0 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM LETRAS ABOIO, o canto que encanta: uma experiência com a poesia popular cantada na escola MARIA LAURA DE ALBUQUERQUE MAURÍCIO JOÃO PESSOA 2006 1 MARIA LAURA DE ALBUQUERQUE MAURÍCIO ABOIO, o canto que encanta: uma experiência com a poesia popular cantada na escola Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós–Graduação em Letras, área de concentração em Linguagem e Ensino, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador (a): Ana Cristina Marinho Lúcio JOÃO PESSOA 2006 2 MARIA LAURA DE ALBUQUERQUE MAURÍCIO ABOIO, o canto que encanta: uma experiência com a poesia popular cantada na escola BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Profª Drª Ana Cristina Marinho Lúcio (Orientadora) __________________________________________________ Profº Dr. José Hélder Pinheiro Alves (PPGL – UFPB) _________________________________________________ Profº Dr. Marcos Ayala (PPGS – UFPB) _______________________________________ Profº Drº Diógenes André Vieira Maciel (PPGL – UFPB) 3 A João Maurício, meu pai, e Maura, minha mãe, e a tia Maurília (In Memorian). Aos heróis de São José dos Ramos, os vaqueiros aboiadores. 4 AGRADECIMENTOS Aos irmãos, filhos e netos pela força e presença constante; À orientação e amizade da Profª Ana Marinho; À Prefeitura Municipal de São José dos Ramos; À Drª Aparecida, pela amizade, paciência e apoio durante toda a pesquisa até a realização do I Festival de Aboio; A todos os professores que se envolveram neste projeto; Aos amigos e professores do Curso de Pós – Graduação em Letras, pelo apoio prestado durante a realização do trabalho. 5 RESUMO Esse trabalho é resultado de uma pesquisa sobre o aboio na localidade São José dos Ramos, Zona da Mata da Paraíba. Procurou-se evidenciar a experiência e os depoimentos dos aboiadores da região, em especial, o relato de vida, em forma de canto, do vaqueiro Zé Preto. A pesquisa também resultou num trabalho educativo envolvendo professores e alunos de uma escola estadual de ensino fundamental e médio, além da comunidade de artistas e artesãos da cidade. Palavras – chaves: literatura popular, aboio, ensino de literatura. 6 RESUMEN Este trabajo es resultado de una investigación sobre el aboyo en la localidad São José dos Ramos, Zona de la Mata de Paraíba. Se buscó evidenciar la experiencia y los relatos de los aboyaderos de la región, principalmente, el relato de vida en forma de canto, del vaquero Zé Preto. La investigación también resultó en un trabajo educativo envolviendo profesores y alumnos de una escuela estatal de enseñanza fundamental y media además de la comunidad de artista y artesanos de la ciudad. Palabras llaves: Literatura popular, aboyo, enseñanza de literatura. 7 SUMÁRIO CAPÍTULO I ABOIO: O CANTO QUE ENCANTA 1.1 Aboio: em busca de uma definição 1.2 O aboio fora do contexto de trabalho CAPÍTULO II ZÉ PRETO, UM ABOIADOR DA TRADIÇÃO 2.1 O aboio em São José dos Ramos 2.2 Seu Zé Preto canta a sua história 2.3 A história de vida em versos: alguns comentários CAPÍTULO III O ABOIO NA ESCOLA 3.1 O aboio na sala de aula e a visibilidade da cultura do vaqueiro no município de São José dos Ramos 3.2 Seu Zé Preto na Escola 3.3 O I Festival de Aboio de São José dos Ramos CONSIDERAÇÕES FINAIS ANEXOS BIBLIOGRAFIA 8 INTRODUÇÃO 9 Criada em fazenda, o aboio foi quase o meu canto de ninar. Nasci e cresci ouvindo aboio dos vaqueiros que paravam na casa de meu pai, que sempre lhes oferecia uma cachaça. Achava bonito aqueles grupos de homens encourados e montados a cavalo que desciam a ladeira da fazenda, no final da tarde, trazendo o gado para o curral. Vivi e convivi nesse mundo, o que fez da minha pesquisa uma experiência prazerosa e significativa. Situado em uma linha de estudos sobre a cultura popular, este trabalho prioriza o aboio e inclui a descrição do vaqueiro aboiador, a partir de entrevistas e depoimentos pessoais de vida. Para a realização desta dissertação, foi feita uma pesquisa de campo na cidade de São José dos Ramos, durante os anos de 2004, 2005 a 2006. Vídeos, dvd’s e gravadores foram usados para os registros. As transcrições foram feitas sem alterar o conteúdo das entrevistas, respeitandose a marca da oralidade e a fala popular. Desse modo, no Capítulo I, traçamos um percurso através dos conceitos de alguns autores, como Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga e Câmara Cascudo, que buscaram definir o aboio. Num segundo momento, buscamos oferecer algumas informações teóricas para explicar o aboio, quando deslocado do contexto do trabalho. No Capítulo II, são feitas a apresentação e a descrição do vaqueiro aboiador, a partir dos depoimentos pessoais de vida dos aboiadores Zé Preto e Leonel, de São José dos Ramos, e a relação entre literatura popular 10 oral e as experiências dos aboiadores. Também consta uma espécie de antologia comentada de versos com temas bastante variados. No Capítulo III, o aboio chega à escola, no sentido de valorizar a poesia de cantos não canônicos e fazer com que o aluno se identifique com a sua cultura e, para que aqueles que a desconhecem, possam vivenciá-la. 11 CAPÍTULO I F o t o : L a u r a M a u r íc i o ABOIO: O CANTO QUE ENCANTA 12 1.1 Aboio: em busca de uma definição Faremos, neste capítulo, um percurso através dos conceitos de alguns autores que buscaram definir o aboio, esse canto de trabalho social, lúdico e lírico. Mário de Andrade, em visita ao Nordeste, na década de vinte, realizou várias pesquisas e coletâneas sobre a cultura popular. Suas pesquisas contribuíram de forma expressiva para os estudos sobre essa cultura, enfocando as práticas culturais populares, tornando-as mais vivas e presentes em nossa identidade nacional. Em 1938, Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, enviou a Missão de Pesquisas Folclóricas para alguns estados do Norte e Nordeste brasileiros. Chefiada por Luiz Saia (1938), a Missão de Pesquisas Folclóricas visitou os estados de Pernambuco, Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará. No sertão da Paraíba, a Missão visitou a Fazenda São José, no município de Patos. Lá os pesquisadores observaram o trabalho de três vaqueiros reunindo o gado e “praticando a vaquejada”. Também gravaram alguns aboios. Entre os dias dois a treze de maio de mil novecentos e trinta e oito, a Missão visitou a zona do Brejo, permanecendo por alguns dias em Itabaiana. Nessa cidade, Luiz Saia seguiu a orientação de Ademar Vidal, escritor paraibano, para localizar um aboiador afamado no município de Pilar. Com a ajuda do prefeito de Itabaiana, Antonio Santiago, trouxeram de Pilar três vaqueiros e gravaram oito melodias de aboio. Entre esses aboios, Oneyda Alvarenga registrou a seguinte partitura musical, (Música Popular BrasileiraV - Cantos de Trabalho): (p.263,264). 13 D.P. M ., di sc o nº 84 , fonog rama nº 562 . Transc rito po r Ca ma rgo Gu a rnie ri . Col hido e m It abai an a (Pa raíb a ), em 3 -5 -1938 , p ela M issão de Pe squi sas Fol cló ri cas do Dep a rt amen to d e C ultu ra d e São Paulo . Além desses aboios registrados por Mário de Andrade e pela Missão de Pesquisas Folclóricas, encontramos, no Cancioneiro da Paraíba (1993), alguns aboios (242) gravados por Maria de Fátima Batista e cantados por Alaíde Cordeiro Barbosa, em Cabaceiras, no dia primeiro de abril de mil novecentos e oitenta e três (p. 329). Nesse livro, o aboio é cantado por uma voz feminina reverenciando seu Mané. 14 Eu gosto de aboiar E tenho prazer de ser vaqueiro Pra falar em seu Mané Eu aboio o ano inteiro Aceite os parabéns De toda família Cordeiro Eh boi a ei. (p. 329, nº 6). As mulheres que cantam aboio geralmente praticam essa arte em casa, ou quando são raramente chamadas para alguma apresentação. Pude constatar esse fato em São José dos Ramos, durante a minha pesquisa. Marinês, filha do aboiador Zé Preto, homenageou o pai na noite em que houve a festa do aboio, na Escola Estadual Jocelyn Veloso Borges. Ela cantou: Escrevi essa toada Com muita dedicação Ao Senhor seu Zé Preto Que morava em Riachão Filhos, esposa e netos E um aperto de mão Ôi... (30/11/05) No dia do Festival de Aboio, realizado no município de São José, em 03 de dezembro de 2005, a professora Maria das Neves Araújo (Lila), cantou louvando a realização do projeto naquela cidade. Vejamos algumas estrofes: Foi na casa de Jessé Que o projeto iniciou Laura plantou a semente E a mesma germinou E hoje três de dezembro Ele se realizou Ôi... Seu Zé Preto, eu agradeço Por seu serviço prestado Hoje aqui em São José O senhor está gravado Os seus versos e o gibão Já ficaram registrados Ôi... (3/12/05) 15 No percurso da pesquisa, conversei com os vaqueiros mais idosos de São José dos Ramos e perguntei como eles definiam o aboio. Seu Leonel José dos Santos, oitenta e seis anos, afirma o seguinte: “É o canto que o gado entende, que o gado ouve, é um canto penoso, boniiito... O vaqueiro cantando uns três aboio, mermo o gado tando longe, eles vêm. Eu vou cantar um aboio que eu fazia: Vaqueiro que é vaqueiro Amansa o gado e quer bem Todo dia vai ao campo E conta a boiada que tem Quem não gostar de vaqueiro Não gosta de mais ninguém Oh! Festa de gado! Êh, boi!” E acrescentou ainda: “Ôto dia venha aqui pra eu cantar aboio bonito; hoje, só tem besteira. A idade tá crescendo e tenho que ver devagazinho.” (02/11/05) Zé Preto, vaqueiro com quase oitenta anos, define o aboio da seguinte forma: “É a música de chamar o gado, é coisa muito véia, muito antigo. É da antiguidade”. (27/01/05). No final da fala do vaqueiro Leonel, e no canto de Zé Preto transcrito a seguir, percebemos que a memória é a essência do aboio. Aí foi onde eu fui Na terra de Dona Aurora Eu vaquejei nove ano Vou lhe contar a história Hoje não vaquejo mai Pruquê a idade num dá Tem me caído a memória. Êh... (09/07/05) Na memória, acumulam-se as experiências de vida. São imagens ou lembranças reunidas através dos tempos, condicionadas à vida orgânica do indivíduo. 16 Em As Melodias do Boi, Mário de Andrade define o aboio como “um canto melancólico com que os sertanejos do Nordeste ajudam a marcha das boiadas. É antes uma vocalização oscilante entre as vogais A e Ô. A expressão de impulso final “Oh dá!” também muda para “Êh, boi!”. (1987, p. 54). É uma voz melancólica, lírica, cantada não somente pelos “sertanejos do Nordeste”, como definiu Mário de Andrade, mas também por vaqueiros aboiadores de outras mesorregiões, a exemplo de São José dos Ramos, localizada na Zona da Mata. Em seu livro Dicionário Musical Brasileiro, Mário de Andrade conceitua o verbo aboiar: (V.I; S. m). O ma rro eiro (v aqu ei ro ) conduzindo o g ado n as est radas , ou mov endo co m el e nas fa zend as, tem po r c ost u me c ant a r. Ento a u ma a rab e sco , ge ral m ent e li v re d e fo rma e st rófi ca, destitu ído de pal av ras as mais d as ve zes, si mple s v ocali zaçõe s , in terc ept ad as qu an do sen ão po r p alav ras int erje ctiv as, “b oi êh boi ” , boi at o , et c. O ato d e canta r assi m c hama de aboi a r. Ao c anto ch a ma de ab oio . (1982 – 84 . p . 