Vidas encarceradas: o cotidiano dos agentes penitenciários paulistas
Conheça o sistema prisional a partir dos relatos dos guardas do cárcere
Andréia Coutinho, Nathan Xavier, Guilherme Oliveira e Vanessa Ramos
No sistema prisional paulista trabalham 35.803 funcionários. Desses,
23.653 são agentes penitenciários. Os dados são da Secretaria de
Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), que não forneceu
informações a respeito de facções criminosas ou mesmo sobre o número de
trabalhadores que adoeceram ou se aposentaram no último período.
A partir da convivência com esses trabalhadores e seus familiares, a
proposta da reportagem é olhar para dentro das prisões e descrever o sistema
prisional sob a ótica de personagens anônimos, que não entraram para a
história oficial, mas são peças cruciais na engrenagem das penitenciárias
paulistas. Foram escolhidos diferentes agentes, que falam sobre rebeliões,
facções criminosas, ameaças, convivência familiar, saúde no trabalho e uma
série de outras questões que permeiam o sistema prisional.
O nome dos trabalhadores e familiares, contudo, são fictícios para manter a
identidade e segurança. Um desses personagens é Guaracy que, há cinco
anos, junto da esposa e dos filhos, compreendeu de fato quais são os desafios
e as ameaças da profissão. Conheça sua história:
Segunda Morada
Dez da manhã: o cheiro é úmido, o ambiente suspeito e o calor
insuportável. Bastam seis meses de trabalho num presídio para passar a
conviver com isso e começar a usar todos os tipos de remédios para a cabeça
não pirar. Depois de anos em uma cadeia, o lamento de um carcereiro vira um
verdadeiro drama. Isso é o que se imagina, mas Guaracy é uma exceção. No
dia a dia ele costuma brincar com os presidiários: foi a forma que encontrou
para sobreviver e fugir dos dias tediosos do outro lado do muro.
O agente penitenciário é o trabalhador que diariamente cumpre a missão
de manter em custódia pessoas transgressoras. Pode ter contato com
indivíduos que cometeram crimes leves, como pequenos furtos, ou com outros
mais perigosos, os acusados de assassinato, líderes do tráfico de drogas, sequestradores ou estupradores. Ele convive também com gays, travestis e
transexuais, população que, muitas vezes, precisa ser colocada em uma ala
específica dentro do presídio para evitar violência, abuso e até mesmo morte.
“O que eu dou mais risada na cadeia é os ‘preso’ um casando com o outro”, ri
de forma tímida Guaracy, já na meia-idade.
O guarda arrasta com dor uma das pernas e, às vezes, reclama ao andar
ou quando permanece muito tempo sentado. No passado, alguns médicos já
lhe disseram que ansiedade, estresse ou falta de atividade física regular eram
hipóteses para explicar o que sentia. Os remédios ajudaram a amenizar um
pouco as reclamações. Os quase 20 anos de trabalho na mesma função
deixaram sequelas crônicas ao descer e subir escadas com os jumbos – os
alimentos que chegam ao presídio em pacotes pesados.
Guaracy segue a vida como um trabalhador comum, ainda que seja
discriminado pelos vizinhos e familiares que sabem com quem ele se relaciona
todos os dias. É um homem que carrega o pesar da indiferença contando, para
disfarçar, uma ou outra piada guardada na manga da camisa social com a qual
costuma se vestir de segunda a domingo.
Esperançoso, tem a crença de que a mudança do sistema carcerário é
possível, ainda que sejam escassas as suas ilusões sobre a vontade política
dos governantes.
Com olhar atento, observa o horizonte e saca três ou quatro sorrisos ao
lembrar-se das situações com as quais aprendeu a conviver. “Eu chego lá e
digo: – Olha, hoje já vou desmanchar um casamento por aqui se tiver briga.
Quero ver quem vai ficar de cara feia, hein?”. Segundo o agente, os homens
chegam ao presídio sem ter com quem ficar ou se satisfazer sexualmente.
“Alguns acabam casando com uma bicha. Então o cara chega machão, vira
bicha e o bicha vira machão”.
O presídio é assim. Não é só de ódio que se alimentam os corações nas
celas e nos pátios. Histórias de ciúme e de amor dentro dos presídios
masculinos não faltam, e os guardas são os observadores e, ao mesmo tempo,
os interlocutores entre o mundo de dentro das grades e o de fora.
