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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM LETRAS
ABOIO, o canto que encanta: uma experiência com a
poesia popular cantada na escola
MARIA LAURA DE ALBUQUERQUE MAURÍCIO
JOÃO PESSOA
2006
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MARIA LAURA DE ALBUQUERQUE MAURÍCIO
ABOIO, o canto que encanta: uma experiência com a poesia
popular cantada na escola
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós–Graduação em Letras, área de concentração em
Linguagem e Ensino, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador (a): Ana Cristina Marinho Lúcio
JOÃO PESSOA
2006
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MARIA LAURA DE ALBUQUERQUE MAURÍCIO
ABOIO, o canto que encanta: uma experiência com a poesia
popular cantada na escola
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Profª Drª Ana Cristina Marinho Lúcio
(Orientadora)
__________________________________________________
Profº Dr. José Hélder Pinheiro Alves (PPGL – UFPB)
_________________________________________________
Profº Dr. Marcos Ayala (PPGS – UFPB)
_______________________________________
Profº Drº Diógenes André Vieira Maciel
(PPGL – UFPB)
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A João Maurício, meu pai, e Maura, minha
mãe, e a tia Maurília (In Memorian).
Aos heróis de São José dos Ramos, os
vaqueiros aboiadores.
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AGRADECIMENTOS
Aos irmãos, filhos e netos pela força e presença constante;
À orientação e amizade da Profª Ana Marinho;
À Prefeitura Municipal de São José dos Ramos;
À Drª Aparecida, pela amizade, paciência e apoio durante toda a pesquisa até a realização do
I Festival de Aboio;
A todos os professores que se envolveram neste projeto;
Aos amigos e professores do Curso de Pós – Graduação em Letras, pelo apoio prestado
durante a realização do trabalho.
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RESUMO
Esse trabalho é resultado de uma pesquisa sobre o aboio na localidade São José dos Ramos,
Zona da Mata da Paraíba. Procurou-se evidenciar a experiência e os depoimentos dos
aboiadores da região, em especial, o relato de vida, em forma de canto, do vaqueiro Zé Preto.
A pesquisa também resultou num trabalho educativo envolvendo professores e alunos de uma
escola estadual de ensino fundamental e médio, além da comunidade de artistas e artesãos da
cidade.
Palavras – chaves: literatura popular, aboio, ensino de literatura.
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RESUMEN
Este trabajo es resultado de una investigación sobre el aboyo en la localidad São José dos
Ramos, Zona de la Mata de Paraíba. Se buscó evidenciar la experiencia y los relatos de los
aboyaderos de la región, principalmente, el relato de vida en forma de canto, del vaquero Zé
Preto. La investigación también resultó en un trabajo educativo envolviendo profesores y
alumnos de una escuela estatal de enseñanza fundamental y media además de la comunidad
de artista y artesanos de la ciudad.
Palabras llaves: Literatura popular, aboyo, enseñanza de literatura.
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SUMÁRIO
CAPÍTULO I
ABOIO: O CANTO QUE ENCANTA
1.1 Aboio: em busca de uma definição
1.2 O aboio fora do contexto de trabalho
CAPÍTULO II
ZÉ PRETO, UM ABOIADOR DA TRADIÇÃO
2.1 O aboio em São José dos Ramos
2.2 Seu Zé Preto canta a sua história
2.3 A história de vida em versos: alguns comentários
CAPÍTULO III
O ABOIO NA ESCOLA
3.1 O aboio na sala de aula e a visibilidade da cultura do vaqueiro no município de São José
dos Ramos
3.2 Seu Zé Preto na Escola
3.3 O I Festival de Aboio de São José dos Ramos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ANEXOS
BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO
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Criada em fazenda, o aboio foi quase o meu canto de ninar. Nasci
e cresci ouvindo aboio dos vaqueiros que paravam na casa de meu pai, que
sempre lhes oferecia uma cachaça. Achava bonito aqueles grupos de homens
encourados e montados a cavalo que desciam a ladeira da fazenda, no final da
tarde, trazendo o gado para o curral. Vivi e convivi nesse mundo, o que fez da
minha pesquisa uma experiência prazerosa e significativa.
Situado em uma linha de estudos sobre a cultura popular, este
trabalho prioriza o aboio e inclui a descrição do vaqueiro aboiador, a partir de
entrevistas e depoimentos pessoais de vida.
Para a realização desta dissertação, foi feita uma pesquisa de
campo na cidade de São José dos Ramos, durante os anos de 2004, 2005 a
2006. Vídeos, dvd’s e gravadores foram usados para os registros. As
transcrições foram feitas sem alterar o conteúdo das entrevistas, respeitandose a marca da oralidade e a fala popular.
Desse modo, no Capítulo I, traçamos um percurso através dos
conceitos de alguns autores, como Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga e
Câmara Cascudo, que buscaram definir o aboio. Num segundo momento,
buscamos oferecer algumas informações teóricas para explicar o aboio,
quando deslocado do contexto do trabalho.
No Capítulo II, são feitas a apresentação e a descrição do
vaqueiro aboiador, a partir dos depoimentos pessoais de vida dos aboiadores
Zé Preto e Leonel, de São José dos Ramos, e a relação entre literatura popular
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oral e as experiências dos aboiadores. Também consta uma espécie de
antologia comentada de versos com temas bastante variados.
No Capítulo III, o aboio chega à escola, no sentido de valorizar a
poesia de cantos não canônicos e fazer com que o aluno se identifique com a
sua cultura e, para que aqueles que a desconhecem, possam vivenciá-la.
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CAPÍTULO I
F o t o : L a u r a M a u r íc i o
ABOIO: O CANTO QUE ENCANTA
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1.1 Aboio: em busca de uma definição
Faremos, neste capítulo, um percurso através dos conceitos de
alguns autores que buscaram definir o aboio, esse canto de trabalho social,
lúdico e lírico.
Mário de Andrade, em visita ao Nordeste, na década de vinte,
realizou várias pesquisas e coletâneas sobre a cultura popular. Suas pesquisas
contribuíram de forma expressiva para os estudos sobre essa cultura,
enfocando as práticas culturais populares, tornando-as mais vivas e presentes
em nossa identidade nacional.
Em 1938, Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura
de São Paulo, enviou a Missão de Pesquisas Folclóricas para alguns estados
do Norte e Nordeste brasileiros. Chefiada por Luiz Saia (1938), a Missão de
Pesquisas Folclóricas visitou os estados de Pernambuco, Paraíba, Piauí,
Ceará, Maranhão e Pará. No sertão da Paraíba, a Missão visitou a Fazenda
São José, no município de Patos. Lá os pesquisadores observaram o trabalho
de três vaqueiros reunindo o gado e “praticando a vaquejada”. Também
gravaram alguns aboios.
Entre os dias dois a treze de maio de mil novecentos e trinta e
oito, a Missão visitou a zona do Brejo, permanecendo por alguns dias em
Itabaiana. Nessa cidade, Luiz Saia seguiu a orientação de Ademar Vidal,
escritor paraibano, para localizar um aboiador afamado no município de Pilar.
Com a ajuda do prefeito de Itabaiana, Antonio Santiago, trouxeram de Pilar
três vaqueiros e gravaram oito melodias de aboio. Entre esses aboios, Oneyda
Alvarenga registrou a seguinte partitura musical, (Música Popular BrasileiraV - Cantos de Trabalho): (p.263,264).
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D.P. M ., di sc o nº 84 , fonog rama nº 562 . Transc rito po r Ca ma rgo Gu a rnie ri . Col hido e m
It abai an a (Pa raíb a ), em 3 -5 -1938 , p ela M issão de Pe squi sas Fol cló ri cas do Dep a rt amen to
d e C ultu ra d e São Paulo .
Além desses aboios registrados por Mário de Andrade e pela
Missão de Pesquisas Folclóricas, encontramos, no Cancioneiro da Paraíba
(1993), alguns aboios (242) gravados por Maria de Fátima Batista e cantados
por Alaíde Cordeiro Barbosa, em Cabaceiras, no dia primeiro de abril de mil
novecentos e oitenta e três (p. 329). Nesse livro, o aboio é cantado por uma
voz feminina reverenciando seu Mané.
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Eu gosto de aboiar
E tenho prazer de ser vaqueiro
Pra falar em seu Mané
Eu aboio o ano inteiro
Aceite os parabéns
De toda família Cordeiro
Eh boi a ei.
(p. 329, nº 6).
As mulheres que cantam aboio geralmente praticam essa arte em
casa, ou quando são raramente chamadas para alguma apresentação. Pude
constatar esse fato em São José dos Ramos, durante a minha pesquisa.
Marinês, filha do aboiador Zé Preto, homenageou o pai na noite em que houve
a festa do aboio, na Escola Estadual Jocelyn Veloso Borges. Ela cantou:
Escrevi essa toada
Com muita dedicação
Ao Senhor seu Zé Preto
Que morava em Riachão
Filhos, esposa e netos
E um aperto de mão
Ôi...
(30/11/05)
No dia do Festival de Aboio, realizado no município de São José,
em 03 de dezembro de 2005, a professora Maria das Neves Araújo (Lila),
cantou louvando a realização do projeto naquela cidade. Vejamos algumas
estrofes:
Foi na casa de Jessé
Que o projeto iniciou
Laura plantou a semente
E a mesma germinou
E hoje três de dezembro
Ele se realizou
Ôi...
Seu Zé Preto, eu agradeço
Por seu serviço prestado
Hoje aqui em São José
O senhor está gravado
Os seus versos e o gibão
Já ficaram registrados
Ôi...
(3/12/05)
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No percurso da pesquisa, conversei com os vaqueiros mais idosos
de São José dos Ramos e perguntei como eles definiam o aboio. Seu Leonel
José dos Santos, oitenta e seis anos, afirma o seguinte: “É o canto que o gado
entende, que o gado ouve, é um canto penoso, boniiito... O vaqueiro cantando
uns três aboio, mermo o gado tando longe, eles vêm. Eu vou cantar um aboio
que eu fazia:
Vaqueiro que é vaqueiro
Amansa o gado e quer bem
Todo dia vai ao campo
E conta a boiada que tem
Quem não gostar de vaqueiro
Não gosta de mais ninguém
Oh! Festa de gado! Êh, boi!”
E acrescentou ainda: “Ôto dia venha aqui pra eu cantar aboio
bonito; hoje, só tem besteira. A idade tá crescendo e tenho que ver
devagazinho.” (02/11/05)
Zé Preto, vaqueiro com quase oitenta anos, define o aboio da
seguinte forma: “É a música de chamar o gado, é coisa muito véia, muito
antigo. É da antiguidade”. (27/01/05).
No final da fala do vaqueiro Leonel, e no canto de Zé Preto
transcrito a seguir, percebemos que a memória é a essência do aboio.
Aí foi onde eu fui
Na terra de Dona Aurora
Eu vaquejei nove ano
Vou lhe contar a história
Hoje não vaquejo mai
Pruquê a idade num dá
Tem me caído a memória.
Êh...
(09/07/05)
Na memória, acumulam-se as experiências de vida. São imagens
ou lembranças reunidas através dos tempos, condicionadas à vida orgânica do
indivíduo.
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Em As Melodias do Boi, Mário de Andrade define o aboio como
“um canto melancólico com que os sertanejos do Nordeste ajudam a marcha
das boiadas. É antes uma vocalização oscilante entre as vogais A e Ô. A
expressão de impulso final “Oh dá!” também muda para “Êh, boi!”. (1987, p.
54).
É uma voz melancólica, lírica, cantada não somente pelos
“sertanejos do Nordeste”, como definiu Mário de Andrade, mas também por
vaqueiros aboiadores de outras mesorregiões, a exemplo de São José dos
Ramos, localizada na Zona da Mata.
Em seu livro Dicionário Musical Brasileiro, Mário de Andrade
conceitua o verbo aboiar:
(V.I; S. m). O ma rro eiro (v aqu ei ro ) conduzindo o g ado n as est radas , ou
mov endo co m el e nas fa zend as, tem po r c ost u me c ant a r. Ento a u ma
a rab e sco , ge ral m ent e li v re d e fo rma e st rófi ca, destitu ído de pal av ras as
mais d as ve zes, si mple s v ocali zaçõe s , in terc ept ad as qu an do sen ão po r
p alav ras int erje ctiv as, “b oi êh boi ” , boi at o , et c. O ato d e canta r assi m
c hama de aboi a r. Ao c anto ch a ma de ab oio . (1982 – 84 . p . 1 -2 ).
O termo marroeiro, usado por Mário de Andrade, reporta ao
tempo em que os vaqueiros curavam as bicheiras do gado, usando o mercúrio
cromo, a creolina e a reza. Quanto à reza, perguntei a Zé Preto se ele
conhecia alguma. Ele pensou por alguns minutos e me chamou para a frente
da sua oficina de arreios. Zé Preto dirigiu-se ao mato, trazendo na mão duas
folhas verdes. Depois, ele simulou a marca dos rastros de um animal e
colocou uma folha no rastro dianteiro e outra folha no rastro traseiro,
cobrindo-as com terra. Entre os quatro rastros fez uma cruz e falou com
segurança: “Num fica um bicho, cai tudinho”.