1 -2 ). O termo marroeiro, usado por Mário de Andrade, reporta ao tempo em que os vaqueiros curavam as bicheiras do gado, usando o mercúrio cromo, a creolina e a reza. Quanto à reza, perguntei a Zé Preto se ele conhecia alguma. Ele pensou por alguns minutos e me chamou para a frente da sua oficina de arreios. Zé Preto dirigiu-se ao mato, trazendo na mão duas folhas verdes. Depois, ele simulou a marca dos rastros de um animal e colocou uma folha no rastro dianteiro e outra folha no rastro traseiro, cobrindo-as com terra. Entre os quatro rastros fez uma cruz e falou com segurança: “Num fica um bicho, cai tudinho”. Os vaqueiros foram sendo substituídos por veterinários, ao longo dos anos. Em algumas fazendas e sítios, permanece essa prática, a exemplo de São José, Pilar, Cajá e Curimataú. O termo “marroeiro” foi também usado por Patativa do Assaré, em seu livro Cante lá que eu canto cá. 17 O dote de sê vaquêro, Resorvido marruêro, Querido dos fazendêro Do sertão do Ceará Não perciso maiô gozo, Sou sertanejo ditoso, O meu aboio sodoso Faz quem tem amô chorá (1980: p. 216) Retomando o conceito do verbo aboiar e do aboio, Mário de Andrade não se refere ao aboio como um canto de trabalho, mas o define num plano musical, ou seja, as manifestações desse canto sob a influência das emoções, com gritos interfectivos, ora servindo para acalmar os animais, ora servindo para chamá-los. Embora com significados semelhantes, ele distingue o verbo aboiar do aboio. O primeiro é destituído de palavras com simples vocalizações, como: “boi”, “êh boi”; e o outro é o canto constituído de estrofes e toadas livres. O vaqueiro Zé Preto e outros da região usam vocalizações ao final de cada estrofe cantada e fazem a “chamada” do gado, em princípio apenas musical, utilizando interjectivas, melodias sem verso. Oneyda Alvarenga, em seu livro Música Popular Brasileira (p. 259), assinala que, no Brasil, existe uma grande variedade de cantos de trabalho ligados às atividades urbanas e rurais. Atualmente, a maioria desses cantos está na memória das pessoas que conviveram com os trabalhos de pilar café, bater feijão, carregar piano (costume urbano mais comum em Recife). Em alguns casos, a modernização no campo tem sido responsável pelo desaparecimento de alguns desses cantos de trabalho. A autora afirma que “os aboios constituem um dos mais importantes grupos dos nossos cantos de trabalho rurais”. E acrescenta: “Com eles, os vaqueiros, especialmente do Nordeste e Norte, conduzem as boiadas. Dizem que não há gado bravio que, ouvindo-os, não se acalme e siga o aboiador”. (1938: p. 263). 18 A pesquisadora Oneyda Alvarenga define o aboio como: “lentas melodias improvisadas, que se estendem infinitas e melancólicas” (p. 263), “entoam-se quase exclusivamente sobre as vogais A e O.” (p. 263). Durante a minha pesquisa, pude observar que, em algumas situações, os aboiadores fazem improviso, a exemplo dos aboiadores Zé Preto e Severo, que tematizam a morte de uma noiva e de um filho. Vejamos os aboios: Fui noivo com uma menina Bonita chamada Lena Parecia uma açucena Numa manhã orvalhada A morte tomou chegada Matou minha jovem bela E eu igualmente aquela Não arrumo nesta data Nem a poliça me empata D’eu chorar na cova dela Êh... (Zé Preto, 14/03/04) Depois que Leto morreu Num tem mais animação Eu fico num canto triste Chega dói meu coração Hoje só resta a lembrança De Leto, o rei do mourão Êh... (Severo, 14/10/05) Analisando o canto dos aboiadores de São José, podemos afirmar que é entoado numa linha melódica livre, conforme a fantasia ou a realidade do vaqueiro. É feito por interjeições que têm a função de disciplinar o gado no mesmo passo, na mesma cadência. Mas há também os aboios cantados em versos livres. Durante uma conversa com Seu Zé Preto, perguntei como era a situação do aboio na atualidade: “O aboio hoje vai de todo jeito. Fái aquele disco, aquela fita, e sai vendendo. O aboio fái do jeito que quiser. Tudo filmado, né?” Perguntei-lhe, ainda, qual era a preferência do vaqueiro, e ele me respondeu: “antigamente era bom (chora), aí chegava o patrão, tempo 19 seeeco, aí ele dizia: “faça uma toadazinha de São João pra eu ver”. Aí batendo a chuva... pá... pá...pá...pá. Eu vendo a chuva Me rescordo da boiada Da canjicada, da noite de São João Tomar pifão, dançar numa latada Com a morena perfumada E dano viva a São João. Quando é bem cedo Se amanhece arressacado Rebanha o gado na fazenda do patrão De todo lado só se vê chegar mulé Vamo balançar o gado Lá no parque João Duré. Todo vaqueiro leva sua moreninha Foi na garupa do cavalo de mourão Chegando lá vamo rolar boi no chão E a gente batendo paima Dando viva a São João. Quando é de noite Os vaqueiro chama as morena Que é pra novena lá na casa do patrão Solta balão, o fogo chega entoa Ó meu Deus que vida boa É de vaqueiro no sertão. Todo vaqueiro gosta de mulé bonita De vaquejada e de cavalo famoso Quando é jeitoso, no mundo se espalha a fama E aquela que lhe ama Chama pretinho de gostoso. 1 Os vaqueiros Leonel e Zé Preto criticam os aboios da atualidade. Para eles “são aboios feitos de todo jeito”. Outra definição deste canto se encontra no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo: “C anto se m pal av ras, ma rcado exc lusiv a mente e m vog ais, ento ado p el os v aquei ro s qu an do condu ze m o g ado ” . (1980 , p . 2 -3 ). “O aboio não é di v erti m en to . É coi s a sé ri a, v elh íssi ma, re sp eita da ”. (1980 , p .3 ). 1 Toada cantada no ritmo de Asa Branca, música de Luiz Gonzaga. 20 Há uma imprecisão no conceito do folclorista, pois, por meio da nossa pesquisa, percebemos que este canto “sem palavras” surge no momento de chamar o gado, mas há também os versos cantados de improviso, criados livremente pelos vaqueiros nas mais variadas situações. A confirmação da antiguidade desse canto pastoril também é citada pelo vaqueiro Zé Preto. “É a música de chamar o gado, é coisa muito véia, muito antigo. É da antiguidade”. Como podemos perceber, o conceito do aboio converge para um ponto comum, mesmo na opinião de diversos autores, repetem-se palavras como: canto melancólico, monótono, antigo e triste. O aboio é um canto improvisado pelos vaqueiros. Quando estão no campo, sente-se que há uma conexão com a natureza e o gado. É um canto longo e melancólico, cuja tristeza emana da alma do vaqueiro, principalmente no cair da tarde, quando traz o gado de volta ao curral. O poeta Zé da Luz escreveu um poema intitulado “Tributino – o vaquêro”, no qual confirma o aboio melancólico do vaqueiro, ao cair da tarde: Se no rompê da arvoráda, Na frente de uma boiáda Éra uma canto de aligría, Quando a tarde discambáva Éra a prece qui eu rezáva, Na hóra d’Ave María! E o meu abóio se perdía Pêlas quebrada das serra, Cumo um saluço da terra, Chorando a morte do dia!... Quando o canto sai do seu lugar, ou seja, do campo, ele assume outras variações a serem comentadas no próximo tópico. 21 1.2 O aboio fora do contexto de trabalho A princípio, o aboio é o canto poético do vaqueiro, ecoado pelos campos e também pelas estradas na condução do gado. Como canto de trabalho, ainda hoje, permanece no campo como cultura de resistência. Em São José dos Ramos, vaqueiros conduzem o gado de uma cidade a outra, de uma fazenda a outra com um percurso não muito longo. Durante a caminhada com o gado, cantam o aboio triste e melancólico. Cantando, conduzem a boiada em vários espaços geográficos: do brejo ao sertão. Nem sempre se conhece a letra, pois é um canto improvisado e, por isso, são raros os registros escritos. É um canto que encanta não só o homem, mas sobretudo o gado. O aboio toma uma linha melódica longa e só musical, quando os vaqueiros adentram a mata. É o que eles chamam de “chamada do gado”. Acompanhei a entrada de dois vaqueiros até o início da mata, em busca de três reses que tinham desaparecido da fazenda. O fazendeiro ordenou ao vaqueiro para encontrar as reses, caso contrário, estaria despedido. Aflito, o vaqueiro Toinho juntou-se a outros e foram para mata. O gado perdido ouve o canto do vaqueiro e começa a se aproximar. Só depois de três dias, eles chegaram com as reses, e pude observar o quanto a solidariedade é forte entre os vaqueiros. Raramente se vê um vaqueiro trabalhar com o gado sozinho; quando não estão em dupla, estão em grupo. São extremamente solidários, na dor, na alegria, nas festas, em qualquer momento. Também confiam um no outro, parecendo até que os sentimentos não são individuais e, sim, coletivos. O trabalho em busca das reses perdidas se faz de forma comunitária, ou seja, um canta aqui, outro ali, até que se obtenham resultados. Embora seja o aboio o canto de trabalho do vaqueiro, quando retirado do campo ele assume outras faces. Os versos ora adquirem um tom de crítica social, ora de safadeza ou religiosidade. A mulher e a morte são temáticas recorrentes. 22 Para termos uma visão concreta desta mudança, analisaremos o aboio a seguir, cantado por Jessé Araújo, vaqueiro da cidade de São José dos Ramos: A buceta é uma gruta De cabelo arrupiado Tem tempo que tá molhada Tem tempo que tá enxuta É o roçado da puta Descanso do vagabundo Três dedos abaixo do fundo Sempre só vive escorrendo. E pra gente que vem nascendo É a porteira do mundo. O vaqueiro Jessé faz uma paródia do aboio em linguagem alegre e grotesca, apropriando-se apenas da sua estrutura poética. As palavras buceta, gruta, puta, assumem características ligadas ao deboche, ao riso escrachado demonstrando o deslocamento do estilo original do aboio. É o que Bakhtin, no seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2002), pontua como rebaixamento da seriedade. Bakhtin, se referindo ao baixo material e corporal, presente na obra de Rabelais, afirma que: O re b aixa me nto é enfim o p rin cípio artí stico es s enci al do re al i s mo g rot esco: to d as a s cois a s sag r ad as e el ev ada s a í são r ei nte rp r etad as no pl ano mate r ial e c o rpo r al . (20 02 . p . 325 ) . É oportuno observar a relação entre o significado original da palavra grotesco, que para Bakhtin provém de “grotta” (gruta) e corresponde ao 1º verso do texto em análise: “A buceta é uma gruta”. Saindo desse contexto do riso, a religiosidade popular é algo muito forte na vida do vaqueiro. Alguns usam rezas embolsadas 2 para “fechar o corpo”, ou seja, livrá-los das cobras, das furadas de tocos, quando estão no campo. Segundo os vaqueiros, esse costume era também muito usado por Lampião e seu bando. Pude observar que a fé é voltada para os santos, de 2 Prática de costurar uma oração num pano e usar esse amuleto no bolso. 23 preferência padroeiros das cidades onde moram. Também acreditam nos santos de romaria, vão às procissões e gostam dessa prática. Os mais preferidos são: Nossa Senhora da Penha, São Sebastião, São Jorge e São Severino dos Ramos. Alguns vaqueiros não freqüentam a igreja, mas têm uma fé inabalável. Quem confirma isso é o vaqueiro Leonel. “Se não tiver fé não é vaqueiro pra ser o pastor do rebanho”. Revela que São Jorge é o santo que ele mais acredita, porque é cavaleiro e matou um dragão brabo. O corpo dos dragões lembra uma serpente corpulenta. Têm garras e asas laterais e costumam exalar baforadas de fogo pela boca e de fumaça pelas ventas. Essa imagem é conhecida de todos, do cavaleiro que luta contra o dragão e nos faz ver a origem da lenda criada sobre esse guerreiro bravo, habitante da lua, na crendice popular. Os vaqueiros nunca entram numa igreja sem tirar o chapéu. “É pra mostrar que estamo abaixo de Jesúi”, me disse Zé Preto. Cosmo, vaqueiro aboiador, de Campo Grande, município de Sapé, na Paraíba, prefere o aboio religioso. Vejamos o que ele canta: Eu agora vivo feliz E preste bem atenção Eu falo do padroeiro Da minha vida mais não Tou falando da Igreja É de São Sebastião 3 Êh... ôi... Lá tem um Livro Sagrado A padroeira também Chama Santa Terezinha Muito a ela eu quero bem Eu vou versar pra vocêi Todo mundo me quer bem Êh... ôi... Na cidade de Curimataú Tem um Cruzeiro Sagrado Uma pedra eu vi ali Hoje tem nela gravado Que o São Sebastião Tem poder e tá confirmado Ôi... (18/07/04) 3 São Sebastião é considerado o protetor contra a peste, a forme e a guerra. 