Duplo Efeito e Decisões sobre o Fim da Vida
Pedro Galvão
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
Resumo
A doutrina do duplo efeito é um princípio de
permissividade moral aceite por alguns deontologistas.
Começo por elucidar a perspectiva deontológica da ética,
expondo de seguida a doutrina referida, algumas das suas
aplicações e os problemas filosóficos que coloca. Explico
depois como alguns críticos da eutanásia recorrem ao duplo
efeito. Sem colocar em questão a própria doutrina, defendo
por fim que esta, na sua aplicação tradicional à eutanásia,
gera um dilema aparentemente irremediável.
Palavras-chave:
Deontologia, duplo efeito, eutanásia, intenção, valor da vida
humana
Deontologia
Comecemos com um caso hipotético muito simples e
pouquíssimo realista. Um criminoso assassinou várias
pessoas, mas morreu acidentalmente antes de ser capturado
e de se poder provar a sua culpa. Agora a única forma de
evitar um motim ------ e de assim salvar várias vidas ------ será
condenar e executar um inocente, fazendo a população crer
que é ele o assassino. Suponha-se que, nesta situação, o
agente que tem o poder de sacrificar um inocente sabe
efectivamente que a sua execução terá as melhores
consequências: entre as alternativas disponíveis, nenhuma
outra resultará num maior bem, ponderados imparcialmente
os interesses de todos os indivíduos afectados. Seria
eticamente aceitável sacrificar o inocente?
Um deontologista, subscrevendo o juízo da moralidade
do senso comum, condenaria resolutamente o sacrifício. Em
seu entender, executar o inocente seria cometer uma
transgressão inequívoca de certos limites morais, conhecidos
na ética filosófica por restrições centradas no agente. Estes
limites são o traço essencial de qualquer ética deontológica.
É neste tipo de ética, vale a pena sublinhar desde já, que se
enquadra o princípio ou doutrina do duplo efeito.
Os deontologistas poderão discordar quanto às restrições
que existem, mas convergirão seguramente na aceitação de
uma restrição geral contra maltratar ------ e todos eles
repudiariam a execução do inocente em virtude de esta
consistir numa violação grave desta restrição. No caso de
entenderem que enganar é uma forma de maltratar,
acrescentariam que induzir na população uma crença falsa
sobre a autoria dos crimes seria violar a mesma restrição.
Um deontologista, note-se, poderá admitir que temos
uma razão moral para promover imparcialmente o bem, de
tal forma que o facto de um acto resultar num maior bem (ou
num menor mal) é algo que conta sempre a favor da sua
realização, por vezes decisivamente. Contudo, acrescentará
que temos uma razão moral para não maltratar que, pelo
menos tipicamente, suplanta a razão para promover o bem.
Se reconhecermos uma verdadeira restrição contra maltratar,
pensaremos que cada um de nós tem, pelo menos na grande
maioria dos casos, uma razão moral decisiva para não
maltratar. Nesses casos, não poderemos maltratar alguns
indivíduos nem mesmo para evitar que outros agentes
maltratem ainda mais indivíduos de uma forma similar ------ é
por isso que as restrições são centradas no agente. Se o
agente do caso delineado não sacrificar a vida de um
inocente, ocorrerá um motim no qual outros agentes
2
matarão vários inocentes. Mas isso, sustenta o deontologista,
não torna o sacrifício aceitável.