Numa tarde um pouco animada, um preso heterossexual, alto e loiro,
chegou para ajudar na limpeza, escalado para a tarefa pelos agentes, com
mais doze presidiários. Era forte, carregava um carrinho no qual os outros
sentenciados jogavam o lixo recolhido. Eles limpavam uma área com quatro
celas, cada uma com três ou cinco travestis. Tanto Maitê – era assim que o
travesti Ariovaldo gostava de ser chamado – como os demais ficaram
estarrecidos com a beleza do “loirão”. Guaracy logo percebeu e tratou de
brincar com o presidiário alemão, que imediatamente se colocou como um
“homem com H maiúsculo” e disse não gostar dessas coisas. “Não entro mais
nesse raio, não. Tenho mulher e filha, ô raça desgraçada”. Depois de duas
horas do episódio, um dos paqueradores apareceu com o supercílio aberto e a
roupa rasgada.
O agente quis saber o que significava aquilo. “Meu marido me bateu
porque eu mexi com o loirão aí”, respondeu Maitê.
Sobrou para Guaracy levar um para a enfermaria e o outro para o porte
(pavilhão disciplinar), conta o agente que também acontecem cortes no pulso e
tentativas de enforcamento quando o namorado leva bonde – momento em que
é transferido para outra cadeia. “Isso é cômico, mas é triste”, diz o agente.
A Penitenciária 1 (P1) de Presidente Venceslau, que fica a 630 quilômetros
da capital paulista, é a segunda morada do guarda.
Quinta e sexta são os dias em que ocorrem a faxina nos raios e os presos
são divididos para ajudar. No espaço ocupado pelos travestis, gays e
transexuais, existe uma rotina diferenciada. “Tem uns lá que têm uns peitos
muito grandes. Faz muito calor e elas são tão filhas da puta que deitam, pegam
a cueca, levantam e fazem que nem fio-dental, e fica tudo com a bundona pra
cima. E aí me perguntam: – E aí, seu Guaracy, como é que eu tô? Meu sonho
é passar a faca nisso daqui, ó”. “Daí eu falo: manda seu parceiro passar a faca
aí, ó, se tiver coragem”.
Mesmo com tantos anos de sistema prisional, Guaracy ainda se
surpreende com o que vê. Certo dia, um novo travesti foi transferido à P1. O
guarda pouco se conteve. Os anos de trabalho em presídio o ensinaram a se
divertir de vez em quando, o que o ajuda a esquecer o medo, as ameaças e o
clima de desconfiança comum nas cadeias de qualquer lugar do mundo.
“Mas era feio, muito feio! Eu só disse assim: que porra é essa aí? Um
coque com cabelão estranho. Rapaz, de que nave você caiu?”, perguntou
Guaracy, no momento em que percebia a vontade dos presos de rir, embora se
contivessem a todo custo.
O preso havia chegado de um Centro de Detenção Provisória (CDP). De
acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária, há no Estado de São
Paulo dessas unidades que recebem os presos que esperam julgamento em
regime fechado.
“Você veio da onde, ô coisa linda?”, ele tornou a perguntar. Nesse
momento, os presos ao redor não aguentaram. “Âe, seu Guaracy, é coisa linda
é?”, diziam às gargalhadas.
Apesar de o artigo 5º da Constituição Federal afirmar que todos são iguais
perante a lei, a violência contra os homossexuais se manifesta de diferentes
maneiras. Ela varia desde uma piada com ofensas verbais até a agressão
física. Segundo um relatório da ONG internacional Transgender Europe, o
Brasil lidera o ranking de mortes. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013
aconteceram 486 assassinatos de travestis e transexuais no país.
“Isso aqui é o capeta chupando manga e de ponta-cabeça”, disse o guarda,
enquanto pedia ao novo travesti que chegava a Presidente Venceslau que
tirasse a roupa. Olhando para os seios do sentenciado, tornou a questionar:
“Que desgraça é essa?”.
O preso explicou que havia ido a uma clínica para aplicar silicone nos seios
e que o procedimento não havia dado certo. O agente observava que um seio
estava na parte de cima e outro na parte de baixo. Enquanto isso, outro
funcionário 70 chegava com a máquina para cortar o cabelo comprido do
recém-chegado.
O travesti chorou muito, debulhou-se em lágrimas ao ver o cabelo sendo
cortado. Nos presídios, o corte de cabelo era obrigatório e o uso de
maquiagem, unhas compridas e roupas íntimas sempre foi proibido, tanto para
homens como para mulheres.
De acordo com Guaracy, essas situações costumam abalar o psicológico
dos travestis e transexuais. “O senhor não sabe quanto tempo demorou para
eu deixar o cabelo desse jeito. O senhor guarda pra mim?” – perguntou para o
agente, que atendeu ao pedido.