Os vaqueiros foram sendo substituídos por veterinários, ao longo
dos anos. Em algumas fazendas e sítios, permanece essa prática, a exemplo de
São José, Pilar, Cajá e Curimataú.
O termo “marroeiro” foi também usado por Patativa do Assaré,
em seu livro Cante lá que eu canto cá.
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O dote de sê vaquêro,
Resorvido marruêro,
Querido dos fazendêro
Do sertão do Ceará
Não perciso maiô gozo,
Sou sertanejo ditoso,
O meu aboio sodoso
Faz quem tem amô chorá
(1980: p. 216)
Retomando o conceito do verbo aboiar e do aboio, Mário de
Andrade não se refere ao aboio como um canto de trabalho, mas o define num
plano musical, ou seja, as manifestações desse canto sob a influência das
emoções, com gritos interfectivos, ora servindo para acalmar os animais, ora
servindo para chamá-los. Embora com significados semelhantes, ele distingue
o verbo aboiar do aboio. O primeiro é destituído de palavras com simples
vocalizações, como: “boi”, “êh boi”; e o outro é o canto constituído de
estrofes e toadas livres.
O vaqueiro Zé Preto e outros da região usam vocalizações ao
final de cada estrofe cantada e fazem a “chamada” do gado, em princípio
apenas musical, utilizando interjectivas, melodias sem verso.
Oneyda Alvarenga, em seu livro Música Popular Brasileira (p.
259), assinala que, no Brasil, existe uma grande variedade de cantos de
trabalho ligados às atividades urbanas e rurais. Atualmente, a maioria desses
cantos está na memória das pessoas que conviveram com os trabalhos de pilar
café, bater feijão, carregar piano (costume urbano mais comum em Recife).
Em alguns casos, a modernização no campo tem sido responsável pelo
desaparecimento de alguns desses cantos de trabalho.
A autora afirma que “os aboios constituem um dos mais
importantes grupos dos nossos cantos de trabalho rurais”. E acrescenta: “Com
eles, os vaqueiros, especialmente do Nordeste e Norte, conduzem as boiadas.
Dizem que não há gado bravio que, ouvindo-os, não se acalme e siga o
aboiador”. (1938: p. 263).
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A pesquisadora Oneyda Alvarenga define o aboio como: “lentas
melodias improvisadas, que se estendem infinitas e melancólicas” (p. 263),
“entoam-se quase exclusivamente sobre as vogais A e O.” (p. 263).
Durante a minha pesquisa, pude observar que, em algumas
situações, os aboiadores fazem improviso, a exemplo dos aboiadores Zé Preto
e Severo, que tematizam a morte de uma noiva e de um filho. Vejamos os
aboios:
Fui noivo com uma menina
Bonita chamada Lena
Parecia uma açucena
Numa manhã orvalhada
A morte tomou chegada
Matou minha jovem bela
E eu igualmente aquela
Não arrumo nesta data
Nem a poliça me empata
D’eu chorar na cova dela
Êh...
(Zé Preto, 14/03/04)
Depois que Leto morreu
Num tem mais animação
Eu fico num canto triste
Chega dói meu coração
Hoje só resta a lembrança
De Leto, o rei do mourão
Êh...
(Severo, 14/10/05)
Analisando o canto dos aboiadores de São José, podemos afirmar
que é entoado numa linha melódica livre, conforme a fantasia ou a realidade
do vaqueiro. É feito por interjeições que têm a função de disciplinar o gado
no mesmo passo, na mesma cadência. Mas há também os aboios cantados em
versos livres.
Durante uma conversa com Seu Zé Preto, perguntei como era a
situação do aboio na atualidade: “O aboio hoje vai de todo jeito. Fái aquele
disco, aquela fita, e sai vendendo. O aboio fái do jeito que quiser. Tudo
filmado, né?” Perguntei-lhe, ainda, qual era a preferência do vaqueiro, e ele
me respondeu: “antigamente era bom (chora), aí chegava o patrão, tempo
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seeeco, aí ele dizia: “faça uma toadazinha de São João pra eu ver”. Aí
batendo a chuva... pá... pá...pá...pá.
Eu vendo a chuva
Me rescordo da boiada
Da canjicada, da noite de São João
Tomar pifão, dançar numa latada
Com a morena perfumada
E dano viva a São João.
Quando é bem cedo
Se amanhece arressacado
Rebanha o gado na fazenda do patrão
De todo lado só se vê chegar mulé
Vamo balançar o gado
Lá no parque João Duré.
Todo vaqueiro leva sua moreninha
Foi na garupa do cavalo de mourão
Chegando lá vamo rolar boi no chão
E a gente batendo paima
Dando viva a São João.
Quando é de noite
Os vaqueiro chama as morena
Que é pra novena lá na casa do patrão
Solta balão, o fogo chega entoa
Ó meu Deus que vida boa
É de vaqueiro no sertão.
Todo vaqueiro gosta de mulé bonita
De vaquejada e de cavalo famoso
Quando é jeitoso, no mundo se espalha a fama
E aquela que lhe ama
Chama pretinho de gostoso. 1
Os vaqueiros Leonel e Zé Preto criticam os aboios da atualidade.
Para eles “são aboios feitos de todo jeito”.
Outra definição deste canto se encontra no Dicionário do
Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo:
“C anto se m pal av ras, ma rcado exc lusiv a mente e m vog ais, ento ado p el os
v aquei ro s qu an do condu ze m o g ado ” . (1980 , p . 2 -3 ). “O aboio não é
di v erti m en to . É coi s a sé ri a, v elh íssi ma, re sp eita da ”. (1980 , p .3 ).
1
Toada cantada no ritmo de Asa Branca, música de Luiz Gonzaga.
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Há uma imprecisão no conceito do folclorista, pois, por meio da
nossa pesquisa, percebemos que este canto “sem palavras” surge no momento
de chamar o gado, mas há também os versos cantados de improviso, criados
livremente pelos vaqueiros nas mais variadas situações.
A confirmação da antiguidade desse canto pastoril também é
citada pelo vaqueiro Zé Preto. “É a música de chamar o gado, é coisa muito
véia, muito antigo. É da antiguidade”. Como podemos perceber, o conceito do
aboio converge para um ponto comum, mesmo na opinião de diversos autores,
repetem-se palavras como: canto melancólico, monótono, antigo e triste.
O aboio é um canto improvisado pelos vaqueiros. Quando estão
no campo, sente-se que há uma conexão com a natureza e o gado. É um canto
longo e melancólico, cuja tristeza emana da alma do vaqueiro, principalmente
no cair da tarde, quando traz o gado de volta ao curral.
O poeta Zé da Luz escreveu um poema intitulado “Tributino – o
vaquêro”, no qual confirma o aboio melancólico do vaqueiro, ao cair da tarde:
Se no rompê da arvoráda,
Na frente de uma boiáda
Éra uma canto de aligría,
Quando a tarde discambáva
Éra a prece qui eu rezáva,
Na hóra d’Ave María!
E o meu abóio se perdía
Pêlas quebrada das serra,
Cumo um saluço da terra,
Chorando a morte do dia!...
Quando o canto sai do seu lugar, ou seja, do campo, ele assume
outras variações a serem comentadas no próximo tópico.
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1.2 O aboio fora do contexto de trabalho
A princípio, o aboio é o canto poético do vaqueiro, ecoado pelos
campos e também pelas estradas na condução do gado. Como canto de
trabalho, ainda hoje, permanece no campo como cultura de resistência. Em
São José dos Ramos, vaqueiros conduzem o gado de uma cidade a outra, de
uma fazenda a outra com um percurso não muito longo. Durante a caminhada
com o gado, cantam o aboio triste e melancólico. Cantando, conduzem a
boiada em vários espaços geográficos: do brejo ao sertão. Nem sempre se
conhece a letra, pois é um canto improvisado e, por isso, são raros os
registros escritos. É um canto que encanta não só o homem, mas sobretudo o
gado.
O aboio toma uma linha melódica longa e só musical, quando os
vaqueiros adentram a mata. É o que eles chamam de “chamada do gado”.
Acompanhei a entrada de dois vaqueiros até o início da mata, em busca de
três reses que tinham desaparecido da fazenda. O fazendeiro ordenou ao
vaqueiro para encontrar as reses, caso contrário, estaria despedido. Aflito, o
vaqueiro Toinho juntou-se a outros e foram para mata. O gado perdido ouve o
canto do vaqueiro e começa a se aproximar. Só depois de três dias, eles
chegaram com as reses, e pude observar o quanto a solidariedade é forte entre
os vaqueiros.
Raramente se vê um vaqueiro trabalhar com o gado sozinho;
quando não estão em dupla, estão em grupo. São extremamente solidários, na
dor, na alegria, nas festas, em qualquer momento. Também confiam um no
outro, parecendo até que os sentimentos não são individuais e, sim, coletivos.
O trabalho em busca das reses perdidas se faz de forma comunitária, ou seja,
um canta aqui, outro ali, até que se obtenham resultados.
Embora seja o aboio o canto de trabalho do vaqueiro, quando
retirado do campo ele assume outras faces. Os versos ora adquirem um tom de
crítica social, ora de safadeza ou religiosidade. A mulher e a morte são
temáticas recorrentes.
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Para termos uma visão concreta desta mudança, analisaremos o
aboio a seguir, cantado por Jessé Araújo, vaqueiro da cidade de São José dos
Ramos:
A buceta é uma gruta
De cabelo arrupiado
Tem tempo que tá molhada
Tem tempo que tá enxuta
É o roçado da puta
Descanso do vagabundo
Três dedos abaixo do fundo
Sempre só vive escorrendo.
E pra gente que vem nascendo
É a porteira do mundo.
O vaqueiro Jessé faz uma paródia do aboio em linguagem alegre e
grotesca, apropriando-se apenas da sua estrutura poética. As palavras buceta,
gruta, puta, assumem características ligadas ao deboche, ao riso escrachado
demonstrando o deslocamento do estilo original do aboio. É o que Bakhtin, no
seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2002), pontua
como rebaixamento da seriedade.
Bakhtin, se referindo ao baixo material e corporal, presente na
obra de Rabelais, afirma que:
O re b aixa me nto é enfim o p rin cípio artí stico es s enci al do re al i s mo g rot esco:
to d as a s cois a s sag r ad as e el ev ada s a í são r ei nte rp r etad as no pl ano mate r ial
e c o rpo r al . (20 02 . p . 325 ) .
É oportuno observar a relação entre o significado original da
palavra grotesco, que para Bakhtin provém de “grotta” (gruta) e corresponde
ao 1º verso do texto em análise: “A buceta é uma gruta”.
Saindo desse contexto do riso, a religiosidade popular é algo
muito forte na vida do vaqueiro. Alguns usam rezas embolsadas 2 para “fechar
o corpo”, ou seja, livrá-los das cobras, das furadas de tocos, quando estão no
campo. Segundo os vaqueiros, esse costume era também muito usado por
Lampião e seu bando. Pude observar que a fé é voltada para os santos, de
2
Prática de costurar uma oração num pano e usar esse amuleto no bolso.
23
preferência padroeiros das cidades onde moram. Também acreditam nos
santos de romaria, vão às procissões e gostam dessa prática. Os mais
preferidos são: Nossa Senhora da Penha, São Sebastião, São Jorge e São
Severino dos Ramos. Alguns vaqueiros não freqüentam a igreja, mas têm uma
fé inabalável. Quem confirma isso é o vaqueiro Leonel. “Se não tiver fé não é
vaqueiro pra ser o pastor do rebanho”. Revela que São Jorge é o santo que ele
mais acredita, porque é cavaleiro e matou um dragão brabo. O corpo dos
dragões lembra uma serpente corpulenta. Têm garras e asas laterais e
costumam exalar baforadas de fogo pela boca e de fumaça pelas ventas. Essa
imagem é conhecida de todos, do cavaleiro que luta contra o dragão e nos faz
ver a origem da lenda criada sobre esse guerreiro bravo, habitante da lua, na
crendice popular. Os vaqueiros nunca entram numa igreja sem tirar o chapéu.
“É pra mostrar que estamo abaixo de Jesúi”, me disse Zé Preto.
Cosmo, vaqueiro aboiador, de Campo Grande, município de Sapé,
na Paraíba, prefere o aboio religioso. Vejamos o que ele canta:
Eu agora vivo feliz
E preste bem atenção
Eu falo do padroeiro
Da minha vida mais não
Tou falando da Igreja
É de São Sebastião 3
Êh... ôi...
Lá tem um Livro Sagrado
A padroeira também
Chama Santa Terezinha
Muito a ela eu quero bem
Eu vou versar pra vocêi
Todo mundo me quer bem
Êh... ôi...
Na cidade de Curimataú
Tem um Cruzeiro Sagrado
Uma pedra eu vi ali
Hoje tem nela gravado
Que o São Sebastião
Tem poder e tá confirmado
Ôi...
(18/07/04)
3
São Sebastião é considerado o protetor contra a peste, a forme e a guerra.
24
Embora a fé seja uma temática vivenciada pelo vaqueiro, o
heroísmo também é motivo de cantos centralizados na valentia, na coragem
física e nas façanhas sobre-humanas. A seguir, teremos aboios desse gênero
cantados por Zé Preto e Zé Valter.
