MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO ANO 4 • N º 2 • ABRIL 1996 Tiragem da 1a edição: 40.000 exemplares ABRIL 96 1 MUNDO Geografia e Política Internacional exclusivo Mundo publica, com exclusividade no Brasil, uma entrevista concedida em março pelo presidente Fernando Henrique Cardoso à mídia internacional. FHC explica a estratégia de seu governo face aos desafios colocados pela globalização, esboça uma visão panorâmica dos problemas nacionais e responde a perguntas sobre sua trajetória ideológica. Mundo, representado na entrevista por Jayme Brener (correspondente da Rádio holandesa e integrante da equipe de colaboradores do boletim), agora brinda seus leitores com este importante ‘‘furo’’ jornalístico. Veja alguns trechos: fernando henrique cardoso ■ Le Monde (França): O Brasil pleiteia um assento no Conselho de Segurança da ONU? FHC: Somos muito mais ambiciosos. O que nós e outros países desejamos é uma reforma das estruturas mundiais de poder, abrindo novos espaços para outros países. ■ Clarín (Argentina): Que tipo de associação o Brasil quer desenvolver com os EUA, em termos de ação conjunta para a América? Qual será o papel do Mercosul na integração? FHC: O Mercosul é e continuará a ser o pilar de nossa política externa. Nossa grande esperança em termos de inserção econômica internacional. ■ Yomiuri Shimbun (Japão): Outro dia encontrei um livro do sociólogo FHC, com uma abordagem marxista dos problemas da América Latina. Muitos estudantes se formaram lendo seus livros. O sr. não acha que eles sentem-se angustiados, ao ver sua conversão ao neoliberalismo? FHC: A angústia é deles, não minha. O mundo mudou. Tive que acompanhar essa mudança. Págs. 6 e 7 Texto & Cultura os mitos da mídia A recente tragédia dos Mamonas Assassinas provocou as cenas já habituais: comoção de fãs, arrependimento dos críticos, homenagem das autoridades -incluindo o presidente- e a peregrinação ao túmulo. Tudo transmitido pela TV, pelo rádio e jornais, horas e dias a fio. A hipnose coletiva promovida pela mídia conseguiu, finalmente, transformar até os rapazes de Guarulhos em heróis -como, antes deles, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e Ayrton Senna.Os mortos -em especial artistas e figuras públicas- brilham agora no cosmo nacional. Viraram constelação, como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, mito maior do panteão tupiniquim. Brilham como deuses, como se a morte tivesse o dom de apagar os seus pecados, para transformá-los em algo transcendente. É como se depois de mortos eles pudessem dar ao Brasil a ‘‘luz’’ que não deram enquanto vivos. Mas também, como sempre, mal termina o choro, começam as piadas: o Brasil zomba do Brasil, faz escárnio da dor. Neste país, até a morte é tratada com escracho. China e Índia: crise e angústia na Ásia Em março, Pequim lançou foguetes de advertência contra a ilha de Taiwan. A reação ‘‘dura’’ de Washington, combinada com interesses econômicos da China -a ilha, um dos “Tigres Asiáticos”, tem US$ 25 bilhões investidos nas Zonas Econômicas Especiais, estrelas do milagre chinês- impediu a guerra, pelo menos momentaneamente. Mas ficou no ar um pesado clima de hostilidade. Na Índia, às vésperas das eleições gerais (em maio), os fundamentalistas hindus ameaçam deflagrar um processo de guerras étnicas e religiosas que, no limite, pode causar a fragmentação da unidade política e territorial do país. O destino da Índia tem relevância mundial: seus atuais 880 milhões de habitantes serão 1,5 bilhão em 2040, configurando a condição de país mais populoso do mundo. China e Índia, cada um à sua maneira, enfrentam uma poderosa crise. Essa situação gera instabilidade na Ásia e, por extensão, lança uma incógnita sobre os parâmetros que deverão nortear o equilíbrio geopolítico mundial no século XXI. Págs. 8 e 9 os significados do comunismo hoje pág. 3 marcas e grifes no mundo globalizado pág. 4 rodada de turim discute crise da ue pág. 5 diário de viagem: terror em londres pág. 10 meio e o homem: as tensões no indo-ganges pág. 11 Texto & Cultura promove concurso nacional de Redação. Vire a página e veja como participar! ABRIL 96 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO sem fronteiras 2 Esta seção acolherá cartas de alunos e professores contendo opiniões e críticas não apenas a respeito dos assuntos tratados no boletim, mas também sugestões sobre sua forma e conteúdo. Só serão aceitas cartas portando o nome completo, endereço telefone e identidade (RG) do remetente. A redação reserva-se o direito de não publicar cartas, assim como o de editá-las para sua eventual publicação. Tenho 16 anos e moro em Santiago (RS), uma cidade com menos de 60 mil habitantes. Tive a oportunidade de morar em Campinas (SP), e lá estudei no COC (Colégio Osvaldo Cruz), quando recebia Mundo todo mês. Agora, de volta a Santiago, gostaria de continuar tendo acesso ao jornal. (Lucinéia Colpo, Santiago - RS) NR - Cara Lucinéia: sua carta -e a de outros leitores em situação semelhante- provoca em nós uma reação contraditória. Ficamos contentes ao conhecer o seu interesse; mas, infelizmente, não há como atender a pedidos individuais de assinatura, por razões técnicas. Somos obrigados a refirmar que só podemos aceitar pedidos acima de 50 assinaturas. ABC do Mundo Contemporâneo -a geopolítica em verbetesConheça o livro ABC do Mundo Contemporâneo, o novo lançamento da Pangea, editora de Mundo. Em 96 páginas, seus cerca de 200 verbetes, colocados em ordem alfabética, abordam as principais questões de nossa época. Seus autores, Demétrio Magnoli, Nelson Bacic Olic e José Arbex Jr., constituem a equipe de Redação de Mundo. O livro, um pequeno glossário de geopolítica, foi concebido como um guia para pesquisa e desenvolvimento de trabalhos escolares. ABC não pretende esgotar conceitos ou enunciar “verdades”. Sua ambição é oferecer um instrumental básico, conciso e de fácil acesso aos leitores. O preço de lançamento de ABC é de R$ 6,00 a unidade (não inclui despesas de envio pelo correio). O livro não será vendido em livrarias. Caso você tenha interesse em adquiri-lo, escreva, telefone ou mande um fax para a sede da Pangea em Ribeirão Preto (SP). End.:Rua Floriano Peixoto, 989 CEP 14.025-010 Fone: (016) 634-8320 Fax: 623-1875. Assine: boletim MUNDO MUNDO A sua escola não precisa esperar nem mais um dia para ter o Mundo. Oferecemos assinaturas ao longo de todo o ano. (v. nossos endereços no Expediente, à pág. 3). • as edições são veiculadas no fim de março, abril, maio, agosto, setembro e outubro • o nº 6 (outubro) é dedicado ao Vestibular • todas as edições contêm 16 páginas, 4 das quais formam o encarte Texto & Cultura • quantidade mínima de assinaturas: 50 por edição • preço unitário do exemplar: R$ 1,80 • pagamento mediante documento bancário com vencimento dez dias após a confirmação da assinatura Exemplos: 1) assinaturas para 120 alunos e professores, edições de maio, agosto, setembro e outubro: 120 (nº de assinantes) x 4 (nº de edições) x R$ 1,80 (preço unitário) = R$ 864,00 2) assinaturas para 180 alunos e professores, edições de agosto, setembro e outubro: 180 (assinantes) x 3 (edições) x 1,80 = R$ 972,00 • Obs: pedidos atrasados (de edições já veiculadas) dependem de disponibilidade de estoque. Os preços são válidos para o Estado de São Paulo. Regiões mais distantes poderão ter acréscimo correspondente ao valor do frete. Mundo-Texto & Cultura organiza Concurso de Redação. Agora só falta você!!! 1. Objetivo do concurso Em todo o mundo, as tecnologias de informação (computadores, TV etc.) praticamente dispensam o uso do texto. Ler e interpretar o Verbo já está se tornando um hábito raro; escrever uma dissertação tornou-se um grande desafio; o domínio do próprio idioma está, cada vez mais, restrito a algumas centenas de palavras. É possível que a humanidade esteja vivendo uma época de transição para uma nova era, basicamente iconográfica. Ainda assim, não se pode, simplesmente, descartar a multimilenar tradição do texto. Se a transição para uma nova cultura tem que ser feita, então que todos sejam sujeitos daquilo que está em jogo. Ler, escrever, estudar, refletir: apropriar-se daquilo que a cultura tem a oferecer, para, em seguida, optar de maneira consciente. Esta é a preocupação central do concurso de Redação: estimular o hábito do contato com o texto, e, assim, contribuir para o processo de formação de massa crítica no Brasil. Esta, aliás, foi a nossa grande ambição ao decidirmos lançar o próprio boletim Mundo - um pequeno e modesto passo face às necessidades do país, onde o conceito de cidadania nunca foi construído. Para que o concurso se desenvolva bem, é essencial a colaboração do professor, especialmente o da área de Comunicação e Expressão. Como veremos abaixo, as normas do concurso prevêem a participação ativa do mestre. Então, mãos à obra!!! 2. Tema da dissertação Apresentamos, em seguida, cinco trechos de textos que fornecem o tema da dissertação. O tamanho máximo da dissertação é de trinta linhas (textos maiores serão desclassificados). A dissertação deverá ter um título, cuja adequação será levada em consideração no momento da avaliação (v. o Regulamento, abaixo). Trecho 1: O campeão mundial de xadrez perdeu. Perdeu para um computador. Foi só uma derrota (e dois empates) em seis partidas disputadas, mas o jogo do enxadrista russo Gary Kasparov contra o super-computador Deep Blue, no último mês, trouxe à tona o misto de fascínio e horror causado no homem por um cérebro artificial capaz de enfrentá-lo. (Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 24.03.1996) Trecho 2: O sonho do homem de construir uma réplica perfeita de si mesmo nunca foi tão intenso como desde a invenção do computador, a partir da década de 50. Mas ainda está muito longe de se efetivar. (Folha de S. Paulo, Caderno Mais, José Luiz da Silva, 24.03.1996) Trecho 3: Tecnologicamente, coloco o desenvolvimento da eletrônica entre os fatos mais significativos do século XX (Era dos Extremos, de Eric Hobsbawn, apud Raymond Firth, antropólogo) Trecho 4: A revolução da microinformática aconteceu e afetou milhões de pessoas (...) Estamos iniciando outra grande viagem. Para onde, também não temos certeza, mas uma vez mais estou convencido de que essa nova revolução afetará um número ainda maior de pessoas e nos levará ainda mais longe. As principais mudanças dizem respeito à maneira pela qual as pessoas vão se comunicar entre si. Essa revolução iminente nas comunicações trará benefícios e problemas muito maiores do que a revolução da microinformática. (A Estrada do futuro, Bill Gates) Trecho 5: Antes mundo era pequeno / Porque terra era grande / Hoje o mundo é muito grande / Porque terra é pequena / Do tamanho da antena parabolicamará (Gilberto Gil) 3. Regulamento do concurso As escolas conveniadas receberão um regulamento detalhado. Divulgamos, abaixo, os principais tópicos: • Quem poderá participar? Todos os alunos de 2º Grau de todas as escolas que assinam o boletim Mundo. • Qual a forma de participação? Cada escola poderá enviar até três redações. A escolha das redações que serão enviadas fica a critério de cada escola. Tomamos a liberdade de sugerir que as escolas realizem um concurso interno de seleção. Importante: poderão participar todos os leitores do boletim, mas apenas mediante a intermediação das escolas e professores. Até por razões técnicas, não poderíamos receber, ler e julgar milhares de redações. Isso significa que só receberemos os trabalhos indicados pelas escolas. • Qual o prazo para o envio das redações? Serão aceitas as redações recebidas na sede de Mundo, em São Paulo (v. endereço no Expediente, à pág. 3), até o prazo máximo de 10 de julho de 1996. • Qual as características das dissertações concorrentes? As dissertações concorrentes deverão ter um tamanho máximo de trinta linhas, e deverão, obrigatoriamente, conter título, que será considerado parte integrante do texto. Cada escola receberá três formulários pautados e numerados, um para cada redação escolhida pela escola. Os trabalhados escolhidos deverão ser copiados para estes formulários, com letra legível. Os formulários, devidamente preenchidos, deverão ser em seguida remetidos à sede de Mundo. Este formato é obrigatório, inclusive para garantir o sigilo dos trabalhos (os professores que julgarão as redações não terão acesso aos nomes dos autores ou de suas escolas). • Quem julgará os trabalhos? Os trabalhos serão avaliados por uma Comissão Julgadora, que será integrada por professores de Comunicação e Expressão de reconhecido saber e experiência no ensino médio. A composição da comissão será divulgada na quarta edição de Mundo, publicada no final de agosto. • Haverá prêmios para os trabalhos vencedores? Sim. Os autores das cinco melhores redações serão premiados por Mundo e pelas empresas que patrocinam o concurso. Outras redações poderão receber prêmios de Menção Honrosa. Os prêmios a serem concedidos serão divulgados na próxima edição de Mundo (final de maio). • As redações serão publicadas? A redação vencedora será publicada e comentada na contracapa da sexta edição de Texto & Cultura (final de outubro). As demais redações poderão ou não ser publicadas. Importante: os autores das redações enviadas concedem a Mundo o direito de publicá-las, sem remuneração autoral, no próprio boletim ou sob outra forma. As redações enviadas não serão devolvidas. MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO crise do comunismo O nome da rosa Julieta - Apenas o teu nome é o meu inimigo. Tu és o teu ser, não um Montecchi. O que é