REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ® Células-tronco - um enfoque sobre princípios constitucionais e valores humanos Como era de se esperar, a edição da lei brasileira de biossegurança, que permite a utilização de embriões humanos em pesquisas com células–tronco, divide opiniões. Não importa que sejam cientistas altamente qualificados no assunto ou cidadãos leigos, o fato é que, mesmo após ter sua constitucionalidade declarada pelo STF, a Lei nº 11.105/05 continua gerando polêmicas, em razão dos bens jurídicos que busca tutelar. A ADI nº 3526, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República tentou rechaçar a validade da lei em questão, argumentando, em síntese, que a mesma afrontaria os princípios constitucionais da inviolabilidade da vida e da dignidade humana. Em entrevista publicada na revista Veja, de 5 de março de 2008, a bióloga Mayana Zatz, uma das maiores autoridades no assunto, teceu, à luz da ciência, algumas considerações acerca dos princípios cuja proteção se pretendeu com o ajuizamento da referida ADI, destacando que, embora não exista um consenso sobre o início da vida, há um entendimento no sentido de que a vida termina quando cessam as atividades cerebrais. Pelo mesmo raciocínio, conclui dizendo: “se não existe vida sem um cérebro funcionando, um embrião de até catorze dias, sem nenhum indício de células nervosas, não pode ser considerado um ser vivo”. Partindo desta afirmação, indaga-se: que vida e que dignidade humana a Procuradoria-Geral da República desejou resguardar ao tentar impedir que a lei de biossegurança vigorasse? Sem intenção de atacar a liberdade religiosa, igualmente alçada e protegida como direito e garantia fundamental pelo art. 5º, VI, da Carta Fundamental de 1988, há, no entanto, que se ponderar acerca da amplitude do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, bem como sobre que titulares de tais direitos, no caso em apreço, devem ser protegidos pelo Estado. Não é preciso ser um expert em medicina ou biociência para perceber que milhares de pessoas vivem, hodiernamente, limitadas por doenças cuja cura seria potencial ou efetivamente garantida com os avanços proporcionados pelas pesquisas com embriões humanos, pois tais fatos são exaustivamente noticiados diariamente. São indivíduos que, segundo a citada pesquisadora, “morrem prematuramente ou estão confinados a uma cadeira de rodas, e poderiam se beneficiar dessas pesquisas”. Diante de tais considerações, proponho neste breve texto que a garantia e proteção da vida e da dignidade da pessoa humana devem ser analisadas sobre outra ótica, isto é, observando-se tais princípios em seu aspecto sócio–cultural, e não somente tomando-se a vida mero fenômeno bioquímico. Como é amplamente divulgado, os embriões humanos destinados às pesquisas com células–tronco são organismos já destinados ao descarte, isto é, sem qualquer possibilidade de vida para os mesmos, ainda que se tentasse favorecer seu desenvolvimento. Estes são os seres cuja proteção era pretendida através do ajuizamento da ADI que visava negar vigência à lei de biossegurança. De outro lado, temos indivíduos privados de um amplo convívio social, “vivendo” em condições indignas, e sem possibilidade do gozo de outros bens jurídicos igualmente garantidos pela Constituição Federal. São pessoas, ao contrário dos embriões, que já possuem uma história de vida, componentes de um círculo social, enfim, indivíduos que já agregaram valores à sua existência, e que depositam na ciência a esperança por uma chance de viver plenamente, desfrutando do direito de ir e vir, da própria felicidade e também da felicidade daqueles que os cercam e acompanham seus dramas! Vou ainda mais além. Abstraindo-me do fato de estarmos falando em embriões destinados ao descarte, apenas para estimular o raciocínio do leitor, coloque-se um embrião como uma expectativa de vida, uma vez que, mesmo que sejam despendidos todos os esforços e cuidados pré–natais, a fim de garantir à mulher uma gestação saudável, e consequente nascimento do indivíduo, não existe uma garantia real