Brinco com touro valente
Lembrando de tu menina
Qualquer coisa de amor
Que tu subé, tu me ensina
Eu morro por ter respeito
Outra coisa eu não aceito
Que teus olho me domina
Êi...
Mai tou com setenta e sete
Sou um gavião de aço
De físico tou com vinte
Para fazer o que faço
Pego um boi, amanso um burro
Farro, fumo, pesco e caço.
Ôi...
Zé Preto
Vou tirar esses versos
Sou um vaqueiro bem macho
Eu vou dizer pra vocêi
Pra fazer o qu’eu faço
Pego um boi, amanso um burro
Bebo, fumo, pesco e caço
Êh... boi...
Zé Valter
Alguns
desses
heróis
populares
sentem-se
ameaçados
pelo
declínio biológico da vida. Para Zé Preto, a velhice é algo angustiante e
inaceitável. Cantando, ora imagina uma força física que não tem mais, ora
assume a velhice como um trajeto para a morte.
Ô dona eu digo à senhora
Por que tenho que dizer
Essa vida da gente
A gente deve ter prazer
Com saúde e mocidade
Tudo se pode fazer
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Mas é assim minha dona
Posso não ter mais prazer
A gente vai ficando velho
É disso que eu vou lhe dizer
Coisa boa é a mocidade
Mái o jeito é ficar velho
E ter o dia de morrer.
A morte foi um dos temas mais cantados no segundo semestre de
dois mil e cinco, em São José dos Ramos. Dois vaqueiros morreram
acidentados, um de uma queda de cavalo e outro de choque elétrico. Nesse
período, a dor da perda não ficou só nos familiares das vítimas, mas circulou
nos corações dos vaqueiros da região. A manifestação dessa inquietude
emocional nos vaqueiros associa-se à música, gerando aboios líricos, longos e
melancólicos.
Nesse contexto, os aboios são entoados com saudade e dor:
Depois que Leto morreu
Num tem mais animação
Eu fico num canto triste
Chega dói meu coração
Hoje só resta a lembrança
De Leto, rei do mourão
Êi...
Eu tenho raiva da morte
Quando ela matar meu pai
A gente mata e vai preso
E a morte mata e não vai
E se a morte comesse bola
Rico não morria mái
Ôi...
(Severo)
A idade avançada ainda não representa um obstáculo para Zé
Preto, no que diz respeito às vaquejadas. Freqüentador assíduo de todas elas,
na região, ele canta como era a vaquejada no passado e como é no presente.
Vejamos:
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A vaquejada da gente
Era grande tradição
Não é que nem tem hoje
Com grande imperfeição
Era fazer um pátio e correr
Também no dia de São João.
Coisa boa é aquele tempo
Que a gente muito brincava
Fazia aquela pista
E nada ali ganhava
Levava salva de paima
E ali a música tocava.
A vaquejada de hoje
É coisa de admirar,
Pois é casa de negoço
Para os povo ganhar
Quem for vaqueiro ganha
Quem num ganha nada
É pruquê num sabe ajeitar.
A coisa hoje é pesada
A faixa é a tradição
É difícil ter cavalo
Bom para mourão
Pra botar o boi na faixa
E num negar o passo não.
A vaquejada é uma das festas mais populares e tradicionais do
nordeste. É uma festa típica dos vaqueiros. Cresce a cada dia atraindo
vaqueiros famosos que sabem segurar a cauda do animal, dando-lhe um forte
puxão até o boi cair.
No início do século passado, o curral servia de palco para a
derrubada do boi. A partir da porteira, os vaqueiros marcavam de dez a
quinze passos, para, nesse espaço, serem derrubados os novilhos. Aquele que
derrubasse o bicho nos dez passos seria o melhor vaqueiro, com o melhor
cavalo. Não existia, formalmente, o termo vaquejada.
Na década de sessenta, no século XX, a vaquejada era uma festa
com poucos vaqueiros e muitos amigos. Com o tempo e a experiência, os
organizadores mudaram as regras da vaquejada, e esta começou a ter um
caráter competitivo. Cresce a cada dia, atraindo vaqueiros amadores e
vaqueiros profissionais.
27
Atualmente,
as
vaquejadas
são
grandes
eventos
populares,
animadas por famosas bandas de música. O desenvolvimento das relações de
mercado reestruturou a prática dessa cultura, trazendo o turista para a festa da
derrubada e também para a compra dos produtos culturais. Esses produtos,
expostos à venda nas vaquejadas, são comprados por pessoas de bom poder
aquisitivo, e as pessoas que os produzem não são sequer vistas. “É a
estratégia do mercado”, assunto abordado por Garcia Canclini, no seu livro
Culturas Populares no Capitalismo (1982). O autor afirma que, nesse aspecto,
“a cultura é tratada de modo semelhante à natureza: um espetáculo”. (1982: p.
11)
Derrubar o boi no espaço demarcado garante ao vaqueiro o
sucesso e altos prêmios. Há vaquejadas em que a premiação para o primeiro
lugar é um carro; portanto, a competição e o desenvolvimento das relações
capitalistas fizeram dessa expressão cultural um grande negócio.
A idéia da vaquejada começou a existir com as brincadeiras de
argola. A corrida de argolinha é dividida em dois partidos: o encarnado
(vermelho) e o azul. Uma trave é montada e, em cada extremidade, são
penduradas duas argolas pequenas. Os cavaleiros partem em dupla. Classificase para a fase eliminatória aquele que conseguir retirar a argola com uma
pequena vara, por três vezes consecutivas. Se errar uma só vez, o candidato é
excluído.
As
brincadeiras
de
argolinha
são
realizadas
com
bastante
regularidade, na cidade de São José dos Ramos, seguindo o mesmo processo
anteriormente descrito.
Como podemos perceber, o aboio está presente em manifestações
festivas ou momentos de melancolia, apresentando uma variedade de temas,
conforme o motivo que estimula o vaqueiro a aboiar.
28
CAPÍTULO II
Foto: Augusto Pessoa
ZÉ PRETO, UM ABOIADOR DA TRADIÇÃO
29
2.1 O Aboio em São José dos Ramos
O município de São José dos Ramos está situado na Zona da
Mata, na Paraíba, Nordeste do Brasil. A Zona da Mata paraibana corresponde
a uma faixa de terra localizada entre a Planície Litorânea e o Agreste.
Antigamente, essa região era coberta pela Mata Atlântica. Atualmente, pouco
resta dessa floresta; a maioria dela foi destruída para dar lugar às plantações
de algodão e agave.
Acostumado a adentrar nas matas, o vaqueiro Leonel, critica o
desmatamento em regiões próximas: “Vesti gibão zero, um uniforme de couro
para enfrentar o mato e era tudo coberto: pau de jurema, catingueira, columbi,
unha de caboclo; o mato era pesado. O mato acabou. Os proprietaro não
confia em Deus, porque o olho cresceu e eles só confia no capim e na cana
Foto: Laura Maurício
que eles planta” (2/12/05).
Nov e mb ro de 2005 , Se u Leon el , c riti ca o d es ma ta mento d a regi ão .
30
São José dos Ramos limita-se ao norte com os municípios de
Caldas Brandão e Gurinhém, ao sul com Itabaiana e Salgado de São Félix, a
leste com Pilar e a oeste com Mogeiro. Sua área territorial atinge oitenta e
três quilômetros quadrados. É cercada por serras, todas pertencentes ao
sistema da Borborema. São elas: Serra do Sino, Catolé, Riachão e Pirauá.
Zé Preto, vaqueiro aboiador de São José dos Ramos, menciona um
desses acidentes geográficos em um dos seus cantos. Vejamos:
No ano de setenta e sete
Vim morar no Riachão
No pé da Serra do Sino
Soltei minha criação.
Doze vaca e um cavalo
E um burro de estimação.
(14/03/2004).
A atividade econômica básica do município é a agricultura. Lá se
planta: feijão, fava, milho e mandioca. Não há feira livre na cidade e os
comerciantes vendem seus produtos em Itabaiana e Campina Grande.
Também existe a atividade criatória, com várias fazendas e sítios
espalhados pela redondeza. As fazendas ainda conservam, no trabalho diário,
a figura do vaqueiro. É, nesse contexto, que eles mantêm as características de
uma cultura pastoril, determinando, em parte, a vida dos vaqueiros no
município.
A água é sempre uma preocupação. Enquanto a zona urbana
dispõe de água encanada, embora não haja saneamento básico, a zona rural
dispõe de açude para o consumo da água, porém sem tratamento. A chuva é a
esperança, e há quem saiba se o ano será bom ou ruim de inverno. Dona
Noêmia, professora, oitenta e um anos, nascida na Serra do Pirauá, afirma que
“se não chover até o dia de São José, dezenove de março, o ano é péssimo de
inverno”.
São José dos Ramos tem hoje, segundo estimativa do IBGE, uma
população
de
4.980
habitantes.
O
município
conta
com
sete
escolas
31
municipais e uma escola estadual; esta última acolheu o projeto “Seu Zé Preto
na Escola”.
Quanto ao aspecto religioso, temos duas Igrejas: uma católica
romana, cujo padroeiro é São José, e uma evangélica denominada Assembléia
de Deus.
São José é uma cidade de clima quente e seco com máxima de 27º
e mínima de 22º. No ano de 2005, era administrada pelo Prefeito Azenildo
Araújo e o vice é Vital Leopoldino. Foi em São José que desenvolvi minha
pesquisa sobre o aboio, entrevistando e ouvindo os cantos de José Serafim da
Silva (Zé Preto), vaqueiro que conhece bem aquela região, inclusive os
municípios circunvizinhos.
O aboio em São José dos Ramos se caracteriza como um canto de
trabalho nos momentos em que os vaqueiros conduzem o gado de uma fazenda
para outra e, nesse percurso, cantam aboios tristes e melancólicos. O canto
dos aboiadores é entoado numa linha melódica livre, conforme a fantasia do
vaqueiro. Quando fazem a chamada do gado, o canto é longo, sem letra, só a
melodia; depois é que eles cantam os versos, sempre falando da mulher, do
cavalo e do sofrimento. Também cantam, em forma de oração, como no
ofertório da Missa do Vaqueiro. 4
Eu ofereço meu chapéu
A Jesus de Nazaré
Mas é em N. S. Aparecida
Que eu tenho fé.
Pois ela é a padroeira
Dos vaqueiros de São José.
(Toinho, 3/12/05)
Cantar aboio nos bares é costume dos vaqueiros de São José, mas
essa prática tornou-se mais intensa durante a pesquisa na cidade e depois do I
FESTIVAL DE ABOIO DE SÃO JOSÉ DOS RAMOS. Durante as noites de
sábado e as tardes de domingo, o vento trazia aquela melodia cantada a uma
certa distância da cidade. Também escutava-se o som de alguma viola. Os
4
Os vaqueiros de São José participaram desta missa no dia três de dezembro, do ano de 2005.
32
vaqueiros freqüentam as cantorias, mas não gostam de ser comparados aos
violeiros, como canta Zé Valter: “Quem é vaqueiro não pode/ Ser cantador de
viola”.
No livro Brasil Caboclo, o poeta Zé da Luz aborda esse mesmo
assunto. Vejamos:
Minha fama de vaquêro
Fez inveja a cantadô
Aos mais grande violêro!
Pois se êles tinha as vióla
E trazía nas cachóla,
O dom da impruvisação
Eu dibáxo dêsses couro
Tinha um violão sanôro
Parpitando de emoção!
O violão do meu peito
Nas corda do coração!
Quando meu peito aboiáva
A naturêza iscutáva
Num ato de cuntrição!
Há vaqueiros que freqüentam as cantorias e vaquejadas da
região. Itabaiana, Cajá, Sapé são municípios que atraem os vaqueiros e o
aboio é a voz mais presente nas vaquejadas.
Os vaqueiros desta região constituem elementos de luta. Uns
trabalham nas fazendas e outros na agricultura. Esses homens encourados
trazem
a
experiência
e
a
memória
das
estradas:
heróis
esquecidos,
marginalizados, injustiçados, não têm a garantia de uma vida tranqüila.
Mesmo no momento da aposentadoria, não são reconhecidos como vaqueiros
e, sim, como agricultores.
33
2.2 Seu Zé Preto canta a sua história
Primeiros encontros
Fizemos a primeira visita à cidade de São José dos Ramos, no dia
14 de março de 2004. Chegamos lá por volta das nove horas e nos dirigimos
ao Sítio São José. Estávamos na casa de Jessé Araújo (vaqueiro). Quando
algumas horas depois, chegaram outros vaqueiros (Zé Preto, José Walter e
Severo) e pessoas que pareciam ser amigos da família. Ficamos todos
reunidos no terraço da casa. O clima, de início, era de uma alegria controlada,
pois éramos estranhos no ambiente, mas, com a chegada da bebida, aos
poucos, eles foram se soltando e começaram a cantar o aboio. Houve trocas
nos versos, um cantava, outro cantava, de forma que se percebia a firmeza e a
experiência de Zé Preto, tanto na criatividade como no canto. Desafiava, no
improviso, os filhos que ali estavam cantando.