24 Embora a fé seja uma temática vivenciada pelo vaqueiro, o heroísmo também é motivo de cantos centralizados na valentia, na coragem física e nas façanhas sobre-humanas. A seguir, teremos aboios desse gênero cantados por Zé Preto e Zé Valter. Brinco com touro valente Lembrando de tu menina Qualquer coisa de amor Que tu subé, tu me ensina Eu morro por ter respeito Outra coisa eu não aceito Que teus olho me domina Êi... Mai tou com setenta e sete Sou um gavião de aço De físico tou com vinte Para fazer o que faço Pego um boi, amanso um burro Farro, fumo, pesco e caço. Ôi... Zé Preto Vou tirar esses versos Sou um vaqueiro bem macho Eu vou dizer pra vocêi Pra fazer o qu’eu faço Pego um boi, amanso um burro Bebo, fumo, pesco e caço Êh... boi... Zé Valter Alguns desses heróis populares sentem-se ameaçados pelo declínio biológico da vida. Para Zé Preto, a velhice é algo angustiante e inaceitável. Cantando, ora imagina uma força física que não tem mais, ora assume a velhice como um trajeto para a morte. Ô dona eu digo à senhora Por que tenho que dizer Essa vida da gente A gente deve ter prazer Com saúde e mocidade Tudo se pode fazer 25 Mas é assim minha dona Posso não ter mais prazer A gente vai ficando velho É disso que eu vou lhe dizer Coisa boa é a mocidade Mái o jeito é ficar velho E ter o dia de morrer. A morte foi um dos temas mais cantados no segundo semestre de dois mil e cinco, em São José dos Ramos. Dois vaqueiros morreram acidentados, um de uma queda de cavalo e outro de choque elétrico. Nesse período, a dor da perda não ficou só nos familiares das vítimas, mas circulou nos corações dos vaqueiros da região. A manifestação dessa inquietude emocional nos vaqueiros associa-se à música, gerando aboios líricos, longos e melancólicos. Nesse contexto, os aboios são entoados com saudade e dor: Depois que Leto morreu Num tem mais animação Eu fico num canto triste Chega dói meu coração Hoje só resta a lembrança De Leto, rei do mourão Êi... Eu tenho raiva da morte Quando ela matar meu pai A gente mata e vai preso E a morte mata e não vai E se a morte comesse bola Rico não morria mái Ôi... (Severo) A idade avançada ainda não representa um obstáculo para Zé Preto, no que diz respeito às vaquejadas. Freqüentador assíduo de todas elas, na região, ele canta como era a vaquejada no passado e como é no presente. Vejamos: 26 A vaquejada da gente Era grande tradição Não é que nem tem hoje Com grande imperfeição Era fazer um pátio e correr Também no dia de São João. Coisa boa é aquele tempo Que a gente muito brincava Fazia aquela pista E nada ali ganhava Levava salva de paima E ali a música tocava. A vaquejada de hoje É coisa de admirar, Pois é casa de negoço Para os povo ganhar Quem for vaqueiro ganha Quem num ganha nada É pruquê num sabe ajeitar. A coisa hoje é pesada A faixa é a tradição É difícil ter cavalo Bom para mourão Pra botar o boi na faixa E num negar o passo não. A vaquejada é uma das festas mais populares e tradicionais do nordeste. É uma festa típica dos vaqueiros. Cresce a cada dia atraindo vaqueiros famosos que sabem segurar a cauda do animal, dando-lhe um forte puxão até o boi cair. No início do século passado, o curral servia de palco para a derrubada do boi. A partir da porteira, os vaqueiros marcavam de dez a quinze passos, para, nesse espaço, serem derrubados os novilhos. Aquele que derrubasse o bicho nos dez passos seria o melhor vaqueiro, com o melhor cavalo. Não existia, formalmente, o termo vaquejada. Na década de sessenta, no século XX, a vaquejada era uma festa com poucos vaqueiros e muitos amigos. Com o tempo e a experiência, os organizadores mudaram as regras da vaquejada, e esta começou a ter um caráter competitivo. Cresce a cada dia, atraindo vaqueiros amadores e vaqueiros profissionais. 27 Atualmente, as vaquejadas são grandes eventos populares, animadas por famosas bandas de música. O desenvolvimento das relações de mercado reestruturou a prática dessa cultura, trazendo o turista para a festa da derrubada e também para a compra dos produtos culturais. Esses produtos, expostos à venda nas vaquejadas, são comprados por pessoas de bom poder aquisitivo, e as pessoas que os produzem não são sequer vistas. “É a estratégia do mercado”, assunto abordado por Garcia Canclini, no seu livro Culturas Populares no Capitalismo (1982). O autor afirma que, nesse aspecto, “a cultura é tratada de modo semelhante à natureza: um espetáculo”. (1982: p. 11) Derrubar o boi no espaço demarcado garante ao vaqueiro o sucesso e altos prêmios. Há vaquejadas em que a premiação para o primeiro lugar é um carro; portanto, a competição e o desenvolvimento das relações capitalistas fizeram dessa expressão cultural um grande negócio. A idéia da vaquejada começou a existir com as brincadeiras de argola. A corrida de argolinha é dividida em dois partidos: o encarnado (vermelho) e o azul. Uma trave é montada e, em cada extremidade, são penduradas duas argolas pequenas. Os cavaleiros partem em dupla. Classificase para a fase eliminatória aquele que conseguir retirar a argola com uma pequena vara, por três vezes consecutivas. Se errar uma só vez, o candidato é excluído. As brincadeiras de argolinha são realizadas com bastante regularidade, na cidade de São José dos Ramos, seguindo o mesmo processo anteriormente descrito. Como podemos perceber, o aboio está presente em manifestações festivas ou momentos de melancolia, apresentando uma variedade de temas, conforme o motivo que estimula o vaqueiro a aboiar. 28 CAPÍTULO II Foto: Augusto Pessoa ZÉ PRETO, UM ABOIADOR DA TRADIÇÃO 29 2.1 O Aboio em São José dos Ramos O município de São José dos Ramos está situado na Zona da Mata, na Paraíba, Nordeste do Brasil. A Zona da Mata paraibana corresponde a uma faixa de terra localizada entre a Planície Litorânea e o Agreste. Antigamente, essa região era coberta pela Mata Atlântica. Atualmente, pouco resta dessa floresta; a maioria dela foi destruída para dar lugar às plantações de algodão e agave. Acostumado a adentrar nas matas, o vaqueiro Leonel, critica o desmatamento em regiões próximas: “Vesti gibão zero, um uniforme de couro para enfrentar o mato e era tudo coberto: pau de jurema, catingueira, columbi, unha de caboclo; o mato era pesado. O mato acabou. Os proprietaro não confia em Deus, porque o olho cresceu e eles só confia no capim e na cana Foto: Laura Maurício que eles planta” (2/12/05). Nov e mb ro de 2005 , Se u Leon el , c riti ca o d es ma ta mento d a regi ão . 30 São José dos Ramos limita-se ao norte com os municípios de Caldas Brandão e Gurinhém, ao sul com Itabaiana e Salgado de São Félix, a leste com Pilar e a oeste com Mogeiro. Sua área territorial atinge oitenta e três quilômetros quadrados. É cercada por serras, todas pertencentes ao sistema da Borborema. São elas: Serra do Sino, Catolé, Riachão e Pirauá. Zé Preto, vaqueiro aboiador de São José dos Ramos, menciona um desses acidentes geográficos em um dos seus cantos. Vejamos: No ano de setenta e sete Vim morar no Riachão No pé da Serra do Sino Soltei minha criação. Doze vaca e um cavalo E um burro de estimação. (14/03/2004). A atividade econômica básica do município é a agricultura. Lá se planta: feijão, fava, milho e mandioca. Não há feira livre na cidade e os comerciantes vendem seus produtos em Itabaiana e Campina Grande. Também existe a atividade criatória, com várias fazendas e sítios espalhados pela redondeza. As fazendas ainda conservam, no trabalho diário, a figura do vaqueiro. É, nesse contexto, que eles mantêm as características de uma cultura pastoril, determinando, em parte, a vida dos vaqueiros no município. A água é sempre uma preocupação. Enquanto a zona urbana dispõe de água encanada, embora não haja saneamento básico, a zona rural dispõe de açude para o consumo da água, porém sem tratamento. A chuva é a esperança, e há quem saiba se o ano será bom ou ruim de inverno. Dona Noêmia, professora, oitenta e um anos, nascida na Serra do Pirauá, afirma que “se não chover até o dia de São José, dezenove de março, o ano é péssimo de inverno”. São José dos Ramos tem hoje, segundo estimativa do IBGE, uma população de 4.980 habitantes. O município conta com sete escolas 31 municipais e uma escola estadual; esta última acolheu o projeto “Seu Zé Preto na Escola”. Quanto ao aspecto religioso, temos duas Igrejas: uma católica romana, cujo padroeiro é São José, e uma evangélica denominada Assembléia de Deus. São José é uma cidade de clima quente e seco com máxima de 27º e mínima de 22º. No ano de 2005, era administrada pelo Prefeito Azenildo Araújo e o vice é Vital Leopoldino. Foi em São José que desenvolvi minha pesquisa sobre o aboio, entrevistando e ouvindo os cantos de José Serafim da Silva (Zé Preto), vaqueiro que conhece bem aquela região, inclusive os municípios circunvizinhos. O aboio em São José dos Ramos se caracteriza como um canto de trabalho nos momentos em que os vaqueiros conduzem o gado de uma fazenda para outra e, nesse percurso, cantam aboios tristes e melancólicos. O canto dos aboiadores é entoado numa linha melódica livre, conforme a fantasia do vaqueiro. Quando fazem a chamada do gado, o canto é longo, sem letra, só a melodia; depois é que eles cantam os versos, sempre falando da mulher, do cavalo e do sofrimento. Também cantam, em forma de oração, como no ofertório da Missa do Vaqueiro. 4 Eu ofereço meu chapéu A Jesus de Nazaré Mas é em N. S. Aparecida Que eu tenho fé. Pois ela é a padroeira Dos vaqueiros de São José. (Toinho, 3/12/05) Cantar aboio nos bares é costume dos vaqueiros de São José, mas essa prática tornou-se mais intensa durante a pesquisa na cidade e depois do I FESTIVAL DE ABOIO DE SÃO JOSÉ DOS RAMOS. Durante as noites de sábado e as tardes de domingo, o vento trazia aquela melodia cantada a uma certa distância da cidade. Também escutava-se o som de alguma viola. Os 4 Os vaqueiros de São José participaram desta missa no dia três de dezembro, do ano de 2005. 32 vaqueiros freqüentam as cantorias, mas não gostam de ser comparados aos violeiros, como canta Zé Valter: “Quem é vaqueiro não pode/ Ser cantador de viola”. No livro Brasil Caboclo, o poeta Zé da Luz aborda esse mesmo assunto. Vejamos: Minha fama de vaquêro Fez inveja a cantadô Aos mais grande violêro! Pois se êles tinha as vióla E trazía nas cachóla, O dom da impruvisação Eu dibáxo dêsses couro Tinha um violão sanôro Parpitando de emoção! O violão do meu peito Nas corda do coração! Quando meu peito aboiáva A naturêza iscutáva Num ato de cuntrição! Há vaqueiros que freqüentam as cantorias e vaquejadas da região. Itabaiana, Cajá, Sapé são municípios que atraem os vaqueiros e o aboio é a voz mais presente nas vaquejadas. Os vaqueiros desta região constituem elementos de luta. Uns trabalham nas fazendas e outros na agricultura. Esses homens encourados trazem a experiência e a memória das estradas: heróis esquecidos, marginalizados, injustiçados, não têm a garantia de uma vida tranqüila. Mesmo no momento da aposentadoria, não são reconhecidos como vaqueiros e, sim, como agricultores. 