O agente quis saber com o que ele trabalhava. O novo preso fazia
programas à noite. “Desculpa a expressão, mas o cara que comia você não
gostava do próprio pau, hein?”, ironizou.
Mal havia chegado e já ouvia no presídio aquilo que era comum escutar em
supermercados, shopping centers e padarias. “O senhor sabe que pode ser
processado, né? Eu tenho meu ‘adevogado’ e posso fazer isso. E mais, eu vou
falar um negócio para o senhor, eu tenho um namorado na rua que tem muito
dinheiro, viu?”, respondeu o travesti com firmeza.
O agente parou de falar e deixou o tempo provar. Passado um mês,
chegaram o irmão e o namorado rico do presidiário. O guarda ficou surpreso ao
perceber o romance. “Na cadeia a gente vê de tudo. Por isso nós brincamos
para descontrair um pouco, senão o preso chapa e a gente chapa junto”.
Em 31 de janeiro de 2014, uma resolução da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP), assinada pelo secretário Lourival Gomes, estabeleceu
algumas normas diferenciadas para os homossexuais, como o direito de serem
chamados pelo nome feminino que escolheram para si. Também será permitido
o uso da roupa íntima e os cabelos poderão ficar na altura dos ombros.
Copo, prato e talheres separados
Amigo de Guaracy, Cássio está no sistema prisional há 13 anos. Atuou em
diferentes presídios, mas hoje trabalha no CDP de Capela do Alto, na região de
Sorocaba. O Centro foi inaugurado em março de 2013, em um complexo que
abriga também uma penitenciária. Cada unidade foi construída para abrigar
768 presos.
Em março de 2014, o CDP já estava com 1.380 sentenciados, 612 pessoas
a mais do que a capacidade. O complexo faz parte de um plano de expansão
do governo de São Paulo para atenuar os problemas dos acusados que estão
presos em cadeias, mas que deveriam estar em unidades provisórias até a
sentença final da Justiça.
A unidade onde Cássio atua tem um número pequeno de gays e travestis,
mas há celas diferenciadas, assim como os copos, canecas e colheres dos
homossexuais são separados dos demais utensílios. “Pode ser por causa da
aids, mas é mais do que isso, é cultural”.
Em 2002, o médico Drauzio Varella apresentou no livro Estação
Carandiru os resultados de uma pesquisa realizada na década de 90. De 82
travestis examinados na antiga Casa de Detenção, 78% eram portadores de
HIV. Dentro desse percentual, todos com mais de seis anos de cadeia
carregavam o vírus.
Cássio certa vez encontrou uma carta dizendo que um dos presos, num
momento de fraqueza, bebeu além da conta e beijou um travesti. Isso foi
motivo para que ele passasse, a partir de então, a ter também seus talheres e
copo separados. “É uma coisa escrota, mas estamos acostumados a ver”, ri o
guarda.
O ex-presidiário Luiz Alberto Mendes, colunista da revista Trip, chegou a
comentar
sobre
o
assunto,
em
janeiro
de
2011,
no
artigo
O
Homossexualismo, a Prisão e o Preconceito. Ele ficou preso por homicídio e
outros crimes durante 31 anos e dez meses, mais do que a pena máxima
permitida pela Justiça brasileira, que é de 30 anos. Entre seus escritos está o
livro Memórias de um Sobrevivente. Amante da literatura, Luiz relata que
quando chegou à prisão a homossexualidade era presente e que teve de matar
para continuar sendo dono do próprio corpo, pois não havia visita íntima. Os
jovens eram sinônimos de objeto sexual e muitos eram perseguidos e
estuprados.
As divisões de espaço foram construídas ao longo do tempo, mas o pior
sempre
acontecia
com
os
passivos
na
relação.
Segundo
Luiz,
os
homossexuais “foram segregados a uma prisão dentro da prisão: a prisão do
preconceito. Vivem em separado e duplamente penalizados pela sociedade e
pela massa carcerária”.
Guaracy e Cássio testemunharam histórias parecidas e já trocaram muitas
risadas sobre contos de presídio. Em uma penitenciária perto de Sorocaba,
numa cadeia específica para crimes sexuais, a história de um rapaz de 20 anos
permanece na lembrança e nas rodas de cerveja dos guardas quando estão
fora da prisão. Na cadeia, os que chegam têm ao menos duas opções:
descambar para a criminalidade ou tentar se esconder atrás da Bíblia. O jovem
escolheu a religião e, devoto, frequentava o culto evangélico toda semana na
prisão. Tudo era de se esperar, menos a conversão do pastor, que deixou de
ser ministro do Evangelho para se casar com o menino e passar a morar dentro
da mesma cela. “O pastor tentou colocar a malandragem na linha e acabou se
bandeando para o lado da bicha”, comenta Cássio, entre um copo e outro.
