INTIMIDADE X AUTONOMIA: UM DILEMA CONJUGAL Vânia Bastos Fonseca de Castilho “ Há! Meu amor estamos condenados. Nós já podemos dizer que somos um Nós somos um E nossa parte do amor em que se é só um É que perdemos a metade cada um”. Condenado (Música de Fátima Guedes) A partir de minha observação clinica ao longo dos anos, tenho constatado que um dos aspectos mais presentes na vida conjugal é o dilema de como conviver com a necessidade de intimidade e pertencimento e, ao mesmo tempo, cultivar a autonomia e a individuação. Qualquer ser humano necessita de intimidade, uma experiência relacional que inclui o espaço para compartilhar sentimentos pessoais, experiências significativas, dramas e alegrias, dentro de um clima de confiança, compreensão e empatia. Por outro lado, também é uma necessidade básica o cultivo da individualidade, a capacidade de expressão e de conquistas pessoais significativas. A individualidade requer um investimento constante, principalmente dentro de uma convivência a dois, de cultivo de amor por si mesmo sem que se caia na armadilha de sentir-se egoísta ou pecando por falta de sentimentos mais elevados e altruístas com o próximo. A cultura judaico-cristã que predomina no mundo ocidental nos ensinou que quanto mais “amamos” os outros, melhores somos e, quem sabe, garantimos um lugar no paraíso. Se refletimos mais sobre esta crença milenar concluiremos que é impossível amarmos alguém se não cultivarmos a nossa auto-estima e auto-compaixão. Geralmente os casais que observamos na clinica trazem, implícita ou explicitamente, a questão de: “como ser eu mesmo, legitimar meu jeito de ser, atender às necessidades da minha alma e, ao mesmo tempo, estar disponível para viver uma intimidade que não me prejudique, não me anule e que permita o respeito pelo jeito de ser do outro? O casal que não compreende este dilema entra em estado de desconforto e de desprazer intensos, correndo o risco tanto de uma paralisação (impossibilidade de ficar juntos ou de se separar) ou de uma atitude unilateral (viver para o outro, cada vez mais se anulando, ou cada um viver a sua própria vida, distanciando-se). A intimidade em excesso traz consigo uma fantasia catastrófica de perda de identidade egóica, acompanhada de ansiedade de fusão e sufocamento. Pertencer passa a significar renúncia a determinados anseios e fantasias pessoais em nome de um “bem estar a dois” ou de evitar conflitos. Geralmente, quando isso ocorre, um dos parceiros se sacrifica enquanto que ao outro é dada a oportunidade de legitimar seus pontos de vista, seus desejos e metas. O exercício da autonomia, por outro lado, pode vir acompanhado de culpa ou de um sentimento de estar abandonando ou negligenciando a relação, trazendo consigo o fantasma da perda do outro. Este é um tema central nos distúrbios de relacionamento conjugal que envolve uma experiência emocional desgastante, associada a muita ansiedade e se manifesta através de comportamentos antagônicos: um cônjuge pressionando por maior envolvimento e proximidade, e o outro lutando por mais desengajamento. O casal passa a viver um circulo vicioso paralisante, numa cadeia de retroalimentação mutua, que se escala ampliando as respostas de um e do outro. Aparentemente os parceiros estão reivindicando posições diametricamente opostas, ou mutuamente excludentes, porém penso que nesse “jogo” ambos estão, de alguma forma, coniventes, na busca de uma distancia confortável e não ameaçadora. Esta experiência desconfortável faz com que, com o tempo, sejam acionados mecanismos, na tentativa de fazer parar a escalada do conflito, que passaremos a chamar de conflito proximidade/distancia. Na maioria das vezes, no entanto, estes mecanismos são meramente paliativos apresentando uma aparente resolução do problema. Um dos mecanismos mais comuns é o aparecimento de sintoma em um dos cônjuges: depressão, alcoolismo, atitudes anti-sociais, doenças psicossomáticas, entre outros. Quando um parceiro se torna sintomático e sua capacidade de se autoconduzir diminui o outro fica perto para cuidar. O sintoma, então, remove temporariamente o conflito, tornandose a razão para que ambos fiquem juntos e justifiquem a falta de intimidade. Isto promove o que chamamos de “distancia regulamentar confortável”. Outro mecanismo freqüente, e bem conhecido, é a triangulação. Outras pessoas podem ser recrutas como reguladores de distancia. Parentes e amigos com freqüência entram neste papel quando, por exemplo, se tornam companheiros inseparáveis do casal, saindo sempre juntos, compartilhando varias atividades ou recorrendo-se mutuamente para ajudarem na resolução de conflitos. Estes casais têm grande dificuldade de estarem a sós. No, lazer, por exemplo, estão sempre acompanhados pelos amigos, pais, outros parentes ou em companhia dos filhos. A forma mais freqüente de triangulação, porém, é a de um filho que, ao perceber a ansiedade dos pais, perturba a intimidade dos mesmos ou se comporta de tal forma a trazê-los mais próximos quando eles se distanciam muito. Isto proporciona tanto alivio, que à ambivalência do filho é dado um feedback positivo, ampliando seus sentimentos contraditórios, enquanto o conflito proximidade/distancia dos pais diminui. Não é