A perspectiva deontológica contrasta de uma forma
particularmente interessante com o chamado utilitarismo de
actos. Quem defende esta teoria ética nega a existência de
restrições. Pensa que a razão para promover o bem -----concebido, mais precisamente, como a felicidade geral ------ é
sempre decisiva. Assim, se um dado acto é aquele que
promove o bem no maior grau, temos a obrigação de o
realizar, mesmo que isso implique maltratar seriamente
alguns indivíduos inocentes. Perante o caso apresentado, o
utilitarista teria de aprovar que o agente sacrificasse o
inocente e enganasse a população. Contudo, faria notar
depois que este caso não passa de uma fantasia, e que, a
respeito de casos realistas, a sua perspectiva não gera
veredictos manifestamente monstruosos.1
Retomando a elucidação da perspectiva deontológica,
importa observar que os seus defensores discordam quanto
à força das restrições. De acordo com os deontologistas
radicais (ou «absolutistas»), pelo menos algumas restrições
têm uma força absoluta. Isto significa que a violação de
certas restrições é sempre errada, por muito terríveis que
sejam as consequências decorrentes da opção de não as
violar. Os deontologistas moderados, pelo contrário,
entendem que as restrições têm apenas uma força prima facie.
Assim, se violar uma restrição for necessário para evitar uma
calamidade (e.g., se for preciso assassinar um inocente para
salvar um milhão), será eticamente permissível fazê-lo: a
razão para não maltratar, apesar de suplantar tipicamente a

1
Dado que não pretendo proceder aqui a uma avaliação do
utilitarismo de actos, não vou discutir a cogência desta réplica. Mas
veja-se Galvão 2008: 144---52.
3
razão para promover o bem, nem sempre é uma razão moral
decisiva. Embora o duplo efeito esteja associado sobretudo à
deontologia radical, nada impede um deontologista
moderado de o aceitar.
Uma questão distinta que se coloca aos deontologistas é a
do alcance das restrições. Se o agente do nosso caso
hipotético sacrificar um inocente, resultará daí uma morte; se
não o fizer, várias mortes serão o resultado. Contudo, o
deontologista pensa que, se optar por esta segunda
alternativa, o agente não estará a violar a restrição contra
maltratar. Mas porquê? Como haveremos de delimitar esta
restrição de forma a pensar assim? Uma hipótese é recorrer à
distinção fazer/permitir, ou seja, à diferença entre provocar
um mal (e.g., matar alguém) e não impedir que um mal
ocorra (e.g., deixar alguém morrer, quando se poderia fazer
algo para evitar a sua morte). Alguns deontologistas,
tomando esta distinção como eticamente significativa,
esclarecem o alcance da restrição contra maltratar dizendo
que esta é violada quando um agente maltrata alguém, mas
não quando se limita a não evitar que alguém sofra um mal.
Ora, o agente estará a maltratar uma pessoa se sacrificar um
inocente, ao passo que, se escolher não o fazer, estará apenas
a permitir que algumas pessoas sejam maltratadas, pelo que
esta última opção não consiste numa violação da restrição.
A distinção fazer/permitir não oferece a única forma de
delimitar a restrição contra maltratar. Um deontologista
pode pensar que se obtém a delimitação mais apropriada a
partir da distinção intenção/previsão. Quando fazemos algo
(ou nos abstemos de fazer algo), prevemos que isso resulte
em certos efeitos, mas não temos a intenção de que todos
esses efeitos se verifiquem: os efeitos pretendidos são apenas
uma parte dos efeitos previstos. Um médico que prescreve
um certo medicamento, por exemplo, prevê que o paciente o
tomará de acordo com a posologia indicada e que assim
4
ficará curado da infecção. Prevê também que o paciente vai
sentir uma grande sonolência. O médico sabe, então, que o
seu acto terá estes três efeitos (entre outros), mas a sua
intenção só abrange os dois primeiros. Dado que a
sonolência não é o fim em vista, nem um meio para esse fim,
não passa de um efeito colateral daquilo que ele realmente
pretende. Ou seja, é um efeito meramente previsto.
Baseando-se nesta distinção, o deontologista pode alegar
que se viola a restrição contra maltratar quando, por
exemplo, se mata ou deixa morrer alguém intencionalmente,
mas não quando a morte de alguém é um efeito meramente
previsto. Ao indicar-se assim o alcance desta restrição,
conclui-se, uma vez mais, que sacrificar um inocente será
violá-la: se o agente escolher fazer isso, estará a pretender
uma morte como meio para evitar o motim. A opção de não
sacrificar um inocente, ainda que resulte previsivelmente em
várias mortes, não constitui nenhuma violação da restrição,
já que o agente não tem a menor intenção de que essas
mortes ocorram.