Montecchi? não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte do corpo de um homem. Então, seja outro nome! O que há em um nome? aquilo a que chamamos rosa, teria o mesmo perfume ainda que seu nome fosse outro (...) Romeu - Acato tuas palavras: chama-me apenas amor, e eu serei rebatizado. Nunca mais serei Romeu. O que há em um nome? Que poder é esse que o nome tem, de gerar discórdias e paixões, de construir e destruir impérios? Essas perguntas continuam a atormentar a humanidade, quatro séculos depois que William Shakespeare escreveu Romeu e Julieta (encenada pela primeira vez em 22 de julho de 1596), uma das mais belas peças de amor de toda a história. O poder do nome: não foi outra a questão colocada pelos comunistas da Rússia, quando eles fizeram aprovar no Parlamento de seu país, em março, uma moção pela ‘‘volta’’ da União Soviética. É claro que a URSS não ‘‘voltará’’ por decreto. A URSS era uma ditadura de partido único (o Comunista) que agregava 14 países além da Rússia; era economicamente regida por leis socialistas (economia e finanças estatizadas, planificação da produção estabelecida por metas quinqüenais, subsídio total aos serviços básicos de educação, saúde, transporte e moradia), e era socialmente dividida entre burocratas privilegiados (os membros do partido) e o resto da população. A URSS acabou em dezembro de 1991 (quando foi criada a Comunidade de Estados Independentes, CEI), não por decreto, mas porque seu modelo foi esgotado. A URSS sucumbiu às suas próprias contradições. Propor a ‘‘volta da URSS’’ significa, portanto, pretender que a história retroceda. Ainda assim -e isso é que é estranho-, os nomes ‘‘comunista’’ e ‘‘União Soviética’’ continuam a causar impacto no mundo. Comunista, atualmente, significa muitas coisas diferentes. Na Rússia, designa um grupo político cada vez mais fortalecido pela crise, já que os modelos privatizantes e neoliberais adotados pelo presidente Boris Ieltsin mostram-se incapazes de oferecer soluções reais ao problema crucial do desemprego, da criminalidade e queda vertiginosa do nível de vida. Na China, comunista é o partido que ainda está no poder, e que agrega uma máfia corrupta (v. pág. 8). Os comunistas chineses combinam liberalização econômica com uma feroz ditadura (responsável, por exemplo, pelo massacre de 2 mil estudantes na Praça da Paz Celestial, em junho de 1989). Em Cuba, comunista é o regime encarnado por Fidel Castro, líder da revolução de 1959 e ditador desde aquela época. Neste caso, especificamente, o termo tem uma forte conotação antiamericana, já que Washington elegeu Castro para o posto de Demônio-Chefe, ao lado dos islâmicos Sadam Hussein, Muamar Gadafi e o já falecido aiatolá Khomeini. Na Itália, os comunistas têm chance de ganhar o poder nas próximas eleições gerais, embora com outro nome (Partido Democrata de Esquerda). Caso isso aconteça, eles oferecerão um curioso contraponto aos processos verificados recentemente na Espanha e na França, que tiraram do poder os socialistas e deram a vitória à direita mais conservadora (representada, respectivamente, por José Aznar e Jacques Chirac). Se em cada um desses casos a palavra comunista tem significado distinto, em nenhum ela se identifica com sua origem, estabelecida por Karl Marx no Manifesto Comunista de1848. À época, comunismo designava um movimento organizado do proletariado, cujo objetivo era promover a revolução à escala mundial e implantar um novo sistema -mais justo e solidário- em substituição ao capitalismo. Comunismo, hoje, não guarda semelhança sequer com a concepção leninista, anunciada no início deste século, segundo a qual um partido fortemente centralizado (o‘‘partido de quadros’’) conduziria a humanidade ao paraíso do igualitarismo. Tudo isso acabou. O que há, então, nesse nome, que ainda causa tanto impacto? Talvez seja o fato de que sobrevivem os problemas que provocaram o surgimento do comunismo. A pobreza e a desigualdade nunca foram resolvidas -ao contrário, tendem a aumentar. A ‘‘doença’’ foi mais forte que a suposta ‘‘cura’’. Na comovente história dos jovens de Verona, a rosa poderia mudar o nome, mas manteria o seu perfume. Em nossa história, o comunismo fracassou como sistema, e até serve de rótulo a regimes corruptos e partidos oportunistas. Mas, independente do uso que dele se faça, o nome remete a uma utopia, a uma espécie de perfume característico do espírito: o da rebeldia contra as injustiças (haverá sentimento mais humano?). Não importa, nesse sentido, a intenção dos políticos quando eles falam em ‘‘trazer de volta a URSS’’. Não é da demagogia que a moção extrai sua força, mas de algo muito mais importante e profundo. Desse algo que encontra ressonância na alma e que, ao fazê-lo, atribui ao nome o seu poder. E D I T O R I A L Jerusalém e Asquelom, 25 de fevereiro: 26 mortos. Jerusalém de novo, 3 de março: 18 mortos. Tel Aviv, 4 de março: 14 mortos. Os assassinos foram terroristas suicidas, pessoas desconhecidas, portando sacolas com dinamite e pregos. Em Jerusalém, as cargas mortais foram detonadas na linha de ônibus número 18. Em Asquelom, num ponto de ônibus. Em Tel Aviv, na calçada, após uma tentativa frustrada de entrar num shopping-center lotado de mulheres e crianças que compravam fantasias para o feriado religioso do Purim. As vítimas compartilham uma característica dos assassinos: são pessoas anônimas. Aí está o horror maior - na morte cega, distribuída ao acaso. Os terroristas não agiram sozinhos. Não são loucos, mas elos de uma corrente macabra. A cada um deles, um xeque, na segurança do seu esconderijo, prometeu as graças divinas e todos os prazeres de 72 virgens no paraíso da outra vida. Cada um deles detonou a sua bomba cumprindo um plano prévio, em lugares e horários definidos por uma facção do Hamas que persegue um objetivo político: a destruição do processo de paz no qual se engajaram a OLP e o Estado de Israel. O historiador Arnold Toynbee, escrevendo em 1972 sobre a chacina do Setembro Negro que vitimou atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, apontou a inutilidade política do terror: “Essas ações produzem o efeito contrário ao desejado por quem as perpetra.” Desastrosamente, as reações do governo de Israel à onda de atentados parecem estar desmentindo o historiador. Retomando práticas abolidas progressivamente depois do início do processo de paz, Israel bloqueou não apenas o trânsito de palestinos entre a Cisjordânia e Gaza e o seu território como também toda a circulação entre as cidades e povoados palestinos. Centenas de milhares de palestinos foram impedidos de chegar aos locais de trabalho em Israel, ou de se abastecer ou visitar parentes. Casas de familiares dos terroristas foram dinamitadas, deixando-os desabrigados. A teoria da punição coletiva e o método do terror de Estado ressurgiram pelas mãos de um Shimon Peres acossado pela disputa eleitoral com o Likud. O que Israel faz não é igual ao que fazem os terroristas suicidas. Mas a filosofia oculta nessas reações guarda uma perigosa semelhança: assim como os homens-bomba não escolhem seus alvos, o Estado de Israel trata todo o povo palestino como inimigo, ignora direitos humanos básicos e deflagra uma guerra cega. Os xeques do Hamas agradecem. E X P E D I E N T E MUNDO - Geografia e Política Internacional é uma publicação de Pangea - Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: José Arbex Jr. (Editor Geral), Demétrio Magnoli (Geografia e Política Internacional), Nelson Bacic Olic (Cartografia), Paulo César de Carvalho (Texto & Cultura) Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MT 14.779) Diretor Comercial: Arquilau Moreira Romão Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereços: São Paulo: Rua Romeu Ferro, 501. CEP 05591-000 - Fone: (011) 211-9640; Fone-Fax: 870-1658 Ribeirão Preto: Espaço Cultural Tantas Palavras - Rua Floriano Peixoto, 989 CEP 14.025-010 Fone: (016) 634-8320 Fax: (016) 623-1875. Belém: J.M.C. Morais, Trav. S. Pedro 261 Altos - Bairro do Comércio Belém (PA) CEP 66000-000 Fone: (091) 216-8018 Colaboradores: Jayme Brener, Newton Carlos, J.B. Natali, Nicolau Sevcenko, Rabino Henry I. Sobel, Carlos A. Idoeta (Anistia Internacional), Roberto Kishinami (Greenpeace), Hassan El Emleh (Federação Palestina do Brasil). Texto & Cultura: Agnaldo J. Gonçalves, Emília Amaral, José de Paula Ramos Jr., Lucília M. S. Romão. A Redação não se responsabiliza pela opinião ou informação veiculadas em matérias assinadas. Assinaturas: Por razões técnicas, só oferecemos assinaturas coletivas para escolas conveniais. Pedidos devem ser encaminhados aos endereços acima. Exemplares individuais podem ser obtidos nos seguintes endereços, em SP: • Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), na Faculdade de Geografia da Universidade de SP (USP). • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900. • Em Ribeirão Preto: na Sucursal (v. endereço acima) ABRIL 96 3 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO imagem e valor na era da globalização 4 O império das marcas Beneton - Campanha Publicitária ABRIL 96 Nelson Blecher Especial para Mundo Quando você bebe uma Coca-Cola, compra uma malha da Benetton ou liga o aparelho para assistir à MTV, você não apenas escolheu um refrigerante, uma roupa e uma emissora de TV, mas se associou a uma comunidade global. Em dezenas de países, jovens da sua idade, igualmente influenciados pela mídia, fizeram opções semelhantes naquele mesmo dia. A possibilidade, gerada pelas novas tecnologias de telecomunicações, de espalhar marcas de produtos e serviços por um enorme número de países, ampliou de forma jamais vista o valor dos logotipos. A isso se chama ganhos de escala: é incomparavelmente maior o lucro de empresas com capacidade de vender suas mercadorias em muitos países do que as que estão limitadas a um só mercado. Estamos ingressando em uma era já batizada de economia simbólica, em que o valor de um produto não é mais medido pelos custos de matéria-prima ou dos funcionários envolvidos na produção. O patrimônio mais valorizado, agora, é a capacidade de criação e de reprodução dos bens em escala global. Um programa de computador desenvolvido pela Microsoft de Bill Gates pode alavancar infinitas vezes mais lucros com custos bem inferiores aos dos automóveis da linha de montagem de Henry Ford, pioneiro da indústria automobilística. “A marca passou a valer mais do que a tecnologia em si mesma, pois tornou-se uma garantia de qualidade ou um ‘padrão’’’, afirma o economista Gilson Schwartz. “Quem consegue criar novos padrões, novas marcas, pode criar novos mercados ou conquistar os já existentes.” Eis um exemplo: para incorporar aos seus domínios a indústria de alimentos Kraft, na década de 80, a americana Philip Morris pagou dez vezes mais pelos logotipos SERVIÇO: O Império das Marcas, Nelson Blecher e José Roberto Martins, Marcos Cobra Editora, SP, 1996. O livro não se encontra em livrarias, mas pode ser encomendado pelo fone 0800-161719 a marca Coca Cola, a mais valiosa do mundo, vale US$ 39 bilhões; a dos cigarros Marlboro vem depois, com US$ 38,7 bilhões estampados em seus queijos e sorvetes do que pelos prédios e equipamentos da companhia. É por tudo isso que as empresas gastam fortunas em publicidade. Para que suas marcas sejam cada vez mais familiares aos consumidores. As marcas que não se comunicam tendem a desaparecer, perder força ou cair no esquecimento. Segundo a revista americana Fortune, os executivos da Coca-Cola costumam brincar que se de uma hora para outra todas as fábricas do refrigerante instaladas em mais de cem países desaparecessem, bastaria obter um empréstimo de US$ 100 bilhões junto aos bancos para rapidamente reconstruí-las. Tal é a força da marca mais valiosa do mundo, cujo valor é estimado em US$ 39 bilhões pela Financial World. Na lista anual dessa publicação, a segunda marca mais valorizada é a do cigarro Marlboro (US$ 38,7 bilhões). Outro estudo, da Young & Rubicam, revelou que em uma constelação de 8.500 marcas, Coca-Cola é a que brilha mais forte. Não por acaso, empresas de informática ocupam lugar de destaque. São vinculadas a esse setor de crescimento explosivo seis das dez marcas que escalaram posições em 1995. Isso reflete o poderio e o dinamismo do setor, traduzido por sucessivos lançamentos de novos produtos. Foi no período pesquisado pela revista que a Intel lançou o chip (unidade de mémoria) Pentium. A Microsoft, estimada em US$ 11,7 bilhões, não apenas passou a valer 31% mais que em 1994, como foi apontada como a marca mais bem administrada. A construção de uma marca forte exige anos de investimentos. Ainda assim há o risco de seguir para a coluna dos perdedores. Um levantamento da Copernicus, uma consultoria de marketing de Massachusets, aponta que menos de 10% dos novos produtos são bem-sucedidos o suficiente para permanecer no mercado americano nos dois anos seguintes ao do lançamento. No Brasil, o risco é menor, já que o número de produtos em exposição nas gôndolas é inferior aos 20 mil lançados nos EUA a cada ano. Dos 570 produtos que surgiram por aqui em 1989, 24% não estão mais à venda. Veja só: são necessários cerca de US$ 100 milhões para se lançar uma nova marca de refrigerante nos Estados Unidos. Em outras indústrias, a taxa de fracasso pode ser ainda maior: apenas 1% dos novos produtos introduzidos nas cadeias de fast-food são bem-sucedidos.Em certos casos, nem a providência de consultar previamente os consumidores pode dar garantia. O McDonald’s não decolou as vendas do McLean (hambúrguer diet) mesmo tendo detectado a preferência por produtos mais saudáveis. O caso mais