33 2.2 Seu Zé Preto canta a sua história Primeiros encontros Fizemos a primeira visita à cidade de São José dos Ramos, no dia 14 de março de 2004. Chegamos lá por volta das nove horas e nos dirigimos ao Sítio São José. Estávamos na casa de Jessé Araújo (vaqueiro). Quando algumas horas depois, chegaram outros vaqueiros (Zé Preto, José Walter e Severo) e pessoas que pareciam ser amigos da família. Ficamos todos reunidos no terraço da casa. O clima, de início, era de uma alegria controlada, pois éramos estranhos no ambiente, mas, com a chegada da bebida, aos poucos, eles foram se soltando e começaram a cantar o aboio. Houve trocas nos versos, um cantava, outro cantava, de forma que se percebia a firmeza e a experiência de Zé Preto, tanto na criatividade como no canto. Desafiava, no improviso, os filhos que ali estavam cantando. Posso acabar no desespero O reino quando tá triste Desmantela o teu poleiro Aonde tem galo velho Pinto não canta em terreiro. Durante esse dia, ficou evidente a experiência de Seu Zé Preto. Não pude deixar de encontrá-lo mais vezes e terminei optando por gravar os seus versos e depoimentos pessoais, abdicando de entrevistar os outros vaqueiros ali presentes. Em conversa com Zé Preto, ainda naquela tarde, soube que era casado, tinha vários filhos (mas não quis revelar o número); dentre eles, três eram aboiadores e estavam presentes no local. Soube, também, que seu cavalo chamava-se “Cravo Branco”. O cotidiano da vida de Zé Preto é basicamente o seguinte: durante a manhã, cuida do gado, ajudado pelo filho José Valter ou netos. À 34 tarde, confecciona peças para os vaqueiros, na sua “fabricazinha” de arreios, Foto: Laura Maurício que fica ao lado da sua casa. Jul ho d e 2004 , fab ri ca ção d e a rreios. Minhas idas a São José continuam acontecendo, e pude observar que Zé Preto não é só conhecido naquela cidade, mas na região toda, envolvendo cidades circunvizinhas. Hoje já me sinto acolhida na comunidade, mas, de início, recebi olhares de desconfiança. Continuo gravando e participando dos encontros comunitários, onde pude constatar a presença de outras manifestações da cultura popular, como o babau, a lapinha, o bumba– meu–boi, o cavalo marinho, as incelenças, as cantigas de cego, entre outros Foto: Laura Maurício cantos. Jul ho de 2005 , Seu Jo ão C ego , cant ando p ara algun s vaqu ei ro s 35 2ª Entrevista Depois de um ano do nosso primeiro encontro, conheci a casa onde Seu Zé Preto mora. Nesse dia, pretendia gravar o seu relato pessoal de vida. Dei um boa tarde, ele forçou um pouco a vista e me reconheceu; ficou alegre, mandou que nós nos sentássemos no terraço. Eu fiquei surpresa ao vêlo, pois estava envelhecido, adoentado, a barba crescida, meio surdo e com dificuldades na visão. Mantivemos uma conversa informal, porém a minha presença ali significava que era para cantar aboio. Observei que estava cansado e tossindo, mesmo assim, o entusiasmo dele era visível. Pedi que fosse falando naturalmente, conversando. Mas ele insistiu: Zé Preto: Aboiando? Laura: Não, falando. Não cantou por um tempo, mas recitou. Com o tempo, não se conteve e cantou. Respondia a todas as minhas perguntas em verso. Foi uma tarde alegre e, só no final, Seu Zé Preto conversou comigo em prosa. Vejamos a entrevista: Zé Preto: (recitando) Fui fazer uma visita Na terra que eu fui criado Achei tudo diferente Os currá tudo arriado Os vaqueiro bom morreu Cabou-se a raça de gado. Naquele tempo passado O gado era crioulo A carne era mais gostosa O leite mais saboroso Cavalo era mais forte Vaqueiro era mais jeitoso. 36 O Bidon era um vaqueiro Nesse clima temperado Vivia correndo boi De noite bem animado Bebendo leite de gado E dando tapa em boi raçado. Mané Bento era um vaqueiro É dele que eu vou falar De muito serviço dele Hoje é de admirar Pegando boi véi na rama Na Serra do Pirauá. (Lagoa Grande) 5 Tinha Galdino falado Morando no Camuncá Naquela época de trinta A gente passava lá Ele montando em burro Pra o povo se admirar. Todo dia ele montava Corria boi véi na rama Mái a idade é da gente Toda a idade lhe chama A morte levou ele Hoje tudo se ama. O Mariano Migué Foi um cabra preparado Naquele ano de trinta O ramo era pegar gado Foi um cabra preparado Matava boi, cortava gado. João Bidon era da gente Vivendo mêi animado Pegando boi véi ligeiro Neste clima temperado Morreu com oitenta ano Montando e correndo gado. (Oitenta ele morreu) Zé Galdino véi da gente Morava em Riachão No pé da Serra do Sino Foi a sua tradição Montando em burro manhoso E correndo boi de mourão. 5 Seu Zé Preto explica alguns trechos dos versos, colocados, a partir de agora, entre parênteses. 37 Dona Ciça: É bom cantando, né? Zé Preto: Ela foi dizendo, ela foi dizendo, né? Laura: Pode ser conversando, falando. Zé Preto: Tem Eufrate Pinheiro Homem bem preparado Nascemo tudo num dia Nesse clima temperado O símbolo de Eufrate Pinheiro Foi montar e correr gado. Laura: Fale do senhor, pode ser conversando. Zé Preto: Eu nasci em vinte e seis Em Angidiroba falada No dia quinze de maio Às quatro da madrugada Na hora em que ali cantava Também toda passarada Êi... Na hora quando eu nasci Ainda eu tava no chão A véia era curandeira Ela leu a minha mão Disse o meninim pro gado Vai ser sua invocação Êi... Quando a véia foi embora Ela tomou um pifão Ela acendeu um cigarro Assentada no pilão O imbiguinho desse nêgo Enterre em pé de mourão Êi... Enterraro meu imbigo Também dentro do currá No véi mourão de aroeira Ainda hoje tá lá Um grande cupim em cima Do tamanho dum caçoá Êi... 38 No ano de trinta, pai Vendeu a propriedade O coroné Severino Também por pouco dinheiro De lá foi onde passou De fazendeiro a vaqueiro Ê... No ano de trinta e três A morte veio e levou Meu pai que me adorou Ô morte ingrata ruim Uma tristeza sem fim Na casa que mamãe mora O papai ainda chora Sente saudade de mim Êh... Meu pai foi um fazendeiro Morreu sendo vaqueiro Hoje eu fui um dos herdeiros Do resto da profissão Tudo tombou, levou fim Papai só deixou pra mim Perneira, chapéu, gibão Êi... Casei-me em quarenta e oito Não lucrei nenhum tostão Com a prima chamada Velha E sob a alimentação Levei uma cama de couro E cinco litro de feijão Êi... No ano de quarenta e nove Fui vaquejar no Riachão Deitado em barro vermelho Soltei minha criação Uma cabra e um cavalo Cachorro de estimação Êi... 39 Quando foi no fim do ano Tormenta me piorou Meu cavalo deu um roda Mesmo dia se acabou Minha cabra deu a febre Pois de uma mão aleijou E meu cachorrinho correu Ele nunca mais voltou Êi... No ano de setenta e sete Vim morar no Riachão No pé da Serra do Sino Soltei minha criação Doze vaca e um cavalo E um burro de estimação Êi... Fui morar no Riachão Num clima mêi animado Amassando a burralhada A tarde corria gado Naquele clima sadio Era um clima preparado Depois a senhora vê, hoje Eu já digo o meu roteiro Comprei uma terrinha Tenho o nome de fazendeiro Fiz uma casa e moro Nesse clima brasileiro. Na terra de São José Hoje eu vivo animado Moro em minha casinha Nesse clima temperado Criando cavalo bom Zelando gado raçado. Ô dona eu digo à senhora Porque tenho que dizer Essa vida da gente A gente deve ter prazer Com saúde e mocidade Tudo se pode fazer. (Né? Com saúde e mocidade né?). Laura – Agora conte como o senhor começou a ser vaqueiro. 40 Zé Preto: No ano de quarenta e oito Quando eu me casei Eu fiquei desprevenido Eu vou contar a vocêi Foi quando eu fui vaqueijar No ano a primeira vêi Fui vaqueiro de Seu Normando Numa terra abandonada Eu trabalhei cinco ano Ô terra ruim atrasada! M’arrependi de ter ido Ô que vida amargurada! Eu fui pra Poço Danta Com Zé Primo, fui vaqueijar Trabalhei três ano Ô lugar especiá Eu fiquei com muita pena No dia que saí de lá. (Porque vendeu a propriedade) Vendeu a propriedade O jeito foi eu sair Triste sofrendo e dizendo Ô meu Deus o que é de mim? Eu vim morar no Quirino No Alto do Vanonil. Aí foi onde eu fui Na terra de Dona Aurora Eu vaquejei nove ano Vou lhe contar a históra Hoje não vaquejo mai Pruquê a idade não dá Tem me caído a memória. A terra de Dona Aurora Foi uma terra animada Na terra a gente corria boi Aquela terra aprumada Comendo queijo de coalho Ô que vida preparada! Dona Aurora é gente boa Nada podia faltar Quando chegava do campo Ela pegava a falar Perguntando pelo gado Depois eu ia contar. 41 Eu digo pois Dona Aurora O gado tá bem zelado Novia tá dando cria O gado gordo e zelado E eu como seu vaqueiro A vida é rever o gado Ela dizia: Zé Preto Pode também zelar Que você zelando o gado Só pode me ajudar Vaqueiro que zela gado Bota o patrão pra gozar. O vaqueiro maltratando o gado Deixa tudo contrariado Amarra os bezerro e num vê Deixa o boi véi aleijado E você fazendo tudo Deixa tudo preparado. Eu digo pois, Dona Aurora, Eu vou dizer à senhora Trabaio a três ano Nada disso me devora No dia em que não lhe vejo Eu fico fora de hora Aí dizia, Seu Zé Preto Você é bem preparado Para semana vindoura Eu quero que pegue gado Trinta boi pra eu vender Fazer dinheiro pra vocês Pra serem bem preparado Ela dizia Zé Preto Meu dinheiro se acabou O que a gente faz da vida? Vá me diga o senhor Vamo pegar gado e vender E aumentá seu valor. Apôi pegue trinta boi Pra vender e pra matar Eu vendendo gado agora Dinheiro eu posso ajeitar No fim do ano vende mái Pra vocês ir zelar. (ela dizia, a véia dizia aí...) 42 Carneiro era fio dela Menino bem preparado Tinha uns cavalo bonito Uns cavalo bem zelado Era o cavalo Carrasco Era bom de correr gado. Tinha o cavalo Rubim Cavalo bem preparado Dizia Zé Preto tu vai Nesse cavalo animado Tu montando no Rubim Sei que você pega gado. O cavalo Carioca Era um cavalo agitado Mas quando chegava no mato Ele ficava afobado Deixava o boi ir embora E ficava desassossegado. Eu fiquei com Dona Aurora Eu morei muitos ano Lá trabalhei, fui vaqueiro Pude tudo decorar Adepôi fui trabalhar em sola Para a coisa melhorar. Minha vida, meu ramo é sola Corto sola todo dia Vivo nessa vida, mermo contrariado Comprando sola a dinheiro E vendendo arreio fiado. (Rá... rá... rá..., ta bom?) Mas é assim minha dona Posso não ter mais prazer A gente ficando velho E disso que eu vou lhe dizer Coisa boa é a mocidade Mái o jeito é ficar velho E tem o dia de morrer. (Tem ou não tem?) Laura: E as vaquejadas, como eram? Zé Preto: A vaquejada da gente Era grande tradição Não é que nem tem hoje Com grande imperfeição Era fazer um pátio e correr Também no dia de São João. 43 Na vespra fazia fogueira Tudo muito preparado Enfeitava a fazenda Num salão bem animado Matando bode comendo buchada E o dia correndo gado. Laura: E hoje, como são as vaquejadas? Zé Preto: As vaquejadas hoje É coisa de admirar Pois é casa de negoço Para os povo ganhar Quem for vaqueiro ganha Quem num ganha nada É pruquê não sabe ajeitar Pruquê a coisa hoje é pesada A faixa é a tradição É difícil ter cavalo Bom para o mourão Pra botar o boi na faixa E num negar o passo não. Hoje o indivíduo é preparado Tem muito vaqueiro bom Tem muito cabra afamado Mái num fái o que ele quer As vêi ganha as vêi perde E desanima do gado. Coisa boa é naquele tempo Que a gente muito brincava Fazia aquela pista E nada ali ganhava Levava salva de paima E ali a música tocava Em cima do palanque Era uma música afamada As moça dançando baile E a gente na vaquejada O povo batendo paima Era uma festa animada! (Era... Era...) No outro dia cedinho Era uma tradição A gente levava os cavalo Também pra correr mourão Levava as menina na garupa Para a casa do patrão. 