Posso acabar no desespero
O reino quando tá triste
Desmantela o teu poleiro
Aonde tem galo velho
Pinto não canta em terreiro.
Durante esse dia, ficou evidente a experiência de Seu Zé Preto.
Não pude deixar de encontrá-lo mais vezes e terminei optando por gravar os
seus versos e depoimentos pessoais, abdicando de entrevistar os outros
vaqueiros ali presentes.
Em conversa com Zé Preto, ainda naquela tarde, soube que era
casado, tinha vários filhos (mas não quis revelar o número); dentre eles, três
eram aboiadores e estavam presentes no local. Soube, também, que seu cavalo
chamava-se “Cravo Branco”.
O cotidiano da vida de Zé Preto é basicamente o seguinte:
durante a manhã, cuida do gado, ajudado pelo filho José Valter ou netos. À
34
tarde, confecciona peças para os vaqueiros, na sua “fabricazinha” de arreios,
Foto: Laura Maurício
que fica ao lado da sua casa.
Jul ho d e 2004 , fab ri ca ção d e a rreios.
Minhas idas a São José continuam acontecendo, e pude observar
que Zé Preto não é só conhecido naquela cidade, mas na região toda,
envolvendo cidades circunvizinhas. Hoje já me sinto acolhida na comunidade,
mas, de início, recebi olhares de desconfiança. Continuo gravando e
participando dos encontros comunitários, onde pude constatar a presença de
outras manifestações da cultura popular, como o babau, a lapinha, o bumba–
meu–boi, o cavalo marinho, as incelenças, as cantigas de cego, entre outros
Foto: Laura Maurício
cantos.
Jul ho de 2005 , Seu Jo ão C ego , cant ando p ara algun s vaqu ei ro s
35
2ª Entrevista
Depois de um ano do nosso primeiro encontro, conheci a casa
onde Seu Zé Preto mora. Nesse dia, pretendia gravar o seu relato pessoal de
vida. Dei um boa tarde, ele forçou um pouco a vista e me reconheceu; ficou
alegre, mandou que nós nos sentássemos no terraço. Eu fiquei surpresa ao vêlo, pois estava envelhecido, adoentado, a barba crescida, meio surdo e com
dificuldades na visão.
Mantivemos uma conversa informal, porém a minha presença ali
significava que era para cantar aboio. Observei que estava cansado e tossindo,
mesmo assim, o entusiasmo dele era visível. Pedi que fosse falando
naturalmente, conversando. Mas ele insistiu:
Zé Preto: Aboiando?
Laura: Não, falando.
Não cantou por um tempo, mas recitou. Com o tempo, não se
conteve e cantou. Respondia a todas as minhas perguntas em verso. Foi uma
tarde alegre e, só no final, Seu Zé Preto conversou comigo em prosa. Vejamos
a entrevista:
Zé Preto:
(recitando)
Fui fazer uma visita
Na terra que eu fui criado
Achei tudo diferente
Os currá tudo arriado
Os vaqueiro bom morreu
Cabou-se a raça de gado.
Naquele tempo passado
O gado era crioulo
A carne era mais gostosa
O leite mais saboroso
Cavalo era mais forte
Vaqueiro era mais jeitoso.
36
O Bidon era um vaqueiro
Nesse clima temperado
Vivia correndo boi
De noite bem animado
Bebendo leite de gado
E dando tapa em boi raçado.
Mané Bento era um vaqueiro
É dele que eu vou falar
De muito serviço dele
Hoje é de admirar
Pegando boi véi na rama
Na Serra do Pirauá.
(Lagoa Grande) 5
Tinha Galdino falado
Morando no Camuncá
Naquela época de trinta
A gente passava lá
Ele montando em burro
Pra o povo se admirar.
Todo dia ele montava
Corria boi véi na rama
Mái a idade é da gente
Toda a idade lhe chama
A morte levou ele
Hoje tudo se ama.
O Mariano Migué
Foi um cabra preparado
Naquele ano de trinta
O ramo era pegar gado
Foi um cabra preparado
Matava boi, cortava gado.
João Bidon era da gente
Vivendo mêi animado
Pegando boi véi ligeiro
Neste clima temperado
Morreu com oitenta ano
Montando e correndo gado.
(Oitenta ele morreu)
Zé Galdino véi da gente
Morava em Riachão
No pé da Serra do Sino
Foi a sua tradição
Montando em burro manhoso
E correndo boi de mourão.
5
Seu Zé Preto explica alguns trechos dos versos, colocados, a partir de agora, entre parênteses.
37
Dona Ciça: É bom cantando, né?
Zé Preto: Ela foi dizendo, ela foi dizendo, né?
Laura: Pode ser conversando, falando.
Zé Preto:
Tem Eufrate Pinheiro
Homem bem preparado
Nascemo tudo num dia
Nesse clima temperado
O símbolo de Eufrate Pinheiro
Foi montar e correr gado.
Laura: Fale do senhor, pode ser conversando.
Zé Preto:
Eu nasci em vinte e seis
Em Angidiroba falada
No dia quinze de maio
Às quatro da madrugada
Na hora em que ali cantava
Também toda passarada
Êi...
Na hora quando eu nasci
Ainda eu tava no chão
A véia era curandeira
Ela leu a minha mão
Disse o meninim pro gado
Vai ser sua invocação
Êi...
Quando a véia foi embora
Ela tomou um pifão
Ela acendeu um cigarro
Assentada no pilão
O imbiguinho desse nêgo
Enterre em pé de mourão
Êi...
Enterraro meu imbigo
Também dentro do currá
No véi mourão de aroeira
Ainda hoje tá lá
Um grande cupim em cima
Do tamanho dum caçoá
Êi...
38
No ano de trinta, pai
Vendeu a propriedade
O coroné Severino
Também por pouco dinheiro
De lá foi onde passou
De fazendeiro a vaqueiro
Ê...
No ano de trinta e três
A morte veio e levou
Meu pai que me adorou
Ô morte ingrata ruim
Uma tristeza sem fim
Na casa que mamãe mora
O papai ainda chora
Sente saudade de mim
Êh...
Meu pai foi um fazendeiro
Morreu sendo vaqueiro
Hoje eu fui um dos herdeiros
Do resto da profissão
Tudo tombou, levou fim
Papai só deixou pra mim
Perneira, chapéu, gibão
Êi...
Casei-me em quarenta e oito
Não lucrei nenhum tostão
Com a prima chamada Velha
E sob a alimentação
Levei uma cama de couro
E cinco litro de feijão
Êi...
No ano de quarenta e nove
Fui vaquejar no Riachão
Deitado em barro vermelho
Soltei minha criação
Uma cabra e um cavalo
Cachorro de estimação
Êi...
39
Quando foi no fim do ano
Tormenta me piorou
Meu cavalo deu um roda
Mesmo dia se acabou
Minha cabra deu a febre
Pois de uma mão aleijou
E meu cachorrinho correu
Ele nunca mais voltou
Êi...
No ano de setenta e sete
Vim morar no Riachão
No pé da Serra do Sino
Soltei minha criação
Doze vaca e um cavalo
E um burro de estimação
Êi...
Fui morar no Riachão
Num clima mêi animado
Amassando a burralhada
A tarde corria gado
Naquele clima sadio
Era um clima preparado
Depois a senhora vê, hoje
Eu já digo o meu roteiro
Comprei uma terrinha
Tenho o nome de fazendeiro
Fiz uma casa e moro
Nesse clima brasileiro.
Na terra de São José
Hoje eu vivo animado
Moro em minha casinha
Nesse clima temperado
Criando cavalo bom
Zelando gado raçado.
Ô dona eu digo à senhora
Porque tenho que dizer
Essa vida da gente
A gente deve ter prazer
Com saúde e mocidade
Tudo se pode fazer.
(Né? Com saúde e mocidade né?).
Laura – Agora conte como o senhor começou a ser vaqueiro.
40
Zé Preto:
No ano de quarenta e oito
Quando eu me casei
Eu fiquei desprevenido
Eu vou contar a vocêi
Foi quando eu fui vaqueijar
No ano a primeira vêi
Fui vaqueiro de Seu Normando
Numa terra abandonada
Eu trabalhei cinco ano
Ô terra ruim atrasada!
M’arrependi de ter ido
Ô que vida amargurada!
Eu fui pra Poço Danta
Com Zé Primo, fui vaqueijar
Trabalhei três ano
Ô lugar especiá
Eu fiquei com muita pena
No dia que saí de lá.
(Porque vendeu a propriedade)
Vendeu a propriedade
O jeito foi eu sair
Triste sofrendo e dizendo
Ô meu Deus o que é de mim?
Eu vim morar no Quirino
No Alto do Vanonil.
Aí foi onde eu fui
Na terra de Dona Aurora
Eu vaquejei nove ano
Vou lhe contar a históra
Hoje não vaquejo mai
Pruquê a idade não dá
Tem me caído a memória.
A terra de Dona Aurora
Foi uma terra animada
Na terra a gente corria boi
Aquela terra aprumada
Comendo queijo de coalho
Ô que vida preparada!
Dona Aurora é gente boa
Nada podia faltar
Quando chegava do campo
Ela pegava a falar
Perguntando pelo gado
Depois eu ia contar.
41
Eu digo pois Dona Aurora
O gado tá bem zelado
Novia tá dando cria
O gado gordo e zelado
E eu como seu vaqueiro
A vida é rever o gado
Ela dizia: Zé Preto
Pode também zelar
Que você zelando o gado
Só pode me ajudar
Vaqueiro que zela gado
Bota o patrão pra gozar.
O vaqueiro maltratando o gado
Deixa tudo contrariado
Amarra os bezerro e num vê
Deixa o boi véi aleijado
E você fazendo tudo
Deixa tudo preparado.
Eu digo pois, Dona Aurora,
Eu vou dizer à senhora
Trabaio a três ano
Nada disso me devora
No dia em que não lhe vejo
Eu fico fora de hora
Aí dizia, Seu Zé Preto
Você é bem preparado
Para semana vindoura
Eu quero que pegue gado
Trinta boi pra eu vender
Fazer dinheiro pra vocês
Pra serem bem preparado
Ela dizia Zé Preto
Meu dinheiro se acabou
O que a gente faz da vida?
Vá me diga o senhor
Vamo pegar gado e vender
E aumentá seu valor.
Apôi pegue trinta boi
Pra vender e pra matar
Eu vendendo gado agora
Dinheiro eu posso ajeitar
No fim do ano vende mái
Pra vocês ir zelar.
(ela dizia, a véia dizia aí...)
42
Carneiro era fio dela
Menino bem preparado
Tinha uns cavalo bonito
Uns cavalo bem zelado
Era o cavalo Carrasco
Era bom de correr gado.
Tinha o cavalo Rubim
Cavalo bem preparado
Dizia Zé Preto tu vai
Nesse cavalo animado
Tu montando no Rubim
Sei que você pega gado.
O cavalo Carioca
Era um cavalo agitado
Mas quando chegava no mato
Ele ficava afobado
Deixava o boi ir embora
E ficava desassossegado.
Eu fiquei com Dona Aurora
Eu morei muitos ano
Lá trabalhei, fui vaqueiro
Pude tudo decorar
Adepôi fui trabalhar em sola
Para a coisa melhorar.
Minha vida, meu ramo é sola
Corto sola todo dia
Vivo nessa vida, mermo contrariado
Comprando sola a dinheiro
E vendendo arreio fiado.
(Rá... rá... rá..., ta bom?)
Mas é assim minha dona
Posso não ter mais prazer
A gente ficando velho
E disso que eu vou lhe dizer
Coisa boa é a mocidade
Mái o jeito é ficar velho
E tem o dia de morrer.
(Tem ou não tem?)
Laura: E as vaquejadas, como eram?
Zé Preto:
A vaquejada da gente
Era grande tradição
Não é que nem tem hoje
Com grande imperfeição
Era fazer um pátio e correr
Também no dia de São João.
43
Na vespra fazia fogueira
Tudo muito preparado
Enfeitava a fazenda
Num salão bem animado
Matando bode comendo buchada
E o dia correndo gado.
Laura: E hoje, como são as vaquejadas?
Zé Preto:
As vaquejadas hoje
É coisa de admirar
Pois é casa de negoço
Para os povo ganhar
Quem for vaqueiro ganha
Quem num ganha nada
É pruquê não sabe ajeitar
Pruquê a coisa hoje é pesada
A faixa é a tradição
É difícil ter cavalo
Bom para o mourão
Pra botar o boi na faixa
E num negar o passo não.
Hoje o indivíduo é preparado
Tem muito vaqueiro bom
Tem muito cabra afamado
Mái num fái o que ele quer
As vêi ganha as vêi perde
E desanima do gado.
Coisa boa é naquele tempo
Que a gente muito brincava
Fazia aquela pista
E nada ali ganhava
Levava salva de paima
E ali a música tocava
Em cima do palanque
Era uma música afamada
As moça dançando baile
E a gente na vaquejada
O povo batendo paima
Era uma festa animada!
(Era... Era...)
No outro dia cedinho
Era uma tradição
A gente levava os cavalo
Também pra correr mourão
Levava as menina na garupa
Para a casa do patrão.