Como os presos homossexuais dentro da prisão, o antigo pastor passou a
ser alvo de piadas e também teve seu copo, prato e talheres separados.
Navalha diária
Guaracy classifica a Penitenciária 1 Zwinglio Ferreira, de Presidente
Venceslau, onde trabalha, como a que segura o Estado de São Paulo. É um
lugar de castigo, segurança máxima. Ali existem quatro raios, que são as
divisões internas.
No três e quatro, vivem as lideranças do Primeiro Comando da Capital
(PCC). No raio dois está um pessoal mais neutro, que não faz parte de
nenhuma facção e que cozinha tanto para o presídio como para o CDP Tácio
Aparecido Santana, em Caiuá, cidade de nome indígena localizada a 18 quilômetros de Presidente Venceslau. Cada grupo ocupa uma cela. Eles não se
misturam. No raio um, está uma série de facções, como ex-integrantes do
PCC, gente do Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC),
do Terceiro Comando da Capital (TCC) e também de um recente grupo
criminoso chamado Cerol Fininho, que tem como prática decapitar os inimigos.
Sete pessoas foram mortas em 2013, pelo Cerol Fininho, segundo noticiou o
jornalista Josmar Jozino.
Cerol Fininho é uma referência às linhas de pipa que, na mistura com caco
de vidro picado e cola de madeira, cortam como lâmina afiada, como se fossem
um bisturi na mesa de cirurgia.
“No final do ano passado, mataram um preso lá em Andradina, arrancaram
a cabeça, abriram o tórax e tiraram a língua e o coração. Ficamos sabendo que
abriram a barriga dele e costuraram a cabeça lá dentro. É dureza”, lembra
Guaracy. O preso era um jovem de 28 anos, Anderson de Castro Moraes
Borges, que carregava no braço direito tatuado o nome de Cristiane, talvez
filha, mãe ou esposa. Foi morto no dia 28 de novembro de 2013.
A nova facção nasceu no presídio Dr. Antônio de Queiróz Filho, na
cidade de Itirapina, interior paulista, a 212 quilômetros da capital. “O governo
de São Paulo chamava a gente de mentiroso, mas o Cerol Fininho tem
crescido e já é uma realidade”, relata Guaracy.
O guarda afirma que os integrantes do novo grupo já somam 500 pessoas,
espalhadas em Presidente Venceslau – para onde alguns foram transferidos –,
Guareí, Andradina, Presidente Bernardes, Presidente Prudente, Sorocaba e
outras cadeias na região metropolitana de São Paulo. “Alguns conflitos
envolvem homens que foram expulsos do Primeiro Comando da Capital. Esses
caras querem o sangue do PCC”.
O líder do Cerol Fininho está em Presidente Bernardes. O dirigente do
grupo, cujo apelido é Lúcifer, nunca pertenceu ao PCC. Guaracy conta que ele
é muito magro, alto e tem cerca de 30 anos. “Na aparência, ninguém dá nada
para ele, mas é quem comanda. Luta até artes marciais.” Os participantes do
Cerol Fininho, segundo o agente, praticam rituais satânicos depois dos
assassinatos e servem como oferenda ao diabo o sangue das vítimas.
“A facção”
Guaracy conhece a jornalista Fatima Souza há anos. Repórter da Rede
Record, foi a primeira pessoa a falar, em 1995, do Primeiro Comando da
Capital, quando trabalhava na TV Bandeirantes. Ela teve contato com os
primeiros chefões, José Márcio Felício, o Geleião, e César Augusto Roriz da
Silva, o Cesinha – morto em 2006, em Avaré (a 262 quilômetros de São Paulo),
com uma lança feita de madeira.
Em 1997, o governo não só a ignorou como também desmentiu
publicamente a notícia. O então secretário estadual de Administração
Penitenciária, João Benedito de Azevedo Marques, chegou a dizer que a
denúncia era uma “balela” e uma “ficção”. O tempo provou que não era bem
assim. “O governo ainda tenta abafar a atuação do crime organizado”, diz
Guaracy.
Depois de alguns meses, quando as rebeliões começaram a eclodir em
algumas cadeias e a facção se apresentou, outros jornais passaram a dar
visibilidade ao fato. Uma matéria especial entrou no Fantástico, da Rede
Globo, mas sem dar o crédito à Band na época.