Duplo Efeito
Os defensores da doutrina do duplo efeito (DDE, daqui em
diante) são deontologistas que recorrem à distinção
intenção/previsão para delimitar restrições. A DDE tem
uma longa história e foi defendida e criticada em muitas
versões diferentes. Tipicamente, consiste num conjunto de
condições para a permissividade de realizar um acto (ou de
optar por uma omissão) que, pelo que o agente prevê, terá
um bom efeito e um mau efeito. As condições em questão
variam bastante nas diversas versões da DDE, mas duas
delas são essenciais. Restringindo-nos a estas condições,
podemos dizer que, segundo a DDE, é permissível o agente
5
realizar o acto (ou optar pela omissão) que, previsivelmente,
resultará num bom e num mau efeito somente se:
1) O mau efeito for meramente previsto, ou seja,
a. não for o fim em vista,
b. nem for pretendido sequer como meio
para o bom efeito;
2) O bom efeito for suficientemente bom,
comparado com o mau, e não houver forma
menos má de o produzir.
Digamos que 1 é a condição da não-intenção, ao passo que 2
é a condição da proporcionalidade. Seja A um acto sob
escrutínio.
Estas
condições
apresentam-se
como
separadamente necessárias para a permissividade de A, isto
é, será permissível realizar A apenas se 1 e 2 forem
satisfeitas. Contudo, isto não significa que 1 e 2 sejam
conjuntamente suficientes para a permissividade de A:
mesmo que 1 e 2 sejam satisfeitas, ainda assim A pode ser
impermissível. Na verdade, muitos defensores da DDE
formulam a doutrina introduzindo condições necessárias
adicionais, mas, dado que estas são irrelevantes para a
discussão subsequente, aqui abster-me-ei de as examinar.2
Consideremos agora uma das aplicações mais conhecidas
da DDE, que envolve um contraste entre dois casos de
bombardeamento. No caso designado por Bombardeamento
Aterrorizador, os militares bombardeiam civis de modo a
desmoralizar o inimigo, procurando apressar assim a sua
rendição. No conhecido por Bombardeamento Estratégico, pelo

2
Veja-se, por exemplo, duas defesas recentes da DDE: Oderberg 2000a:
90---1 e Cavanaugh 2006: 36. Pela mesma razão, vou abster-me de discutir
aqui o problema da exigência excessiva da DDE.
6
contrário, os militares largam bombas apenas para destruir
uma fábrica de armamento do inimigo, mas sabem que
assim acabarão por matar alguns dos civis que vivem nas
imediações. Suponhamos que em ambos os casos morrem os
mesmos civis e o bombardeamento contribui na mesma
medida para a rendição do inimigo, pelo que tanto o mau
como o bom efeito são iguais na sua magnitude. A respeito
do primeiro caso, o veredicto da DDE é inequívoco: aquilo
que os militares fazem é impermissível, pois consiste em
pretender a morte dos civis como meio para a rendição do
inimigo. Já no segundo caso, afirma o defensor da DDE, a
condição da não-intenção é satisfeita, pois a morte dos civis
é apenas um efeito colateral daquilo que efectivamente se
pretende: destruir a fábrica para derrotar o inimigo. Por isso,
talvez o acto dos militares seja permissível. Contudo, só o
será se a condição da proporcionalidade for satisfeita, o que
acontecerá apenas se o bom resultado a alcançar com a
destruição da fábrica compensar suficientemente os danos
infligidos aos civis e se, além disso, não houver forma menos
má de obter esse resultado. Nestas circunstâncias, a DDE
excluirá qualquer acto de bombardeamento aterrorizador,
mas acabará por justificar alguns actos de bombardeamento
estratégico.3
A DDE tem a sua origem em Tomás de Aquino, mais
precisamente na sua discussão da ética de matar em
autodefesa. A passagem relevante desta discussão é a
seguinte:
Nada impede que um acto tenha dois efeitos, sendo apenas
um deles pretendido e estando o outro fora da intenção.

