Remoção e Gentrificação na cidade do Rio de Janeiro: o poder público a serviço da iniciativa privada Alexandre de Castro Mestre em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias Urbanas pela FEBF/ UERJ Introdução Aos cidadãos menos informados tudo leva a crer que o arbitrário processo de remoção de comunidades executado pela Prefeitura do Rio de Janeiro seja algo novo e pontual: ledo engano. A título de melhorar a infraestrutura local, bem como revitalizar partes da cidade consideradas degradadas, o poder público tem cometido atrocidades contra a população de baixa renda moradora de áreas consideradas estratégicas pelos órgãos municipais. Mas como foi dito anteriormente, não se trata duma prática nova e sim de algo que perdura há muito tempo na Cidade Maravilhosa. Uns dos primeiros registros de remoções, à revelia, patrocinado pelo poder público ocorreu após o desembarque da família real em solo brasileiro em 1808. Visando acomodar a grande comitiva que desembarcava na cidade, dez mil residências foram marcadas com as iniciais “PR” em suas paredes. A sigla fazia alusão a “Príncipe Regente”, mas não tardou para que ficasse conhecida perante a população como “Ponha-se na Rua” 1. Estratégia semelhante é utilizada no momento pela prefeitura carioca ao demarcar as casas que serão removidas pelos tratores a serviço da secretaria de habitação. Ao invés do precursor “PR”, a sigla da vez agora corresponde a “SMH”, ou seja, “Secretaria Municipal de Habitação”. Para a parcela atingida pelos atos do prefeito, as iniciais do momento têm outro significado: “Saí do Morro Hoje” 2. Outro episódio que ficou marcado na memória da cidade foi a reurbanização do Centro do Rio, promovida pelo prefeito Pereira Passos por volta de 1906. Para alguns um grande marco, uma vez que o centro adotou a fórmula utilizada em Paris, pelo Barão Haussmann 3. É dessa época a construção do Theatro Municipal, a implementação de praças e bulevares e a abertura da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco). Para outros uma enorme dor de cabeça, uma vez que ao ser colocado em prática o plano urbanístico foi responsável pela remoção de cerca de três mil imóveis do local, e os moradores dessas habitações tiveram que reconstruir suas vidas nos subúrbios cariocas e em parte dos morros do centro da cidade, como Castelo (que viria a ser desmobilizado a partir de 1922 pelo prefeito Carlos Sampaio, 1 Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/137691/A-hist%C3%B3ria-dasremo%C3%A7%C3%B5es-no-Rio-de-Janeiro.htm. Consultado em 03/07/2014. 2 Idem. 3 “O Censo de 1906 do Rio de Janeiro” / apresentação Nelson de Castro Senra. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos – IPP, 2012, p. 53. em função da valorização do solo local 4) e Providência. Indiretamente a prefeitura acabou promovendo o inchaço populacional da região central da cidade. Como se não bastasse, ainda tivemos a abertura da Avenida Presidente Vargas durante o Estado Novo, que não poupou nem mesmo algumas igrejas históricas que passavam pelo caminho da empreitada. Parte da vida cultural da cidade foi varrida do mapa com desaparecimento de grande parte da Praça Onze, berço do samba e de outras manifestações afro-brasileiras. Quarteirões inteiros foram desmobilizados em nome do “progresso”. Entre as décadas de 60 e 70 do século passado, com a “dobradinha” Carlos Lacerda – Regime Militar estima-se que cerca de 200 mil moradores foram removidos da cidade do Rio de Janeiro, principalmente aqueles que viviam na zona sul. Com a “desfavelização” de bairros como Botafogo, Lagoa, Humaitá e Leblon, essa área tornou-se alvo dum vertiginoso processo de valorização imobiliária. Parte desse contingente de desalojados foi mandado para o “exílio” na longínqua zona oeste, região até então desprovida de todo tipo de infraestrutura. Órgãos como o Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (Serfha) e a Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam) riscaram do mapa cerca de 62 favelas, entre elas as emblemáticas “Esqueleto” e “Praia do Pinto”. Para o historiador Mário Brum, esse período é conhecido como a “Era das Remoções” 5 . Gentrificação: quem desdenha que ocupar De tempos e tempos somos surpreendidos por neologismos que vão se incorporando a nossa língua. Geralmente são palavras de origem estrangeira que por força do processo de globalização vão se adaptando e se encaixando no nosso processo de comunicação. Como não poderia deixar de ser, gostaria de trazer à tona o termo “gentrificação”. Originalmente trata-se dum vocábulo em inglês (gentrification) que foi adaptado para a língua local com o sentido de recuperar, revitalizar e enobrecer áreas, principalmente urbanas, consideradas degradadas pelo poder público. A gentrificação é vendida como algo necessário e vital para a sociedade, como se fosse uma panacéia urbanística a fim de conquistar corações e mentes dos mais desavisados. A fim de corroborar essa linha de raciocínio a parceria entre os órgãos públicos e a iniciativa privada costumar mencionar os casos de Puerto Madeira, na Argentina e de Barcelona, na Espanha, como intervenções bem sucedidas. Na verdade o tal enobrecimento urbano trata-se dum processo perverso, que ao invés de unir a cidade como um todo acaba precipitando a sua cisão. Essa transformação se dá principalmente pelo aumento abusivo do custo de vida da região “revitalizada”, obrigando os mais pobres a abandonarem seus lares e a reconstruírem suas vidas em 4 Disponível em: http://www.almacarioca.com.br/imagem/fotos/rioantigo2/fotoa076.htm . consultado em 06/07/2014. 