No livro PCC – A Facção, Fatima relata como o PCC se tornou conhecido
pela imprensa, pela sociedade e pelo governo. Os bastidores de ações
coordenadas pela facção, como rebeliões, fugas, atentados, sequestros e
roubos, são também apresentados. Eventos como o sequestro do irmão da
dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano (dezembro de 1998), o
assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel (janeiro de 2002), o
assalto ao Banco Central, no Ceará (agosto de 2005), e a famosa onda de
terror que parou São Paulo e cidades vizinhas, em maio de 2006, são alguns
dos acontecimentos que o PCC coordenou.
Por manter contato por cartas e telefone com as lideranças, a jornalista
ficou por dentro dos detalhes de ações de autoria da facção, inclusive rebeliões
e atentados a agentes penitenciários, e de aspectos da vida, e do fim da vida,
de alguns líderes e membros do partido.
Fatima1 leva à boca o sexto cigarro em pouco mais de duas horas antes de
falar sobre a situação dos agentes penitenciários de São Paulo, sentada na
sala de sua casa, no Jaguaré. Para ela, “a morte é uma consequência, como a
doença e o medo”. Em outro momento, ao falar sobre o cotidiano do guarda
prisional, ela diz que “a alma desses trabalhadores vai sendo perfurada aos
poucos, afinal, conviver com bandidos diariamente têm suas consequências”.
O agente aposentado Sidnei Oliveira2 teve o apoio de Guaracy quando
adoeceu no sistema prisional. Ao falar sobre as diferenças dos envolvidos nas
facções em São Paulo, ele diz que os membros do PCC costumam ser mais
pacatos e fechados no dia a dia. “Eles mais tramam do que falam.”
Segundo informações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do
Sistema Carcerário, de 2009, “as organizações possuem rígida hierarquia e,
como uma empresa, no topo vem a chefia, abaixo os sub chefes e, na base, os
chamados de soldados”.
O crescimento do PCC ao longo dos anos foi um dos fatores que exerceu
grande influência no cotidiano dos agentes penitenciários. O escritor Drauzio
Varella relata no livro Carcereiros, de 2012, que o crime organizado dentro das
prisões caracterizou uma “inversão de papéis” entre agentes penitenciários e
1
2
Entrevistas feitas pessoalmente com a jornalista em 28 de setembro de 2013 e 6 de março de 2014.
Nome fictício para preservar a identidade do agente.
presos. Para ele, o Massacre do Carandiru, que aconteceu no dia 2 de outubro
de 1992 e deixou 111 presos mortos (número oficial), executados pela Tropa
de Choque da Polícia Militar na Casa de Detenção de São Paulo, foi um
“divisor de águas na história das cadeias paulistas”. Os assassinatos
mancharam ainda mais de sangue a história da política carcerária que é
aplicada no Estado paulista.
A casa de Guaracy
Por trás das portas de vidro e de madeira, foram instaladas grades de
ferro. Os horários foram combinados para ninguém sair sozinho de casa. Olhar
para os lados era regra básica para saber se estavam sendo seguidos. Três
cães da raça rottweiler e um da raça fila passaram a conviver com os filhos e a
esposa3. Durante um ano e seis meses, a família deixou os quartos para dormir
na sala, com colchões amontoados, uma forma de diminuir os dias de medo.
A família vive uma parte do tempo na capital e outra no interior, em
Presidente Venceslau. O agente trabalha no sistema há quase 20 anos, mas
foram os últimos cinco anos que fizeram com que esposa e filhos
compreendessem, de fato, os desafios e as ameaças da profissão. “A maior
vitória do agente penitenciário é chegar em casa vivo”, diz a esposa.
A primeira invasão ao sobrado de Guaracy foi em uma quarta-feira de
agosto de 2009. Os dois filhos dele sempre ficavam na varanda para buscar wifi no bairro, na arte de compartilhar a internet de algum vizinho. O filho mais
novo ficara durante todo o dia na sacada. Havia percebido intensa movimentação de carros, mas nada que o fizesse desconfiar do que aconteceria
horas depois.
No começo da tarde, Guaracy estava no litoral paulista. Seria testemunha
de uma agente penitenciária que estava presa. Segundo ele, as informações e
provas que tinha em mãos poderiam mudar o rumo do julgamento, mas, na
última hora, preparado para falar, com camisa social engomada e calça alinhada, foi impedido de depor. Teve de voltar para casa.