3
Michael Walzer é um dos autores que aplica a DDE às questões éticas
colocadas pela guerra. Veja-se Walzer 1977.
7
Ora, os actos morais adquirem o seu carácter a partir
daquilo que se pretende, e não a partir daquilo que está
fora da intenção (…). Deste modo, o acto de autodefesa
pode ter dois efeitos: um deles é salvar a própria vida; o
outro é destruir o agressor. Logo, este acto não é ilegítimo,
já que a nossa intenção é salvar a própria vida e vemos
que, para todas as coisas, é natural que se mantenham em
«existência» tanto quanto lhes for possível. Porém, ainda
que proceda de uma boa intenção, um acto pode tornar-se
ilegítimo se não for proporcional ao seu fim. Portanto, se
um homem usar mais do que a força necessária ao agir em
autodefesa, estará a proceder ilegitimamente, mas se
repelir a força com moderação, a sua defesa será legítima
(…).4
Embora seja muito questionável que Tomás de Aquino
tenha proposto a primeira versão da DDE, as duas condições
essenciais da doutrina estão aqui nitidamente esboçadas.5
Um defensor do duplo efeito, baseando-se nesta passagem,
poderia facilmente advogar a seguinte perspectiva: matar
em autodefesa será permissível somente se a intenção do
agente for apenas repelir a agressão de modo a salvaguardar
a sua integridade física, sendo a morte do agressor um efeito
meramente previsto; além disso, o agente só poderá matar o
agressor se não dispuser uma alternativa menos danosa
(como evitar a agressão ferindo-o apenas numa perna), e se o
dano que este lhe possa infligir for significativo.
Dada a sua origem, não é de estranhar que a DDE se
tenha desenvolvido e revelado influente sobretudo no

4
Summa Theologica II-II, Q. 64, art. 7.
Cavanaugh 2006: 1-14 dá-nos uma excelente análise da perspectiva de
Aquino.
5
8
pensamento moral católico.6 Entre as aplicações que
encontrou aí, uma das mais referidas diz respeito ao aborto e
envolve um contraste entre dois casos.
Num desses casos, Histerectomia, diagnostica-se cancro
no útero a uma mulher grávida e torna-se claro que para a
salvar é preciso remover o órgão doente, o que resultará na
interrupção da gravidez. Fazer a operação parece satisfazer
a condição da proporcionalidade, pois o que está em causa
é a própria vida da mulher. Além disso, sustenta o
defensor da doutrina, a morte do feto não é pretendida de
forma alguma: esta ocorre simplesmente como efeito
colateral da remoção do útero. Deste modo, a DDE permite
a realização da histerectomia. No caso contrastante,
Craniotomia, temos uma mulher em risco de vida no
trabalho de parto, e a única maneira de a salvar é remover
o feto esmagando-lhe o crânio. A realização da craniotomia
parece satisfazer a condição da proporcionalidade, mas é
impermissível realizá-la porque não se pode pretender a
morte do feto enquanto meio para salvar a mãe. Neste caso,
conclui o defensor da DDE, a opção eticamente acertada é
deixar a mãe morrer e salvar o feto, efectuando para o
efeito uma cesariana post mortem.
Vale a pena observar agora que quem aceitar o duplo
efeito não tem de concordar com esta aplicação da
doutrina. A DDE, note-se, é apenas um princípio de
permissividade moral e não nos oferece nenhum critério de
valor: diz-nos em que circunstâncias podemos dar origem a
um mal, provocando-o ou não o evitando, de forma a
originar algo bom, mas não nos diz o que devemos contar
como um mal ou como um bem. Defensores diferentes da

6
Mas alguns dos seus defensores, como Thomas Nagel (1986) e Warren
Quinn (1989), enquadram-na numa ética perfeitamente secular.