44 Quando chegava lá Era tudo preparado De noite chamava as menina Para a novena afamada E ver o fogo assubir E a gente chamar o gado De noite ia os vaqueiro Para a casa do patrão A gente soltava fogo Era aquela tradição E as menina batendo paima Dando valor a São João (Era naquele tempo velho néra? Aquele tempo...) Aquele véi na biqueira Não ia pra festa não Mái ficava aquele velho Brincando com tradição Dizendo um para o outro A noite de adivinhação. Dizendo adivinhação Aquele velho afamado As vezes era velhos bons Tinha sido bom de gado Mas num corria mais Já tava velho acabado Vou deixar pra mocidade Que é tudo forte e ligeiro Namorando, dança baile Neste clima brasileiro Estou velho e acabado Acabou-se a minha fama de vaqueiro. Laura: E o aboio, hoje, como anda? Zé Preto: Faço verso de aboio? Laura: Espere um pouquinho, responda a pergunta do aboio. Zé Preto: O aboio hoje vai de todo jeito. Fái aquele disco, aquela fita, e sai vendendo. O aboio fái do jeito que quiser. Tudo filmado, né? Laura: O senhor prefere o aboio de antigamente? 45 Zé Preto: Era, antigamente... antigamente, era bom... (chora). Aí chegava o patrão, tempo seco, “faça uma toadazinha de São João pra eu ver”. Aí, batendo chuva... pá... pá... pá... pá... Faço um aboio? [Zé Preto canta no ritmo de Asa Branca, de Luiz Gonzaga] Eu vendo a chuva Me rescordo da boiada Da canjicada, da noite de São João Tomar pifão, dançar numa latada Com a morena perfumada E dano viva a São João. Quando é bem cedo Se amanhece arressacado Rebanha o gado na fazenda do patrão De todo lado só se vê chegar mulé Vamo balançar o gado Lá no parque João Duré. Todo vaqueiro leva sua moreninha Foi na garupa do cavalo de mourão Chegando lá vamo rolar boi no chão E a gente batendo paima Dando viva a São João Quando é de noite Os vaqueiro chama as morena Que é pra novena lá na casa do patrão Solta balão, o fogo chega entoa Ó meu Deus que vida boa É de vaqueiro no sertão. Todo vaqueiro gosta de mulé bonita De vaquejada e de cavalo famoso Quando é jeitoso, no mundo se espalha a fama E aquela que lhe ama Chama pretinho de gostoso. Eh... eh... eh... eh… (Ele dizia: você é bom e vai fazer uma toadinha). Laura: O senhor tem trinta anos de vaqueiro? Zé Preto: Tenho. Laura: E hoje, o senhor vive de quê? Zé Preto: Hoje sou aposentado. 46 Laura: De vaqueiro? Zé Preto: Não, pela idade. Tenho um gadinho, trabalho em arreio. Foto: Laura Maurício Laura: Sua fabricazinha de arreio é boa? Ju lho d e 2005 , Seu Zé Pre to n a “f ab ric azi nha” de arreios. Zé Preto: É boa, dá pra arrumar muito dinheirinho. Laura: O senhor vende a quem? Zé Preto: Só faço de encomenda pra os vaqueiro. Tudo encomendado. Laura: De onde vêm os vaqueiros? Zé Preto: De Dona Maria Helena, vem de Dr. Flávio, dos Duré, vem de Sapé, vem de Juarez Távora, aquela vaqueirama que me conhece. Venho trabalhando há mais de vinte ano, todo mundo me conhece e diz assim: “Eu quero que Zé Preto faça”. Pruquê eu só faço bem feito. Laura: E o senhor faz o quê? Diga o nome das peças. 47 Zé Preto: Arreio pra cavalo, guarda-peito pra vaqueiro. Faço peia, faço macaca, cilha, rabicho, rabichola; na profissão de vaqueiro eu faço tudo. Chapéu... Laura: Por quanto o senhor faz um chapéu? Zé Preto: Faço a trinta e cinco. Laura: O senhor tem orgulho de ter sido vaqueiro? Zé Preto: Ave Maria, Ave Maria...! Vesti gibão trinta ano Foi o que tinha vontade Montando em burro manhoso Matei as minha saudade E amando moreninha Desfrutei a mocidade. Êh.... Se dissesse: “você quer ser o governo da república ou quer ser vaqueiro?”. Eu quero ser vaqueiro, com quinze ano, com vinte ano. É um orgulho muito grande. Laura: Tem alguma coisa quebrada no corpo? Zé Preto: Tenho quinze peça desmantelada. (mostra as partes do corpo: o braço, a costela, a coxa, a virilha...). Só tem uma peça que eu não quebrei, mái também não presta mái... O dedão do pé. Gosto de cavalo igual gosto de mulher. (começa a contar uma história). O boi Canáro quando tava perto de chover ele adivinhava. Laura: Como é que o boi adivinhava? Zé Preto: Ele entrava pro currá, cavava a terra, aí saía o cheiro da terra, era um tempo seeeco. Aí ele espiava pro céu. Aí podia garantir que com três dia a chuva batia. O boi Canáro só faltava falar, conhecia do tempo, boi experiente. Também pissuí um cachorro preto, ele passava no meio de todo o gado, mas 48 só latia naquele que precisasse. Ele caducou com dez ano de vida, tem vida curta né? Laura: O aboio hoje como anda? Zé Preto: O aboio hoje tá fundado. Aquela fita tem... Galego Aboiador é o rei, viu? Não gosto de Manezinho. O tempo de primeiro era sadio, era danado de bom, se tinha confiança. Hoje tem mais facilidade. De primeiro eu gastava dois dia pra chegar em Campina. Hoje já dá tempo almoçar em casa. Hoje a gente liga a televisão e só vê derrota. Mané Bento morreu em trinta e oito, só cantava besteira. A comunidade de vaqueiro era muito unida, todo mundo ajudava todo mundo. Se um se engalhasse todos corria atrás. Tá bom, tá bom. Fim da entrevista. 49 3ª Entrevista Cheguei à casa de seu Zé Preto às três horas da tarde do dia 21 de agosto de 2005. Era um silêncio muito grande ao redor da casa. Bati palmas. Poucos instantes depois, ele apareceu trazendo Cravo Branco e foi dizendo que “sabia que chegou gente por causa do cheiro do perfume”. Me chamou para junto do cavalo e me ensinou como devia alisá-lo. Depois pediu para que eu me sentasse no terraço. Nesse momento, Dona Ciça, esposa dele, também sentou-se. Depois de todos sentados, ele perguntou: “É pra cantar aboio?” Respondi que eu estava ali para conversar um pouco, mas se ele quisesse Foto: Laura Maurício podia cantar. E perguntei: Ago st o d e 2005 , Zé Preto escovand o o pêlo de Cravo B ranc o . Laura: Seu Zé Preto, como foi a sua infância? Zé Preto: É quando a gente é menino é? Laura: É. 50 Zé Preto: Menino, naquele tempo, era só pra trabalhar. Eu com dez ano trabalhava com gado nas serra, tirava leite e pastorava gado. Nesse tempo, eu morava na Angidiroba, perto de Alagoa Grande. Também ajudava nos roçado, prantava milho, feijão. Não tinha esse negoço de bater bola como hoje. O negoço era trabalhar. Nos domingo era pra botar água e lenha, pra na segunda – feira eu ir pastorar o gado. Ôh tempo estoporado! Hoje é uma beleza! A gente ia comprar coisa em Tabaiana a pé, só pra ganhar quinhentos réis. O dinheirinho que eu ganhava comprava as coisa pra mim. Me alembro de uma percata que comprei. Pois dona, minha vida era assim: trabalhando com gado, com roçado de manhã e pastorar gado de tarde. Pude observar que ele não gostou da infância, pois o tempo todo olhava para os três netos, montados a cavalo, na frente da casa e dizia: “Isso aí é que vida boa, tudo pronto pra passear”. Zé Preto informou que depois que conversasse comigo “ia no pé da Serra do Sino procurar um cavalo que tava com jerimum, tava doente”. Então perguntei: - O que é jerimum? Ele me disse que é um caroço que nasce no lombo do cavalo e que é preciso sajar. Laura: Seu Zé Preto, como foi a sua juventude? Zé Preto: A mocidade é? Laura: É Zé Preto: Ah! a mocidade! (saudoso) A mocidade foi o que eu mais gostei na vida. Eu era bonito. Namorava muito. Foi o que eu mais gostei de fazer, foi namorar. As festa do mêi de São João eu adorava. Tinha fogueira, latada para os forró. A sanfona era de oito baixo. Quando o sanfoneiro rasgava a bicha, nós amanhecia o dia. Naquele tempo, não tinha guaraná, era a “gasosa”, em vêi de guaraná, era “gasosa”, viu?. Laura: E o casamento, seu Zé Preto? Zé Preto: Noivei com vinte ano, com Rita Calixto. Isso foi pelos ano de quarenta e oito. Em cinqüenta e oito, ela morreu de parto. Fiquei com cinco 51 filho. Aperriado, com esses filho sem mãe, me casei com Ciça. Ela tomou conta deles. Viajava muito para o Rio Grande do Norte, Campina Grande e Pernambuco. Laura: O que o senhor ia fazer nesses lugares? Zé Preto: No Rio Grande do Norte, eu ia levar a boiada para vender. Quando vendia eu voltava e levava outra. Laura: E hoje, ainda se leva boiada? Zé Preto: Leva, mái é daqui prali, tudo perto. Naquele tempo não, a gente andava muito. Hoje, quando é preciso levar o gado pra longe, eles vão no caminhão. Laura: E quando o senhor levava o gado, cantava muito aboio? Zé Preto: Cantava muito, aboio comprido e triste e o gado ia tudo juntinho. Laura: O que o senhor ia fazer em Campina Grande? Zé Preto: Brincar de vaquejada. Laura: E em Pernambuco? Zé Preto: Eu ia amansar burro brabo, trabalhar na agricultura, mái a terra num era boa e nem chuva tinha. Durante toda a conversa Dona Ciça ficou ali ouvindo. Depois chegou Zé Valter e sentou-se no canto do terraço e ficou também ouvindo a conversa. Zé Preto estava em pé, próximo ao portão. Olhou para Cravo Branco, que estava amarrado na grade e me perguntou: “A senhora acha ele bonito?” E eu respondi: acho, ele é lindo, e os olhos azuis muito mais. Zé Preto sorriu, orgulhoso. Cravo Branco é o cavalo de estimação de Zé Preto. Como o próprio nome indica, ele é todo branco, muito bem tratado, com uns 52 belíssimos olhos azuis. Ele sempre vai para a festa das vaquejadas nos municípios vizinhos. Estava com um corte no corpo e seu Zé Preto me disse que foi a espora que cortou. Dona Ciça olhava tudo atentamente e observei que ela estava com vontade de falar. Seu Zé Preto voltou ao terraço e disse que ia ao encontro do cavalo que estava doente, no pé da Serra do Sino, que talvez fosse preciso entrar na mata. Laura: Fale um pouquinho da sua vida na fase adulta. Zé Preto: Eu já cantei minha vida pra uma moça branquinha que veio com a senhora naquele dia. Ela filmou tudo. Mas hoje eu tou aposentado e trabaio fazendo arreio pra cavalo, guarda–peito pra vaqueiro, rabicho, rabichola, chapéu de couro. Tudo que for pra vaqueiro eu sei fazer. Mái só faço encomendado. Agora eu vou mim bora que já é tarde. Laura: Seu Zé Preto, quem foi Lena, aquela que o senhor fez um aboio bonito? Zé Preto: Madalena? (baixou a cabeça e não respondeu) Montou em Cravo Branco e saiu. Olhei pra Dona Ciça e ouvi quando ela falou: “Quem nasce no mêi de agosto, minha fia, só tem desgosto. Na minha vida, eu só tenho disgosto. Tenho meu fio doente, só Jesui sabe o trabalho que ele dá. A senhora já viu ele?”. Dona Ciça contou toda a história da doença do menino, ficando bem claro que houve um monstruoso erro médico. Depois, perguntei sobre o seu casamento e ela respondeu: “Casei a primeira vez com dezessete ano, convivi por dois ano e logo uma das minhas irmã tomou meu marido. Depoi apareceu Zé Preto, viúvo, com cinco fio. Dele eu tive treze filhos, criei oito. Todos nasceram na fazenda do 53 Quirino, depois fui para o Riachão e hoje tou em São José. Até aqui, já tem sofrido muito. Zé Preto num podia ver um rabo de saia que ia atrás. Laura: Mesmo casado? Dona Ciça: Mái, minha fia, ele só diminuiu hoje pruquê tá véi. Uma vêi, eu fui pra maternidade com um aborto, ele botou uma mulé dentro de casa enquanto eu tava doente. Eu já me acostumei com isso, nem ligo mái; se eu for ligar, eu morro. Foto: Augusto Pessoa Fim da entrevista. Dez emb ro de 2005 , Seu Zé Pre to e Don a Ciça no d i a do I Fest iv al d e Aboio d e São José . 54 2.3 A história de vida em versos: alguns comentários Selecionamos alguns versos cantados por seu Zé Preto e que relatam à sua história de vida, do nascimento à velhice. 