Perto das 19 horas, Guaracy já estava em casa. Ele e a mulher levavam
até o portão um casal de amigos que acabavam de tomar um café na casa da
3
Entrevista feita pessoalmente com dois filhos e a esposa do agente penitenciário Guaracy em 5 de março de 2014 e em 25
de março de 2014 por telefone.
família. “Percebemos que veio um carro descendo a nossa rua. Quando
chegou à frente do portão, eles pararam e ficaram olhando pra gente. Eram
dois homens, mas não me lembro das características. Quando eles
perceberam que a gente estava atento, eles foram embora”. O casal fechou o
portão, foi jantar e depois subiu para dormir.
O filho permaneceu onde estava durante o dia, na sacada, apagou todas
as luzes e ficou navegando na web. No início da noite, a filha mais velha foi
para o segundo andar dormir, pois estudava cedo.
A esposa de Guaracy é muito devota. Frequenta a igreja toda semana,
acredita em revelação divina e em sexto sentido de mãe. “Eu estava cochilando
quando ouvi uma voz dizendo: – Manda seu filho entrar porque senão ele vai
tomar um tiro. Nesse momento, olhei para um lado e para o outro, estava tudo
escuro”. Ela desceu as escadas e disse para o filho entrar e trancar todas as
portas e janelas que estavam abertas.
Era quase meia-noite. Passados 15 minutos, eles ouviram um barulho que
se alastrou pela casa, quase sem móveis. “Parecia uma pilha de pratos que
havia sido jogada no chão”, diz a esposa. Os filhos correram para o quarto dos
pais. Eles gritavam que a casa estava sendo invadida e pediam socorro.
O barulho era de chave de fenda. Não se sabe como os invasores
conseguiram quebrar alguns vidros e a porta de madeira da sacada. A família
ouvia tiros. A segunda porta, eles não conseguiram abrir. “Não deu pra ver, eu
não vi. Mas teve vizinho que viu. Eram três caras encapuzados. Eles subiram,
quebraram os vidros e atiraram. Deve ter sido para amedrontar, porque eu
seria testemunha naquele dia”, declara Guaracy.
As crianças foram trancadas no quarto. Guaracy ligou para a polícia. Um
carro e uma moto saíram correndo, disparando tiros. Alguns rapazes que
usavam drogas na rua de baixo relataram depois que os homens encapuzados
disseram que era para eles saírem de onde estavam porque, senão, todos
morreriam. “Corremos tanto dentro da casa, de um lado para o outro, que
talvez até os bandidos tenham tido medo. Talvez tenham chegado a pensar
que fôssemos atirar neles”, pontua o filho mais novo.
Até hoje, a família narra com estranheza o que aconteceu depois da
invasão. A polícia demorou dez minutos para chegar até o local. Foram em
sete viaturas. Alguns policiais recolheram vidros quebrados, chave de fenda e
cápsulas de bala de revólver. Tentaram acalmar a família dizendo que eram
apenas ‘noias’ (drogados), levaram as provas e não fizeram Boletim de
Ocorrência.
Ninguém conseguia dormir logo depois da invasão. Ficaram preocupados
de que a história viesse a se repetir. Guaracy tentou dizer que não deveria ser
nada demais. Era a forma que encontrava para acalmar os filhos e a esposa.
Depois de uma hora e meia, houve a segunda invasão. Os encapuzados
voltaram até a casa. “Vieram metendo o pé e quebrando tudo de novo.” Em
poucos minutos foram embora.
A família tornou a ligar para a polícia, que demorou, desta vez, sete
minutos, contados no relógio. Quinze carros da Força Tática, com
metralhadora, fecharam a rua. Nenhum dos policiais disse ter cruzado com os
bandidos, em um bairro minúsculo, com ruas pequenas. Eles sugeriram retirar
a família de lá. Mas a família decidiu ficar. Naquela madrugada, as invasões
acabaram.
Depois de tudo, a filha mais velha começou a ter ânsias de vômito
constantes. “Meu pai tem um jeito de fazer as coisas como se dissesse: ah,
pode vir, tenho peito de aço. Mas não é assim. O nosso maior medo era que
ele morresse, fosse assassinado na nossa frente.”
Uma semana depois, eles perceberam que eram seguidos. Ficaram alguns
dias na casa de familiares para se refugiar. O filho mais novo sofreu um choque
pós-traumático, começou a tomar remédios controlados. “Qualquer moto que
passava do nosso lado, abria um buraco dentro da barriga”, conta a esposa.
A família costumava alternar o caminho até a residência. Uma noite
voltavam, de carro, de São Bernardo do Campo (SP). Todos olhavam para os
lados. Estavam quase perto de casa e um silêncio tomava conta da rua. Ao
dobrar uma das esquinas viram um homem correndo e, logo depois, um carro
passou a persegui-los. Guaracy acelerou o máximo que conseguiu, mas o
carro chegou próximo. “Do nosso lado, homens apontavam o revólver”, conta o
filho. Eles continuaram correndo quando o motorista de um ônibus coletivo viu
a situação e jogou o veículo no meio dos carros. Guaracy conseguiu fugir. Um
carro Monza verde e um Audi vermelho foram os carros vistos nos dias da
semana e na perseguição.