9
DDE podem subscrever concepções diferentes acerca do
que é bom ou mau, valioso ou desvalioso, e assim chegar a
conclusões práticas divergentes. Quando, a propósito do
aborto, alguém usa a DDE da forma indicada, está a
presumir que a morte de um feto humano é algo
significativamente mau ------ e alguns dos que defendem o
duplo efeito poderão discordar deste juízo.
Para concluir esta elucidação da DDE, vale a pena
apontar os dois problemas principais que se colocam
àqueles que confiam neste princípio. Um desses problemas
é uma questão de inteligibilidade. Como deveremos
entender a distinção intenção/previsão? Suponha-se que
alguém alega, por exemplo, que mesmo na Craniotomia o
agente não tem a intenção de matar o feto: tudo o que
pretende é esmagar o seu crânio, fazê-lo mudar de forma; a
morte do feto é um efeito meramente previsto do
esmagamento. Ou considere-se esta alegação ainda mais
extraordinária: no Bombardeamento Aterrorizador não se
pretende realmente matar os civis; pretende-se apenas que
pareçam mortos até o inimigo se render. Afinal, se eles
regressarem à vida após a rendição, os agentes do
bombardeamento saudarão esse acontecimento. Para que a
DDE não fique destituída da sua força proibitiva
deontológica, há que evitar uma concepção extremamente
estrita daquilo que um agente pretende ao fazer algo. Ou
seja, há que esclarecer a distinção intenção/previsão de
modo a deixar claro que não se pode pretender esmagar o
crânio de um feto sem pretender também matá-lo, e que,
quando se lançam bombas sobre civis, não se pode
pretender que estes pareçam mortos sem pretender
10
também matá-los. Oferecer uma clarificação apropriada
tem-se revelado uma tarefa difícil.7
Assumida essa clarificação, coloca-se ainda um segundo
problema tão ou mais importante: explicar a relevância ética
da distinção intenção/previsão. O utilitarista de actos, por
exemplo, nega que a distinção seja intrinsecamente
relevante. Em seu entender, tudo o que importa é o valor
(ou o desvalor) das consequências de um acto. O modo
como essas consequências resultam daquilo que o agente
faz (ou se abstém de fazer) poderá, talvez, dizer-nos algo
sobre o seu carácter, mas não contribui para determinar a
permissividade da sua conduta. Por isso, não importa se um
mal foi produzido intencionalmente ou se consistiu num
efeito colateral das intenções do agente, previsto pelo
mesmo. Como poderá o defensor da DDE resistir à
perspectiva utilitarista? De acordo com uma abordagem
bastante influente, o pensamento ético kantiano permitenos perceber a relevância da distinção intenção/previsão:
ceteris paribus, maltratar uma pessoa intencionalmente é
pior do que maltratá-la sem a intenção de o fazer porque no
primeiro caso, mas não no segundo, o agente trata essa
pessoa como um simples meio para o fim que tem em
vista.8 Esta linha de pensamento, no entanto, esbarra em
dificuldades consideráveis. Pode ser verdade, por exemplo,
que no Bombardeamento Aterrorizador, mas não no
Bombardeamento Estratégico, os militares tratam os civis
como meros meios ------ e que, como Kant sugeriu, isso é
especialmente objectável. Contudo, em nenhum dos casos
os agentes satisfazem a injunção kantiana de tratar as

7
8
Veja-se especialmente Bennett 1995: 203---13 e Cavanaugh 2006: 82---117.
Veja-se Quinn 1989 e Cavanaugh 2006: 147---58.