1 Eu sou Zé Preto falado Da Paraíba do Norte Sou vaqueiro há trinta ano Vaquejada é meu esporte Eu me casei-me trêi vêi Com mulé eu tive sorte Êi... 2 Quem não souber do meu nome Quem não quiser preguntar Sou eu José Serafim Que o povo vê falar Nascido na Angidiroba E criado no Cravatá Oi... 3 4 5 Vou contar a minha vida Do jeito que eu fui criado Montando em burro manhoso Vesti couro de veado Comendo carne de sol E dando tapa em boi raçado Êh... Eu nasci em vinte e seis Em Angidiroba falada No dia quinze de maio Às quatro da madrugada Na hora em que ali cantava Também toda passarada Êi... Na hora quando eu nasci Ainda eu tava no chão A véia era curandeira Ela leu a minha mão Disse o meninim pro gado Vai ser sua invocação Êi... 6 Quando a véia foi embora Ela tomou um pifão Ela acendeu um cigarro Assentada no pilão O imbiguinho desse nêgo Enterre em pé de mourão Êi... 7 Enterraro meu imbigo Também dentro do currá No véi morão de aroeira Ainda hoje tá lá Um grande cupim em cima Do tamanho dum caçoá Êi... 8 Criei-me na época boa Comendo queijo e coalhada Brincando mai meus irmão Cavalo de pau na estrada E minha mãe no batente Fazendo renda e mufada Êi 9 Quando era de madrugada O meu pai se levantava Iá pro currá tirar leite Também dava pra coalhada Mamãe fazia uma papa Com farinha peneirada Êi... 10 Eu ainda sou forte assim Pruquê eu fui bem criado Bebi leite de vaca mestiça E comendo queijo assado Fava e feijão de corda E carne de boi capado Ei... 55 11 No ano de trinta, pai Vendeu a propriedade O coroné Severino Também por pouco dinheiro De lá foi onde passou De fazendeiro a vaqueiro Êi... 17 Já me acho acabado Como um reino sem tribuna Como as água que o rio Derruba quaiquer coluna Forro o gibão e me deito Nas sombra das baraúnas Ôi... 12 Meu pai foi um fazendeiro Morreu sendo vaqueiro Hoje eu fui um dos herdeiros Do resto da profissão Tudo tombou, levou fim Papai só deixou pra mim Perneira, chapéu, gibão Ei... 18 Ali chega uma graúna Cantando no ambiente Sinto meus maus de vaqueiro Hoje eu vivo dependente Quem canta seus males espanta E a dor que meu peito sente Ôi... 13 Na hora de papai morrer Fez a sua despedida Disse adeus terra querida Terra que eu me montei Novilha que eu amansei Soltei cavalo de molho Aí foi fechando os olho Pediu a vela e morreu Ei... 19 De ler não conheço o ó Pruquê não estudei não Trabalhar como cativo Foi a minha tradição Meu colégio foi o mato E a farda foi o gibão Ei... 14 Vesti gibão trinta ano Foi em que tinha vontade Montando em burro manhoso Matei a minha saudade E amando mulé nova Desfrutei a mocidade Êi... 15 Eu digo para os amigo Me acho sacrificado Porque esse mundo traz Rescordação do passado O fraco da minha vida É cavalo, mulé e gado. Ôi... 16 Nasci no clima do gado Porque nasci no currá Foi numa fazenda véia Acabei de me criar Só deixo de correr boi Quando a morte de matar Ôi... 20 Fui noivo c’uma menina Bonita chamada Lena Parecia uma açucena Numa manhã orvalhada A morte tomou chegada Matou minha jovem bela E eu igualmente aquela Não arrumo nesta data Nem a poliça me empata Deu chorar na cova dela Ei... 21 Fui noivo com outra moça Ela o coração me deu Na minha ausência morreu Eu fui lá lhe avisitar Mas não pude lhe encontrar Lá de longe avistei ela Referenciei a capela Que era banhada em prata Nem a poliça me empata De chorar na cova dela Ei... 56 22 Eu vou dormi, perco o sono Me acordo de madrugada Numa noite enluarada Vou até a cova dela Rezo uma prece pra ela Boto meus dois joêios no chão Pra ela eu faço oração E se a tristeza m’ataca Nem a poliça me empata De chorar na cova dela Ôi... 23 Hoje eu fiquei pelo mundo Suspirando e dando ais Sem parente e sem derente Sem irmão, sem mãe, sem pai E como uma folha seca Que até com o vento cai Ôi... Quando se lê os aboios que constituem a história de vida de Zé Preto, percebe-se que eles contêm beleza. Por ser uma poesia de vida, faz parte da memória, de uma memória social, pois Zé Preto representa a figura de outros vaqueiros que nasceram e se criaram “nesse mundo”. De imediato, não se percebe quanta elaboração existe no interior dessas estrofes. É preciso ler várias vezes, e de maneiras diferentes, para descobrir as diversas significações que elas contêm. Nas duas primeiras, estrofes Zé Preto se apresenta, assim como fez Severino retirante, personagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: O meu nome é Severino não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, Que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. (João Cabral de Melo Neto) Eu sou Zé Preto falado Da Paraíba do Norte Sou vaqueiro há trinta ano Vaquejada é meu esporte Eu me casei-me três vêi Com mulé eu tive sorte Êi... (Zé Preto) 57 O quarto verso da terceira estrofe, “vesti couro de veado”, remete para os primeiros encouramentos que eram feitos de couro de veado, por ser mais resistente e duradouro. Só depois passou o vaqueiro a manufaturar suas vestes de couro de bode. Na quarta estrofe, há uma descrição de um cenário natural, “a madrugada e o canto da passarada”, que aponta para uma vida que surge, ou seja, o nascimento de Zé Preto. Eu nasci em vinte e seis Em Angidiroba falada No dia quinze de maio Às quatro da madrugada Na hora em que ali cantava Também toda passarada Êi... O poema é composto por estrofes de seis versos, aparecendo também estrofes com sete, oito e dez versos. A leitura dos versos em voz alta se faz necessária para que se perceba o ritmo. Na quinta estrofe, a presença da “véia curandeira” confere uma ambientação mística à cena; a “véia” faz uma previsão quanto ao futuro do “meninim” e afirma que a vocação dele será o gado. O que mais uma vez se aproxima da obra de João Cabral de Melo Neto, quando há uma previsão do futuro de Severino pelas ciganas do Egito. Falam as duas ciganas: - Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. Vou dizer as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, com goiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. -Atenção peço, senhores, também para minha leitura: também venho dos Egitos, vou completar a figura. Outras coisas que estou vendo é necessário que eu diga: não ficará a pescar de jereré toda a vida. Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas; não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. 58 A primeira cigana prevê, que o bebê será um homem ligado ao rio, e a segunda, que será um operário. A “véia curandeira” prevê para Zé Preto uma vida ligada ao gado, ou seja, uma vida de vaqueiro. São os “severinos” deste país, que trabalhando no campo ou na cidade, lutam pela vida, apesar da pobreza e, sobretudo, da ineficácia dos governantes. As estrofes seguintes (sexta e sétima) também mostram a outra face da “véia”, que é ser parteira. As parteiras são mulheres simples, têm uma missão a cumprir, são fadas em cujas mãos os filhos das outras mulheres nascem. O umbigo enterrado em pé de mourão é uma prática usada até hoje. Na oitava estrofe, os alimentos “leite”, “coalhada” são citados pelos vaqueiros, pois estes saem dos animais que eles cuidam. Tudo é aproveitado do boi ou da vaca. Manual ou mecanicamente, o leite é tirado para ser consumido, natural ou transformado em queijo, manteiga e coalhada. Do boi abatido, obtém-se a carne e os miúdos (bofe, bucho, rins, fígado). Aproveitam-se, ainda, os chifres para a confecção de objetos, os ossos para fazer ração, o couro para a fabricação de vários objetos, o sebo para o sabão e as fezes para o adubo. A decadência é o assunto das estrofes onze e doze. “Passou de fazendeiro a vaqueiro”, e a partir daí, Zé Preto herda a profissão do pai, simbolizada pelas palavras “perneira”, “chapéu” e “gibão”. O amor à terra é um sentimento muito forte entre os vaqueiros. Eles amarram-se a ela, desde o nascimento até a morte. A “alma” da terra é encarnada nesses homens: Na hora de papai morrer Fez a sua despedida Disse adeus terra querida Terra que eu me montei Novilha que eu amansei Soltei cavalo de molho Aí foi fechando os olho Pediu a vela e morreu Ei... 59 A mulher é um tema muito cantado pelos vaqueiros. Sempre surge de forma idealizada: traz sofrimento, é bonita, tem cabelos longos, não é vaidosa, é donzela e sensual. A terra faz dele um vaqueiro e a mulher é que o faz sentir-se homem. O vaqueiro e a natureza estão intimamente ligados. Isso podemos observar nos elementos comparativos citados por Zé Preto na estrofe catorze: Como as águas de um rio Que derruba quaiquer coluna. A chegada da “graúna cantando no ambiente” é um elemento simbólico que está associada aos males que o vaqueiro sente. A denúncia de injustiças sociais é um tema abordado pelos vaqueiros. Apenas os mais jovens sabem ler e escrever; os mais velhos nunca freqüentaram a escola. Vejamos o que canta Zé Preto: De ler não conheço o ó Pruquê eu não estudei não Trabalhar como cativo Foi a minha tradição Meu colégio foi o mato E a farda foi o gibão Êi... Conhecedores de uma realidade de carência e sofrimento, algumas vezes, eles buscam um lenitivo para suavizar a aspereza da vida que enfrentam. A coisa melhor do mundo É tomar cerveja fria Puxando novia nelora Montando em sela macia Gostar de morena nova E viver de boemia. Dos aboios cantados, apenas quatro apresentam um mote, como: “Nem a poliça me empata, d’eu chorar na cova dela”. Esse gênero não é comum no aboio, comparece mais na cantoria e no repente. 60 A fragilidade comparada a “uma folha seca”, na estrofe vinte e três, é algo que contrasta com o heroísmo tão cantado em outras estrofes. Mái tou com setenta e sete Sou um gavião de aço De físico tou com vinte Para fazer o que faço Pego um boi, amanso um burro Farro, fumo, pesco e caço. O léxico que compõe a poesia é formado por palavras simples e conhecidas pelo leitor ouvinte. Também a linguagem é simples e tem temática variada. A poesia é inspirada no cotidiano, na realidade e, às vezes, no sonho. Zé Preto canta a sua vida misturando realidade e fantasia, versos improvisados e outros tantos ouvidos nas noites de vaquejada e cantoria. Esses versos, ao longo do tempo, passam a ser a própria vida do vaqueiro/poeta/cantador. 