44
Quando chegava lá
Era tudo preparado
De noite chamava as menina
Para a novena afamada
E ver o fogo assubir
E a gente chamar o gado
De noite ia os vaqueiro
Para a casa do patrão
A gente soltava fogo
Era aquela tradição
E as menina batendo paima
Dando valor a São João
(Era naquele tempo velho néra? Aquele tempo...)
Aquele véi na biqueira
Não ia pra festa não
Mái ficava aquele velho
Brincando com tradição
Dizendo um para o outro
A noite de adivinhação.
Dizendo adivinhação
Aquele velho afamado
As vezes era velhos bons
Tinha sido bom de gado
Mas num corria mais
Já tava velho acabado
Vou deixar pra mocidade
Que é tudo forte e ligeiro
Namorando, dança baile
Neste clima brasileiro
Estou velho e acabado
Acabou-se a minha fama de vaqueiro.
Laura: E o aboio, hoje, como anda?
Zé Preto: Faço verso de aboio?
Laura: Espere um pouquinho, responda a pergunta do aboio.
Zé Preto: O aboio hoje vai de todo jeito. Fái aquele disco, aquela fita, e sai
vendendo. O aboio fái do jeito que quiser. Tudo filmado, né?
Laura: O senhor prefere o aboio de antigamente?
45
Zé Preto: Era, antigamente... antigamente, era bom... (chora). Aí chegava o
patrão, tempo seco, “faça uma toadazinha de São João pra eu ver”. Aí,
batendo chuva... pá... pá... pá... pá... Faço um aboio?
[Zé Preto canta no ritmo de Asa Branca, de Luiz Gonzaga]
Eu vendo a chuva
Me rescordo da boiada
Da canjicada, da noite de São João
Tomar pifão, dançar numa latada
Com a morena perfumada
E dano viva a São João.
Quando é bem cedo
Se amanhece arressacado
Rebanha o gado na fazenda do patrão
De todo lado só se vê chegar mulé
Vamo balançar o gado
Lá no parque João Duré.
Todo vaqueiro leva sua moreninha
Foi na garupa do cavalo de mourão
Chegando lá vamo rolar boi no chão
E a gente batendo paima
Dando viva a São João
Quando é de noite
Os vaqueiro chama as morena
Que é pra novena lá na casa do patrão
Solta balão, o fogo chega entoa
Ó meu Deus que vida boa
É de vaqueiro no sertão.
Todo vaqueiro gosta de mulé bonita
De vaquejada e de cavalo famoso
Quando é jeitoso, no mundo se espalha a fama
E aquela que lhe ama
Chama pretinho de gostoso.
Eh... eh... eh... eh…
(Ele dizia: você é bom e vai fazer uma toadinha).
Laura: O senhor tem trinta anos de vaqueiro?
Zé Preto: Tenho.
Laura: E hoje, o senhor vive de quê?
Zé Preto: Hoje sou aposentado.
46
Laura: De vaqueiro?
Zé Preto: Não, pela idade. Tenho um gadinho, trabalho em arreio.
Foto: Laura Maurício
Laura: Sua fabricazinha de arreio é boa?
Ju lho d e 2005 , Seu Zé Pre to n a “f ab ric azi nha” de arreios.
Zé Preto: É boa, dá pra arrumar muito dinheirinho.
Laura: O senhor vende a quem?
Zé Preto: Só faço de encomenda pra os vaqueiro. Tudo encomendado.
Laura: De onde vêm os vaqueiros?
Zé Preto: De Dona Maria Helena, vem de Dr. Flávio, dos Duré, vem de Sapé,
vem de Juarez Távora, aquela vaqueirama que me conhece. Venho trabalhando
há mais de vinte ano, todo mundo me conhece e diz assim: “Eu quero que Zé
Preto faça”. Pruquê eu só faço bem feito.
Laura: E o senhor faz o quê? Diga o nome das peças.
47
Zé Preto: Arreio pra cavalo, guarda-peito pra vaqueiro. Faço peia, faço
macaca, cilha, rabicho, rabichola; na profissão de vaqueiro eu faço tudo.
Chapéu...
Laura: Por quanto o senhor faz um chapéu?
Zé Preto: Faço a trinta e cinco.
Laura: O senhor tem orgulho de ter sido vaqueiro?
Zé Preto: Ave Maria, Ave Maria...!
Vesti gibão trinta ano
Foi o que tinha vontade
Montando em burro manhoso
Matei as minha saudade
E amando moreninha
Desfrutei a mocidade.
Êh....
Se dissesse: “você quer ser o governo da república ou quer ser vaqueiro?”. Eu
quero ser vaqueiro, com quinze ano, com vinte ano. É um orgulho muito
grande.
Laura: Tem alguma coisa quebrada no corpo?
Zé Preto: Tenho quinze peça desmantelada. (mostra as partes do corpo: o
braço, a costela, a coxa, a virilha...). Só tem uma peça que eu não quebrei,
mái também não presta mái... O dedão do pé. Gosto de cavalo igual gosto de
mulher. (começa a contar uma história). O boi Canáro quando tava perto de
chover ele adivinhava.
Laura: Como é que o boi adivinhava?
Zé Preto: Ele entrava pro currá, cavava a terra, aí saía o cheiro da terra, era
um tempo seeeco. Aí ele espiava pro céu. Aí podia garantir que com três dia a
chuva batia. O boi Canáro só faltava falar, conhecia do tempo, boi experiente.
Também pissuí um cachorro preto, ele passava no meio de todo o gado, mas
48
só latia naquele que precisasse. Ele caducou com dez ano de vida, tem vida
curta né?
Laura: O aboio hoje como anda?
Zé Preto: O aboio hoje tá fundado. Aquela fita tem... Galego Aboiador é o rei,
viu? Não gosto de Manezinho. O tempo de primeiro era sadio, era danado de
bom, se tinha confiança. Hoje tem mais facilidade. De primeiro eu gastava
dois dia pra chegar em Campina. Hoje já dá tempo almoçar em casa. Hoje a
gente liga a televisão e só vê derrota. Mané Bento morreu em trinta e oito, só
cantava besteira. A comunidade de vaqueiro era muito unida, todo mundo
ajudava todo mundo. Se um se engalhasse todos corria atrás. Tá bom, tá bom.
Fim da entrevista.
49
3ª Entrevista
Cheguei à casa de seu Zé Preto às três horas da tarde do dia 21 de
agosto de 2005.
Era um silêncio muito grande ao redor da casa. Bati palmas.
Poucos instantes depois, ele apareceu trazendo Cravo Branco e foi dizendo
que “sabia que chegou gente por causa do cheiro do perfume”. Me chamou
para junto do cavalo e me ensinou como devia alisá-lo. Depois pediu para que
eu me sentasse no terraço. Nesse momento, Dona Ciça, esposa dele, também
sentou-se. Depois de todos sentados, ele perguntou: “É pra cantar aboio?”
Respondi que eu estava ali para conversar um pouco, mas se ele quisesse
Foto: Laura Maurício
podia cantar. E perguntei:
Ago st o d e 2005 , Zé Preto escovand o o pêlo de Cravo B ranc o .
Laura: Seu Zé Preto, como foi a sua infância?
Zé Preto: É quando a gente é menino é?
Laura: É.
50
Zé Preto: Menino, naquele tempo, era só pra trabalhar. Eu com dez ano
trabalhava com gado nas serra, tirava leite e pastorava gado. Nesse tempo, eu
morava na Angidiroba, perto de Alagoa Grande. Também ajudava nos roçado,
prantava milho, feijão. Não tinha esse negoço de bater bola como hoje. O
negoço era trabalhar. Nos domingo era pra botar água e lenha, pra na segunda
– feira eu ir pastorar o gado. Ôh tempo estoporado! Hoje é uma beleza! A
gente ia comprar coisa em Tabaiana a pé, só pra ganhar quinhentos réis. O
dinheirinho que eu ganhava comprava as coisa pra mim. Me alembro de uma
percata que comprei. Pois dona, minha vida era assim: trabalhando com gado,
com roçado de manhã e pastorar gado de tarde.
Pude observar que ele não gostou da infância, pois o tempo todo
olhava para os três netos, montados a cavalo, na frente da casa e dizia: “Isso
aí é que vida boa, tudo pronto pra passear”.
Zé Preto informou que depois que conversasse comigo “ia no pé
da Serra do Sino procurar um cavalo que tava com jerimum, tava doente”.
Então perguntei: - O que é jerimum? Ele me disse que é um caroço que nasce
no lombo do cavalo e que é preciso sajar.
Laura: Seu Zé Preto, como foi a sua juventude?
Zé Preto: A mocidade é?
Laura: É
Zé Preto: Ah! a mocidade! (saudoso) A mocidade foi o que eu mais gostei na
vida. Eu era bonito. Namorava muito. Foi o que eu mais gostei de fazer, foi
namorar. As festa do mêi de São João eu adorava. Tinha fogueira, latada para
os forró. A sanfona era de oito baixo. Quando o sanfoneiro rasgava a bicha,
nós amanhecia o dia. Naquele tempo, não tinha guaraná, era a “gasosa”, em
vêi de guaraná, era “gasosa”, viu?.
Laura: E o casamento, seu Zé Preto?
Zé Preto: Noivei com vinte ano, com Rita Calixto. Isso foi pelos ano de
quarenta e oito. Em cinqüenta e oito, ela morreu de parto. Fiquei com cinco
51
filho. Aperriado, com esses filho sem mãe, me casei com Ciça. Ela tomou
conta deles. Viajava muito para o Rio Grande do Norte, Campina Grande e
Pernambuco.
Laura: O que o senhor ia fazer nesses lugares?
Zé Preto: No Rio Grande do Norte, eu ia levar a boiada para vender. Quando
vendia eu voltava e levava outra.
Laura: E hoje, ainda se leva boiada?
Zé Preto: Leva, mái é daqui prali, tudo perto. Naquele tempo não, a gente
andava muito. Hoje, quando é preciso levar o gado pra longe, eles vão no
caminhão.
Laura: E quando o senhor levava o gado, cantava muito aboio?
Zé Preto: Cantava muito, aboio comprido e triste e o gado ia tudo juntinho.
Laura: O que o senhor ia fazer em Campina Grande?
Zé Preto: Brincar de vaquejada.
Laura: E em Pernambuco?
Zé Preto: Eu ia amansar burro brabo, trabalhar na agricultura, mái a terra num
era boa e nem chuva tinha.
Durante toda a conversa Dona Ciça ficou ali ouvindo. Depois
chegou Zé Valter e sentou-se no canto do terraço e ficou também ouvindo a
conversa.
Zé Preto estava em pé, próximo ao portão. Olhou para Cravo
Branco, que estava amarrado na grade e me perguntou: “A senhora acha ele
bonito?” E eu respondi: acho, ele é lindo, e os olhos azuis muito mais. Zé
Preto sorriu, orgulhoso.
Cravo Branco é o cavalo de estimação de Zé Preto. Como o
próprio nome indica, ele é todo branco, muito bem tratado, com uns
52
belíssimos olhos azuis. Ele sempre vai para a festa das vaquejadas nos
municípios vizinhos. Estava com um corte no corpo e seu Zé Preto me disse
que foi a espora que cortou.
Dona Ciça olhava tudo atentamente e observei que ela estava com
vontade de falar. Seu Zé Preto voltou ao terraço e disse que ia ao encontro do
cavalo que estava doente, no pé da Serra do Sino, que talvez fosse preciso
entrar na mata.
Laura: Fale um pouquinho da sua vida na fase adulta.
Zé Preto: Eu já cantei minha vida pra uma moça branquinha que veio com a
senhora naquele dia. Ela filmou tudo. Mas hoje eu tou aposentado e trabaio
fazendo arreio pra cavalo, guarda–peito pra vaqueiro, rabicho, rabichola,
chapéu de couro. Tudo que for pra vaqueiro eu sei fazer. Mái só faço
encomendado. Agora eu vou mim bora que já é tarde.
Laura: Seu Zé Preto, quem foi Lena, aquela que o senhor fez um aboio
bonito?
Zé Preto: Madalena? (baixou a cabeça e não respondeu)
Montou em Cravo Branco e saiu.
Olhei pra Dona Ciça e ouvi quando ela falou: “Quem nasce no
mêi de agosto, minha fia, só tem desgosto. Na minha vida, eu só tenho
disgosto. Tenho meu fio doente, só Jesui sabe o trabalho que ele dá. A
senhora já viu ele?”.
Dona Ciça contou toda a história da doença do menino, ficando
bem claro que houve um monstruoso erro médico.
Depois, perguntei sobre o seu casamento e ela respondeu: “Casei
a primeira vez com dezessete ano, convivi por dois ano e logo uma das
minhas irmã tomou meu marido. Depoi apareceu Zé Preto, viúvo, com cinco
fio. Dele eu tive treze filhos, criei oito. Todos nasceram na fazenda do
53
Quirino, depois fui para o Riachão e hoje tou em São José. Até aqui, já tem
sofrido muito. Zé Preto num podia ver um rabo de saia que ia atrás.
Laura: Mesmo casado?