Com medo, mas por insistência de um amigo que já havia passado por
situação semelhante, todos foram convencidos a fazer o Boletim de
Ocorrência, que não havia sido incentivado pela PM. Depois disso, foram
escoltados pela polícia por seis meses. Nada mais aconteceu, mas a vida da
família se transformou.
403 comprimidos por mês
Alprazolam é um remédio de tarja preta. Ele serve para depressão, em
especial quando envolve ansiedade. Segundo boletim4 da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, lançado em janeiro de 2012, esse remédio esteve entre as
substâncias controladas mais consumidas pelo povo brasileiro entre 2007 e
2010. De acordo com o Relatório de Comercialização do Sistema de
Acompanhamento de Mercado de Medicamentos (Sammed), enviado pelas
empresas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, apenas em 2013 foram
vendidas 10.480.047 caixas desse ansiolítico nas farmácias do país. Uma das
unidades foi comprada pelo agente penitenciário Guaracy, em São Paulo.
No final de 2013, junto a esse medicamento controlado, mais 12 remédios
diários foram recomendados ao guarda por uma médica do Instituto de
Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe). Nos meses com 31
dias, ele chega a tomar 403 comprimidos. Aos poucos, tenta diminuir a
quantidade.
Guaracy continua na ativa. Trabalha 12 por 36 horas na unidade em
Presidente Venceslau. Na prisão, já viu de tudo um pouco. As piores cenas
guardadas na memória são dos dias em que as “cadeias viraram”, momento
em que os presos promoveram rebelião ou motim.
O ano de 2005 esteve entre os piores para o agente. Com experiência na
área, Guaracy foi convocado para acompanhar rebeliões e, quando necessário,
negociar com os presos. Em doze meses, 27 rebeliões foram registradas pelo
sistema prisional em todo o Estado. Uma delas aconteceu nos dias 10 e 11 de
maio, em Presidente Prudente. Na rebelião, 22 trabalhadores do sistema
prisional foram feitos reféns. O presídio, com capacidade para 540 presidiários,
abrigava, à época, 708. “Por causa dessa rebelião, tem funcionário que passa
4
Informação disponível em <http://www.anvisa.gov.br/hotsite/sngpc/boletins/2011/boletim_sngpc_2edatualizada.pdf>
Acesso em: 02.mai. 201484
hoje em frente da cadeia e tem diarreia. Começa a passar mal de tudo quanto
é jeito. Tem muitos que ficaram sem dormir por semanas”, diz Guaracy.
Em outro presídio, houve mortes e funcionários sofreram agressões. Os
sentenciados quebraram telhados, colocaram fogo nos colchões e depredaram
toda a estrutura da cadeia. Na hora de negociar, Guaracy conta que um dos
líderes da rebelião chegou até ele com duas cabeças que pingavam sangue.
“Senhor, esses aqui são os primeiros. Daqui a pouco vamos trazer mais três”,
dizia o preso, com a cabeça dos presidiários nas mãos. O agente lembra que,
do lado de fora, ouvia gemidos dos colegas de profissão que apanhavam.
Muitos depois relataram que tiveram as bocas amarradas com panos. Os presos eram assassinados enquanto os guardas, reféns, assistiam ao espetáculo.
O saldo final foi de cinco mortes – três vítimas tiveram a cabeça cortada e
pendurada, uma teve o corpo todo serrado e a quinta foi morta e depois
queimada. Nenhum funcionário morreu nessa rebelião, mas Guaracy não se
esquece de nenhum detalhe. “Eu fiquei com aquele cheiro de carne cozida do
preso que foi queimado por muito tempo”, lamenta.
No mês de julho, dois meses depois, Guaracy sofreu um derrame que
paralisou um dos lados do corpo. Quem relata isso é a esposa do agente, pois
essa é uma das histórias sobre a qual ele não gosta de falar. Demorou muito
tempo para que o guarda pudesse se recuperar, mas quem não sabe dessa
história mal pode acreditar que seja verdade. O agente, apesar das dores na
perna e na coluna, voltou ao normal.
