Entrevistas: Ir. Blanca Yolanda Mancera e Ir. Felicita Muthoni Nyaga, Missionarias da Consolata
Maloca do Pium, Roraima, Fevereiro de 1999
Ref.: 3-99-Yolanda&Felicita
VENEZUELA
Yolanda e Felícita,
mulheres Colombiana e Africana,
Missionárias da Consolata,
que partilham suas vidas
com o povo Yanomami,
na fronteira
do Brasil com a Venezuela.
BRASIL
Arizete Miranda Denelli C.S.A.
Fernando López S.J. (*)
Irmã Yolanda
Dados pessoais
Blanca Yolanda Mancera, 36 anos de idade, nascida em Quetame, Colômbia. Família católica e numerosa.
Seus pais, José e Blanca, tiveram 10 filhos. Yolanda é 7a. Ela ingressou no Instituto das Missionárias da
Consolata em 1981 e tem um irmão que é sacerdote. Yolanda Chegou ao Brasil em outubro 1998 e está na
missão de Catrimâni com os Yanomami.
Como nasceu e cresceu sua vocação?
Deus estava projetando para minha vida uma vocação. Para mim, a melhor de todas as vocações. Ser
Missionária da Consolata e assim poder compartilhar com muitos irmãos/ãs o grande amor de Deus. Não foi
fácil realizar este sonho. Deixar o que eu mais amava, meus pais e irmãos, era difícil demais. Quando olhava
para eles parecia que as forças faltavam para pegar as malas... Minha mãe chorava no silêncio, rezava muito
para que eu fosse adiante. Meu pai entrou num silêncio muito profundo durante os últimos meses; com isso
manifestava a sua tristeza ao deixar-me ir com as Missionárias. Os meus irmãos e outros amigos, me falavam
de outros caminhos “mais simples” - diziam eles -, para que eu desistisse das missões. Mas em mim existia
uma força interior mais forte ainda que a família... Era paixão. Eu me apaixonei totalmente por Jesus Cristo e
seu Reino.
Como chegou entre os Yanomami ?
A notícia mais bonita que recebi na minha vida religiosa foi a destinação para conviver entre os indígenas
Yanomami do Brasil. Com a notícia fiquei iluminada de felicidade... Logo comecei a pesquisar sobre os
Yanomami: onde ficavam, que língua falavam, como eram, onde estava a missão, etc. Desde setembro de
1997 comecei gerar no meu coração um "povo novo", "uma cultura nova". Não parava de sonhar com o dia
bendito de sair para minha nova missão e chegar entre os Yanomami. Falava deles para todo mundo, sem
conhecê-los ainda. Eles já estavam fazendo parte da minha vida. Quase esqueci que para entrar na vida desse
povo tinha que deixar os meus seres queridos, a minha amada Colômbia, colegas de trabalho, etc. Porém...
O quê significa ser missionária entre os Yanomami?
Ser missionária entre os Yanomami, hoje dá luz à minha vida. Me apaixona mais e mais no seguimento de
Jesus. Já estou aqui no meio deles, o meu ser missionária deixou de ser palavra, agora é vida, e que vida! A
minha preocupação por "dar" acabou porque estou recebendo muito mais do que pensava e do que mereço.
O que tem aprendido com eles?
Os Yanomami dão o verdadeiro sentido ao dia-a-dia. Eles tudo contemplam. Têm uma sensibilidade total com
as pessoas, com a natureza... Eles são os donos do tempo, por isso, não precisam correr como doidos. E cada
coisa tem o seu tempo. Os Yanomami me ensinam que a vida é alegria, é festa, por isso, todo acontecimento é
celebrado com solenidade. Eles sabem acolher e oferecer o melhor que têm para aquele que chega. Eles me
ensinam que a paz e a amizade são possíveis.
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Conte-nos alguns fatos marcantes vividos no meio do povo Yanomami?