11
pessoas como fins em si.9 Jonathan Bennett (1995: 218), um
dos críticos da DDE, vai mais longe depois de assinalar este
facto: «[n]a verdade, aquilo que o militar estratégico faz aos
civis é de certa forma pior do que tratá-los como meios. Ele
trata-os como nada; eles não desempenham qualquer papel
no seu plano ------ ele nem sequer os trata como meios». Deste
modo, é muito duvidoso que a ética de Kant possa justificar
a atribuição de relevância à distinção central na DDE.
Tornar credível o duplo efeito é, pois, um desafio quase
intimidante. Mas no que se segue vou limitar-me a presumir
que a DDE é defensável: que se pode resolver tanto o
problema da inteligibilidade como o problema da relevância
da distinção intenção/previsão.
Eutanásia
Quando um agente pratica a eutanásia, dá origem
intencionalmente à morte de um indivíduo porque julga que
isso beneficiará este último ou, pelo menos, que não o
prejudicará. Quem pratica a eutanásia pretende abreviar
uma vida com uma qualidade expectável muito negativa,
como a de um doente terminal em sofrimento intenso, ou
uma vida sem qualquer qualidade expectável, positiva ou
negativa, como a de um paciente irreversivelmente
inconsciente. A eutanásia tanto pode ser activa como
passiva. A distinção fazer/permitir subjaz à diferença: na
eutanásia activa mata-se o paciente; na passiva, permite-se
que este morra.

9
O princípio ético de Kant é o seguinte: «Age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.» Veja-se
Kant 1785: 73.
12
Entre aqueles que reprovam a eutanásia contam-se alguns
dos defensores da DDE, que recorrem à doutrina para
justificar certas discriminações morais.10 Pois esses
deontologistas, apesar da sua oposição à eutanásia,
consideram permissíveis certos actos (ou omissões) que
resultam na antecipação da morte de pacientes.
Num dos casos mais discutidos a este respeito, que
podemos designar simplesmente por C1, temos um doente
terminal cujo sofrimento só será aliviado através de doses
cada vez maiores de morfina. O médico prevê que, se
continuar a administrar morfina, o paciente morrerá por
depressão respiratória ------ e isso acaba por acontecer.11 O
médico terá agido de forma permissível? Apelando ao duplo
efeito, o crítico da eutanásia responde afirmativamente. Ao
injectar a substância, o médico não praticou eutanásia
(activa), já que não teve a intenção de matar o paciente:
pretendeu apenas administrar morfina de modo a aliviar o
seu sofrimento; a morte resultou como simples efeito
colateral daquilo que se pretendia.
Num caso de outro tipo, C2, encontramos um paciente
terminal cuja vida poderá ser prolongada mais um pouco
através de um tratamento muito doloroso. Os médicos
optam por não efectuar o tratamento. Terão agido de forma
permissível? Uma vez mais, o crítico da eutanásia concede
que sim, salientando que os agentes não praticaram

10
Veja-se, e.g., Beabout 1989, Oderberg 2000b: 49---96 e Cavanaugh 2006:
183---90. Veja-se também o documento do Vaticano, Declaração sobre a
Eutanásia:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/
rc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_po.html.
11
Embora este caso seja dos mais referidos na literatura sobre o duplo
efeito, há quem considere que não passa de um «mito médico» (McIntyre
2009: Secção 5). Se isso é verdade, podemos tratá-lo como um caso
hipotético.
13
eutanásia (passiva). Ao não efectuarem o tratamento,
tiveram a apenas a intenção de poupar o paciente a
sofrimento adicional. Não pretenderam que a sua morte
ocorresse antes do que seria possível, ainda que previssem
esse resultado.12
Apelando ao duplo efeito, portanto, alguns críticos da
eutanásia procuram conciliar a sua reprovação desta prática
com o juízo de que a conduta exemplificada em C1 e em C2 é
eticamente aceitável, ou mesmo recomendável.