Guaracy não é uma exceção. Tem amigos que se afastaram ou se
aposentaram no sistema por causa do trabalho. Um deles é o agente de
segurança penitenciária Lucas Carvalho5, que, em 2014, completa 15 anos na
área. Atualmente, está afastado há três anos por problemas psicológicos. Com
filha e esposa em casa, ele diz que depois de ter trabalhado em presídio nunca
mais conseguiu ser o mesmo. “Eu costumava conversar, sair, passear. Ia para
as missas, mas não vou mais. Os dias que eu tô ruim mesmo, me afasto e me
fecho no meu lugar. Não sei, é uma tristeza que está dentro da gente”, ele
explica a dor, ao olhar para o chão dentro do ônibus onde foi entrevistado.
5
Entrevista realizada pelos autores no dia 6 de setembro de 2013. Nome fictício para preservar a identidade do agente
Ele lembra que, no presídio onde trabalhou, 2003 foi um dos piores anos
que viveu. Lucas estava dentro da cadeia quando ouviu um barulho na
inclusão, local da cadeia aonde chegam os presos para ser revistados. Alguns
funcionários gritavam, era um motim. Os presos invadiram o espaço e tentaram
tomá-lo. Lucas estava próximo, e um dos que se rebelaram partiu com uma
faca para cima dele e pediu a chave. Na hora, ele não entregou e foi para cima
do preso. Os dois iniciaram uma luta corporal. Dois funcionários chegaram para
ajudar e conseguiram render o preso. Essa briga aconteceu também com
outros presos e outros trabalhadores ao mesmo tempo. No final, os ASPs
conseguiram conter o tumulto, mas todos – presos e agentes – saíram
machucados. Depois, levantaram a ficha dos que promoveram o motim e viram
que eram presos que tinham pertences para receber. Revistaram tudo com calma e, em pacotes dos Correios, estavam guardados revólveres carregados.
“Se eles tivessem vencido a briga e pego a encomenda, muita gente teria
morrido naquele dia”, explica Lucas.
Desequilíbrio comprovado
Estudos acadêmicos apontam que o agente de segurança penitenciária
sofre ônus psíquico e identitário, pois na cadeia os guardas precisam
compreender tanto a dinâmica do ambiente como a dos presos. No artigo
intitulado A identidade e o papel de agentes penitenciários6 , escrito em
julho de 2013, para a Universidade de São Paulo, o doutor em sociologia e
mestre em antropologia Pedro Rodolfo Bodê de Moraes relata o que um ASP
lhe disse em entrevista quanto à adaptação no interior das prisões: “A gente
começa a falar como presos, vestir como preso e vira uma extensão do preso”.
Segundo o diretor de saúde do Sindicato dos Funcionários do Sistema
Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp), Luiz da Silva Filho517,
conhecido como “Danone”, a situação é complicada dentro e fora das cadeias.
“Temos um clima de insegurança permanente e faltam funcionários porque
6
MORAES, Pedro R. Bodê de. A identidade e o papel de agentes penitenciários. Tempo Social: Revista de Sociologia,
São Paulo, v. 25, n. 1, p. 136, jul. 2013.87
7
Entrevista realizada pelos autores no dia 6 de setembro de 2013.
alguns morrem, outros adoecem ou se aposentam. O maior índice de
afastamento é por problemas psicológicos”, aponta.
O psicólogo Arlindo Lourenço da Silva trabalha há 23 anos na Penitenciária
José Parada Neto, de Guarulhos. Entre 2000 e 2002 foi um dos responsáveis
por implementar a Política de Saúde dos Trabalhadores na Escola de
Administração Penitenciária (EAP) de São Paulo. Como doutor em psicologia
desenvolveu pesquisa8, a partir do levantamento e da sistematização de óbitos
de agentes no Estado de São Paulo, que conclui que a maioria dos ASPs vive,
em média, entre 40 e 45 anos. A morte tem relação direta com o ofício que
desenvolvem. Diabetes, hipertensão, ganho de peso, estresse e depressão são
alguns exemplos das doenças ocupacionais, somadas às péssimas condições
de trabalho, a momentos de rebelião e a dificuldades de modificar o local onde
atuam.
Nesses últimos três anos, afastado do trabalho, o agente penitenciário
Lucas é categórico em afirmar que a cadeia deixará nele cicatrizes para o resto
da vida. Segundo ele, ela é um lugar onde se entra e já se sofre um impacto.
“O cheiro é totalmente diferente, de mofo, e causa arrepio.” Lucas e Guaracy,
que são amigos, afirmam que o sistema prisional é cruel tanto para os
funcionários quanto para os sentenciados.
8
PELLEGRINI, Marcelo. Expectativa de vida de agentes penitenciários é de 45 anos. Disponível em:
<http://www.usp.br/agen/?p=41743>. Acesso em: 26. mar. 2013.88
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