Nestes poucos meses são muitos os fatos marcantes vividos com eles. O primeiro deles é inesquecível e me
lembro muito bem. Foi o jeito como me receberam. Examinaram-me e tocaram-me todo o corpo, desde a
ponta dos cabelos até as unhas dos pés. Depois cheiraram-me o rosto. De repente senti como meu rosto, o
pescoço e as mãos estavam todos pintados com o vermelho bonito de urucum (fruta com semente vermelha
que usam para se pintar). Logo cortaram-me os cabelos, como usam as mulheres Yanomami... Tudo isso tem
para mim um significado profundo de amor, carinho, aceitação e de bem-vinda! Outro fato, bem marcante, foi
a participação numa celebração de funeral. Os filhos, com muita força e dor mostravam ao morto cada um de
seus pertences e depois os queimavam. A presença dos parentes foi total. Após dois dias de cerimônia, todos
foram marcados no peito e nas costas com as cinzas do morto misturadas com urucum. Foi uma experiência
tão bonita ver tanta solidariedade, fraternidade e comunhão entre eles e o defunto... Quanto aprendi nesses
dias!
Para você, o que significa inculturação?
Estou plenamente convencida que é a partir de uma inculturação lenta, constante e bem enraizada, que eu
posso conhecer este povo. Acho fundamental a aprendizagem da língua com a qual sonho poder penetrar no
coração da cultura Yanomami. É interessante esta aprendizagem feita não nos livros de gramática, senão, no
estar no dia-a-dia partilhando minha vida com a deles; sentando na rede, na maloca, junto aos velhos, aos
jovens e crianças; cantando na escuridão das noites com eles; dançando nas festas; tomando banho com as
mulheres no igarapé; compartilhando um pedaço de carne ou de peixe; aprendendo juntos o trabalho da roça,
etc. Acredito que esta é a melhor e mais bonita escola da língua e da cultura deste povo Yanomami.
Que traços de Deus você descobre junto a esse povo?
No início estava preocupada porque sabia que com eles não podia anunciar explicitamente a Deus. Os
Yanomami não são católicos. Porém, fui compreendendo e descobrindo a Deus no meio deles, que já estava
presente desde sempre. Não tem o nome de Jesus mas Ele se chama Amor, Partilha, Alegria, Paz, Saúde,
Serenidade, etc. E que bonito é poder acolher e amar esta religiosidade tão profunda... Aqui, entre os
Yanomami, se sente e se vive muito forte a presença do Deus da Vida e da Reconciliação, em harmonia total
com a natureza. Isto é o que eu experimento nestes poucos meses com o povo Yanomami; hoje sinto-me feliz
e muito agradecida a Deus por este dom tão grande de poder estar aqui, no meio deles.
Ir. Felícita Muthoni Nyaga
Dados pessoais.
Felicita Muthoni Nyaga, Missionária da Consolata, natural de Quênia, África Oriental. 40 anos de idade. É a
segunda filha de nove irmãos de uma família católica tradicional, com pouco contato com a cultura ocidental
(Quênia têm somente um pouco mais de 100 anos de evangelização). Seu pai é do povo Kikuyu e sua mãe do
povo Embu. Felícita fala várias línguas: Kikuyu, Embu, Suahili, Inglês, Português, Yanomami. Está na
missão de Catrimâni, com os Yanomami, desde 1995 e no Brasil desde 1990.
Como chegou no meio do povo Yanomami?
Nossa congregação é missionária. Depois de ter feito dois anos de juniorado internacional (etapa de formação
na vida religiosa), a pedido da Madre Geral, pude discernir sobre várias possibilidades de missão. Trabalhar
com distintos povos da África era uma grande possibilidade. Porém, o que eu sentia forte eram os desejos de
trabalhar com algum povo de pouco contato... Assim falei para a Madre e logo surgiu a idéia de vir para
Roraima, por ser um Estado que oferece grandes oportunidades para o trabalho com diferentes povos
indígenas (Makuxi, Wapixana, Yanomami). Chegando na região, tinha a necessidade de abrir uma
comunidade entre os Yanomami, na missão Catrimâni, onde os Missionários da Consolata já trabalhavam
desde 1965. Esta foi minha maior alegria, em janeiro de 1995 fui destinada para trabalhar naquela missão com
o povo Yanomami.
Que coisas tem aprendido e quais os fatos mais marcantes vividos com eles?
Tenho aprendido muito com este povo que é, ainda, um dos povos da América Latina de pouco contato; os
Yanomami ainda não estão muito "contaminados" com a cultura ocidental. A cultura deles é muito diferente.
A dimensão grupal e comunitária e muito forte e abrange todos os aspectos da vida. Também, para os
Yanomami, tudo é celebração. Tudo é Deus. Tudo é contato com a natureza. Tudo é vida. Uma coisa muito
marcante e bonita é ver este povo, de manhã cedo antes de sair da maloca para caçar, pedir perdão ao animal
que vai matar... É um ato muito profundo!