Como seria de esperar, nem todos os que aceitam a DDE se
opõem à eutanásia. Vimos já que os veredictos do duplo
efeito dependem da concepção do valor que lhe seja
associada ------ e os defensores da DDE podem ter perspectivas
muito diferentes sobre o valor da vida humana. Alguns
poderão subscrever uma perspectiva da qualidade de vida e,
nesse caso, pensarão que o valor de uma vida humana
depende da sua qualidade. Em seu entender, pois, existirão
vidas com uma qualidade expectável de tal modo miserável
que será melhor ------ para quem as vive ------ que não sejam
vividas. Nessas circunstâncias a morte não será
propriamente um mal e, por isso, não deverá ser tratada
como um mau efeito. Desse modo, não fará sentido apelar à
DDE para determinar se o acto de causar a morte, ou a
omissão de não a evitar, serão eticamente permissíveis.
Os defensores da DDE que condenam a eutanásia
rejeitam esta perspectiva. Aceitam antes uma perspectiva da
santidade da vida, o que significa que acreditam que a vida
humana tem um valor incondicional, que não depende da
sua qualidade. Por muito má que seja a qualidade de vida

12
Para simplificar, suponhamos que, em ambos os casos, os pacientes não
estão em condições de decidir seja o que for, nem têm familiares que
possam fazê-lo por si. Deste modo, o seu destino está nas mãos dos
médicos.
14
expectável de um indivíduo, a sua vida permanecerá valiosa,
pelo que a morte desse indivíduo será sempre um mal.
Dilema
Além de admitir a verdade da própria DDE, vou conceder
que os casos C1 e C2 não são exemplos de eutanásia. Ou seja,
apesar de a distinção intenção/previsão não ser muito clara,
vou ter por garantido que os médicos destes casos
efectivamente nunca pretenderam que a morte dos pacientes
ocorresse. Isto significa, então, que em ambos os casos a
conduta dos agentes satisfaz a condição da não-intenção.
A vida humana, diz-nos o crítico da eutanásia, tem valor
independentemente da sua qualidade. Como qualquer
pessoa sã, ele também pensa que o sofrimento é um mal,
sendo algo que afecta adversamente a qualidade de vida.
Tendo como referência aqueles casos em que um indivíduo
tem uma qualidade de vida expectável extremamente
negativa, estando-lhe reservado um sofrimento intenso que
só terminará com a morte, vou colocar agora a seguinte
questão ao crítico da eutanásia: considera ele que o valor da
vida humana compensa ou suplanta significativamente o
desvalor desse sofrimento?
Suponha-se que ele responde afirmativamente. É esta
resposta, aliás, que devemos esperar de quem se revê numa
perspectiva estrita da santidade da vida humana. O
problema é que, se responde desta forma, o crítico da
eutanásia não poderá defender que a conduta dos agentes
nos casos C1 e C2 é permissível. Pois não podemos esquecer
que a DDE inclui a condição da proporcionalidade ------ e, se o
valor da vida não se deixa suplantar de forma alguma pelo
desvalor do sofrimento, então, nos casos em apreço, essa
condição não será satisfeita. Ou seja, o bom efeito (a cessação
15
do sofrimento) não será suficientemente bom por
comparação com o mau (o fim da vida).
Suponha-se agora que o crítico da eutanásia opta por dar
uma resposta negativa à questão indicada. Ele continuará a
defender que a vida humana é sempre intrinsecamente
valiosa, seja qual for a sua qualidade, mas não dirá que vida
humana é sumamente valiosa: em certos casos, o desvalor
intrínseco do sofrimento poderá suplantar o valor intrínseco
da vida. Admitindo que C1 e C2 se contam entre estes casos,
o crítico da eutanásia poderá agora alegar plausivelmente
que a conduta dos médicos satisfaz a condição da
proporcionalidade, pelo que é permissível.