antológico de fracasso foi o da New Coke, que havia sido submetida ao crivo de 190 mil consumidores. Participar da economia global será um fator diferenciador para as empresas na virada do milênio. Veja o caso da Benetton, uma potência no ramo do vestuário. Seu faturamento atinge US$ 2 bilhões anuais. É um negócio sustentado por 7 mil lojas, a maioria sob licenciamento, estabelecidas em quase cem países. Suas 14 fábricas espalham-se pela Itália, França, Espanha, Estados Unidos e Brasil. Para produzir acima de 80 milhões de peças anuais, processa 100 milhões de quilômetros de fios metragem equivalente a mais de 2.500 voltas em torno do planeta. É também a maior consumidora mundial de lã. O sucesso da Benetton deve-se à prática, pioneira no setor, de combinar produção em escala elevada com a volatilidade no mercado da moda. Sua operação é facilitada pelo emprego farto de tecnologia. As encomendas chegam às fábricas através da rede de computadores. Só então as peças semiprontas, confeccionadas em teares automatizados, são tingidas com as cores da moda. Daí o slogan “United Colors of Benetton”. A publicidade heterodoxa da Benetton, apoiada por verba de US$ 80 milhões anuais, vem causando polêmica há uma década, desde que o anúncio “Todas as cores do mundo”, que estampava a foto de um grupo de jovens loiros e negros, fora recusado por revistas sul-africanas. O grupo ganhou uma ação movida contra a Agência Francesa de Luta Contra a Aids, que reivindicava indenização por causa de anúncios em que a expressão HIV Positivo aparecia gravada na nádega do modelo. A Benetton é a indústria que mais aposta em imagens (quase nunca relacionadas aos produtos) para fixar sua marca associada a questões sociais. Algumas companhias brasileiras já estão se aventurando a romper as fronteiras nacionais para garantir um espaço ao sol. É este o caso da Cervejaria Brahma, que depois de fincar sua bandeira na Venezuela e na Argentina, avança para outros países latino-americanos. A Sadia vende suas carnes industrializadas em remotos países do Oriente Médio, como o Kuwait e Emirados Árabes. Talvez você não saiba, mas uma das marcas de café mais vendidas na Rússia traz o aval da Cacique, uma empresa paulista. Nelson Blecher é jornalista, editor executivo da revista Exame. MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO crise na união européia 5 Conferência Intergovernamental dos 15 membros da UE, instalada em março, em Turim, assinala enfraquecimento do eixo franco-alemão e enfrenta a resistência britânica Interesses de Estados nacionais colidem com as metas globais de Maastricht O desafio do novo século começa a ser enfrentado pela União Européia. A 29 de março, os ministros do exterior dos quinze Estados da UE instalaram em Turim, Itália, a Conferência Intergovernamental destinada a rever o Tratado de Maastricht. Prevista para durar nada menos que dezoito meses, a reunião deve encarar os dois problemas permanentes da construção européia: a ampliação geográfica do bloco supranacional e o aprofundamento da integração. O sonho europeu nasceu em 1952, com a criação da Comunidade do Carvão e do Aço (CECA), e consolidou-se com o Tratado de Roma, de 1957, que estabeleceu a Comunidade Econômica Européia (CEE). De lá para cá, os seis Estados pioneiros transformaram-se em quinze, e cada uma das sucessivas ampliações geográficas colocou novos desafios. O ingresso da Áustria, Suécia e Finlândia, em 1995, assinalou o desaparecimento dos neutralismos impostos pela guerra fria e pela “cortina de ferro”. A integração aprofundou-se em 1992, com a supressão da maior parte das barreiras remanescentes à circulação de mercadorias, capitais, serviços e pessoas e a instação do Mercado Único. Na mesma época, o Tratado de Maastricht substituiu o de Roma como documento constitutivo da comunidade, que passou a se chamar União Européia. Em Maastricht, foram desenhadas as novas e ambiciosas metas, da união monetária e das políticas externa e de defesa comuns, a serem alcançadas até o final do século. Em Turim, as metas voltam à mesa de negociação, junto com as candidaturas Refletindo o nacionalismo francês, o general opunha-se ao aumento dos poderes da Comunidade e reEstados da União Européia OCEANO clamava o respeito à soberania dos GLACIAL ÁRTICO Candidatos imediatos Estados nacionais. A “Europa das à integração ISLÂNDIA Pátrias” gaullista deveria se estenLimites da União Monetária der “do Atlântico aos Urais”, ignorando a própria realidade FINLÂNDIA geopolítica da “cortina de ferro”, NORUEGA mas não poderia em nenhuma hiSUÉCIA RÚSSIA pótese colocar em discussão os poESTÔNIA Mar deres dos Estados. Ironicamente, do Norte LETÔNIA DIN. IRLANDA LITUÂNIA esta é hoje, em um ambiente munREINO UNIDO dial muito diferente, mais ou meBELARUS HOLANDA POLÔNIA nos a posição britânica: “sim” à amALEMANHA BÉLGICA REP. UCRÂNIA LUX. pliação geográfica, “não” ao aproTCHECA ESLOVÁQUIA fundamento da integração. MOLDOVA ÁUSTRIA SUÍÇA FRANÇA HUNGRIA Londres, que exigiu uma ESLOV. ROMÊNIA ITÁLIA CROÁCIA cláusula de exceção em Maastricht, Mar Negro BÓSNIA PORTUGAL IUGOSL. BULGÁRIA desobrigando-se de adotar a futuMAC. TURQUIA ESPANHA ALBÂNIA ra moeda única, também não quer EUROPÉIA TURQUIA ouvir falar de política externa coGRÉCIA Mar Mediterrâneo mum e sequer considera a proposÁFRICA ta francesa de nomeação de uma MALTA CHIPRE figura de grande projeção para coordenar as posições européias diante do Por outro lado, a Alemanha de mundo. John Major, acossado pelos à integração de Estados do leste e do MeHelmut Kohl continua a defender o “eurocéticos” de seu partido, defende a ráditerrâneo. O comboio europeu foi movido, cronograma de Maastricht, apesar da pro- pida inclusão de novos Estados, mas dirá desde a CECA, pelo motor franco-alemão. funda crise que afeta a sua economia. Como “não” a todas as propostas de aumento dos O eixo Paris-Bonn, que só não funcionou o relaxamento de critérios é rejeitado pelo poderes das instituições européias e se apeno período gaullista, propulsionou cada um Bundesbank (o poderoso e autônomo Ban- gará com fidelidade canina ao sacrossanto dos grandes passos da construção comuni- co Central), resta ao chanceler enveredar direito de veto. Londres não acredita em tária. Agora, porém, ele começa a falhar. pelo complicado caminho da “Europa em nada que se pareça com uma “Europa feNa França, o governo de Jacques Chirac, velocidades variadas”, que possibilitaria a deral”, embora se delicie com a idéia limiherdeiro da tradição nacionalista do gene- adesão de um núcleo de meia dúzia de pa- tada de um mercado comum tão vasto ral De Gaulle, enfrenta o espectro do de- íses à união monetária no prazo previsto, quanto possível. A Comunidade Européia foi um semprego e da instabilidade social. Figuras enquanto os demais prosseguiriam correnpolíticas destacadas começam a defender do atrás dos “critérios de Maastricht”. Na fruto da guerra fria. O temor inspirado pela uma inversão das prioridades, com a trans- mesma linha europeísta, os alemães favo- União Soviética soldou os destinos da Franferência da ênfase no equilíbrio das contas recem a rápida incorporação pelo menos ça e da Alemanha Ocidental, e chegou a públicas e no combate à inflação para o de alguns candidatos do leste e do Medi- arrastar para a Europa o desconfiado subcrescimento econômico e a proteção dos terrâneo (v. o mapa). É claro que a amplia- marino britânico. A Conferência de Turim empregos nacionais. No governo e na opo- ção numérica dos Estados da UE viria reúne os Estados de uma outra Europa, que sição, levantam-se vozes pedindo o relaxa- acompanhada pelo fortalecimento das ins- não precisam deixar de lado os interesses mento dos rígidos critérios estabelecidos em tituições européias, como o Parlamento de nacionais em nome do perigo comum. A Maastricht para a entrada em vigor da Estrasburgo, e pelo fim do direito de veto missão dos quinze governos é provar que a moeda única ou o adiamento dos prazos. nacional, que hoje permite bloquear qual- integração não depende da Guerra Fria. Não é nada fácil. A classe política teme uma nova onda de quer decisão mais séria. Nos anos 60, Charles De Gaulle greves generalizadas, como a que eclodiu pisou fundo no freio do comboio europeu. em dezembro passado. SERVIÇO: Memórias: a construção da unidade européia, Jean Monnet, Unb, Brasília, 1986. Reflexões sobre a Revolução na Europa, Ralf Dahrendorf, Zahar, RJ, 1991. União Européia: história e geopolítica, Demétrio Magnoli, Moderna, SP, 1994. AT LÂ NT IC O Mar Bálti co UNIÃO EUROPÉIA: NÚCLEO E PERIFERIAS OC EA NO ABRIL 96 Jayme Brener Da Equipe de Colaboradores ■ CNN (Estados Unidos): No caso da aprovação do projeto Sivam, de vigilância sobre a Amazônia, e também na votação da Lei das Patentes, o governo dos Estados Unidos mostrou que exerce um lobby dos mais ativos. Como o sr. explica a coincidência de interesses entre seu governo e a Casa Branca? Fernando Henrique Cardoso: Não creio que o governo dos Estados Unidos tenha atuado como lobby. O projeto Sivam foi elaborado pelo governo brasileiro e tem como objetivo ampliar nosso controle sobre a Amazônia, melhorar a quantidade de dados que podemos obter sobre inúmeros temas, como o meio-ambiente. O que aconteceu foi que uma empresa americana, a Raytheon, ganhou a concorrência e isso não tem nada a ver com o governo dos Estados Unidos. Quanto à Lei das Patentes, é uma discussão que vem sendo travada há cinco anos e tem a ver com a globalização. Precisamos dessa lei não só para regularizar nossa inserção no mundo, mas também porque temos patentes a serem registradas nos Estados Unidos, por exemplo na área de desenvolvimento de sementes. Não houve nenhuma pressão do governo dos Estados Unidos por sua aprovação. Brasil aposta no Mercosul e em parcerias estratégicas para enfrentar os desafios da globalização Em resposta às críticas que recebe por suas freqüentes viagens ao exterior, o presidente Fernando Henrique Cardoso alega que elas fazem parte de seu esforço para integrar o Brasil à economia mundial. FHC declara sua intenção de ampliar os contatos do país com outros mercados - como a China ou a Índia. Como parte desse alegado esforço de “mundialização” do Brasil, FHC concedeu em março a sua primeira entrevista coletiva a correspondentes estrangeiros no Brasil, na sede da Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro. Mais de cem meios de comunicação de todo o planeta - entre eles o boletim Mundo - estiveram presentes. O serviço de comunicação social da Presidência selecionou seis correspondentes -dois dos Estados Unidos e um da Grã-Bretanha, França, Argentina, China e Japão- para formular perguntas, sinalizando as prioridades internacionais do governo. Outros quatro jornalistas, além do presidente (espanhol) da Associação dos Correspondentes Estrangeiros, foram sorteados. FHC falou sobre o Mercosul e a futura integração do Chile, sobre a aproximação estratégica com a China e negou uma política “subserviente” aos Estados Unidos. Sempre em seu estilo, que não dispensa uma pontinha de arrogância ao desfilar os próprios títulos acadêmicos. Sentiu-se em casa com questões provincianas, do tipo “o que o sr. tem a dizer ao povo da Espanha ?”. E só perdeu a esportiva quando uma repórter holandesa insistiu em que o governo prepara uma nova lei que arrancará aos índios nacos importantes de suas reservas. A seguir, os trechos mais importantes: ■ Yomiuri Shimbun (Japão): Eu sou novo no Brasil, mas outro dia encontrei, em um sebo, um livro antigo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, com uma abordagem marxista dos problemas da América Latina. Muitos estudantes se formaram lendo seus livros. O sr. não acha que eles sentem-se angustiados, ao ver sua conversão ao neoliberalismo ? FHC: A angústia é deles, não minha. O mundo mudou, quisesse eu ou não. Tive que acompanhar essa mudança. Lamento se haja estudantes que não tenham seguido essas mudanças na economia e na política mundial, não em meu comportamento. ■ Le Monde (França): O Brasil pleiteia, de fato, um assento no Conselho de Segurança da ONU ? FHC: Somos muito mais ambiciosos. O que nós e outros países desejamos é uma reforma das estruturas mundiais de poder, abrindo novos espaços para outros países. Não só na ONU, como na Organização Mundial do Comércio ou no Fundo Monetário Internacional. O Conselho de Segurança da ONU, como funciona hoje, não nos interessa. Pretendemos, sim, uma maior presença internacional, já que a globalização é irreversível. ■ The New York Times (Estados Unidos): A imprensa brasileira vem publicando muitas críticas sobre a política do governo em relação às populações indígenas. Veja-se o caso do suicídio dos índios guaranis, no Brasil central. Como o sr. vê esse problema ? FHC: O Brasil tem uma política antiga e consistente com relação aos povos indígenas. Trata-se de preservar as condições de vida e reprodução cultural desses grupos. Mas, na realidade, ocorre uma aproximação constante das frentes econômicas pioneiras, rumo às aldeias, o que tem um impacto negativo sobre a cultura indígena. O que a Funai tenta é reduzir esse impacto. Quanto à tribo guarani, não sou antropólogo. Mas fiz um curso de especialização na área e sei que, em sua cultura, há momentos em que eles preferem deixar de viver. Temos que cuidar do problema, sem esquecer que se trata de algo enraizado na cultura, que se agrava com a chegada das frentes pioneiras. Não podemos deixar de lado, também, o fato de que há muita corrupção no relacionamento entre índios e Funai. Há mais de mil índios aposentados. Há muitos índios contratados