61 CAPÍTULO III Foto: Laura Maurício O ABOIO NA ESCOLA 62 3.1 O aboio na sala de aula e a visibilidade da cultura do vaqueiro no município de São José dos Ramos Viajei a São José no 29 de julho do ano de 2005, com o objetivo de me encontrar com os Diretores da Escola Estadual Jocelyn Veloso Borges. Às 9:00h, começamos a reunião e, na oportunidade, apresentei o Projeto Cultura Popular na Escola, cuja finalidade principal era desenvolver um trabalho com a cultura popular na sala de aula, especialmente com os aboios. Fui informada pelas Diretoras que, na escola, funcionava o Ensino Fundamental e Médio, e que era necessário uma outra reunião com a presença dos professores. Com a liberação para outro encontro, percebi que as diretoras decidiram enfrentar o desafio e determinaram a data da reunião com os professores para o dia vinte e três do mesmo mês. Nessa reunião, estiveram presentes vinte e cinco professores do ensino fundamental e médio, a Diretora Geral da Escola, Vanda, e as duas Diretoras Adjuntas. Comecei a reunião com a dinâmica das “malinhas”: foram distribuídas pequenas malinhas contendo um elástico, um clip, um bombom e algumas mensagens, sugerindo um relacionamento bom e amigável entre as pessoas do grupo. Ao mesmo tempo em que abríamos as “malinhas”, escutávamos a música “Tocando em frente”, de autoria de Almir Sater e Renato Teixeira. Ao escutá-la por duas vezes, cada professor escolhia a palavra ou a frase que mais lhe chamasse a atenção. Então, passei a ouvir cada pessoa e, logo depois, concluímos que deveríamos “tocar o projeto em frente”, conforme sugeria o título da música. Em seguida, apresentei o projeto, mostrando que o alvo principal dele era o aboio. A partir daí, comecei a ouvir a opinião dos professores presentes. Foto: Laura Maurício 63 Ju lho de 2005 , reuni ão c o m o s p rofe s so re s d a Escola Est adu al . Quanto ao aboio, três professores do Ensino Médio se propuseram a trabalhar nas áreas de Português, Artes, História e Geografia. Os demais buscariam outros contatos com a comunidade, e, com certeza, encontrariam outras manifestações da cultura popular, pois não concordaram que se trabalhasse apenas com o aboio. E, assim, todos em comum acordo, marcamos a próxima reunião para o dia vinte e sete de agosto. Nesse dia, comecei a escutar as opiniões e propostas que chegavam dos professores. Durante a reunião, foram aparecendo pessoas da comunidade, na maioria idosos, que assistiram a reunião caladas o tempo inteiro. Os professores trouxeram a proposta de uma feira popular, além de danças afro-brasileiras, ciranda, babau, rezas populares e outras. Sugeri que nos detivéssemos na cultura do vaqueiro como prioridade. Entreguei cópias dos aboios cantados por Zé Preto aos professores que iriam trabalhar, começando pela leitura oral da poesia. Após a leitura oral, os alunos seriam estimulados a falar sobre suas experiências, e aqueles que já praticavam o canto, leriam e cantariam os versos. Devido a variedade dos temas nas poesias de Zé Preto, o debate seria feito 64 gradativamente pelos alunos e professores. Como o aboio é uma poesia cantada, a música e a poesia seriam trabalhadas como uma vivência na sala de aula. Seriam ouvidos os cd’s de Manoelzinho Aboiador e Galego Aboiador e, nessa comparação com os aboios de Zé Preto, poderiam ser observados estilos diferentes e instrumentos musicais presentes nos aboios. Durante a realização do projeto, foram realizadas várias reuniões com os professores para a troca de experiências. Ficou decidido que, no dia trinta de novembro, em forma de festividade, professores e alunos envolvidos no projeto apresentariam o resultado do trabalho para toda comunidade escolar. Diante do envolvimento da comunidade, decidiu-se também, pela realização do I Festival de Aboio de São José dos Ramos, marcado para o dia três de dezembro. As reuniões com a comunidade (agora não apenas alunos e professores) se dividiram em três momentos. No primeiro momento, as escolas municipais assumiriam a realização de uma feira de cultura. Durante essas reuniões surgiu a idéia da corrida de argolinhas e da corrida de jegue. Eduardo, instrutor da banda marcial da Prefeitura de São José dos Ramos, ficou responsável pela Alvorada do Aboio. A alvorada se faz com uma banda musical ou fanfarra, no crepúsculo matutino, com a finalidade de acordar e alertar as pessoas da cidade para algum evento que estará prestes a acontecer. O segundo momento foi a reunião com os artistas populares: cirandeiros, repentistas e artesãos. Todos queriam fazer uma demonstração daquilo que sabiam. Ouvi o toque da ciranda de seu Massu, o repente de seu Antonio, que fazia dupla com Manoel Xudu, e vi como eram feitas as bonecas de pano de Dona Nilza, artesã da comunidade. Todos felizes, esperavam ansiosos o dia do Festival. O terceiro momento era dedicado aos encontros, quase semanais, com os vaqueiros. Eles são práticos, rápidos e diretos, não suportam uma reunião por mais de dez minutos. Em qualquer momento, queriam cantar aboio. Posso afirmar que a programação foi orientada por eles, os verdadeiros 65 donos da festa. Também participaram desses encontros, João Cego, tocador de Foto: Laura Maurício viola, e outras pessoas da comunidade. Ago st o de 2 005 , reuni ão co m os v aqu ei ros na Escola Estad u al . Por duas vezes, passei nas salas de aula e pude perceber o entusiasmo dos alunos, alguns deles orgulhavam-se em me dizer que eram filhos de vaqueiros ou já atuavam nas vaquejadas da região. Saía das salas de aula cheia de esperança para um outro encontro com os vaqueiros. Percebi também que a comunidade se encontrava cada vez mais envolvida em todas as reuniões que estavam acontecendo. Em uma outra passagem pela escola, traçamos uma programação para o dia trinta do mês de novembro, intitulada “Seu Zé Preto na Escola”. Esta programação foi elaborada por professores e alunos, que insistiram para que seu Zé Preto entrasse na escola acompanhado da família. Também foram os alunos e professores que escolheram as músicas e a coreografia. Foto: Laura Maurício 66 Se t e mb ro d e 2005 , a luno s a s sist em a ula s sob re o aboi o . A Secretaria Municipal de Educação de São José apoiou os alunos através dos meios de comunicação, cedendo duas chamadas por dia na Rádio Cultura de Guarabira. Alguns políticos da cidade patrocinaram o Foto: Laura Maurício mesmo evento na Rádio FM de Itabaiana. Outub ro d e 2005 , segund a reunião co m a Se cretá ri a de Educ aç ão do Mun i cí pio e a s s e s so re s 67 3.2 Seu Zé Preto na Escola A comunidade escolar dos três turnos esteve presente à solenidade, além de autoridades locais e outras pessoas da cidade. O ginásio da Escola Estadual Jocelyn Veloso Borges estava iluminado e festivo. Recebia seu Zé Preto acompanhado da família, ao som da música “Meu vaqueiro, meu peão” 6, da banda de forró Mastruz com Leite. As palmas vibraram, o alunado gritava e recepcionava o vaqueiro, enquanto os fogos estrondavam no ar. Logo após a entrada da família de Zé Preto, entraram dois alunos, filhos de vaqueiros, e duas crianças pequenas, netos de vaqueiros, vestidos de gibão, mostrando a cultura viva através das gerações. Seu Zé Preto, sentado, vestido de camisa azul, observava tudo, sem escutar tão bem as homenagens que lhes eram dirigidas, pois a idade já lhe diminuíra a audição. Mas, vez por outra, as lágrimas desciam e eram enxugadas rapidamente por um lenço tirado do bolso. Pronunciaram-se os professores Leo, Alba e Olga. O professor Leo agradeceu a escolha da cidade para o desenvolvimento do projeto e, naquele momento, enfatizou que “o aboio” envolveu todas as escolas do município. Já a Profª. Alba disse que o projeto valorizou a cultura da cidade, comprovando que foi trabalhado e bem aceito na comunidade escolar. E terminou afirmando: “Fizemos o trabalho e queremos dar continuidade”. Olga, professora de Artes, sentia-se honrada em trabalhar o aboio junto aos alunos e comentou: “O aboio na sala de aula foi uma experiência fantástica. Juntamos os alunos e lemos as poesias de Seu Zé Preto. Quantos questionamentos!. Pois até ali só líamos Manuel Bandeira, Carlos Drummond, etc. Curiosos e surpresos os alunos não sabiam que as poesias de Seu Zé Preto tinham importância, a ponto de serem levadas para a sala de aula. Como professora de Artes, cantei o aboio com eles. Foi muito animado! Alguns 6 A música “Meu vaqueiro, meu peão”, foi escolhida pelos alunos da escola. 68 alunos se identificam imediatamente dizendo assim: “Eu sei cantar aboio, pois meu pai é vaqueiro”. E assim cantamos todos os versos de Seu Zé Preto e, numa sexta feira, assistimos ao filme, onde estava a família dos aboiadores”. Estava presente, também, o Padre João Isidro, vigário geral da região, recitando versos de Amazan e mostrando seu entrosamento no seio da cultura, pois celebraria a Missa do Vaqueiro no prazo de três dias. Alguns alunos criaram versos de aboio e alguns deles aprenderam com os pais, na própria família. A filha de Seu Zé Preto, Marinês, homenageou os vaqueiros mortos na região e o próprio pai, embora ele não goste de mulher aboiadora. Para Zé Preto, “aboio quem canta é vaqueiro”. Vejamos a homenagem feita por ela. Vou falar de dois vaqueiro Amigo preste atenção São dois vaqueiro valente Da fazenda Conceição Que tira leite de vaca E pega touro de mão. Ôi... Vou falar de dois vaqueiros Digo com muita confiança Seu Chico e Seu Júlio Pra mim de grande importância Na fazenda Conceição Eles são os vaqueiro Trabalha todos os dias Tirando leite bem cedo Depois sai a campear Com bravura e sem medo Ôi... Fiz esta homenagem Com muita dedicação Pra os dois vaqueiro valente Da fazenda Conceição Chico Brito e Júlio Grande Vaqueiro da região. Ôi... 69 Pra todos que estão presente Faço uma homenage Aquele que já se foi Está na eternidade Saudando a Biu vaqueiro Ofereço esta homenage Ôi... Para todos os vaqueiro Que vive na região Dedico essa homenage Que fiz com muita emoção Finalizo parabenizando Os vaqueiro da região. Ôi... Escrevi essa toada Com muita dedicação Ao senhor Seu Zé Preto Que morava em Riachão Filhos, esposa e netos E um aperto de mão Ôi... Logo depois, um aluno do ensino médio, Adriano, homenageou Seu Zé Preto cantando: Vou contar uma história De um vaqueiro afamado Foi fazendeiro, pecuarista Grande criador de cavalo Foi campeão de vaquejada E hoje vive aposentado Ôi... Esse vaqueiro afamado Dizer seu nome nem é preciso Quando corria em vaquejada Ganhou palma, troféu e sorriso Eu falo de Seu Zé Preto Da fazenda Riachão Ôi... Nunca levou prejuízo Quando corria em mourão De quase todo o Nordeste Foi o melhor campeão Ao lado de Zé Val Seu filho do coração 70 Pio Chaves, advogado da cidade, leu um breve histórico da vida de Zé Preto e como curiosidade acrescentou: “Por que o nome Zé Preto? Trabalhando na Angidiroba, fazenda localizada entre Alagoa Grande e Juarez Távora, existiam dois vaqueiros chamados Zé, nada mais popular e paraibano. Observando a cor da pele dos vaqueiros, o fazendeiro assim os batizou: Zé Preto e Zé Branco. Zé Preto teve vinte e um filhos, oito da primeira esposa, D. Rita Calixto, dos quais cinco estão vivos, e treze da segunda esposa, D. Cecília de Farias Rodrigues (D. Ciça), dos quais oito estão vivos. Tem trinta e um netos e onze bisnetos”. Logo depois da homenagem do advogado, foi cedido o espaço aos aboiadores, que felizes e entusiasmados começaram a cantar. Zé Preto Ô boi... Eu hoje vou fazer verso Aqui é a primeira vez Qualquer coisa que eu errar Vão descuipando vôcei Na poesia matuta Pouca lição decorei Eh... De ler não conheço o ó Pruquê não estudei não Trabalhar como cativo Foi a minha tradição Meu colégio foi o mato E a farda foi o gibão Êi... Eu nunca fui engenheiro Mas tombém não fui carreiro Eu fui poeta e vaqueiro Das festa de vaquejada Êi... Zé Valter Eu vou tirar os meus verso Porque eu sou aboiador Eu lembro de Júlio Grande É vaqueiro açoitador Lembrando de Biu vaqueiro Que a morte lhe levou Êi... 71 Eu vou fazer esse verso Também faço uma canção Sou filho do véi Zé Preto Que era o rei do mourão Eu lembro agora dum amigo Que se chama Salomão Êi... Eu vou tirar os meus verso Porque eu sou a fera do gado Eu pego boi véi ligeiro Só faço verso atestado Pego um boi, amanso um burro Bebo, fumo, pesco e caço. Êi... Severo Boa Noite povo amigo Da terra boa e de fé para o povo dessa cidade Home, menino e mulé E dou agradecimento Ao povo de São José. Êi... Na terça-feira passada Leto veio me visitar Perguntou: pai, as cosas como é que vai? Me diga como é que tá? Aí não me controlei E comecei a chorar Êi... Pode ser muita tristeza Para um pedaço de vida Tão novinho que ele morreu Meu peito só tem ferida Trouxe por recordação Que vocês vão me ajudar.... Êi... Eu faço verso na hora Com prazer e alegria Me dispeço de vocêi Adeus até outro dia Que tou perto do povão E perto da minha família 72 Severo, canta o tempo todo a dor da perda do filho, caído de um cavalo e com morte instantânea, no