O problema é que, dada esta apreciação de C1 e C2, a
condenação da eutanásia parece perder o fundamento. Se
aceitamos que em certos casos o valor da vida é suplantado
pelo desvalor do sofrimento que ocorrerá nessa vida,
estamos a reconhecer que nesses casos, ponderadas todas as
coisas, será melhor que a vida em causa termine. Sendo
assim, por que razão haveremos de condenar a eutanásia
invocando a DDE? Ponderados o alegado valor intrínseco da
vida e o desvalor intrínseco do sofrimento expectável,
concluímos, a respeito de uma certa pessoa, que para ela será
melhor que a vida acabe. Então por que razão haveremos de
tomar a sua morte como um mau efeito? Se, ponderadas
todas coisas, a morte será o melhor que lhe pode acontecer,
por que razão será errado pretender a sua morte?
Imagine-se que é necessário amputar um membro a uma
pessoa para lhe salvar a vida. Se a DDE tem alguma
plausibilidade, deverá permitir a amputação. Considerada
em si, a amputação é seguramente um mal, mas, ponderadas
todas as coisas, é o melhor que poderá acontecer à pessoa em
risco de vida. Por isso, o defensor da DDE não deverá tomar
a amputação como um mau efeito e dizer que é eticamente
errado pretender amputar o membro de modo a salvar a vida.
16
(A situação seria diferente, claro, se a ideia fosse amputar
um membro a uma pessoa para beneficiar outra pessoa.) Do
mesmo modo, se o defensor da DDE reconhece que,
ponderadas todas as coisas, a morte é o melhor que pode
acontecer a uma pessoa, não deverá tomar a morte como um
mau efeito e dizer que é eticamente errado pretender matar
(ou deixar morrer) de modo evitar todo o sofrimento
expectável. (Uma vez mais, a situação seria diferente se a
ideia fosse matar uma pessoa para evitar que outras
sofressem.)
O crítico da eutanásia que recorre ao duplo efeito acredita
que a vida humana é intrinsecamente valiosa. O dilema que
se lhe coloca é agora bastante claro. (1) Se ele acreditar que o
valor intrínseco de uma vida nunca é suplantado pelo
desvalor do sofrimento, terá de dizer que, em C1 e C2, a
conduta dos médicos é errada, dado que não satisfaz a
condição da proporcionalidade. Ou seja, o médico de C1
deveria ter deixado o paciente sofrer terrivelmente em vez
de lhe ter administrado morfina; os médicos de C2 deveriam
ter sujeitado o paciente ao tratamento muito doloroso só
para prolongar um pouco mais a sua vida. Muitas pessoas,
incluindo a generalidade dos críticos da eutanásia,
repudiariam estes juízos. (2) Se, pelo contrário, ele acreditar
que o valor intrínseco de uma vida pode ser suplantado pelo
desvalor do sofrimento, terá de admitir que há casos em que
o melhor para uma pessoa, ponderadas todas as coisas, é que
ela morra em vez de continuar a sofrer. E assim torna-se
difícil rejeitar a eutanásia invocando o duplo efeito, pois
nesses casos a morte não será propriamente um mau efeito.
Caso se insista que é um mau efeito ------ e que, portanto, a
condição da não-intenção proíbe que se pretenda a morte ------,
chegaremos a uma interpretação da DDE que priva esta
doutrina de toda a credibilidade, pois, sob essa
17
interpretação, também seria errado amputar um membro a
uma pessoa para lhe salvar a vida.
Revelado este dilema, torna-se claro que o crítico da
eutanásia não pode, de forma consistente, apelar a uma
versão minimamente credível da DDE para reprovar a
eutanásia e, ao mesmo tempo, aprovar as práticas médicas
exemplificadas pelos casos C1 e C2.
Nota
Através
de
uma
Bolsa
de
Pós-Doutoramento
(SFRH/BPD/27852/2006), beneficiei, na realização deste
trabalho, do apoio da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio.
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para o inglês dos frades da Província Dominicana Inglesa,
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19
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Duplo Efeito e o Fim da Vida Humana.