como funcionários da Funai. Temos que sanear esse relacionamento, assim como evitar que tribos indígenas sejam instrumentalizadas por setores - dentro da Funai - que discordam de nossa política. ■ Agência Nova China: O sr. e os governantes chineses costumam dizer que as economias do Brasil e da China são complementares. O sr. poderia explicar um pouco esse conceito ? FHC: Eu estive na China, assim como o presidente Sarney, e cinco dos principais dirigentes chineses estiveram aqui. Isso demonstra o interesse dos dois países na aproximação. Há uma questão estratégica. Somos duas grandes economias em desenvolvimento, que têm um grau semelhante de avanço tecnológico, mas em áreas diferentes. Há um grau importante de complementaridade. Estamos desenvolvendo, por exemplo, um programa conjunto de construção e lançamento de satélites. Parte do projeto é feita aqui; e outra parte, lá. São muito grandes, também, as potencialidades de cooperação econômica, apesar da distância. A China, no futuro, provavelmente terá que importar mais alimentos, e o Brasil conta com grandes potencialidades nesse setor. A China também tem bastante interesse em nosso minério de ferro. Em geral, como grandes países em desenvolvimento, coincidimos na visão internacional, sobre os espaços a serem ocupados nos centros de decisão, de poder. Essa visão comum, é claro, não tem nada a ver com a situação interna de cada país, que é soberano. ■ Clarín (Argentina): Que tipo de associação o Brasil quer desenvolver com os Estados Unidos, em termos de ação conjunta para a América ? Qual será o papel do Mercosul nessa integração ? FHC: O Mercosul é e continuará a ser o pilar de nossa política externa. Nossa grande esperança em termos de inserção econômica internacional. É fácil observar que ele transformou-se em um sucesso, e não apenas pela análise dos números crescentes do intercâmbio comercial entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. A proposta de integração ao Mercosul do Chile, uma economia muito internacionalizada, é um reconhecimento desse sucesso. Assim como o recente pedido, do governo do México, de uma aproximação íntima com nossos quatro países. Somos favoráveis à integração econômica de toda a América. E acreditamos que a melhor forma de chegar a ela é, nesse momento, fortalecer o Mercosul. ■ El Mundo (Espanha): Houve recentemente eleições na Espanha, com a derrota do primeiro-ministro socialista Felipe González, seu amigo. Como o sr. analisa essa derrota ? FHC: González permaneceu no poder por doze anos. Não sei se podemos creditar a derrota ao fracasso de sua política social-democrata. É impossível evitar algum desgaste em todo esse período, porque os povos querem mudar. E acho bom que mudem. ■ Política (Romênia): A esquerda vem perdendo força na América Latina. Mas em vários países do Leste Europeu, como a Hungria, Polônia ou mesmo a Rússia, os velhos partidos comunistas estão retornando ao poder. Como o sr. vê isso ? FHC: No caso latino-americano, muita gente não percebeu que a globalização é irreversível. Há uma certa falta de base intelectual... Quanto ao reforço dos antigos comunistas no Leste, não vejo problema se se tratar da opção democrática dos povos. Mas não acho que se possa chamá-los de comunistas, como eram no passado. A maioria desses partidos aceita as regras da economia de mercado, embora critique, talvez, o ritmo de sua implantação. ■ The New York Times: Como o sr. avalia o decreto que o ministro da Justiça, Nelson Jobim, vem elaborando, e que permite o questionamento às áreas indígenas já demarcadas? FHC: O ex-presidente Collor, em seu afã de mostrar à comunidade internacional que o Brasil não comete genocídio contra seus índios, baixou um decreto que permite a desapropriação de terras destinadas a reservas, sem direito de contestação pelos proprietários. O decreto do ministro Jobim apenas reconhece o direito de defesa do proprietário, uma garantia constitucional. ■ De Volkskrant (Holanda): Mas o número de reservas indígenas questionadas vem crescendo muito rápido. O sr. não acha que seu governo está cedendo ao lobby dos grandes fazendeiros ? FHC: De jeito nenhum. Eu fui um dos que elaboraram os capítulos da Constituição relativos aos direitos indígenas. Jamais permitiria a eliminação de suas reservas. Olhe, se os índios perderem áreas significativas em meu governo, dou a mão à palmatória. Em público. Mas se acontecer o contrário, você lidera uma campanha para construir uma estátua para mim na Holanda, certo? ■ De Volkskrant: O sr. acha que há espaço para que um governo mais à esquerda que o seu assuma o poder no Brasil ? FHC: Espero que não tão à esquerda como você. Se não, estaríamos perdidos. Editor de Mundo - GePI defende tese sobre política externa brasileira, na USP Segundo Walter Bagehot, liberal inglês do século XIX, as nações são “tão antigas quanto a história”. O historiador Eric Hobsbawm mostrou que não: essa é a versão emanada do nacionalismo, um fenômeno político recente que “fundou” as nações inventando as histórias nacionais e enraizando-as em tempos imemoriais. As nações nutrem-se de mitos -em geral, uma trajetória de séculos e séculos de lutas e sangue na qual teriam se forjado os sentimentos profundos sintetizados nas idéias de pátria e patriotismo. São mitos mobilizadores, como revela uma rápida passada de olhos em povos tão diversos como os sérvios, os católicos irlandeses, os judeus, os russos e - por que não? - os franceses. Muito se falou e escreveu sobre o papel da história na produção dos mitos nacionais: heróis, batalhas inesquecíveis, narrativas lendárias. Em compensação, quase nada foi dito sobre o papel da geografia na invenção do nacionalismo. Mas a representação mais difundida da nação é geográfica: o mapa político, que delimita através do traçado das fronteiras os territórios nacionais. Esses territórios materializam a idéia de pátria, conferindo-lhe um “corpo geográfico” que é o principal objeto das histórias nacionais. Pelo menos tanto quanto a história, a geografia foi o berço que embalou o nacionalismo. É esse o ponto de partida da tese de Demétrio Magnoli, editor de Geografia e Política Internacional do boletim Mundo. Magnoli segue as pistas territoriais da produção da nação brasileira. Nessa trilha, o trabalho revisita a política externa do Império dos dois Pedros, quando o Estado monárquico e escravista assentou as bases do Brasil contemporâneo. O ponto de chegada coincide com a obra de delimitação de fronteiras do Barão do Rio Branco, que nos primeiros anos da República traçou os contornos definitivos do “corpo da pátria”. MUNDO no Vestibular 1) Leia atentamente o texto: “O cientista político Benjamin R. Barber diz que o mundo de hoje apresenta duas principais megatendências políticas, a Jihad e McWorld. A Jihad (palavra árabe que significa “guerra santa”) refere-se ao mundo dos nacionalismos que, segundo o autor, ameaçam balcanizar os Estados nacionais. Já a McWorld (“mistura” entre a marca de computadores McIntosh e a da rede de lanchonetes Mc Donald’s) corresponde a um mundo que caminha rumo à integração político-econômica e à uniformidade. O planeta está ao mesmo tempo se despedaçando e juntando suas partes.” Agora responda e justifique: a) Há exemplos da tendência Jihad na Europa? b) E no continente americano? c) Há exemplos da tendência Mc World na Europa? d) E no continente americano? 2) As descrições a seguir se referem a três países, localizados no Oriente Médio, no continente americano e na Europa. País 1 - “Situado na zona temperada, é banhado por mares ao norte, sul e oeste. Seus 60 milhões de habitantes são, em sua maioria, muçulmanos não-árabes. Ponto de contato entre Ocidente e Oriente, foi durante a Guerra Fria (e ainda é) um dos aliados preferenciais dos EUA na área, em função de sua posição estratégica, já que seu território se estende por dois continentes.” País 2 - “A maior parte está em zona temperada, com exceção de sua porção setentrional. É banhado na parte oriental pelas águas de um oceano e sua fronteira ocidental é marcada pela presença de uma cadeia de montanhas. Cerca de um terço da população reside na área metropolitana da capital, o “coração econômico” do país. A porção meridional, em virtude de suas condições naturais (região fria e seca), apesar de uma relativa potencialidade em recursos minerais, abriga uma pequena parcela da população.” País 3 - “Situado em zona temperada, não possui litoral. É montanhoso, cortado por um dos mais famosos rios do continente, que banha a capital. Durante séculos, foi centro de um império, que se dissolveu ao final da Primeira Guerra. Durante a Guerra Fria, foi “neutralizado” pelos acordos firmados pelas superpotências. Recentemente, passou a integrar um dos mais importantes blocos econômicos da atualidade.” Os países 1, 2 e 3 são respectivamente: a) Irã, México e Hungria b) Iraque, Brasil e Aústria c) Israel, Chile e Suíça d) Turquia, Argentina e Aústria e) Egito, México e Suíça. 3) (UF de Goiás) “A federação manteve-se unida sob o pulso forte do regime comunista (...) Os dissidentes separatistas foram severamente reprimidos. A morte do marechal Tito, em 1980, assinalou o início da crise do Estado multinacional.” (Magnoli D. e Araujo, R. A nova Geografia: estudos de Geografia Geral, 1991, p.216). O texto refere-se à formação e decomposição do Estado iugoslavo. Em relação a esses fatos, explique: a) o significado da expressão “Estado multinacional”, no que diz respeito à extinta Iugoslávia; b) a relação entre a formação da Iugoslávia enquanto “Estado multinacional” e sua desintegração na década de 90. Respostas exclusivo fernando henrique cardoso 1a) Sim, a ex-Iugoslávia que se desintegrou em cinco países (Eslovênia, Croácia, Bósnia, Macedônia e a nova Iugoslávia, formada por Sérvia e Montenegro). Outros exemplos são a antiga Tchecoslováquia(que deu origem à República Tcheca e Eslováquia), os bascos da Espanha e os católicos da Irlanda do Norte. 1b) Sim; parte dos habitantes da província canadense do Quebec, especialmente os de origem francesa, querem a separação. Em outubro de 1995, um plebiscito ali realizado deu vitória, por estreita margem (0,5%) aos não-separatistas. 1c) Sim; a União Européia, composta por quinze países, pretende aprofundar os laços político-econômicos entre os países-membros. 1d) Sim; dois exemplos são significativos, o Nafta (formado por Estados Unidos, Canadá e México) e o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). 6 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO 2) d MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO 3a) No caso da antiga Iugoslávia, o “estado multinacional” referia-se ao mosaico de nacionalidades que compunham o extinto país. Seis eram consideradas principais (elsovenos, croatas, muçulmanos, sérvios, montenegrinos e macedônios) e tinham sua base territorial sobre as seis repúblicas iugoslavas. Além disso, existiam cerca de dez minorias nacionais, com destaque para os albaneses e húngaros. 3b) A Iugoslávia, desde sua origem, no final da Primeira Guerra (1919), foi um Estado criado de forma artificial. O Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, chamado por alguns como “primeira Iugoslávia” foi o resultado da combinação da imposição das potências vencedoras da Primeira Guerra e dos ideais do nacionalismo sérvio. A criação da República Socialista Federativa da Iugoslávia em 1945, manteve a artificialidade da “primeira Iugoslávia”. As tentativas de separatismo, como diz o texto, foram severamente reprimidas por Tito, o novo líder do país. Este foi o cimento que manteve ligadas as seis repúblicas. A morte de Tito deu início à longa agonia que levaria ao desaparecimento da nação iugoslava, em 1991. MARÇO 96 Defesa de Tese de Doutoramento: Título: O Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912) Banca: Fernando Novais (História-USP), Wanderley Messias da Costa (Geo-USP), Eliezer Rizzo (C.Sociais-Unicamp), Clodoaldo Bueno (C.Sociais-Unesp/Marília), Paulo Perides (Geo-USP) Local do evento: FFLCH-USP- Administração, Salão de Teses Data: 10 de maio, 14 horas MARÇO 96 7 ABRIL 96 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO crise e angústia na ásia 8 Na China, ditadura mistura Marx e Confúcio Eleições em Taiwan provocam reação militar de Pequim, mas política de “um país e dois sistemas” é reafirmada A diáspora chinesa (v. o mapa) perderá parte substancial e bilionária com a incorporação de Hong Kong ao territóriomãe, a 1º de julho de 1997. Depois será a vez de Macau, colônia portuguesa ao lado. E Taiwan, “província rebelada”, segundo o jargão oficial da China? As turbulências no estreito entre o continente e a ilha, com disparos de foguetes que poderiam resultar em acidentes de difícil controle, acabaram fortalecendo a idéia de que o estatuto atual ainda vai prevalecer por muito tempo, tendo em vista interesses mútuos capazes, como foi visto, de navegar com segurança em águas encrespadas. O Time, de Londres, chegou a prever desembarque de tropas chinesas em alguma ilhota despovoada de Taiwan, como forma de “acentuar” a disposição de agir militarmente, mas nem isso aconteceu. Taiwan tem capitais e a China tem mão de obra, conjunção ideal numa Ásia com ambições de tornar-se o motor econômico do universo no terceiro milênio. A ilha, reconhecida como um dos “Tigres Asiáticos”, mas sem identidade política própria, tem 25 bilhões de dólares investidos nas Zonas Econômicas Especiais do continente, estrelas do milagre chinês. Especialistas dizem que a China pode se tornar uma megaCingapura nos próximos quinze anos, se os seus índices de crescimento se mantiverem. A comparação com Cingapura, cidade-Estado quase totalmente computadorizada, sob a guarda de regime autoritário que continua a aplicar castigos corporais, agrada a Pequim, esperançosa de que o fenômeno asiático se submeta aos ensinamentos de Confúcio. Embora no passado comunismo e confucionismo tenham se estranhado, agora se tornam mais do que convenientes valores como o sacrifício da liberdade em troca do bem-estar, o conformismo e a obediência hierárquica. OS CHINESES ÉTNICOS FORA DA CHINA CHINA TAIWAN 99% HONG-KONG LAOS 95% 98% 80% TAILÂNDIA CAMBOJA VIETNÃ Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores 1% 20% FILIPINAS 1% 40% 10% MALÁSIA 50% 32% 60% A diáspora chinesa na Ásia oriental e meridional compreende mais de 50 milhões de habitantes. Em Taiwan e Hong Kong - as “Chinas exteriores” eles são quase a totalidade da população. Em Cingapura, formam uma clara maioria, mas também representam minorias numerosas na Malásia e Tailândia. Porém, o que impressiona é a sua participação nas economias locais. A abertura econômica da China Popular possibilita a conexão dos impérios empresariais da diáspora chinesa com o continente, dinamizando os negócios em toda a macro-área da Ásia-Pacífico. 