Dona Ciça: Mái, minha fia, ele só diminuiu hoje pruquê tá véi. Uma vêi, eu
fui pra maternidade com um aborto, ele botou uma mulé dentro de casa
enquanto eu tava doente. Eu já me acostumei com isso, nem ligo mái; se eu
for ligar, eu morro.
Foto: Augusto Pessoa
Fim da entrevista.
Dez emb ro de 2005 , Seu Zé Pre to e Don a Ciça no d i a do I Fest iv al d e Aboio d e São José .
54
2.3 A história de vida em versos: alguns comentários
Selecionamos alguns versos cantados por seu Zé Preto e que
relatam à sua história de vida, do nascimento à velhice.
1
Eu sou Zé Preto falado
Da Paraíba do Norte
Sou vaqueiro há trinta ano
Vaquejada é meu esporte
Eu me casei-me trêi vêi
Com mulé eu tive sorte
Êi...
2
Quem não souber do meu nome
Quem não quiser preguntar
Sou eu José Serafim
Que o povo vê falar
Nascido na Angidiroba
E criado no Cravatá
Oi...
3
4
5
Vou contar a minha vida
Do jeito que eu fui criado
Montando em burro manhoso
Vesti couro de veado
Comendo carne de sol
E dando tapa em boi raçado
Êh...
Eu nasci em vinte e seis
Em Angidiroba falada
No dia quinze de maio
Às quatro da madrugada
Na hora em que ali cantava
Também toda passarada
Êi...
Na hora quando eu nasci
Ainda eu tava no chão
A véia era curandeira
Ela leu a minha mão
Disse o meninim pro gado
Vai ser sua invocação
Êi...
6
Quando a véia foi embora
Ela tomou um pifão
Ela acendeu um cigarro
Assentada no pilão
O imbiguinho desse nêgo
Enterre em pé de mourão
Êi...
7
Enterraro meu imbigo
Também dentro do currá
No véi morão de aroeira
Ainda hoje tá lá
Um grande cupim em cima
Do tamanho dum caçoá
Êi...
8
Criei-me na época boa
Comendo queijo e coalhada
Brincando mai meus irmão
Cavalo de pau na estrada
E minha mãe no batente
Fazendo renda e mufada
Êi
9
Quando era de madrugada
O meu pai se levantava
Iá pro currá tirar leite
Também dava pra coalhada
Mamãe fazia uma papa
Com farinha peneirada
Êi...
10 Eu ainda sou forte assim
Pruquê eu fui bem criado
Bebi leite de vaca mestiça
E comendo queijo assado
Fava e feijão de corda
E carne de boi capado
Ei...
55
11 No ano de trinta, pai
Vendeu a propriedade
O coroné Severino
Também por pouco dinheiro
De lá foi onde passou
De fazendeiro a vaqueiro
Êi...
17 Já me acho acabado
Como um reino sem tribuna
Como as água que o rio
Derruba quaiquer coluna
Forro o gibão e me deito
Nas sombra das baraúnas
Ôi...
12 Meu pai foi um fazendeiro
Morreu sendo vaqueiro
Hoje eu fui um dos herdeiros
Do resto da profissão
Tudo tombou, levou fim
Papai só deixou pra mim
Perneira, chapéu, gibão
Ei...
18 Ali chega uma graúna
Cantando no ambiente
Sinto meus maus de vaqueiro
Hoje eu vivo dependente
Quem canta seus males espanta
E a dor que meu peito sente
Ôi...
13 Na hora de papai morrer
Fez a sua despedida
Disse adeus terra querida
Terra que eu me montei
Novilha que eu amansei
Soltei cavalo de molho
Aí foi fechando os olho
Pediu a vela e morreu
Ei...
19 De ler não conheço o ó
Pruquê não estudei não
Trabalhar como cativo
Foi a minha tradição
Meu colégio foi o mato
E a farda foi o gibão
Ei...
14 Vesti gibão trinta ano
Foi em que tinha vontade
Montando em burro manhoso
Matei a minha saudade
E amando mulé nova
Desfrutei a mocidade
Êi...
15 Eu digo para os amigo
Me acho sacrificado
Porque esse mundo traz
Rescordação do passado
O fraco da minha vida
É cavalo, mulé e gado.
Ôi...
16 Nasci no clima do gado
Porque nasci no currá
Foi numa fazenda véia
Acabei de me criar
Só deixo de correr boi
Quando a morte de matar
Ôi...
20 Fui noivo c’uma menina
Bonita chamada Lena
Parecia uma açucena
Numa manhã orvalhada
A morte tomou chegada
Matou minha jovem bela
E eu igualmente aquela
Não arrumo nesta data
Nem a poliça me empata
Deu chorar na cova dela
Ei...
21 Fui noivo com outra moça
Ela o coração me deu
Na minha ausência morreu
Eu fui lá lhe avisitar
Mas não pude lhe encontrar
Lá de longe avistei ela
Referenciei a capela
Que era banhada em prata
Nem a poliça me empata
De chorar na cova dela
Ei...
56
22 Eu vou dormi, perco o sono
Me acordo de madrugada
Numa noite enluarada
Vou até a cova dela
Rezo uma prece pra ela
Boto meus dois joêios no chão
Pra ela eu faço oração
E se a tristeza m’ataca
Nem a poliça me empata
De chorar na cova dela
Ôi...
23 Hoje eu fiquei pelo mundo
Suspirando e dando ais
Sem parente e sem derente
Sem irmão, sem mãe, sem pai
E como uma folha seca
Que até com o vento cai
Ôi...
Quando se lê os aboios que constituem a história de vida de Zé
Preto, percebe-se que eles contêm beleza. Por ser uma poesia de vida, faz
parte da memória, de uma memória social, pois Zé Preto representa a figura
de outros vaqueiros que nasceram e se criaram “nesse mundo”. De imediato,
não se percebe quanta elaboração existe no interior dessas estrofes. É preciso
ler várias vezes, e de maneiras diferentes, para descobrir as diversas
significações que elas contêm.
Nas duas primeiras, estrofes Zé Preto se apresenta, assim como
fez Severino retirante, personagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral
de Melo Neto:
O meu nome é Severino
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
Que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
(João Cabral de Melo Neto)
Eu sou Zé Preto falado
Da Paraíba do Norte
Sou vaqueiro há trinta ano
Vaquejada é meu esporte
Eu me casei-me três vêi
Com mulé eu tive sorte
Êi...
(Zé Preto)
57
O quarto verso da terceira estrofe, “vesti couro de veado”, remete
para os primeiros encouramentos que eram feitos de couro de veado, por ser
mais resistente e duradouro. Só depois passou o vaqueiro a manufaturar suas
vestes de couro de bode.
Na quarta estrofe, há uma descrição de um cenário natural, “a
madrugada e o canto da passarada”, que aponta para uma vida que surge, ou
seja, o nascimento de Zé Preto.
Eu nasci em vinte e seis
Em Angidiroba falada
No dia quinze de maio
Às quatro da madrugada
Na hora em que ali cantava
Também toda passarada
Êi...
O poema é composto por estrofes de seis versos, aparecendo
também estrofes com sete, oito e dez versos. A leitura dos versos em voz alta
se faz necessária para que se perceba o ritmo.
Na quinta estrofe, a presença da “véia curandeira” confere uma
ambientação mística à cena; a “véia” faz uma previsão quanto ao futuro do
“meninim” e afirma que a vocação dele será o gado. O que mais uma vez se
aproxima da obra de João Cabral de Melo Neto, quando há uma previsão do
futuro de Severino pelas ciganas do Egito. Falam as duas ciganas:
- Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, com goiamuns,
e a correr o ensinarão
os anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
-Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas;
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
58
A primeira cigana prevê, que o bebê será um homem ligado ao
rio, e a segunda, que será um operário. A “véia curandeira” prevê para Zé
Preto uma vida ligada ao gado, ou seja, uma vida de vaqueiro. São os
“severinos” deste país, que trabalhando no campo ou na cidade, lutam pela
vida, apesar da pobreza e, sobretudo, da ineficácia dos governantes.
As estrofes seguintes (sexta e sétima) também mostram a outra
face da “véia”, que é ser parteira. As parteiras são mulheres simples, têm uma
missão a cumprir, são fadas em cujas mãos os filhos das outras mulheres
nascem. O umbigo enterrado em pé de mourão é uma prática usada até hoje.
Na oitava estrofe, os alimentos “leite”, “coalhada” são citados
pelos vaqueiros, pois estes saem dos animais que eles cuidam. Tudo é
aproveitado do boi ou da vaca. Manual ou mecanicamente, o leite é tirado
para ser consumido, natural ou transformado em queijo, manteiga e coalhada.
Do boi abatido, obtém-se a carne e os miúdos (bofe, bucho, rins, fígado).
Aproveitam-se, ainda, os chifres para a confecção de objetos, os ossos para
fazer ração, o couro para a fabricação de vários objetos, o sebo para o sabão e
as fezes para o adubo.
A decadência é o assunto das estrofes onze e doze. “Passou de
fazendeiro a vaqueiro”, e a partir daí, Zé Preto herda a profissão do pai,
simbolizada pelas palavras “perneira”, “chapéu” e “gibão”.
O amor à terra é um sentimento muito forte entre os vaqueiros.
Eles amarram-se a ela, desde o nascimento até a morte. A “alma” da terra é
encarnada nesses homens:
Na hora de papai morrer
Fez a sua despedida
Disse adeus terra querida
Terra que eu me montei
Novilha que eu amansei
Soltei cavalo de molho
Aí foi fechando os olho
Pediu a vela e morreu
Ei...
59
A mulher é um tema muito cantado pelos vaqueiros. Sempre surge
de forma idealizada: traz sofrimento, é bonita, tem cabelos longos, não é
vaidosa, é donzela e sensual. A terra faz dele um vaqueiro e a mulher é que o
faz sentir-se homem.
O vaqueiro e a natureza estão intimamente ligados. Isso podemos
observar nos elementos comparativos citados por Zé Preto na estrofe catorze:
Como as águas de um rio
Que derruba quaiquer coluna.
A chegada da “graúna cantando no ambiente” é um elemento
simbólico que está associada aos males que o vaqueiro sente.
A denúncia de injustiças sociais é um tema abordado pelos
vaqueiros. Apenas os mais jovens sabem ler e escrever; os mais velhos nunca
freqüentaram a escola. Vejamos o que canta Zé Preto:
De ler não conheço o ó
Pruquê eu não estudei não
Trabalhar como cativo
Foi a minha tradição
Meu colégio foi o mato
E a farda foi o gibão
Êi...
Conhecedores de uma realidade de carência e sofrimento, algumas
vezes, eles buscam um lenitivo para suavizar a aspereza da vida que
enfrentam.
A coisa melhor do mundo
É tomar cerveja fria
Puxando novia nelora
Montando em sela macia
Gostar de morena nova
E viver de boemia.
Dos aboios cantados, apenas quatro apresentam um mote, como:
“Nem a poliça me empata, d’eu chorar na cova dela”. Esse gênero não é
comum no aboio, comparece mais na cantoria e no repente.
60
A fragilidade comparada a “uma folha seca”, na estrofe vinte e
três, é algo que contrasta com o heroísmo tão cantado em outras estrofes.
Mái tou com setenta e sete
Sou um gavião de aço
De físico tou com vinte
Para fazer o que faço
Pego um boi, amanso um burro
Farro, fumo, pesco e caço.
O léxico que compõe a poesia é formado por palavras simples e
conhecidas pelo leitor ouvinte. Também a linguagem é simples e tem temática
variada. A poesia é inspirada no cotidiano, na realidade e, às vezes, no sonho.
Zé Preto canta a sua vida misturando realidade e fantasia, versos
improvisados e outros tantos ouvidos nas noites de vaquejada e cantoria.
Esses versos, ao longo do tempo, passam a ser a própria vida do
vaqueiro/poeta/cantador.
61
CAPÍTULO III
Foto: Laura Maurício
O ABOIO NA ESCOLA
62
3.1 O aboio na sala de aula e a visibilidade da cultura do
vaqueiro no município de São José dos Ramos
Viajei a São José no 29 de julho do ano de 2005, com o objetivo
de me encontrar com os Diretores da Escola Estadual Jocelyn Veloso Borges.
Às 9:00h, começamos a reunião e, na oportunidade, apresentei o Projeto
Cultura Popular na Escola, cuja finalidade principal era desenvolver um
trabalho com a cultura popular na sala de aula, especialmente com os aboios.
Fui informada pelas Diretoras que, na escola, funcionava o
Ensino Fundamental e Médio, e que era necessário uma outra reunião com a
presença dos professores.
Com a liberação para outro encontro, percebi que as diretoras
decidiram enfrentar o desafio e determinaram a data da reunião com os
professores para o dia vinte e três do mesmo mês. Nessa reunião, estiveram
presentes vinte e cinco professores do ensino fundamental e médio, a Diretora
Geral da Escola, Vanda, e as duas Diretoras Adjuntas.