surpreendente que, com o tempo, apareça um sintoma mais sério neste filho que passa a ser o regulador da distancia parental, na medida em que os pais agora passam a viver em função do sintoma e na “busca de sua resolução”. Podemos ainda conjecturar que a dedicação exagerada a uma religião, ao trabalho, à causas ideológicas, é também ótimo regulador de distancia. Passemos agora a alguns questionamentos: o que fazemos com isso? Enquanto terapeutas, como ajudamos o casal a não necessitar de mecanismos ou artifícios reguladores de distancia, favorecendo a construção de um espaço onde a distancia confortável é, finalmente, encontrada sem a necessidade de recorrer aos artifícios anteriormente mencionados? Inicialmente gostaria de me deter no lugar do terapeuta neste processo. Na fase inicial da terapia trabalhamos, rápidos e livres, com a intenção de criar vínculos, usar da proximidade para gerar intensidade. Sabemos que isto nos expõe a armadilhas, na medida em que esta busca do vínculo terapêutico será usada como triangulação, levando o sistema terapeutacasal a encontrar uma nova homeostase, necessária neste momento, para que o casal possa se desvincular dos mecanismos reguladores anteriormente buscados. Esta é uma estratégia, inicialmente fácil e eficiente que, no entanto, tem que ser exercida cuidadosamente. Sabemos que, ao ser triangulado, o terapeuta ajuda na importante tarefa de destriangular pessoas que estão completamente implicadas na “patologia do casal” principalmente os filhos. No entanto, é necessário que eventualmente ele também seja destriangulado, distanciando-se gradativamente, à medida que o casal vá encontrando o nível de proximidade e de distancia apropriado às necessidades de ambos e restabeleça um senso de segurança no sistema de vinculo. No aspecto em questão, o processo terapêutico tem como um dos principais propósitos, mudar o limiar de ansiedade sobre o conflito proximidade/distancia e consequentemente, a possibilidade de coexistência de intimidade e autonomia na vida conjugal. A forma como cada pessoa experimenta o vinculo depende dos seus próprios modelos e estilos, e está conectado ao seu sistema de crenças sobre relacionamento. Cada um interpreta o problema do pertencer de forma diferente, a depender de fatores relacionados também com o mundo subjetivo. Um baixo nível de autoconfiança, a necessidade permanente de suporte, o medo de rejeição e o sentimento de que a valorização vem, por exemplo, através de uma pessoa idealizada, fazem com que qualquer indicio de afastamento acione comportamentos e sentimentos daquele que luta por proximidade. Em contrapartida, aquele que se esquiva, possui um alto senso de isolamento e independência e, consequentemente, tenta conter suas emoções para se sentir numa posição mais protegida, contra o sentimento de opressão e de dominação. São fatores idiossincrásicos que determinam o estilo de conjugalidade. O trabalho terapêutico também deve utilizar intervenções que ajudem numa melhor compreensão do comportamento do outro, no significado emocional de cada atitude, explorando o contraste de cada estilo ou modelo, e no reconhecimento de como cada cônjuge está reciprocamente lançando um ao outro num circulo reativo. Penso que um dos mais eficientes recursos terapêuticos é o genograma. O genograma é uma técnica criada por Murray Bowen cujo propósito é a construção da historia da família através de gráficos específicos. Facilita ou possibilita a identificação de fatores intrapsiquicos dolorosos, compartilhados pelos cônjuges, e que podem estar ligados à historia do casal e às características de suas famílias de origem. Este recurso é extremamente útil na medida em que, a partir de sua elaboração, as historias vão surgindo, permitindo a identificação de regras, padrões, mitos e crenças, que influenciam de forma poderosa os comportamentos individuais. Existem evidencias de que o estilo de pertence é transmitido intergeracionalmente. De um modo geral, a partir do genograma, é fácil identificar de que forma os medos sobre a intimidade e a distancia se instalaram em cada pessoa e como passaram a se manifestar. Este recurso terapêutico favorece uma melhor percepção do outro e as origens de suas dificuldades, levando o casal a torna-se capaz de obter um novo olhar sobre o relacionamento, e consequentemente, um melhor nível de tolerância e flexibilidade. Mesmo contando com recursos técnicos valorosos, podemos refletir que, a principal tarefa terapêutica é “perturbar” o sistema para que o mesmo encontre seus próprios scripts operativos. Cada sistema tem uma lógica na sua interação. Esta lógica não é nem boa nem má, não é certa nem errada. Como terapeutas não podemos inventar um casal. É imprescindível que tenhamos um nível razoável de tolerância, respeito e empatia, sem modelos de normalidade pré-estabelecidos, ou preconceituosos. Acredito alem disso, que este aspecto abordado neste artigo seja um recorte diante da complexidade que é a vida conjugal e que um trabalho terapêutico não se restringe a uma particularidade. Muito pelo contrario, outros conteúdos também são trabalhados concomitantemente durante todo o processo na busca de soluções mais saudáveis e uma melhor qualidade de vida.