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Como são as celebrações Yanomami.
É uma cultura que não dá nem para contar... Toda a vida deles gira em torno da celebração. Celebrar é ter
contato e relação com seu mundo, com a floresta, com os parente, com os defuntos... Tudo é vivido, tudo é
celebrado. Não é como nós que ficamos refletindo e refletindo nas nossas celebrações... Fico pensando o
quanto a gente reduz até mesmo a vida de Jesus às idéias, a uma celebração eucarística de uma hora! O povo
Yanomami, para celebrar um acontecimento, leva um mês para organizar a celebração; outro mês passam
caçando juntos para ter comida suficiente para todos os participantes; outro mês para chamar os parentes e
amigos para se encontrarem todos na celebração; e ainda passa outro mês celebrando juntos. Muitos
caminham 20, 50, 80 e até 300 Km. a pé, para participar das grandes festas numa determinada maloca.
E as celebrações funerárias?
Os Yanomami estão em contato com o sobrenatural, com a vida, o tempo todo! A celebração da vida daquele
que morreu é muito importante. A morte da pessoa é sagrada. A compreensão Yanomami da vida depois da
morte é muito rica. O corpo humano está dividido em vários setores. A pele, por exemplo, é considerada
como a casca de uma arvore, não tem muita importância. Agora, o osso é como o cerne, é a parte principal
que sai da pessoa quando ela morre. As celebrações dão-se em torno das cinzas da pessoa que morreu, para
chorar a perda e que assim haja harmonia. Isso é muito importante para eles. Todos participam. Todos
caminham chorando. É um choro profundo que se torna uma lamentação. Comem as cinzas do defunto, para
adquirirem suas forças e seus conhecimentos...
O que significa inulturação para você?
Eu venho de uma cultura africana, tive que aprender a falar a língua de meu pai (do povo Kikuyu) e de minha
mãe (do povo Embu) para poder compreender a vida e a cultura de meus parentes. Por isso penso que
aprender a língua é fundamental. Ela é a que expressa o ser mais profundo do povo. Se a gente quer entrar na
cultura, na medicina tradicional, na étno-educação e na étno-geografia, nas celebrações com seus símbolos e
ritos, etc., é fundamental dominar a língua. Tentar entender o povo através de intérpretes, não é muito bom. A
coisa fica muito complicada. Temos que aprender a língua para facilitar o entrosamento no convívio diário
com o povo: estando sentado no chão ou deitados na rede, tomando banho no rio ou preparando a comida,
caçando ou pescando, comendo juntos, enfim na vida cotidiana. Falar a língua cria liberdade, respeito, união,
amor, faz com que o povo se sinta mais valorizado com sua realidade, sem que sintam vergonha de pertencer
a esse povo com suas belezas e diferenças, com sua cultura particular.
O fato de muitos missionários não aprenderem falar a língua do povo com o qual está vivendo, me questiona
muito, pois como vão compreender o modo de viver, a sua cultura, a sua religiosidade, etc. Aprender a língua
é um desafio muito necessário para a convivência com o povo, para a inculturação do missionário, para entrar
num diálogo inter-religioso sincero, que ajude na busca dos novos caminhos da igreja e da evangelização mais
inculturada e respeitosa com os povos e culturas diferentes.
Se tivesse que recomeçar tudo de novo, voltaria a entregar toda sua vida como missionária no convívio
com os Yanomami?
É claro! Se o Deus da vida me desse outra vida, outra encarnação... Acho que iria continuar sendo missionária
da Consolata. Agora, não vou dizer se sería exatamente com os Yanomami ou com outro povo originário de
cultura minoritária, da América Latina ou da África... Com os Yanomami adoraria, pois tenho paixão por
eles!
Que diria para um/a jovem missionário/a que quer/a entrar na caminhada com os povos indígenas?
Puxa vida! Coragem! A experiência é o melhor. Faça experiência se integrando com esse povo. Aprenda com
os missionários também, que já estão lá doando suas vidas...
(*) Membros da Equipe Missionária Itinerante.
Rua Castelo Branco 101 - B. Vitória Régia
69033-230 Manaus - AM.
Fone-fax: (092)625-3721.
E-mail: [email protected]
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1999-03 Entrevista a Ir Yolanda e Ir Felicita