de que o mesmo nascerá. Por sua vez, aqueles que vêem nas células–tronco sua única tábua de salvação já compõem efetivamente o seio social, como dito linhas acima. Esses indivíduos não são uma expectativa; são sujeitos de direito! Pessoas reais, com problemas reais, e que também tecem argumentos religiosos para sustentar seu direito de viver com dignidade. A este respeito, José Afonso da Silva consigna que “vida, no texto constitucional, (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto – atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva”. E prossegue discorrendo sobre o direito à existência, como sendo o “direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo” (In Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 194 - 195). Há então, no nosso entender, a necessidade de se promover um diálogo entre os princípios constitucionais que garantem a vida e a dignidade humana e o princípio da razoabilidade, ou seja, averiguar se é aceitável negar vigência à lei de biossegurança, em detrimento de cidadãos que esperam por uma chance real de finalmente usufruir suas faculdades, de ter garantido o mínimo de igualdade, liberdade, de bem-estar físico e psíquico, enfim, assegurar que estes valores humanos sejam passíveis de fruição por parte de seus titulares, pois, de nada adianta proteger o direito à vida sem garantir o pleno exercício das prerrogativas de que goza cada pessoa enquanto ser humano. Aí sim poderemos falar em dignidade humana. Em sua entrevista, Mayana Zatz ainda nos alerta pra outro fato importantíssimo no que diz respeito às pesquisas com embriões humanos: muitas pessoas a estão confundindo com o aborto. A esse respeito, Júlio Fabbrini Mirabete nos fornece o conceito de aborto como sendo “a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão” (In Manual de Direito Penal – parte especial. São Paulo: Atlas, 1998, p. 93). Tal conceito corrobora, então, o que foi dito pela cientista multicitada, isto é, os embriões destinados às pesquisas possuem no máximo catorze dias, portanto duas semanas, não havendo que se falar em aborto. Diante disso, verifica-se que a população, de um modo geral, carece de informação, ou seja, não se inteirou de dados importantes para a formação da opinião pública, o que é agravado por manifestações multidirecionais por parte da Igreja Católica, principalmente. Há que se lembrar que a todo o momento os meios de comunicação já noticiaram e continuam noticiando atos praticados por padres pedófilos, pastores evangélicos envolvidos em escândalos de corrupção e também em episódios de pedofilia, enfim, indivíduos que se dizem mensageiros de Deus, porém pregadores de dogmas que, de fato, jamais respeitaram ao longo de sua trajetória religiosa, mas que agora vem a altos brados se rebelar contra um avanço da ciência, este sim com inegável conteúdo ético e moral, como se aqueles indivíduos fossem exemplos a serem seguidos. Lembre-se, ainda, que a Igreja Católica condenou a humanidade a séculos de obscurantismo na Idade Média, tendo verdadeiramente assassinado diversos estudiosos da ciência em nome de Deus, como se Ele lhes tivesse outorgado uma procuração para matar em Seu nome (aliás como ainda se faz atualmente). Nessa toada, gostaria de indagar se há na Bíblia alguma passagem historiando o assassinato de outrem tendo Jesus Cristo como seu mentor ou algoz? É claro que aqueles que já se deram ao trabalho de folhear a Bíblia Sagrada já sabem a resposta! Portanto, contestar a lei brasileira de biossegurança é nada menos do que manter aqueles sujeitos titulares de direitos, privados de seu direito à integridade física, moral, de existência digna, de liberdade, privacidade, dos direitos da personalidade de uma maneira geral. Mais do que isto é condenar o nosso país, já tão preterido em diversos aspectos do desenvolvimento social e econômico, mais uma vez a um obscurantismo injustificado, ou pretensamente justificado por instituições que não possuem qualquer legitimidade jurídica para interferir em decisões de benefício coletivo, tampouco compreendem a noção exata de democracia.