76% 76% CINGAPURA INDONÉSIA 4% 50% Região chinesa de origem Principais concentrações de chineses Cingapura se enquadra nisso, com seus computadores e chicotes, mas não Hong Kong e Taiwan, e essa é a espinha cravada no regime comunista chinês, razão maior da crise recente no estreito de Formosa. Com as primeiras eleições diretas para presidente, realizadas em março, Taiwan assume, bem ou mal, padrões de democracia aceitáveis pelo Ocidente, enquanto no continente prossegue a repressão feroz a dissidentes. Aumentam as pressões da Europa e Estados Unidos na questão dos direitos humanos e a Anistia Internacional lançou campanha mundial de denúncia da China, onde existem oficialmente 2.678 presos acusados de “crimes contra-revolucionários”. Foram 1.147 execuções no primeiro semestre de 1995, três SERVIÇO: A Revolução Chinesa, Holien Gonçalves Bezerra, Atual/Unicamp, SP, 1986 Revolução em 3 Tempos - URSS, Alemanha, China, José Arbex Jr., Moderna, SP, 1993 Filmes em vídeo sobre a China: O Último Imperador, Bernardo Bertolucci, China/Grã-Bretanha/Itália, 1987 Adeus, minha Concubina, Chen Kaige, China-Hong Kong, 1993 Porcentagem de chineses étnicos no total da população Participação dos chineses étnicos na produção econômica vezes mais do que no resto do mundo. A “abertura” em Taiwan tem muito a ver com cobranças redobradas aos chineses. Também Hong Kong é parte da espinha. O atual governador inglês, Chris Patten, talvez o último da era colonial, procura deixar um legado de reformas democráticas bastante modestas, já que ele continua a ser a instância final das decisões. Para a China, no entanto, elas são espantalho. Nas eleições de setembro do ano passado para o Conselho Legislativo de Hong Kong, o Partido Democrático, do advogado Martim Lee, ganhou 12 das 15 cadeiras em disputa, com 72% dos votos. O partido pró-China ficou com duas. “As eleições mostraram que o povo de Hong Kong quer uma democracia verdadeira”, proclamou o vitorioso Lee, acusado pelos chineses de “traidor” e “sedicioso”. Há o compromisso, por parte de Pequim, de manter o “modo de vida” de Hong Kong pelo menos durante 50 anos. Seria a política de “um país e dois sistemas”, confirmada agora em março pelo Partido Comunista. Mas já se fala que “desonras do passado precisam ser expurgadas”, sem que se saiba muito bem o que isso significa. Para contrabalançar as dificuldades políticas, o regime comunista trata de se aproximar da bilionária comunidade dos negócios de Hong Kong. “Estamos interessados em negócios e não em política, Hong Kong é uma sociedade econômica”, disse um dos 12 bilionários que em dezembro cruzaram a fronteira para encontrar-se com Jiang Zemin, o manda-chuva chinês. Confucionismo na versão cingapurense, do agrado da China. Ventos da diáspora acabariam colocando a China no caminho de uma “quinta modernização”, como pede o dissidente histórico Wei Jingsheng ? O Partido decidiu abrir a China para o mundo exterior visando a “quatro modernizações”: na agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa nacional. A quinta seria a democracia, sem a qual “tudo o mais falhará”, segundo Wei. “Trata-se de um político romântico”, reage Xiao Gongqin, da Universidade de Xangai. Intitulando-se um realista “neoautoritário”, Gongqin argumenta que a China, em transição política e econômica, “precisa de mãos duras para evitar o caos”. Contra a democracia, pesam na China a tradição confuciana, espertamente reeditada, massas rurais quase em estado primitivo, classe média fraca, cultura política moldada em regras imperiais. Maerle Goldman, professor da Universidade de Boston, escreve que “nas tradições chinesas não existem aspectos que possam promover a democracia”. A diáspora, portanto, é que estaria saindo dos trilhos. MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO crise e angústia na ásia 9 Na Índia, tensão étnica e religiosa ameaça o Estado Crescimento do fundamentalismo hindu acirra conflitos com os muçulmanos e coloca em risco a frágil democracia indiana A ÍNDIA AMEAÇADA AFEG ANIST ÃO Sob controle da China JAMU E CACHEMIRA CHINA HIMACHAL PRADESH PAQUISTÃO TIBET PUNJAB Fronteiras contestadas pela China HARIANA L HA NAC ARUADESH PR NEPAL Nova Delhi 1 UTAR PRADESH BUTÃO RAJASTÃ 6 ASSAM 2 BIHAR GUJARAT MADHYA PRADESH Í N D I 3 4 A ORISSA MAHARASTRA 5 BENGALA OCIDENTAL Calcutá BANGLADESH MYANMAR Em maio de 1996, a Índia realizará eleições gerais, fato que periodicamente vem se repetindo desde 1947, data em que o país conquistou sua independência da Grã-Bretanha. Os destinos políticos da Índia têm relevância mundial: com cerca de 880 milhões de habitantes e previsões de chegar a 1 bilhão no ano 2000 e 1,5 bilhão em 2040, a Índia deverá se tornar o país mais populoso do mundo, superando a China. De certa forma, os problemas hoje enfrentados pela Índia constituem uma bomba de efeito retardado para o resto do mundo. A população da Índia constitui um verdadeiro mosaico étnico, religioso e lingüístico. Habitam o país povos de origem ariana de pele clara na parte norte, povos dravidianos de pele escura no sul e populações de característica mongol e centro-asiática em regiões do Himalaia e do leste. Quanto ao aspecto religioso, a comunidade mais expressiva é a hindu, que compreende 82% da população e coexiste com uma das maiores comunidades muçulmanas do mundo, com mais de 100 milhões de pessoas. Além disso, há importantes minorias cristãs, sikhs e budistas. Apesar da grande maioria hindu, o governo central tem permanentemente reafirmado o caráter laico do Estado. Isso pode ser atribuído ao fato de o hinduísmo, cuja filosofia se assenta sobre um sistema aberto à pluralidade, ter sido a base da consciência nacional. Essa maneira plural de ver o mundo contribuiu para manter a unidade do país, apesar de todas as diversidades. A variedade lingüística é enorme. Cerca de mil e seiscentas línguas e dialetos convivem no país, com importância numérica muito desigual. O hindi, falado por 40% da população é apenas uma das 14 línguas consideradas oficiais, sem contar o inglês, usado pelas elites. Típico país do chamado Terceiro Mundo, apresenta grandes desigualdades sociais, mas o que chama a atenção é a sobrevivência do seu sistema de castas, sem paralelo no mundo. As castas correspondem a classes de pessoas que tendem a permanecer separadas das outras por seus privilégios, preconceitos e costumes. Calculase que existam no país cerca de 3 mil castas e 25 mil subcastas. Ainda que sua importância tenha diminuído nos meios urbanos, esse sistema exerce ainda grande influência no tecido social da Índia rural, que concentra 70% da população do país. A Cons- Golfo de Bengala Bombaim ANDHRA PRADESH OCEANO ÍNDICO KARNATAKA Madras TAMIL NADU Tensões geopolíticas de primeira grandeza Estados onde em 1992/93 ocorreram confrontos graves entre fundamentalistas hindus e muçulmanos Áreas da Cachemira sob controle do Paquistão SRI LANKA ABRIL 96 1 - SIKIM 2 - MEGHALAYA 3 - TRIPURA 4 - MIZORAM 5 - IMPHAL 6 - NAGALAND Fundamentalismo hindu lidera oposição O Partido do Congresso, originado do Congresso Nacional Indiano, movimento pela independência criado por Mahatma Gandhi, governa a Índia desde 1947, com raras e fugazes interrupções. A antiga primeira-ministra Indira Gandhi (1966-77) consolidou-o como partido da ordem, que agrupa a elite política e as burocracias administrativas regionais em um sem-número de facções rivais internas. O BJP (Bharatiya Janata Party), partido nacionalista e hinduísta, é o grupo oposicionista mais poderoso. Seu crescimento surpreendente, que lhe permitiu controlar governos regionais do Vale do Ganges, deve-se ao desgaste provocado pela corrupção no governo e à sua mensagem fundamentalista, dirigida contra a minoria muçulmana. SERVIÇO: Filmes em vídeo sobre a sociedade e a política na Índia: Passagem para a Índia, David Lean, Grã-Bretanha, 1984 Gandhi, Richard Attenborough, Índia/Grã-Bretanha, 1982. A Cidade da Esperança, Roland Joffé, França/Grã-Bretanha, 1992. tituição em vigor não reconhece valor algum no sistema de castas. A União Indiana, um Estado federal e parlamentarista, nasceu com o fim do domínio colonial britânico sobre o Indostão. O desmantelamento do Império Britânico das Índias resultou na partilha da antiga colônia em dois países, segundo critérios religiosos: a Índia, de maioria hinduísta, e o Paquistão, muçulmano. Este, por sua vez, ficou geograficamente dividido em duas partes, o Paquistão Ocidental e o Oriental que, em 1971, tornou-se independente, com o nome de Bangladesh. Desde 1947, a Índia vem se defrontando com dois tipos de ameaças à sua integridade territorial. Uma delas é externa, já que dois de seus vizinhos, a China e o Paquistão, reinvidicam parcelas do território hindu. A outra é interna e diz respeito a tensões causadas pela grande heterogeneidade da população do país. As reinvindicações da China referem-se a trechos de fronteiras junto ao Himalaia, tanto a noroeste como a nordeste. Conflitos de fronteiras entre os dois gigantes demográficos eclodiram em 1959, 1960 e 1962. Com o irmão-inimigo Paquistão, os problemas dizem respeito à Cachemira. Esta região, onde os muçulmanos perfazem 75% da população, ficou sob controle da Índia depois de enfrentamentos militares em 1947-49 e 1965 (v. o mapa). As tensões internas têm se manifestado tanto no sentido separatista quanto no da obtenção de maior autonomia em relação ao governo central. Merecem destaques os conflitos no interior da Cachemira e no Punjab, onde predominam as populações sikh. Há também contestações menos importantes que eclodem periodicamente no leste do país. Como se tudo isso não bastasse, as tensões religiosas entre fundamentalistas hindus e muçulmanos geraram distúrbios em 1992-93, deflagrados pelos graves episódios em Ayodhya (v. O Meio e o Homem, à pág. 11). A Índia talvez seja mais um Estado-civilização que um Estado-nação. A pluralidade de etnias e religiões no espaço geográfico indiano sobrevive em equilíbrio instável. O Estado conserva uma precária legitimidade, assentada sobre o jogo democrático. Contudo, a soma das crescentes tensões externas e internas com o aumento da influência do fundamentalismo hinduísta podem colocar em risco a frágil democracia indiana. 10 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO Diário de Viagem Cristina Carletti, 42 anos, é editora e atualmente trabalha junto às editoras Ática e Scipione O mês que vivi em perigo Londres é o meu lugar no mundo. Isso explica por que há dez fevereiros consecutivos passo minhas férias lá, embora os invejosos digam que é sintoma da mad cow disease (doença da vaca louca). Neste fevereiro, por exemplo, fui para Londres. Tudo muito bem; até a temperatura negativa foi refresco. O arrepio, quando veio, não foi de frio mas do pior tipo, já bem conhecido por lá: de repente, enquanto eu babava no show do Frank Black, uma super-bomba destruía vários blocos de apartamentos e escritórios, matando duas pessoas, mutilando dezenas, desabrigando centenas -felizmente pra mim, do outro lado da cidade. Ninguém acreditou. Eram eles de novo, o IRA, rompendo uma trégua de 17 meses, por conta de achar que o John Major estava fazendo corpo mole com os republicanos irlandeses. Não acompanhei os passos desse senhor nessa questão específica, mas acredito que tenham razão, porque até o partido dele o acha um frouxo. Então, vêm as imagens pela TV e aquela gente toda em estado de choque olhando suas ex-casas, ferida de estilhaço de vidro na melhor das hipóteses, perguntando-se por que mereceram aquilo, uma vez que a grande maioria, além de simples, é simpática à causa separatista. Mas os IRA não têm senso nem sensibilidade e mandaram dizer que era só o começo. Alguns dias e vários alarmes falsos depois, estava eu na plataforma do metrô quando o alto-falante anuncia o fechamento das principais estações das principais linhas for security reasons. Tenho sangue genovês e não ia perder a passagem, por isso decidi ir de metrô para qualquer lugar, e de qualquer lugar eu seguiria a pé até o Strand, meu objetivo. Desci, digo, subi em Oxford Circus e peguei a Regent Street. Dois passos adiante a polícia fecha a rua com grande escândalo, expulsa todo mundo -e aquilo é um mundo- para as ruas laterais e desvia o trânsito. Nenhuma explicação e ainda a barulheira de ambulâncias e bombeiros. Segui zonza pela ruazinha, mas