples até um mez. Art. 10. Ficam revogadas as disposições em contrário. Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O Secretario de Estado de Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de Setembro de mil oitocentos setenta e um, quinquagesimo da Independencia e o Imperio. PRINCEZA IMPERIAL REGENTE Theodoro Machado Freire Pereira da Silva. 134 ANEXO F – PROIBIÇÃO DE LEILÕES DE ESCRAVOS Decreto nº 1.695, de 15 de Setembro de 1869 Prohibe as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição publica. Hei por bem Sanccionar e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléa Geral: Art. 1º Todas as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição publica, ficão prohibidas. Os leilões commerciaes de escravos ficão prohibidos, sob pena de nullidade de taes vendas e de multa de 100$000 a 300$000, contra o leiloeiro, por cada um escravo que vender em leilão. As praças judiciaes em virtude de execuções por divida, ou de partilha entre herdeiros, serão substituidas por propostas escriptas, que os juizes receberáõ dos arrematantes por espaço de 30 dias, annunciando os juizes por editaes, contendo os nomes, idades, profissões, avaliações e mais caracteristicos dos escravos que tenhão de ser arrematados. Findo aquelle prazo de 30 dias do annuncio judicial, o juiz poderá renovar o annuncio por novo prazo, publicando em audiencia as propostas se forem insignificantes os preços offerecidos, ou se forem impugnados por herdeiros ou credores que requeirão adjudicação por preço maior. Art. 2º Em todas as vendas de escravos, ou sejão particulares ou judiciaes, é prohibido, sob pena de nullidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãi, salvo sendo os filhos maiores de 15 annos. Art. 3º Nos inventarios em que não forem interessados como herdeiros ascendentes ou descendentes, e ficarem salvos por outros bens os direitos dos credores, poderá o juiz do inventario conceder cartas de liberdade aos escravos inventariados que exhibirem á vista o preço de suas avaliações judiciaes. Art. 4º Ficão revogadas as disposições em contrario. José Martiniano de Alencar, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Justiça, assim o tenha entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro, em quinze de Setembro de mil oitocentos sessenta e nove, quadragesimo oitavo da Independencia e do Imperio. Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador. José Martiniano de Alencar. Chancellaria-mór do Imperio. - José Martiniano de Alencar. Transitou em 20 de Setembro de 1869. - José da Cunha Barbosa. 135 ANEXO G – PROIBIÇÃO DE PENAS DE AÇOITES AOS RÉUS ESCRAVOS Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 3.310 DE 15 DE OUTUBRO DE 1886. Revoga o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes. D. Pedro II, por Graça de Deus e Umanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos que a Assembléa Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte: Art. 1º São revogados o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes. Ao réo escravo serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais legislação em vigor para outros quaesquer delinquentes, segundo a especie dos delictos commettidos, menos quando forem essas penas de degredo, de desterro ou de multa, as quaes serão substituidas pela de prisão; sendo nos casos das duas primeiras por prisão simples pelo mesmo tempo para ellas fixado, e no de multa, si não fôr ella satisfeita pelos respectivos senhores, por prisão simples ou com trabalho, conforme se acha estabelecido nos arts. 431, 432, 433 e 434 do Regulamento n. 120 de 31 de Janeiro de 1842. Art. 2º Ficam revogadas as disposições em contrario. Mandamos, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios da Justiça a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 15 de Outubro de 1886, 65º da Independencia e do Imperio. IMPERADOR, com rubrica e guarda. JOAQUIM DELFINO RIBEIRO DA LUZ. Carta de lei pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléa Geral Legislativa, que Houve por bem Sanccionar, revogando o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes. Para Vossa Magestade Imperial Ver. Benedicto Antonio Bueno a fez.Chancellaria-mór do Imperio. Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. Transitou em 16 de Outubro de 1886. - José Julio da Albuquerque Barros. - Registrada