segundo semestre de dois mil e cinco. Wesley, neto de Zé Preto, com nove anos acompanhou todo o projeto junto aos vaqueiros adultos. Pontual e atencioso às reuniões dos vaqueiros, em nenhum momento tirava o chapéu de couro. Naquela noite, entusiasmou o público, cantando versos de safadeza e os alunos o aplaudiram de pé. Wesley Eu sempre me alimentei Com o côco de carnaúba Mas o pé cresceu demais Não tem ninguém que assuba Com vara ninguém alcança Com pedra ninguém derruba Ôi... Menina me dá um beijo Só num quero do pescoço Quero do bico do peito Do lugar que não tem osso Pra quando eu ficar velho Me lembrar que já foi moço Ôi... Meu galinho de campina Meu xexéu de bananeira Tou de munheca pelada De puxar boi na porteira E tou de biquinho doce De beijar mulé solteira Ôi... Menina casa comigo Que tu num morre de fome Lá em casa tem uma pinta Mamãe mata ela e tu come De dia tu come a pinta E de noite a pinta te come Ôi... Foto: Augusto Pessoa 73 No v e mb ro d e 2005 , We sl ey condu zindo al guma s re ses. Depois de todos os vaqueiros terem cantado, um grupo imenso de alunos fez uma coreografia com a música: “O xote das Meninas”, de Luiz Gonzaga. Finalmente, a Diretora Geral da Escola, Profª. Vanda, saudou todos os vaqueiros presentes, inclusive o pai dela, e, ao mesmo tempo, convidou a todos para o Primeiro Festival de Aboio daquela cidade, que aconteceria no dia três de dezembro do ano em curso. Como vimos, a escola foi o espaço de socialização do aboio, poesia esta presente na vida dos alunos, embora a escola estivesse distante desta experiência. Repetidas leituras cantadas estimulavam nos alunos o prazer de ler. A presença dos vaqueiros nas salas de aula serviu não somente para cantar a poesia, mas para conscientizar os alunos de que são eles os herdeiros dessa cultura e também esclarecer-lhes que a cultura não se reduz apenas à aquisição de conhecimentos práticos, se assim fosse, Zé Preto e os outros vaqueiros não teriam “voz” neste espaço escolar. Os alunos já tinham experiência com o aboio na comunidade de vaqueiros; a grande surpresa foi esse canto chegar à escola. O aluno Lorel, do segundo ano do Ensino Médio, disse: “Eu nunca pensei que o aboio fosse assunto de escola”. 74 3.3 O I Festival de Aboio de São José dos Ramos A cidade de São José dos Ramos sofreu uma alteração na sua rotina em função do I Festival de Aboio. As ruas trocaram o silêncio e a calma pela passagem de carros e alguns caminhões transportando o material para a montagem dos palcos, na Praça Noé Rodrigues de Lima e no campo, local onde se realizaria a Missa do Vaqueiro. Algumas pessoas circulavam pela praça, outras permaneciam nas portas ou nas janelas das casas, enquanto os professores, alunos e comunidade envolvida na organização da festa armavam as barracas. Havia uma variedade muito grande de barracas: artesanato, medicamentos populares, caseiros, plantas medicinais e ainda um espaço dedicado ao vaqueiro. doces Foi montada uma casa de um vaqueiro, inclusive com um cavalo no terreiro. Dois caminhões se dirigiam ao campo para montar a infraestrutura da celebração da missa. Na praça e no campo, os sons dos martelos anunciavam a prontidão dos palcos para o festival que aconteceria no dia seguinte. Ninguém dormiu naquela noite. Fornecedores e visitantes chegavam à Fazenda Campo Alegre para falar dos preparativos da festa e dos últimos ajustes. Apareceram alguns vaqueiros ansiosos pelo amanhecer do dia. Também para ouvir conversas, dar opiniões e compartilhar a alegria que estavam sentido, afinal seriam eles os verdadeiros donos da festa. Às quatro horas da manhã, nos dirigimos à praça para a Alvorada. Foi o ponta pé inicial de um dia que vai ficar na memória daquela cidade. Esperamos a banda se organizar em frente à Igreja de São José, até chegarem os vaqueiros e se juntaram a ela. O regente dirigiu a música de abertura: Asa Branca, de Luiz Gonzaga. O sol já iluminava o local com os primeiros raios, quando Zé Preto cantou, em ritmo de Asa Branca: 75 Oi vida de gado, ei pasta boiada! Oi minha gente eu estou bem animado Para a festinha eu vim aqui para aboiar Pode filmar um vaqueiro preparado Que eu sou muito ligado e vim aqui para brincar Foto: Augusto Pessoa Porque Jesus Cristo quer A gente vai chamar gado Aqui de frente a Igreja Nesse clima temperado Eu sou o velho Zé Preto nasci pra brincar com gado Ôi... Dez e mb ro d e 2005 , B and a Marci al d e São Jo sé e nto ando a Alvo rada Os componentes da banda se puseram em marcha e, na segunda parada, em frente à Prefeitura, Zé Preto cantou: Em frente da prefeitura Eu vou chamar o gado Aqui no clima sadio Nesse clima temperado E a roupa do vaqueiro É o gibão bem preparado Ôi... E Zé Val, filho de Zé Preto, prosseguiu: 76 Na frente da prefeitura Agora vou aboiar Tirar um verso bonito Vendo o povo me olhar Eu falo em Eduardo Um amigo popular Ôi... A banda continuou o percurso e a luz dos fogos de artifícios cruzava o céu de São José. A terceira parada aconteceu em frente ao cemitério. O local parecia estranho aos acontecimentos do dia, mas esta parada foi sugerida pelos vaqueiros. Eles disseram que os vaqueiros mortos precisavam ser homenageados nesse dia, pois, só assim, a festa estaria completa. Emocionados, cantaram: O Cristo que é Pai dos pais Eu sou um homem animado Gosto de ler uma história De um sujeito preparado Tou perto do cemitério Que Leto tá enterrado. Severo A morte mata o vaqueiro Dá as costa e vai embora Depois que matou o Leto Eu sei que a morte chora Escreveu o nome no livro Pra não sair da memória. Zé Val Logo após o término da Alvorada, os vaqueiros se dirigiram para o café da manhã que foi preparado para todos eles e doado por Aparecida Gonçalves, médica e fazendeira da região. Nas mediações da Fazenda Campo Alegre, aconteceria a Missa do Vaqueiro, e foi pra lá que os vaqueiros começaram a se dirigir. A Missa é uma celebração de desejos dos vaqueiros da região e se constitui como uma das mais importantes expressões da religiosidade popular. Lembra o forte elo entre música e religião, existente em muitas culturas. É um vínculo de identidade do homem do campo, portanto a Missa do Vaqueiro, celebrada ao ar livre, foi o ponto alto das celebrações religiosas do Festival. Foto: Augusto Pessoa 77 De z emb ro de 2 005 , Mi ssa do Vaqu ei ro celeb rada p el o Pad re Jo ão Isid ro . A Missa foi celebrada pelo Padre João Isidro, vigário geral da região, e concelebrada pelo pároco Manoel Alves, padre da cidade. João Isidro, identificado com a cultura popular, usou o chapéu de couro e o gibão. A abertura da Missa se deu com a condução da imagem de Nossa Senhora Aparecida que foi entregue por alguns alunos da Escola Estadual ao celebrante, ao som da música Romaria, de Renato Teixeira. Tocadores de viola, repentistas e vaqueiros da região participaram ativamente da Missa, a exemplo de João Cego, que, cantando em versos “Já cansei de tanto pecar”, conduzia as pessoas à reflexão e ao arrependimento: Já tou cansado de viver tanto pecado Aqui no mundo tão desobediente Sentindo o mal do pecado me matando Este veneno é a malícia da serpente. Sendo assim não adianta eu pecar Porque o pecado é quem mata vida Vou viver mais Jesus e vou amar Ele é a luz, o caminho e a vida. Do pecado só recebo de vantagem A falsidade e também a injustiça Vou amar meu Jesus com coragem. 78 “Deus se manifesta em nossa cultura para dizer que está no meio de nós”, falou o padre Manoel, e o Pe. João Isidro “aboiou” o trecho do Evangelho que se refere à anunciação do anjo à Maria. Uma das estrofes cantadas foi essa: Maria então respondeu: Sou a serva do Senhor Que em mim tudo se faça Com muita paz e amor E o anjo ouvindo isto Pro seio de Deus voltou. Oi... Durante o ofertório, os presentes dos vaqueiros foram feitos em aboio. Todas as peças do vestuário, as dores, a luta e o sofrimento foram oferecidas ao santo em quem cada um acreditava. Vejamos o que cantou Zé Preto: Oi vida de gado, oi pasta aboiada Tô aqui para aboiar Seja o que Deus quiser Aboiar para os ouvintes Homem, menino e mulé Os vaqueiros vestiu-se todo Pego o meu chapéu de couro Dô de oferta a São José Ôi... Biu Gordo e Antônio, repentistas da região, disputaram o tema da Paz. Após a Eucaristia, o padre João benzeu os vaqueiros e os cavalos. Terminada a missa, os vaqueiros acompanharam um carro de som que traçou um percurso ao redor da cidade. Durante a cavalgada, vaqueiros aboiadores cantavam aboios até chegada na praça local onde o Festival aconteceu. Violeiros e vaqueiros se revezavam no palco. Aboiadores de São José e das cidades circunvizinhas cantaram aboios, a partir de temáticas as mais variadas. Os repentistas, inspirados no gosto do povo, homenageavam os vaqueiros que ali se encontravam. 79 Próximo ao encerramento do Festival, Zé Preto recebeu das mãos do Secretário de Estado, Prof. Neroaldo Pontes, uma fotografia em que aparece vestido de gibão, montado no seu cavalo Cravo Branco. E, nesse instante, Zé Preto chorou não somente de emoção, mas também por ter plena consciência do valor do seu trabalho, até então desvalorizado, sem nunca ter sido reconhecido como uma profissão. O evento entrou oficialmente no calendário do município, e o resultado que podemos constatar foi o envolvimento da comunidade, o reconhecimento da cultura e a valorização da experiência dos artistas e artesãos da cidade e regiões vizinhas. 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS 81 Para concluir este trabalho, precisei muitas vezes compreender a marcha “como um velho boiadeiro levando a boiada”. Em contato com a comunidade, ao longo do trabalho, pude, junto com os professores e alunos das escolas envolvidas, trazer para o “centro” muitos mestres que estavam escondidos e envergonhados de expor o que sabiam fazer, pois achavam “que tinha caído da moda”. A idéia da Feira de Cultura e o I Festival de Aboio foi um viver de talentos, de vozes cantando, de violas afinando, de mãos trabalhando; foi também uma chuva de desabafos e desafios. A roupagem de couro dos vaqueiros se tornava visível pela cidade e também o canto espontâneo desafiava as rimas. Em virtude do I Festival de Aboio, os meios de comunicação de massa se fizeram presentes em São José dos Ramos durante todo o dia três de dezembro de 2005. A TV Tambaú, a TV Universitária, jornalistas do Correio da Paraíba, O Norte e da União, além da Rádio FM de Itabaiana deram cobertura ao evento. Recentemente, a TV Cultura produziu uma matéria sobre o Festival, em parceria com a TV Universitária que ainda será exibida em rede nacional. Enfim, durante a realização da pesquisa, surgiu a idéia de fundar uma ONG – Casa da Cultura de São José dos Ramos, que se concretizará no próximo mês de julho. O II Festival de Aboio, com data marcada para os dias dois e três de dezembro de 2006 próximo, será uma realização da comunidade, 82 dando continuidade ao Projeto desenvolvido naquela cidade. A troca de experiências comunitárias trouxe, no coração, a força do canto dos vaqueiros aboiadores e as alegrias e dores do povo de São José dos Ramos. 83 ANEXOS 84 ANEXO A – JORNAL O NORTE 85 ANEXO B - JORNAL CORREIO DA PARAÍBA João Pessoa, sábado 3 de dezembro de 2005 86 ANEXO C – REVISTA DE TURISMO ANEXA AO JORNAL A UNIÃO DO DIA 23 DE DEZEMBRO DE 2005 87 88 89 90 91 ANEXO D – LETRA DA MÚSICA – TOCANDO EM FRENTE AUTORES: ALMIR SATER E RENATO TEIXEIRA 92 BIBLIOGRAFIA ALENCAR, José de. 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