então achei uma loja de roupas usadas, comprei uma galinha morta e me animei: voltei sorrateira para a Regent Street e avancei mais um tanto até a polícia me jogar noutra lateral. Nessa, achei uma confeitaria memorável. Retomei o caminho no mesmo esquema, a polícia de novo, e assim cheguei não no Strand mas na esquina onde desativavam uma bomba dentro de uma cabine telefônica. Aquela cabine fica no meu trajeto para os cinemas e galerias... Não era remota a possibilidade de eu engrossar a galeria de mártires involuntários da causa alheia. Havia, claro, a chance de, vitimada, esta inocente inútil ser socorrida pelo Daniel Day-Lewis, irlandês ele mesmo, talvez passando por ali a inspecionar a obra dos patrícios. Mas naquela ocasião a brasileira que o Tom Cruise acudiu não tinha sido atropelada e eu ainda não acreditava em Deus. O Strand, mais precisamente o bar onde encontro meus amigos do King’s College depois do expediente, apareceria em todos os jornais do mundo na segunda-feira seguinte. A vista do bar nas fotos ficou prejudicada pela carcaça do ônibus que explodiu na frente dele à noite. Dessa vez foi um dos IRA que empacotou mal a bomba e estourou com ela. O diabo que o carregue mas motorista e passageiros foram para a sala de espera do inferno, a UTI, muito esfolados. Vasculhando o apartamento do incompetente, a polícia descobriu lá muitas coisas interessantes, mas a melhor, na minha opinião, é a papelada detalhando os arredores das residências da rainha e do senhor primeiroministro, o frouxo. Corre-corre dos caminhões do exército despejando soldados nos ditos arredores. Isso demonstrou que o IRA estava se tornando seletivo, o que é digno de apreço. Mas, como eles não afirmaram que deixariam em paz o mortal comum, todos tratamos de continuar espertos. Excessivamente espertos. No penúltimo dia das minhas voláteis férias, fui a uma das imensas lojas HMV. Desci ao subsolo atrás de um disco medonho que minha irmã encomendou e que eu decidi que, por ser medonho, ia achálo numa liquidação. A seção meio vazia, eu mais um sujeito garimpando ao som de uma falação interminável entre o que me pareceu ser Nara Leão e Tom Jobim. Acho que é o Anthology do pobre Jobim. Surge um funcionário da loja, um afro-britânico enorme - com perdão do pleonasmo - e começa a repor discos nas prateleiras. Nisso ele vira pra mim e pergunta: “Essa mala é sua?” Só aí é que eu vi a mala. Não, não é minha, e já olhamos os dois para o sujeito ao lado, em coro: “É SUA?” Também não. Recuamos os três, os olhos pregados na mala. Mas, antes que o instinto nos atirasse escada acima, o funcionário, com aquele vozeirão, gritou: “de quem é esta fucking mala!?!?!” Lá do fundo vem “o mala” proprietário, carregando aquele sorriso inteligente e dizendo “He, he, sorry”. Tanta adrenalina acionada tinha que servir pra alguma coisa, deve ter pensado o crioulo que, num pulo, pegou o cavalheiro pela gola e sacudiu tanto, mas tanto, até gravar a lição na memória rígida do extraviado. E ainda me faltam nove meses até fevereiro... Terror prefere as cidades Terrorismo, segundo uma definição amplamente aceita, é uma ação violenta contra vítimas civis ou militares fora de serviço, com o objetivo de criar impacto e propagandizar certas idéias ou causas. Há várias formas de terrorismo: de Estado, de grupos étnicos, de seitas religiosas etc. O terrorismo urbano ocorre no entrecruzamento de dois processos relativamente recentes e fundadores da modernidade: de um lado, a formação das metrópoles; de outro, a introdução de novas tecnologias que permitem a rápida disseminação da informação (fundamental para criar o impacto desejado pelo terror). A percepção da multidão como massa anônima, formada por indivíduos solitários nasceu com as metrópoles, na Europa em fase de industrialização do século XIX. A retina dos escritores foi a primeira a captá-la. Charles Baudelaire enxergou em Paris um ‘‘banho de multidão” e percorreu poeticamente o trajeto entre a aglomeração e a solidão. Edgar Alan Poe vasculhou o “tumultuoso mar de cabeças humanas” de Londres e Charles Dickens lamentou a ditadura do tempo útil e a supressão dos devaneios. Karl Marx diria que o capitalismo criou comunidades aparentes, pois aquilo que agrega os homens nas cidades é também aquilo que os separa: o mercado, a disputa por lucros, empregos e salários. Não por acaso, o terrorismo contemporâneo encontrou seu ambiente ideal nessa aglomeração de seres anônimos. Nesse cenário, a incomunicabilidade entre os indivíduos -ao mesmo tempo vizinhos e estranhos- é a grande matriz do medo. Estupros, assaltos e homicídios, violência policial, engarrafamentos, pressões econômicas -tudo contribui para manter os nervos à flor da pele. O pano de fundo é a percepção de que a vida humana nada vale, após os morticínios praticados nas guerras mundias, nas incontáveis guerras civis e face à ameaça permanente do holocausto nuclear. Nesse clima, a interrupção violenta da circulação urbana rotineira pela explosão assassina amplia a sombra da insegurança sobre o cidadão comum. Roma e Milão, atormentadas pelas bombas das Brigadas Vermelhas, nos anos 70, lacraram os guarda-volumes de aeroportos e estações ferroviárias. Madrid, alvo das ações dos separatistas bascos do ETA, acostumou-se a uma onipresente e pouco eficaz vigilância policial. Em Jerusalém e Tel Aviv, os suicidas do Hamas esvaziaram as ruas, ônibus e centros de compras nos fins-de-semana recentes. Londres viveu mais de uma década sob o espectro do IRA , mas respirava aliviada desde agosto de 1994, quando os separatistas católicos anunciaram uma trégua por tempo indefinido (v. Mundo nº1, pág. 8). O fim da trégua reinstala agora a lógica aleatória do terror. Ilustração Laís Guaraldo ABRIL 96 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO Nelson Bacic Olic O Ganges é o rio sagrado dos hindus. Ao longo de seu vale, encontram-se situados alguns lugares santos, como Benares e Ayodhya. Com nascentes no Himalaia do Nepal, o Ganges deságua cerca de 2.500 km depois, no golfo de Bengala. Algumas dezenas de quilômetros antes de sua foz, suas águas se juntam às do rio Bramaputra, formando um imenso delta. Grande parte desse delta corresponde ao território onde se localiza Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo e vítima de inundações a cada nova monção de verão. Problemas ao longo do vale do Ganges não faltam. Em seu alto vale, eles são de caráter ambiental: a derrubada indiscriminada de matas no Nepal tem agravado o assoreamento, tanto na porção do rio que corre na Índia como na parte que drena áreas de Bangladesh. O médio vale do rio sempre se caracterizou como o principal eixo de penetração da Índia setentrional. O vale do Ganges facilitou, por exemplo, a penetração de muçulmanos e a dos colonialistas britânicos. Na porção indiana do vale vive metade da população do país. Estão aí localizados três dos quatro Estados mais populosos, e também mais da metade dos 100 milhões de muçulmanos que habitam a Índia. O baixo vale do rio drena parcelas consideráveis de Bangladesh, o terceiro país do mundo em número de muçulmanos. As diversidades encontradas ao longo do vale são inúmeras, especialmente em território da Índia. É um mundo tradicionalmente rural, mas que possui em contrapartida enormes cidades. Aí coexistem e se justapõem locais sagrados de hindus e muçulmanos. Periodicamente, ocorrem lutas entre as duas comunidades -como aconteceu em 1992, em Ayodhya, onde uma mesquita foi destruída por fundamentalistas hindus, sob a alegação que ela havia sido construída sobre o local de nascimento do deus Brahma. Em seguida, uma série de atentados se verificaram em algumas grandes cidades da Índia e foram atribuídos aos muçulmanos. Segundo algumas autoridades, esses atentados teriam sido monitorados do exterior, isto é, do Paquistão, república islâmica localizada na fronteira ocidental da Índia. Começava assim mais um episódio da rivalidade entre Índia e Paquistão, que se manifesta periodicamente desde 1947, data da independência dos dois países. tadas por etnias também encontradas na Índia; a outra, a oeste, é etnicamente próxima ao mundo afegão, representada especialmente pelas etnias pata e baluque. De forma geral, os climas do Paquistão são predominantementes áridos e semi-áridos. Não fosse o Indo e seus afluentes, o país teria imensas dificuldades na produção de alimentos. Os sistemas de irrigação do Sind e do Punjab (região partilhada entre Índia e Paquistão, em 1947), transformaram esta última no “celeiro” do Paquistão. Este fato realçou o Punjab como a região mais dinâmica do país, gerando ressentimentos e rivalidades com as populações do Sind. Fora as rivalidades regionais, a heterogeneidade étnica implica diferenças de mentalidade e estruturas sociais. Além disso, há as diferenças religiosas entre sunitas (majoritários) e xiitas. Há ainda, no Sind, rivalidades entre os seus habitantes tradicionais e os mohajires, muçulmanos da Índia que migraram para lá em 1947. Durante a invasão soviética do Afeganistão (1979-88), o Paquistão foi um ponto de apoio fundamental para os guerrilheiros contra as tropas soviéticas e o governo pró-Moscou. A retirada soviética não encerrou o conflito interno afegão, que vez por outra ameaça transbordar para o vizinho Paquistão. Certos setores das etnias baluque e pata (existentes também no Afeganistão) sonham com países independentes. OS VALES DO GANGES E DO INDO AFEGANISTÃO Islamabad o Ganges, rio sagrado dos hindus Ind Guerras e tensões dilaceram o vale do Indo China de 1720 até 1913, quando conseguiu sua independência. Em 1951, foi ocupado pelo Exército comunista e, desde então, se transformou num dos principais focos de tensão no interior da China. O chefe religioso e temporal dos tibetanos, o dalai lama, desde 1959 encontra-se refugiado na Índia, de onde dirige a resistência contra a opressão nacional. Na Índia, o rio atravessa regiões convulsionadas. À margem direita, está a região de Aksai-Chin, área planáltica que faz parte dos contrafortes da cadeia do Himalaia. Desde a época do Império Colonial Britânico, as fronteiras entre Índia e China nunca foram claramente demarcadas. Em 1962, um breve conflito entre forças chinesas e indianas definiram fronteiras a favor da China e hoje não reconhecidas pela Índia. Junto à margem esquerda do Indo, localiza-se a Cachemira, região que tem sido objeto de disputas entre a Índia e o Paquistão desde 1947. Habitada majoritariamente por muçulmanos, a Cachemira indiana tem sido palco, periodicamente, de explosões de revolta contra o governo central, causadas tanto por aqueles que pretendem juntar a região ao Paquistão, quanto pelos que almejam criar uma Cachemira autônoma. O Indo se constitui no eixo vital da geografia do Paquistão, dividindo-o em duas áreas étnico-culturais: uma, localizada a leste -regiões do Sind e Punjab, habi- PAQUISTÃO Rio O Meio e o Homem O Indo é, por excelência, o rio do Paquistão, embora seu curso não atravesse apenas territórios paquistaneses. Com pouco mais de 3.000 km de extensão, o rio nasce nos planaltos do Tibet (o “teto do mundo”), em território chinês, cruza o noroeste da Índia (região da Cachemira) e adentra o Paquistão, onde muda bruscamente de direção. Corta este país em praticamente duas partes, e deságua num grande delta junto ao Oceano Índico (v. o mapa). Todas as regiões do alto vale do Indo apresentam ou apresentaram num passado recente tensões geopolíticas. O Indo cruza as áreas ocidentais do Tibet, região autônoma da República Popular da China, que é conhecida com o nome de Xizang. O Tibet possui 1,2 milhões de km2 e 2 milhões de habitantes, sendo os chineses minoritários, apesar dos estímulos à colonização empreendidos por Pequim. O Tibet esteve sob domínio da Pun ja b CHINA Pun ja TIBET b Rio Bramaputra istão u Baluq Sind NEPAL Nova Délhi Rio Ayodhya BUTÃO Ga ng es ÍNDIA OCEANO ÍNDICO MYANMAR BANGLADESH Golfo de Bengala Países muçulmanos limítrofes à Índia Áreas de significativa presença de muçulmanos na Índia ABRIL 96 11 MUNDO Encarte • PANGEA do Boletim • MUNDOMundo • PANGEA Geografia • MUNDO •ePANGEA Política • MUNDO Internacional. • PANGEA • Não MUNDO pode • PANGEA ser vendido • MUNDOseparadamente. • PANGEA • MUNDO ANO MARCO 96 4 • N º 2 • ABRIL 1996 Tiragem da 1a edição: 40.000 exemplares Roy Lichtenstein MUNDO Texto & Cultura heróis sem nenhum caráter a polícia é a Justiça de um mundo cão (Mamonas Assassinas) “O que não falta na História do Brasil são heróis: Cabral, o que descobriu; Martim Afonso, o que colonizou; Anchieta, o que catequizou; Paes Leme, o que desbravou; Calabar, o que traiu; Tiradentes, o que antecipou; D.PedroI, o que gritou; D.PedroII, o que dançou; princesa Isabel, a que redentou; Caxias, o que espadou; Deodoro, o que proclamou; Oswaldo Cruz, o que saneou; Santos Dumont, o que voou; Bilac, o que obrigou; Getúlio, o que se matou; Pelé, o que marcou , e Roberta Close, a que mudou... Para cada herói uma marca: os passos de nosso atraso.’’ (Martin Cezar Feijó) E strepolias, malandragens, sacanagens: palavras recorrentes na história da gente tupiniquim. De fato, uma certa marca de identidade quando se fala em Brasil. Parece até que foram criadas para batizar certos “tipos” muito fortes da galeria nacional, como o baiano poeta barroco Gregório de Matos (o “maldito” que merecidamente ganhou a alcunha de “Boca do Inferno”), ou o diabólico Leonardinho, de Memórias de um Sargento de Milícias. E, claro, o grande personagem mítico brasileiro, Macunaíma, ‘‘herói sem nenhum caráter’’, eterno adolescente preguiçoso, sensual e oportunista que somente adquire grandeza após a morte -quando vira constelação. A ‘‘estrelização’’ dos mortos -em especial dos artistas e figuras públicas- parece, aliás, ser marca registrada da cultura tupiniquim. Ayrton Senna, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves -só para lembrar os casos mais recentes- brilham no cosmo nacional. Como o próprio Macunaíma, viraram constelação -são quase puros, quase deuses. É como se a morte tivesse o dom de apagar os seus pecados, suas falhas, sua humanidade e os transformasse em algo transcendente, uma promessa de redenção. É como se depois de mortos eles pudessem dar ao Brasil a ‘‘luz’’ que não deram enquanto vivos. Essa tendência da cultura nacional é tão forte que não perdoou sequer os cinco Mamonas Assassinas. É muito provável que eles dariam gargalhadas se alguém lhes dissesse que virariam santos depois de mortos. Talvez até compusessem uma nova sátira. Mas o improvável, o absurdo aconteceu -pasmem, até com eles, também filhos, como Leonardo, “de uma pisadela e dum beliscão”. Cinco Leonardinhos, anti-heróis: a comparação não é gratuita. Ainda que um tenha saído do folhetim de Manuel Antônio de Almeida e os outros, do programa do Gugu, eles se irmanam no elemento satírico, na predisposição para o riso. Agiam sem Como Macunaíma, o mítico personagem de Mário de Andradade magistralmente interpretado no cinema por Grande Othelo, os Mamonas Assassinas eram ‘‘heróis sem nenhum caráter’’, transformados após a morte em nova constelação solenidades e sem preocupações de ordem política ou moral. Eram a reedição pop de Macunaíma, nascidos numa anti-Amazônia chamada Guarulhos, ou a encarnação -por que não?- dos “Skrotinhos” do cartunista Angeli. Eram personagens que se colocavam além do bem e do mal, em busca constante de novas vítimas para o “escracho”, o que incluía eles próprios (um dos componentes da banda era um cruelmente satirizado ‘‘bahiano’’, e a Brasília amarela fazia parte do universo familiar da banda). Eles queriam apenas é se divertir, falando a língua errada do povo, a que ouviam em casa e no bairro, a sua própria língua errada,“que é a língua certa do povo” (Manuel Bandeira). Ainda sob o impacto do trágico destino dos cinco Mamonas, esta edição de T&C procura refletir sobre esse aspecto tão fascinante da vida nacional -a necessidade sempre renovada de ampliar sua constelação de mitos e heróis, ainda que sejam apenas novos Macunaímas -que logo serão, inevitavelmente, transformados em objeto de anedotas. Emília do Amaral, especialista em Comunicação e Expressão, discute a postura zombeteira dos garotos de Guarulhos, e a vontade que temos de “deletar essa perda, contando e recontando o que sucedeu na vertigem que foi a vida, paixão e morte daqueles meninos pobres, que louvaram Santos Dumont”. Para ela, a extraordinária trajetória do grupo e a brutalidade de seu desaparecimento fez com que cada um de nós tentasse recriar toda a história, para tentar melhor degluti-la, compreendê-la, metabolizá-la. Cada um de nós foi, subitamente, transformado em narrador. Pág. 4: a seção Redação no Vestibular discute os critérios da Fuvest, e propõe exercícios tendo como base o tema de T&C. Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Redação no Vestibular • Fuvest Pensar com organização, relacionar as etapas do discurso, buscando a unidade, conduzir a discussão a uma síntese adequada: os olhos do texto devem se abrir para dissertar. Isso quer dizer que o percurso do raciocínio (coerência), a estrutura da composição e a pertinência ao tema formam o tripé exigido pela Fuvest para o bom desempenho da redação no seu vestibular. Também se focaliza de modo enfático o uso da norma culta, a valorização da língua bem escrita, com correção e clareza. Se por um lado esses contornos podem parecer tradicionais, por outro há certa flexibilidade criativa na apresentação do tema da prova. Recursos não-verbais (quadros, especialmente) bem como textos literários (poemas, trechos de contos, narrativas curtas, fragmentos de romances) constituem o pilar de sustentação dos temas simbólicos e figurativos. Subjetivos, eles exigem do aluno a ponte articulada do abstrato ao concreto. Uma viagem de volta da metáfora à realidade. Ler, nesse contexto, é revirar as entrelinhas, deixando a superfície num mergulho com rumo certo; é mais que isso: sair mar adentro numa travessia de palavras e imagens. Vamos, em seguida, analisar uma redação nota 10 na prova da Fuvest. Sonhar é preciso Nós somos do tamanho do nosso sonho. Há, em cada ser humano, um sebastianista louco, vislumbrando o Quinto Império; um navegador ancorado no cais, a idealizar “mares nunca dantes navegados” ; e um obscuro D. Quixote de alma grande que, mesmo amesquinhado pelo atrito da hora áspera do presente, investe contra seus inimigos intemporais: o derrotismo, a indiferença e o tédio. Sufocado pelo peso de todos os determinismos e pela dura rotina do pão-nosso-de-de-cada-dia, Toques e Técnicas - introdução dissertativa Cativar o leitor, convidá-lo a entrar no espaço em que se processa a sedução: a introdução dissertativa é portão de entrada para a reflexão. Ela abarca a idéia (tese, ponto-de-vista) que irá gestar o resto do texto: embrião formado pelo tema mais o posicionamento crítico do autor. Determina o encaminhamento argumentativo e direciona a discussão. São vitais nesse primeiro contato: a adequação ao tema, a unidade e clareza de sentido da tese, a propriedade gramatical e a precisão em se demarcar o território do debate. O desenvolvimento dos argumentos só aparece na próxima etapa do texto. Dentre as tantas possibilidades técnicas, algumas formas de introduzir garantem força expressiva, conteúdo distintivo e toque original - recursos eficazes dentro do círculo de mesmice comum nas provas de redação: pergunta - indagação sobre o tema, sempre um questionamento coberto de resposta que desperta o interesse curioso do leitor; fato histórico - demonstração de conhecimentos e recursos históricos como pretexto para iniciar o debate, sugere capacidade de articulação fecunda entre passado e presente; citação - a voz de uma figura conceituada dá credibilidade e impulso ao pensamento do aluno e também expõe um repertório cultural elástico com alguma leitura na bagagem; exemplo real - fato cotidiano, elemento da vida diária, sinaliza uma visão imediata do problema, exposição da realidade como referência do imediato para o vôo rumo ao abstrato; dados estatísticos - números de fontes seguras também mapeiam o tema, sendo exemplos convincentes para fortalecer certa opinião. Sem a prática a teoria funciona pouco. O trabalho agora é criar introduções para os temas abaixo. Lápis na mão e mão na massa... SÓ 3% DOS PRESOS TÊM CURSO SUPERIOR Tema 1) “E fomos educados para o medo. / Cheiramos flores de medo. / Vestimos panos de medo. / De medo, vermelhos rios / vadeamos. / Somos apenas uns homens / e a natureza traiu-nos.” (Carlos Drummond de Andrade) há em cada homem um sentido épico da existência, que se recusa a morrer, mesmo banalizado, manipulado pelos veículos de massa e domesticado pela vida moderna. É preciso agora resgatar esse idealista que ocultamente somos, mesmo que D.Sebastião não volte, ainda que nossos barcos não cheguem a parte alguma, apesar de não existirem sequer moinhos de vento. Senão teremos matado definitivamente o santo e o louco que são o melhor de nós, senão teremos abdicado dos sonhos da infância e do fogo da juventude; senão teremos demitido nossas esperanças. O homem livre num universo sem fronteiras. O nordeste brasileiro verde e pequenos nordestinos, risonhos e saudáveis, soletrando o abecedário. Um passeio a pé pela cidade calma. Pequenos judeus, árabes e cristãos, brincando de roda em Beirute ou na Palestina. E os vestibulandos todos, de um país chamado Brasil, convocados a darem o melhor de si no curso superior que escolheram. Utopias? Talvez sonhos irrealizáveis de algum poeta menor, mas convicto de que nada vale a pena se a alma é mesquinha e pequena. Comentário A estrutura dissertativa está definida com uma tese clara, bom desenvolvimento (clareza e coerência) e conclusão adequada às idéias apresentadas. O repertório cultural do aluno permite algumas acrobacias pela literatura, história e exemplos da atualidade: traço distintivo da boa argumentação. Correção da linguagem, paragrafação bem arquitetada, vocabulário diversificado são evidências claras do predomínio do conhecimento. Seção Papo Cabeça Esse mundo é meu escravo dum reino e sou escravo do mundo em que estou mas acorrentado ninguém pode amar (Sérgio Ricardo e Rui Guerra) Mão na massa Proposta 1) Leia o verso de Fernando Pessoa e escreva uma dissertação discutindo as idéias nele contidas: ‘‘O mito é o tudo que é nada.’’ Proposta 2) Quando se trata de heróis, mito e realidade muitas vezes se confundem num culto carregado de fascínio, identidade e perigo. A coletânea abaixo toca essa questão: os heróis nossos de cada dia. Leia os textos e componha uma dissertação crítica sobre o tema: ‘‘O povo que necessita de heróis não merece ser livre.” (Bertolt Brecht) Texto 1) “Nossa época conheceu o horror do desencadeamento dos mitos do poder e da raça, quando seu fascínio se exercia sem controle (...) O mito propõe, mas cabe à consciência dispor.’’ (Georges Gusdorf ) Texto 2) “O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.” (Mircea Eliade) 76% 12% 9% Superior 2ª grau 3% Fonte DataFolha Tema 2) “As pessoas estão a serviço das coisas.” (Eduardo Galeano) Tema 3) A relação entre escolaridade e criminalidade (gráfico ao lado) Lucília Maria Sousa Romão (Pesquisa DataFolha na Casa de Detenção) 1ª grau completo e.4 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO 1ª grau incompleto MARÇO 96 Texto 3) “Os Mamonas (...) morreram no auge do sucesso. Pertencem, guardadas as proporções, a uma família de artistas da qual fazem parte o ator americano James Dean, que se tornou mito desde os anos 50, quando se acidentou numa corrida de carro; o roqueiro Kurt Cobain, que enfiou uma bala na cabeça quando seu rock de Seattle o tornava célebre no mundo inteiro, ou, para voltar ao Brasil, o piloto Airton Senna , a seu modo um artista também. Nesse sentido, os Mamonas foram mesmo amados pelos deuses (...)’’ ( Revista Veja - 13.03.96) ABRIL 96 e.2 MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO José Arbex Jr. Editor geral de Mundo Emília Amaral Da Equipe de Colaboradores heróis do futuro, heróis sem futuro a morte dos Mamonas e o dom narrativo Cada vez que morre tragicamente uma figura pública nacional -artistas (como os integrantes do Mamonas Assassinas), políticos (Tancredo Neves, por erro médico; Ulysses Guimarães, na queda de seu helicóptero) ou esportistas (Ayrton Senna, por falha mecânica)- o Brasil pára. O país fica hipnotizado pelo espetáculo fúnebre: o velório, os depoimentos de amigos e familiares, as cenas dos principais momentos da vida do defunto, as avaliações sobre o vazio que, fatalmente, será produzido pela sua ausência. Até que, finalmente, chega o grande momento: a marcha apoteótica rumo ao cemitério, quando a encenação da dor atinge o auge. Chora-se, então, a ‘‘luz que se apaga’’, o desaparecimento do ‘‘patriota que deu o melhor de si à nação’’, o fim do jovem que ensinou que ‘‘o Brasil poderia ser melhor do que o Primeiro Mundo’’. Sobra a sensação de que o destino, mais uma vez, foi injusto com o Brasil. Justo agora, quando parecia que iríamos ‘‘chegar lá’’, a Senhora das Sombras vem ceifar a esperança de um futuro melhor. Os mortos glorificados como heróis são a personificação dessa incessante e sempre frustrada esperança no amanhã, anunciada já no hino nacional: ‘‘espelha o teu futuro essa grandeza’’. A grandeza está eternamente projetada em algum momento que virá, não se sabe nem como nem quando mas virá. Disse um celebrado cronista que o Brasil está ‘‘condenado a ser grande’’. O defunto celebrado é o herói que encarna essa certeza. É por essa razão que todos ficamos hipnotizados e tristes com as cerimônias fúnebres. Mesmo gente que mal tinha ouvido falar em Tancredo e Ulysses, ou que odiava Fórmula-1, ou ainda que achava os Mamonas mais um exemplo de cretinice -mesmo esses experimentaram uma sensação de perda. O que estava em questão, em cada um desses momentos, não era a perda do personagem propriamente dito, mas o fato de que sua morte, explorada pela mídia, colocava em ação o mito da grandeza esperada e nunca cumprida. O defunto servia apenas de ícone ao mito. É como no caso dos santos católicos. Nada sabemos sobre suas vidas, muitas vezes sequer conhecemos suas origens: o que importa é o tipo de milagre que ele opera. E como a mídia opera essa transformação? Como ela fabrica mitos a partir de homens comuns (famosos sim, mas comuns)? Os velórios da mídia apagam a humanidade dos novos heróis. Eles não pecaram -ou, se o fizeram, não foi em benefício próprio. Não tinham ambições pessoais -sua maior ambição era servir à pátria. Nunca eram autoritários -se tinham ‘‘explosões’’, isso se devia à ansiedade em cumprir uma determinada tarefa cívica. Corruptos? Nem pensar -quando, em suas atividades, favoreceram amigos e familiares, isso se deve ao fato de que no Brasil esta é a única forma de fazer política. A razão para sua des-humanização pela mídia é simples: os heróis têm que ser sobre-humanos, ou não seriam capacitados a realizar a tarefa titânica de transformar o país. De outra forma, eles não poderiam representar a grandeza sempre adiada para o amanhã. Mesmo no caso do anti-heróico Mamonas, sua grande ‘‘explosão’’ comercial (os tais 2 milhões de discos vendidos em sete