Comecei a reunião com a dinâmica das “malinhas”: foram
distribuídas pequenas malinhas contendo um elástico, um clip, um bombom e
algumas mensagens, sugerindo um relacionamento bom e amigável entre as
pessoas do grupo. Ao mesmo tempo em que abríamos as “malinhas”,
escutávamos a música “Tocando em frente”, de autoria de Almir Sater e
Renato Teixeira. Ao escutá-la por duas vezes, cada professor escolhia a
palavra ou a frase que mais lhe chamasse a atenção. Então, passei a ouvir
cada pessoa e, logo depois, concluímos que deveríamos “tocar o projeto em
frente”, conforme sugeria o título da música. Em seguida, apresentei o
projeto, mostrando que o alvo principal dele era o aboio. A partir daí,
comecei a ouvir a opinião dos professores presentes.
Foto: Laura Maurício
63
Ju lho de 2005 , reuni ão c o m o s p rofe s so re s d a Escola Est adu al .
Quanto
ao
aboio,
três
professores
do
Ensino
Médio
se
propuseram a trabalhar nas áreas de Português, Artes, História e Geografia.
Os demais buscariam outros contatos com a comunidade, e, com certeza,
encontrariam outras manifestações da cultura popular, pois não concordaram
que se trabalhasse apenas com o aboio. E, assim, todos em comum acordo,
marcamos a próxima reunião para o dia vinte e sete de agosto.
Nesse dia, comecei a escutar as opiniões e propostas que
chegavam dos professores. Durante a reunião, foram aparecendo pessoas da
comunidade, na maioria idosos, que assistiram a reunião caladas o tempo
inteiro. Os professores trouxeram a proposta de uma feira popular, além de
danças afro-brasileiras, ciranda, babau, rezas populares e outras. Sugeri que
nos detivéssemos na cultura do vaqueiro como prioridade.
Entreguei
cópias
dos
aboios
cantados
por
Zé
Preto
aos
professores que iriam trabalhar, começando pela leitura oral da poesia. Após a
leitura oral, os alunos seriam estimulados a falar sobre suas experiências, e
aqueles que já praticavam o canto, leriam e cantariam os versos. Devido a
variedade
dos
temas
nas
poesias
de
Zé
Preto,
o
debate
seria
feito
64
gradativamente pelos alunos e professores. Como o aboio é uma poesia
cantada, a música e a poesia seriam trabalhadas como uma vivência na sala de
aula. Seriam ouvidos os cd’s de Manoelzinho Aboiador e Galego Aboiador e,
nessa comparação com os aboios de Zé Preto, poderiam ser observados estilos
diferentes e instrumentos musicais presentes nos aboios.
Durante a realização do projeto, foram realizadas várias reuniões
com os professores para a troca de experiências. Ficou decidido que, no dia
trinta de novembro, em forma de festividade, professores e alunos envolvidos
no projeto apresentariam o resultado do trabalho para toda comunidade
escolar. Diante do envolvimento da comunidade, decidiu-se também, pela
realização do I Festival de Aboio de São José dos Ramos, marcado para o dia
três de dezembro.
As reuniões com a comunidade (agora não apenas alunos e
professores) se dividiram em três momentos. No primeiro momento, as
escolas municipais assumiriam a realização de uma feira de cultura. Durante
essas reuniões surgiu a idéia da corrida de argolinhas e da corrida de jegue.
Eduardo, instrutor da banda marcial da Prefeitura de São José dos Ramos,
ficou responsável pela Alvorada do Aboio. A alvorada se faz com uma banda
musical ou fanfarra, no crepúsculo matutino, com a finalidade de acordar e
alertar as pessoas da cidade para algum evento que estará prestes a acontecer.
O segundo momento foi a reunião com os artistas populares:
cirandeiros, repentistas e artesãos. Todos queriam fazer uma demonstração
daquilo que sabiam. Ouvi o toque da ciranda de seu Massu, o repente de seu
Antonio, que fazia dupla com Manoel Xudu, e vi como eram feitas as bonecas
de pano de Dona Nilza, artesã da comunidade. Todos felizes, esperavam
ansiosos o dia do Festival.
O terceiro momento era dedicado aos encontros, quase semanais,
com os vaqueiros. Eles são práticos, rápidos e diretos, não suportam uma
reunião por mais de dez minutos. Em qualquer momento, queriam cantar
aboio. Posso afirmar que a programação foi orientada por eles, os verdadeiros
65
donos da festa. Também participaram desses encontros, João Cego, tocador de
Foto: Laura Maurício
viola, e outras pessoas da comunidade.
Ago st o de 2 005 , reuni ão co m os v aqu ei ros na Escola Estad u al .
Por duas vezes, passei nas salas de aula e pude perceber o
entusiasmo dos alunos, alguns deles orgulhavam-se em me dizer que eram
filhos de vaqueiros ou já atuavam nas vaquejadas da região. Saía das salas de
aula cheia de esperança para um outro encontro com os vaqueiros. Percebi
também que a comunidade se encontrava cada vez mais envolvida em todas as
reuniões que estavam acontecendo.
Em uma outra passagem pela escola, traçamos uma programação
para o dia trinta do mês de novembro, intitulada “Seu Zé Preto na Escola”.
Esta programação foi elaborada por professores e alunos, que insistiram para
que seu Zé Preto entrasse na escola acompanhado da família. Também foram
os alunos e professores que escolheram as músicas e a coreografia.
Foto: Laura Maurício
66
Se t e mb ro d e 2005 , a luno s a s sist em a ula s sob re o aboi o .
A Secretaria Municipal de Educação de São José apoiou os
alunos através dos meios de comunicação, cedendo duas chamadas por dia na
Rádio Cultura de Guarabira. Alguns políticos da cidade patrocinaram o
Foto: Laura Maurício
mesmo evento na Rádio FM de Itabaiana.
Outub ro d e 2005 , segund a reunião co m a Se cretá ri a de Educ aç ão do Mun i cí pio e
a s s e s so re s
67
3.2 Seu Zé Preto na Escola
A
comunidade
escolar
dos
três
turnos
esteve
presente
à
solenidade, além de autoridades locais e outras pessoas da cidade. O ginásio
da Escola Estadual Jocelyn Veloso Borges estava iluminado e festivo.
Recebia seu Zé Preto acompanhado da família, ao som da música “Meu
vaqueiro, meu peão” 6, da banda de forró Mastruz com Leite. As palmas
vibraram, o alunado gritava e recepcionava o vaqueiro, enquanto os fogos
estrondavam no ar.
Logo após a entrada da família de Zé Preto, entraram dois alunos,
filhos de vaqueiros, e duas crianças pequenas, netos de vaqueiros, vestidos de
gibão, mostrando a cultura viva através das gerações.
Seu Zé Preto, sentado, vestido de camisa azul, observava tudo,
sem escutar tão bem as homenagens que lhes eram dirigidas, pois a idade já
lhe diminuíra a audição. Mas, vez por outra, as lágrimas desciam e eram
enxugadas rapidamente por um lenço tirado do bolso.
Pronunciaram-se os professores Leo, Alba e Olga. O professor
Leo agradeceu a escolha da cidade para o desenvolvimento do projeto e,
naquele momento, enfatizou que “o aboio” envolveu todas as escolas do
município. Já a Profª. Alba disse que o projeto valorizou a cultura da cidade,
comprovando que foi trabalhado e bem aceito na comunidade escolar. E
terminou afirmando: “Fizemos o trabalho e queremos dar continuidade”.
Olga, professora de Artes, sentia-se honrada em trabalhar o aboio
junto aos alunos e comentou: “O aboio na sala de aula foi uma experiência
fantástica. Juntamos os alunos e lemos as poesias de Seu Zé Preto. Quantos
questionamentos!. Pois até ali só líamos Manuel Bandeira, Carlos Drummond,
etc. Curiosos e surpresos os alunos não sabiam que as poesias de Seu Zé Preto
tinham importância, a ponto de serem levadas para a sala de aula. Como
professora de Artes, cantei o aboio com eles. Foi muito animado! Alguns
6
A música “Meu vaqueiro, meu peão”, foi escolhida pelos alunos da escola.
68
alunos se identificam imediatamente dizendo assim: “Eu sei cantar aboio, pois
meu pai é vaqueiro”. E assim cantamos todos os versos de Seu Zé Preto e,
numa sexta feira, assistimos ao filme, onde estava a família dos aboiadores”.
Estava presente, também, o Padre João Isidro, vigário geral da
região, recitando versos de Amazan e mostrando seu entrosamento no seio da
cultura, pois celebraria a Missa do Vaqueiro no prazo de três dias.
Alguns alunos criaram versos de aboio e alguns deles aprenderam
com os pais, na própria família. A filha de Seu Zé Preto, Marinês,
homenageou os vaqueiros mortos na região e o próprio pai, embora ele não
goste de mulher aboiadora. Para Zé Preto, “aboio quem canta é vaqueiro”.
Vejamos a homenagem feita por ela.
Vou falar de dois vaqueiro
Amigo preste atenção
São dois vaqueiro valente
Da fazenda Conceição
Que tira leite de vaca
E pega touro de mão.
Ôi...
Vou falar de dois vaqueiros
Digo com muita confiança
Seu Chico e Seu Júlio
Pra mim de grande importância
Na fazenda Conceição
Eles são os vaqueiro
Trabalha todos os dias
Tirando leite bem cedo
Depois sai a campear
Com bravura e sem medo
Ôi...
Fiz esta homenagem
Com muita dedicação
Pra os dois vaqueiro valente
Da fazenda Conceição
Chico Brito e Júlio Grande
Vaqueiro da região.
Ôi...
69
Pra todos que estão presente
Faço uma homenage
Aquele que já se foi
Está na eternidade
Saudando a Biu vaqueiro
Ofereço esta homenage
Ôi...
Para todos os vaqueiro
Que vive na região
Dedico essa homenage
Que fiz com muita emoção
Finalizo parabenizando
Os vaqueiro da região.
Ôi...
Escrevi essa toada
Com muita dedicação
Ao senhor Seu Zé Preto
Que morava em Riachão
Filhos, esposa e netos
E um aperto de mão
Ôi...
Logo depois, um aluno do ensino médio, Adriano, homenageou
Seu Zé Preto cantando:
Vou contar uma história
De um vaqueiro afamado
Foi fazendeiro, pecuarista
Grande criador de cavalo
Foi campeão de vaquejada
E hoje vive aposentado
Ôi...
Esse vaqueiro afamado
Dizer seu nome nem é preciso
Quando corria em vaquejada
Ganhou palma, troféu e sorriso
Eu falo de Seu Zé Preto
Da fazenda Riachão
Ôi...
Nunca levou prejuízo
Quando corria em mourão
De quase todo o Nordeste
Foi o melhor campeão
Ao lado de Zé Val
Seu filho do coração
70
Pio Chaves, advogado da cidade, leu um breve histórico da vida
de Zé Preto e como curiosidade acrescentou: “Por que o nome Zé Preto?
Trabalhando na Angidiroba, fazenda localizada entre Alagoa Grande e Juarez
Távora, existiam dois vaqueiros chamados Zé, nada mais popular e paraibano.
Observando a cor da pele dos vaqueiros, o fazendeiro assim os batizou: Zé
Preto e Zé Branco. Zé Preto teve vinte e um filhos, oito da primeira esposa,
D. Rita Calixto, dos quais cinco estão vivos, e treze da segunda esposa, D.
Cecília de Farias Rodrigues (D. Ciça), dos quais oito estão vivos. Tem trinta
e um netos e onze bisnetos”.
Logo depois da homenagem do advogado, foi cedido o espaço aos
aboiadores, que felizes e entusiasmados começaram a cantar.
Zé Preto
Ô boi...
Eu hoje vou fazer verso
Aqui é a primeira vez
Qualquer coisa que eu errar
Vão descuipando vôcei
Na poesia matuta
Pouca lição decorei
Eh...
De ler não conheço o ó
Pruquê não estudei não
Trabalhar como cativo
Foi a minha tradição
Meu colégio foi o mato
E a farda foi o gibão
Êi...
Eu nunca fui engenheiro
Mas tombém não fui carreiro
Eu fui poeta e vaqueiro
Das festa de vaquejada
Êi...
Zé Valter
Eu vou tirar os meus verso
Porque eu sou aboiador
Eu lembro de Júlio Grande
É vaqueiro açoitador
Lembrando de Biu vaqueiro
Que a morte lhe levou
Êi...
71
Eu vou fazer esse verso
Também faço uma canção
Sou filho do véi Zé Preto
Que era o rei do mourão
Eu lembro agora dum amigo
Que se chama Salomão
Êi...
Eu vou tirar os meus verso
Porque eu sou a fera do gado
Eu pego boi véi ligeiro
Só faço verso atestado
Pego um boi, amanso um burro
Bebo, fumo, pesco e caço.
Êi...
Severo
Boa Noite povo amigo
Da terra boa e de fé
para o povo dessa cidade
Home, menino e mulé
E dou agradecimento
Ao povo de São José.
Êi...
Na terça-feira passada
Leto veio me visitar
Perguntou:
pai, as cosas como é que vai?
Me diga como é que tá?
Aí não me controlei
E comecei a chorar
Êi...
Pode ser muita tristeza
Para um pedaço de vida
Tão novinho que ele morreu
Meu peito só tem ferida
Trouxe por recordação
Que vocês vão me ajudar....
Êi...