5 Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/137691/A-hist%C3%B3ria-dasremo%C3%A7%C3%B5es-no-Rio-de-Janeiro.htm. Consultado em 07/07/2014. áreas mais acessíveis. O pequeno comerciante é outro alvo em potencial dessa ação, uma vez que o peso dos impostos e taxas torna o seu negócio inviável. A marcha para as regiões periféricas a cada dia que passa ganha novos adeptos, não fazendo distinção entre pobres, classe média, pretos ou brancos. Segundo o geógrafo britânico David Harvey, “os megaprojetos, como a Copa e as Olimpíadas, são uma ótima desculpa para que o Estado force a saída de pessoas de terras valorizadas ou com potencial de valorização, deixando o caminho livre para a ação do capital imobiliário” 6. Por mais que a prefeitura negue, na prática é o que está acontecendo. A cidade do Rio virou um imenso canteiro de obras a céu aberto, onde é possível observar o imenso exército de operários de uniforme amarelo trabalhando freneticamente. A impressão que se tem é que eles trabalham por produção, quanto mais escombros removidos, maior será a remuneração deles no final do mês. O trabalhador que opera a retroescavadeira hoje não pensa na possibilidade de no futuro ele mesmo ser alvo desse processo destrutivo. Estamos vivendo a “Era das Remoções”, parte 2! Com o pretexto de revitalizar determinadas áreas do Rio, o poder público municipal têm transformado a vida de diversas famílias num martírio sem fim, com o agravante da corroboração do poder judiciário. Que tenta resistir é literalmente esmagado, seja pela Polícia Militar, Guarda Municipal ou pelo trator que chega sem avisar nas primeiras horas da manhã para colocar tudo abaixo. O rolo compressor do prefeito passou pelo Centro, Mangueira / Favela do Metrô, Madureira, Campinho, Praça Seca, Jacarepaguá, Recreio, Barra de Guaratiba (...). E continua firme e forte na Vila Autódromo, mesmo sendo uma pedra no sapato de Eduardo Paes. Que democracia é essa? Nesses 206 anos de remoções forçadas na cidade maravilhosa vemos sempre o mesmo roteiro: truculência, falta de diálogo, terror psicológico, desqualificação do removido, desrespeito às leis pelo poder público, complacência dos órgãos fiscalizadores (...). A quem interessa a gentrificação carioca? Provavelmente o capital especulativo do setor imobiliário. Vejamos o caso da Região Portuária, em nenhum momento o prefeito propôs uma consulta pública para verificar se a população era favorável a derrubada do Viaduto da Perimetral e a conseqüente revitalização da área. A toque de caixa as obras seguem a pleno vapor, quanto mais rápido o local for concluído, mais rápido é o retorno financeiro daqueles que investiram nos terrenos oriundos das desapropriações. É a lei do mercado, simples assim. Se vivemos num regime democrático, o povo deve ser consultado quando ações desse porte entram na pauta de estudos da prefeitura. Nada disso foi feito; uma canetada foi dada por Paes e o transtorno foi instaurado no perímetro da Rodrigues Alves. Azar de quem precisa se locomover diariamente pela região. A gentrificação só tende a precarizar ainda mais a vida dos mais pobres. Essas pessoas são as mais afetadas pelo processo, uma vez que elas são deslocadas para áreas distantes dos seus locais de origem, onde seus laços familiares e de pertencimento com a região são cortados abruptamente. Imagina o quanto traumático deve ser para alguém que foi nascido e criado em determinado espaço e de uma hora 6 Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/gentrificacao/reurbanizar-o-mundo-e-lucrar-as-marcas-docapital-imobiliario-no-corpo-da-cidade/. Consultado em 07/07/2014. para a outra se ver obrigado a se exilar no outro canto da cidade, quando não em outro município. Sem contar o impacto financeiro e a diminuição da qualidade de vida (que já é sofrível, diga-se de passagem) dessas pessoas, uma vez que por estar mais distante do seu local de trabalho o custo com transporte tende a aumentar, assim como o tempo maior dentro da condução. Não menos importante é fato daquele que vem de fora ser olhado com desconfiança por parte dos “caciques locais”. Para milicianos e traficantes o recém-chegado passa a ser visto com cautela, uma vez que nada os garante que os novatos não estão a serviço de outra facção ou até mesmo da polícia. Ao conversar com alguns moradores do Programa Minha Casa, Minha Vida na zona oeste, pude confirmar essa situação complicada. Segundo essas pessoas o monitoramento dos novatos é constante, uma vez que os traficantes fazem questão de adentrar o conjunto habitacional, a bordo de motocicletas, para ficarem a par de nossas rotinas. Não devemos nos opor ao desenvolvimento da cidade, ele é até bem-vindo, para tanto é necessário que esse processo seja plenamente inclusivo e participativo, onde todos possam se beneficiar das melhorias propostas. Até porque a cidade é moldada pela pluralidade, e não por um determinado grupo. O poder público precisa entender que o respeito à população é condição sine qua non para o início de qualquer conversa. Afinal, não somos todos um Rio? Bibliografia: INSTITUTO PEREIRA PASSOS / PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. “O Censo de 1906 do Rio de Janeiro” / apresentação Nelson de Castro Senra. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos – IPP, 2012, p. 53. Sítios eletrônicos www.brasil247.com www.almacarioca.com.br http://reporterbrasil.org.br