meses) foi pretexto para colocá-los no mesmo patamar dos Beatles, a maior banda de rock do século. Os jovens de Guarulhos adquiriram, assim, dimensão universal, como convém a um mito. As suas qualidades menos ‘‘heróicas’’, como a irreverência, o português errado, o desleixo -tudo servia para realçar a suposta grandeza da banda. Mas com isso tudo apenas colocamos o problema. Não sabemos, ainda, qual o interesse da mídia em produzir heróis, nem as razões pelas quais a mídia faz isso com o consentimento da opinião pública. Comecemos pela mídia: mito vende, é um bom empreendimento comercial. Cada segundo de transmissão de cerimônia fúnebre vale uma fortuna. Seus nomes e imagens se transformam em grife, em selo de qualidade, em marca -em livros, filmes, camisetas, perfumes, canetas. Para além dos interesses comerciais, os mitos também são úteis porque eles simplificam a realidade. Historicamente, os mitos são anteriores à filosofia. Quando os homens ainda não tinha formulado sistemas lógicos complexos para explicar o mundo, eles utilizavam figuras mitólogicas. Cada emoção, desejo ou sensação era representada por um deus (basta lembrar o panteão greco-romanos: Afrodite, o amor erótico; Apolo, a harmonia geométrica; Zeus, a justiça -e assim por diante). Os homens explicavam suas ações e narravam o mundo a partir dos mitos. É o mecanismo das telenovelas: cada personagem personifica um grupo de qualidades. Fica fácil identificar o que é o ‘‘bem’’ e o ‘‘mal’’, o ‘‘certo’’ e o ‘‘errado’’. Por esse processo de simplificação, a mídia adquire o direito de narrar o mundo de acordo com seus próprios interesses e pontos-de-vista (mirem-se no exemplo de fulano, para o bem do país!). É a mídia que narra o nosso mundo, não nós (v. o texto à pág. 3). Damos à mídia esse direito quando nos deixamos hipnotizar pelo mito, essa figura inacessível, sobre-humana. Nunca teremos a chance de ter o poder de ação de Tancredo ou Ulysses, a maestria de Senna, a genialidade eufórica de Dinho. Eles são cidadãos e nós apenas espectadores. Eles são o Olimpo, nós somos o quintal. Eis o grande problema do mito: ele nos transforma em seres inúteis, agentes passivos, telespectadores de telenovelas. E nós? Por que aceitamos isso? Por que ainda esperamos o Antônio Conselheiro que fará o mar virar sertão, o Grande Pai Getúlio Vargas que vai garantir nossos direitos trabalhistas, o messias que vai levar o Brasil ao Primeiro Mundo com um só golpe de caratê? Em grande parte, somos assim porque não há, no Brasil, aquilo que se convenciona chamar sociedade civil organizada. O cidadão comum não encontra canais de ação e participação para fazer valer a sua voz. Começa pelo fato de que a imensa maioria dos brasileiros (cerca de 80%) é analfabeta e miserável, sequer tem noção de seus direitos e deveres. Nunca foi sedimentada neste país uma prática de reuniões de pessoas para lutar em defesa de seus interesses -em comitês e associações de bairro, de escolas, de empresas etc. Os veículos da mídia são propriedade de algumas famílias; os sindicatos são instrumentos de interesses partidários, os partidos são associações de pessoas que nem sempre têm interesses eticamente legítimos ou toleráveis. O governo só se lembra de que existe uma nação em épocas eleitorais. Se não somos capazes de tomar em nossas mãos o nosso destino, só nos resta esperar que ‘‘alguém’’ de fora resolva tudo por nós. Como ninguém nunca resolve nada -é óbvio-, só nos resta chorar aquele que teria resolvido tudo, se não tivesse morrido no meio do caminho. Pobre do país que precisa de heróis, disse, certa vez, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Alguém discorda? O pensador alemão Walter Benjamin, no seu belo bem escondido, na profilaxia que tem sido o dia-a-dia, fatexto O Narrador, mostra que a sociedade industrial está lar mais alto, alterar o que chamamos de belo, sacrificar assassinando a narrativa, a qual, no tempo dos artesãos, aulas e aulas sobre o “kitsch” por um bem maior: a saudadava o tom e a graça do cotidiano. Enquanto trabalhavam, de das risadas que não demos quando eles começaram a os homens inventavam e reinventavam cantar e, cantando, ousaram falar dos histórias, que eram transmitidas de getemas menos sofisticados e mais essenpara Walter Benjamin, a ração em geração por meio dos mais ciais, com um humor jovem, informação é a maior ilustres narradores, dentre os quais o iconoclasta, inculto, irreverente. filósofo ressalta duas imagens arcaicas: Paródico de muitas contradições brainimiga do dom de narrar a a do camponês sedentário, conhecedor sileiras, de classe e sexualidade; de reexperiência vivida dos segredos da terra, e a do marinheigionalismos e idiossincrasias que teiro comerciante, conhecedor dos espamam em mutuamente se ignorar, diços distantes, das paisagens intocadas pelo conhecimento ria um intelectual convertido pelo mesmo espanto, o mesapenas intelectual. mo desamparo, a mesma falta de senso que nos iguala uns Encarnado nestas figuras, o Narrador, cujo poder aos outros nos momentos fatais, e que certamente faria vinha de um saber baseado na experiência, e na capacidade outro estudioso chamá-los de antropofágicos. de trocá-la com seus semelhantes, começou a fenecer quanQue o Brasil continue capaz dessa grita generalido a imprensa foi inventada, e a atividade de contar foi zada pela paixão de estar vivo, de se reconhecer na espondelegada ao livro, substituindo o rito da comunhão pela taneidade que explode de repente, de de repente não escaestranheza daquilo que se sonha no isolamento, na solimotear o seu lado Macunaíma, o seu lado Serafim ponte dão. Ainda de acordo com Benjamin, a Informação é a Grande, o seu lado Leonardinho e (por que não?) o seu maior inimiga da arte de intercambiar o vivido, tecendo lado Dinho, quando alguma coisa mais significativa que a histórias que fecundam outras histórias até o infinito da privatização, o delírio primeiro-mundista, as oscilações do capacidade humana de criação. cruzado ficcional, da economia neo-liberal e da política Presentificando o que é distância, diluindo o que surreal aparecer... e nos deixar de novo primitivos. é mistério, coisificando com explicações o miraculoso, ela Homens e mulheres, pelo sofrimento inventivos, destrói impiedosamente nossa verdade maior e mais clansomos capazes apesar e por causa de tudo de reencontrar o destina, mais manipulada pelo reino da mídia, do consucordão umbilical e voltar a imaginar, e manter a cumplicimo, da rapidez vertiginosa que nos traga: o Imaginário, dade com certas raízes que a falta de caráter nacional, as com os cenários, os personagens, os enredos e as demais omissões que só se rendem no Carnaval não esgotam. Esparticularidades indizíveis que o caracterizam. sas raízes encontram a sua contrapartida quando acontece O Imaginário nos define a identidade: é nossa reum silêncio mais eloqüente que todo o barulho, toda a alidade que paradoxalmente só obtemos pela capacidade explicação mutiladora, que vem do reino da Informação. de transcender, de transubstanciar a vida em sonho, numa Deste silêncio, que mais uma vez a falta de meioestranha alquimia que se faz e refaz, mal desaparece a luz termo da morte nos provocou, fez-se balbuciar nos bares, solar de cada dia. nos lares, nas estações de metrô e também nos espaços que Quando a Informação nos trouxe as imagens do as imagens prontas não preenchem, os espaços interiores, acidente com os Mamonas Assassinas, senti como se tivesse uma voz meio tímida de tanto que anda esquecida, uma havido uma espécie de resgate deste dom de imaginar que voz cotidianamente emudecida, que ouso comparar, nas estamos perdendo. Nossa imaginação não se conformou bocas e nos ritmos que evoca, com a voz daquele ser arcaicom as imagens televisivas, nem com as hipóteses co, soberano dos domínios do Imaginário, dos sonhos sem explicativas, e começou a rever a arte dos Mamonas como limites nem preconceitos nem quaisquer barreiras estétium adulto que de repente pára de correr, de ir e voltar do cas, intelectuais, morais, existenciais: refiro-me à primitiva trabalho, de ser e se saber solitário, e olha de novo, com voz do Narrador. aquele primeiro olhar fundador, que só experimentamos A nossa vontade de deletar essa perda, contando e na morte e no amor, para as crianças, os adolescentes, os recontando o que sucedeu na vertigem que foi a vida, pai“seres em disponibilidade”que certamente já haviam se xão e morte daqueles meninos pobres, que louvaram Sanapaixonado pelo conjunto... tos Dumont, e sabiam “como parte um coração ver seu Então, frases como “eu queria um apartamento no filhinho chorando querendo ter um avião”, por um moGuarujá, mas o melhor que consegui foi um barraco em mento recriou nosso dom narrativo, não nas canções do Itaguá”, “pau que nasce torto mija fora da bacia”, “me passagrupo, nem no que delas fez a mídia, mas naquelas que a ram a mão na bunda e ainda não comi ninguém”, “mais vale brutalidade de seu desaparecimento, em todos nós, de alum na mão que dois no sutiã”, “larga da putaria e vem cuiguma forma deflagrou. dar da padaria”, dentre muitas outras, tornaram-se “da Emília Amaral foi coordenadora da Área de Comuhora”, como os “cabelo da mina” de corpo de violão. O nicação e Expressão e professora de Literatura e Redação no Arnaldo Jabor, o Marcelo Coelho, o Zé Simão e os demais Curso e Colégio Anglo-Campinas (1980-94). Atualmente, opinadores profissionais, da Folha de S. Paulo e outros veleciona na PUC-SP, nos cursos de Direito, Publicidade e Leículos, opinaram. Todos procuraram de alguma forma saltras. É co-autora do Novo Manual de Redação, Gramática e var algo que a perda irreversível levava embora... O que Interpretação de Textos (Nova Cultural) e de outras obras diaconteceu, enfim? dáticas e paradidáticas. É doutoranda na Unicamp, com um Mais uma vez uma lição de vida é aprendida com trabalho sobre A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector. a morte; mais uma vez deixamos o nosso lado “brega”, tão deus e o diabo na terra da mídia Na capa de sua edição de 26 abril de 1989, a revista Veja noticiou o fato de que o cantor Cazuza havia contraído o vírus da Aids. O próprio cantor sabia ser portador do HIV desde 1987, e havia admitido que estava contaminado. Cazuza representou, à época, algo ‘‘novo’’ na cultura nacional: era uma celebridade que estava condenada a uma morte nada ‘‘heróica’’. Ele não desapareceria repentinamente, em algum súbito desastre. Não. Ele teria um doloroso tempo para metabolizar aquilo que todos sabemos mas tentamos apagar: a consciência de sua condição de simples mortal. A capa da revista, nitidamente, trata Cazuza como um ‘‘maldito’’, alguém marcado pela peste: o texto -‘‘uma vítima da Aids agoniza em praça pública’’- tem a dupla função de noticiar a tragédia que vitimou o cantor e também de ampliar a exposição de sua agonia ao mundo. A foto, absolutamente chocante, mostra um ser que definha, que morre lentamente, em contraste com a imagem de vitalidade, brilho e simpatia que Cazuza transmitia. A sugestão da capa é óbvia: a peste, por si só, nega a Cazuza o direito até mesmo à privacidade de sua dor, torna-o ‘‘culpado’’, indigno, exatamente como no século XIV, auge da obscura Idade Média, os ‘‘empesteados’’ eram segregados, expulsos das cidades, acusados de estarem sob posse demoníaca. Em total contraste com esse quadro, a capa de uma outra edição da Veja, de 13 de março de 1996, traz um rapaz no auge da vitalidade e saúde -trata-se de Dinho, o líder os Mamonas Assassinas-, com os dizeres ‘‘a injustiça da morte no auge’’. Dinho não é um ‘‘maldito’’. Sua morte -diz a capa- foi ‘‘injusta’’ (mas haverá alguma morte ‘‘justa’’?), causada por um acidente, pela máquina, exatamente como no caso de Ayrton Senna, ou, com ainda maior semelhança, no de Ulysses Guimarães. Dinha faz agora parte de uma linhagem heróica, talvez inaugurada por Ícaro, que encontrou seu destino na relação mítica entre homem e máquina. Sintomaticamente, a capa com Cazuza omite qualquer dado biográfico sobre o cantor. Não diz, por exemplo, sua idade (no caso da capa com Dinho, ficamos sabendo que ele tinha 25 anos) nem que ele era líder da banda Barão Vermelho (no caso de Dinho, somos informados de sua relação com os Mamonas Assassinas). A história de Dinho, o herói suburbano que sucumbiu à máquina, é celebrada. Já o passado de Cazuza, o garotão homossexual e drogado de classe média-alta do Rio, é apagado, negado pelo instante de tragédia. Ninguém disse isso, mas fica a sensação de que talvez a morte de Cazuza, o pestilento, tenha sido por sua própria ‘‘culpa’’. Afinal, sua tragédia pessoal foi causada pela Aids -isto é, por sexo e drogas, ou seja, pela busca excessiva de prazer: justamente o passado ‘‘negro’’ que não pode ser celebrado. Pior ainda: a morte por Aids reaviva a grande ferida do mundo contemporâneo -a impotência da ciência face à morte. Nenhuma ‘‘culpa’’ poderia ser maior neste final de milênio, em que a ciência e a tecnologia disputam com Deus o benefício da fé dos simples mortais. Agenor de Miranda Araújo Neto, ou Cazuza, o principal letrista da geração anos 80 do rock brasileiro - autor de sucessos como Bete balanço, Maior abandonado, Codinome beija-flor e O Tempo não pára, morreu em 1990, aos 32 anos. Cazuza não serve como herói: sua história é a negação do mito da onipotência. Ironicamente, ele próprio antecipou seu destino, com um de seus versos mais fortes: ‘‘meus heróis morreram de overdose / e meus inimigos estão no poder / ideologia - eu quero uma pra viver’’ . Que os mortos descansem em paz. (José Arbex Jr.) ABRIL 96 e.3