Eu faço verso na hora
Com prazer e alegria
Me dispeço de vocêi
Adeus até outro dia
Que tou perto do povão
E perto da minha família
72
Severo, canta o tempo todo a dor da perda do filho, caído de um
cavalo e com morte instantânea, no segundo semestre de dois mil e cinco.
Wesley, neto de Zé Preto, com nove anos acompanhou todo o
projeto junto aos vaqueiros adultos. Pontual e atencioso às reuniões dos
vaqueiros, em nenhum momento tirava o chapéu de couro. Naquela noite,
entusiasmou o público, cantando versos de safadeza e os alunos o aplaudiram
de pé.
Wesley
Eu sempre me alimentei
Com o côco de carnaúba
Mas o pé cresceu demais
Não tem ninguém que assuba
Com vara ninguém alcança
Com pedra ninguém derruba
Ôi...
Menina me dá um beijo
Só num quero do pescoço
Quero do bico do peito
Do lugar que não tem osso
Pra quando eu ficar velho
Me lembrar que já foi moço
Ôi...
Meu galinho de campina
Meu xexéu de bananeira
Tou de munheca pelada
De puxar boi na porteira
E tou de biquinho doce
De beijar mulé solteira
Ôi...
Menina casa comigo
Que tu num morre de fome
Lá em casa tem uma pinta
Mamãe mata ela e tu come
De dia tu come a pinta
E de noite a pinta te come
Ôi...
Foto: Augusto Pessoa
73
No v e mb ro d e 2005 , We sl ey condu zindo al guma s re ses.
Depois de todos os vaqueiros terem cantado, um grupo imenso de
alunos fez uma coreografia com a música: “O xote das Meninas”, de Luiz
Gonzaga. Finalmente, a Diretora Geral da Escola, Profª. Vanda, saudou todos
os vaqueiros presentes, inclusive o pai dela, e, ao mesmo tempo, convidou a
todos para o Primeiro Festival de Aboio daquela cidade, que aconteceria no
dia três de dezembro do ano em curso.
Como vimos, a escola foi o espaço de socialização do aboio,
poesia esta presente na vida dos alunos, embora a escola estivesse distante
desta experiência. Repetidas leituras cantadas estimulavam nos alunos o
prazer de ler.
A presença dos vaqueiros nas salas de aula serviu não somente
para cantar a poesia, mas para conscientizar os alunos de que são eles os
herdeiros dessa cultura e também esclarecer-lhes que a cultura não se reduz
apenas à aquisição de conhecimentos práticos, se assim fosse, Zé Preto e os
outros vaqueiros não teriam “voz” neste espaço escolar.
Os alunos já tinham experiência com o aboio na comunidade de
vaqueiros; a grande surpresa foi esse canto chegar à escola. O aluno Lorel, do
segundo ano do Ensino Médio, disse: “Eu nunca pensei que o aboio fosse
assunto de escola”.
74
3.3 O I Festival de Aboio de São José dos Ramos
A cidade de São José dos Ramos sofreu uma alteração na sua
rotina em função do I Festival de Aboio. As ruas trocaram o silêncio e a
calma pela passagem de carros e alguns caminhões transportando o material
para a montagem dos palcos, na Praça Noé Rodrigues de Lima e no campo,
local onde se realizaria a Missa do Vaqueiro.
Algumas pessoas circulavam pela praça, outras permaneciam nas
portas ou nas janelas das casas, enquanto os professores, alunos e comunidade
envolvida na organização da festa armavam as barracas. Havia uma variedade
muito
grande
de
barracas:
artesanato,
medicamentos
populares,
caseiros, plantas medicinais e ainda um espaço dedicado ao vaqueiro.
doces
Foi
montada uma casa de um vaqueiro, inclusive com um cavalo no terreiro.
Dois caminhões se dirigiam ao campo para montar a infraestrutura da celebração da missa. Na praça e no campo, os sons dos martelos
anunciavam a prontidão dos palcos para o festival que aconteceria no dia
seguinte.
Ninguém
dormiu
naquela
noite.
Fornecedores
e
visitantes
chegavam à Fazenda Campo Alegre para falar dos preparativos da festa e dos
últimos ajustes. Apareceram alguns vaqueiros ansiosos pelo amanhecer do
dia. Também para ouvir conversas, dar opiniões e compartilhar a alegria que
estavam sentido, afinal seriam eles os verdadeiros donos da festa.
Às quatro horas da manhã, nos dirigimos à praça para a Alvorada.
Foi o ponta pé inicial de um dia que vai ficar na memória daquela cidade.
Esperamos a banda se organizar em frente à Igreja de São José, até chegarem
os vaqueiros e se juntaram a ela. O regente dirigiu a música de abertura: Asa
Branca, de Luiz Gonzaga. O sol já iluminava o local com os primeiros raios,
quando Zé Preto cantou, em ritmo de Asa Branca:
75
Oi vida de gado, ei pasta boiada!
Oi minha gente eu estou bem animado
Para a festinha eu vim aqui para aboiar
Pode filmar um vaqueiro preparado
Que eu sou muito ligado e vim aqui para brincar
Foto: Augusto Pessoa
Porque Jesus Cristo quer
A gente vai chamar gado
Aqui de frente a Igreja
Nesse clima temperado
Eu sou o velho Zé Preto
nasci pra brincar com gado
Ôi...
Dez e mb ro d e 2005 , B and a Marci al d e São Jo sé e nto ando a Alvo rada
Os componentes da banda se puseram em marcha e, na segunda
parada, em frente à Prefeitura, Zé Preto cantou:
Em frente da prefeitura
Eu vou chamar o gado
Aqui no clima sadio
Nesse clima temperado
E a roupa do vaqueiro
É o gibão bem preparado
Ôi...
E Zé Val, filho de Zé Preto, prosseguiu:
76
Na frente da prefeitura
Agora vou aboiar
Tirar um verso bonito
Vendo o povo me olhar
Eu falo em Eduardo
Um amigo popular
Ôi...
A banda continuou o percurso e a luz dos fogos de artifícios
cruzava o céu de São José. A terceira parada aconteceu em frente ao
cemitério. O local parecia estranho aos acontecimentos do dia, mas esta
parada foi sugerida pelos vaqueiros. Eles disseram que os vaqueiros mortos
precisavam ser homenageados nesse dia, pois, só assim, a festa estaria
completa. Emocionados, cantaram:
O Cristo que é Pai dos pais
Eu sou um homem animado
Gosto de ler uma história
De um sujeito preparado
Tou perto do cemitério
Que Leto tá enterrado.
Severo
A morte mata o vaqueiro
Dá as costa e vai embora
Depois que matou o Leto
Eu sei que a morte chora
Escreveu o nome no livro
Pra não sair da memória.
Zé Val
Logo após o término da Alvorada, os vaqueiros se dirigiram para
o café da manhã que foi preparado para todos eles e doado por Aparecida
Gonçalves, médica e fazendeira da região.
Nas mediações da Fazenda Campo Alegre, aconteceria a Missa do
Vaqueiro, e foi pra lá que os vaqueiros começaram a se dirigir. A Missa é
uma celebração de desejos dos vaqueiros da região e se constitui como uma
das mais importantes expressões da religiosidade popular. Lembra o forte elo
entre música e religião, existente em muitas culturas. É um vínculo de
identidade do homem do campo, portanto a Missa do Vaqueiro, celebrada ao
ar livre, foi o ponto alto das celebrações religiosas do Festival.
Foto: Augusto Pessoa
77
De z emb ro de 2 005 , Mi ssa do Vaqu ei ro celeb rada p el o Pad re Jo ão Isid ro .
A Missa foi celebrada pelo Padre João Isidro, vigário geral da
região, e concelebrada pelo pároco Manoel Alves, padre da cidade. João
Isidro, identificado com a cultura popular, usou o chapéu de couro e o gibão.
A abertura da Missa se deu com a condução da imagem de Nossa Senhora
Aparecida que foi entregue por alguns alunos da Escola Estadual ao
celebrante, ao som da música Romaria, de Renato Teixeira.
Tocadores
de
viola,
repentistas
e
vaqueiros
da
região
participaram ativamente da Missa, a exemplo de João Cego, que, cantando em
versos “Já cansei de tanto pecar”, conduzia as pessoas à reflexão e ao
arrependimento:
Já tou cansado de viver tanto pecado
Aqui no mundo tão desobediente
Sentindo o mal do pecado me matando
Este veneno é a malícia da serpente.
Sendo assim não adianta eu pecar
Porque o pecado é quem mata vida
Vou viver mais Jesus e vou amar
Ele é a luz, o caminho e a vida.
Do pecado só recebo de vantagem
A falsidade e também a injustiça
Vou amar meu Jesus com coragem.
78
“Deus se manifesta em nossa cultura para dizer que está no meio
de nós”, falou o padre Manoel, e o Pe. João Isidro “aboiou” o trecho do
Evangelho que se refere à anunciação do anjo à Maria. Uma das estrofes
cantadas foi essa:
Maria então respondeu:
Sou a serva do Senhor
Que em mim tudo se faça
Com muita paz e amor
E o anjo ouvindo isto
Pro seio de Deus voltou.
Oi...
Durante o ofertório, os presentes dos vaqueiros foram feitos em
aboio. Todas as peças do vestuário, as dores, a luta e o sofrimento foram
oferecidas ao santo em quem cada um acreditava. Vejamos o que cantou Zé
Preto:
Oi vida de gado, oi pasta aboiada
Tô aqui para aboiar
Seja o que Deus quiser
Aboiar para os ouvintes
Homem, menino e mulé
Os vaqueiros vestiu-se todo
Pego o meu chapéu de couro
Dô de oferta a São José
Ôi...
Biu Gordo e Antônio, repentistas da região, disputaram o tema da
Paz. Após a Eucaristia, o padre João benzeu os vaqueiros e os cavalos.
Terminada a missa, os vaqueiros acompanharam um carro de som
que traçou um percurso ao redor da cidade. Durante a cavalgada, vaqueiros
aboiadores cantavam aboios até chegada na praça local onde o Festival
aconteceu.
Violeiros e vaqueiros se revezavam no palco. Aboiadores de São
José e das cidades circunvizinhas cantaram aboios, a partir de temáticas as
mais variadas. Os repentistas, inspirados no gosto do povo, homenageavam
os vaqueiros que ali se encontravam.
79
Próximo ao encerramento do Festival, Zé Preto recebeu das mãos
do Secretário de Estado, Prof. Neroaldo Pontes, uma fotografia em que
aparece vestido de gibão, montado no seu cavalo Cravo Branco. E, nesse
instante, Zé Preto chorou não somente de emoção, mas também por ter plena
consciência do valor do seu trabalho, até então desvalorizado, sem nunca ter
sido reconhecido como uma profissão.
O evento entrou oficialmente no calendário do município, e o
resultado que podemos constatar foi o envolvimento da comunidade, o
reconhecimento da cultura e a valorização da experiência dos artistas e
artesãos da cidade e regiões vizinhas.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
81
Para concluir este trabalho, precisei muitas vezes compreender a
marcha “como um velho boiadeiro levando a boiada”. Em contato com a
comunidade, ao longo do trabalho, pude, junto com os professores e alunos
das escolas envolvidas, trazer para o “centro” muitos mestres que estavam
escondidos e envergonhados de expor o que sabiam fazer, pois achavam “que
tinha caído da moda”.
A idéia da Feira de Cultura e o I Festival de Aboio foi um viver
de talentos, de vozes cantando, de violas afinando, de mãos trabalhando; foi
também uma chuva de desabafos e desafios. A roupagem de couro dos
vaqueiros se tornava visível pela cidade e também o canto espontâneo
desafiava as rimas.
Em virtude do I Festival de Aboio, os meios de comunicação de
massa se fizeram presentes em São José dos Ramos durante todo o dia três de
dezembro de 2005. A TV Tambaú, a TV Universitária, jornalistas do Correio
da Paraíba, O Norte e da União, além da Rádio FM de Itabaiana deram
cobertura ao evento. Recentemente, a TV Cultura produziu uma matéria sobre
o Festival, em parceria com a TV Universitária que ainda será exibida em
rede nacional.
Enfim, durante a realização da pesquisa, surgiu a idéia de fundar
uma ONG – Casa da Cultura de São José dos Ramos, que se concretizará no
próximo mês de julho. O II Festival de Aboio, com data marcada para os dias
dois e três de dezembro de 2006 próximo, será uma realização da comunidade,
82
dando continuidade ao Projeto desenvolvido naquela cidade. A troca de
experiências comunitárias trouxe, no coração, a força do canto dos vaqueiros
aboiadores e as alegrias e dores do povo de São José dos Ramos.
83
ANEXOS
84
ANEXO A – JORNAL O NORTE
85
ANEXO B - JORNAL CORREIO DA PARAÍBA
João Pessoa, sábado 3 de dezembro de 2005
86
ANEXO C – REVISTA DE TURISMO ANEXA AO JORNAL A UNIÃO DO DIA 23
DE DEZEMBRO DE 2005
87
88
89
90
91
ANEXO D – LETRA DA MÚSICA – TOCANDO EM FRENTE
AUTORES: ALMIR SATER E RENATO TEIXEIRA
92
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