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ENSINO CONTINUADO • 1998 • A LETRA · 10ª AULA
A noção de Real no último Lacan
J.A.Miller: “El Monólogo de l’Apparole”
Márcio Peter de Souza Leite
17 de setembro de 1998
Como fica a noção de estrutura no segundo Lacan? Não se trata mais da estrutura de Saussure,
que é uma relação de elementos. Lacan relativiza isso e mudando a noção de estrutura, muda o
referencial. Em L’Étourdit, ao propor uma definição de estrutura como “o real que abre passos na
linguagem” está dizendo que a estrutura é o real, portanto o que interessa saber é o real.
No Monólogo de l’Apparole, Miller compara a primeira clínica de Lacan com a segunda, faz um
resumo, especialmente das conseqüências clínicas dessa virada teórica. Nesse texto (O monólogo
de l’apparole, apostila pág. 56) introduz uma ordem das razões e o primeiro elemento que ele
aborda é a noção de estrutura. Realmente, no primeiro Lacan a linguagem é definida a partir da
noção de estrutura. Na afirmação “O inconsciente é estruturado como linguagem” o mais
importante é a idéia da estrutura, é a leitura saussuriana da linguagem como estrutura. Quando
Lacan passa de linguagem, de língua, para alíngua, o que muda é a noção de estrutura. A
linguagem não é mais pensada como estrutura, ela é pensada como real.
O importante para nós é saber o que é o real para Lacan (Éric Porge - Resumo sobre o real em
Lacan, apostila pág. 233). A noção de real é o eixo que organiza toda clínica e toda teoria no
segundo Lacan. Diz Porge no início: “Para falar do termo real em Lacan partirei do fato que Lacan
o inventou”. Isto significa que o real de Lacan não tem nada a ver com o real da ciência ou da
realidade no uso comum, não tem também a ver com a realidade psíquica de Freud.
A questão é: o real da psicanálise não é o real da ciência na medida que é a ciência que trabalha o
real, toda abordagem positivista da ciência é uma metodologia para dar conta do real. O real
positivista da ciência é definido como aquilo que se impõe, independentemente de um sujeito. Em
Ciência e Verdade, Lacan diz que a ciência se caracteriza pela foraclusão do sujeito; na ciência o
real não é o que se pensa, ele é em si mesmo, independentemente de um pensamento sobre ele.
Para a ciência atual o científico é quando o sujeito, fica excluído do pensamento sobre o objeto.
Essa é a noção de real na ciência.
Miller está dizendo que o real da psicanálise não é o real da ciência. Na verdade não chegamos a
dizer o que é o real da psicanálise, dizemos o que ele não é. Também para Freud o real não era o
real da ciência, que é o material, o objetivo. Para Freud o real era a realidade psíquica. Freud
trabalha o real do pensamento sobre a realidade, a representação.
Será que para Lacan o real é a realidade psíquica? Até um certo ponto, podemos dizer que sim,
mas o real de Lacan é mais do que isso. Como entender o real como o que abre passos na
linguagem, segundo a definição de Lacan? A realidade psíquica seria a estrutura? Não, porque a
realidade psíquica já é uma conseqüência da estrutura. Acho que o real de Lacan está um passo
antes disso; ele não é a realidade psíquica, mas sim o que condiciona a realidade psíquica. A
estrutura de linguagem do inconsciente é a realidade psíquica, mas não é o real. O real inventado
por Lacan é o conceito principal na segunda clínica de Lacan porque do que se trata na direção do
tratamento, é da abordagem do real. Há um saber no real, é nesse saber que está a verdade, não
no saber produzido pelo sentido. Toda a formalização teórica não passa afinal de uma tentativa de
se dar conta desse saber no real. Eu diria que atualmente demonstrar o real é uma missão
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impossível, estamos ainda na crença naquilo que Lacan disse. Para nós interessa saber sobre o
real para chegar na prática clínica, pois trata-se de uma reformulação da postura do analista, no
dispositivo analítico.
Saber sobre o real é saber sobre a estrutura para poder chegar na prática, é uma reformulação da
postura do analista frente ao fenômeno com o qual ele está interagindo. O analista já não está
mais no lugar do A colocando em jogo a combinatória significante, ele está apenas dentro do
discurso dirigido a ele, a partir do escrito na palavra. Aí entra essa noção de escritura de
linguagem, não como a estrutura saussuriana, mas como esse real que condiciona a linguagem.
Essa materialidade interessa, que materialidade é essa? É o saber? Uma questão muito
sofisticada. Se é o saber como vai o analista agir?
É a interpretação pelo avesso, é a leitura atual que se faz do gozo, a partir do ponto de vista
econômico. A partir de uma redução simbólica vai se deslocar o saber do gozo que o suporta, e a
cura se dá pelo ato e não pelo saber. Uma redução qualitativa que é ligada ao simbólico e uma
redução quantitativa que é o efeito da ação de juntar isso do outro.
A questão do saber: É aí que se vai colocar em questão o ponto de vista econômico, é o que
presentifica a concentração de libido em determinadas representações. O texto de Freud “Inibição,
Sintoma e Angústia” é onde Freud nos ensina que a cura não passa pelo saber, é onde ele muda
toda a sua abordagem clínica.
A noção de real em Lacan tem que ser compreendida a partir do nó borromeano, figura topológica
cuja idéia principal é de algo que articula uma coisa com outra, na qual nada é em si mesmo, idéia
muito diferente da noção de real da ciência, que é de algo que está lá, presente. A noção de real
em Lacan não é fácil, não é óbvia, não se compreende de imediato. Ela teria mais uma
sustentação topológica que é uma formalização pouco acessível para a maioria das pessoas. Se o
real fosse a materialidade que sustenta, a partir do imaginário, a produção simbólica de um sujeito,
isso seria fácil de ser entendido, mas não é isso que Lacan diz. Se a noção de real não é óbvia, a
noção de estrutura, também não é óbvia.
A próxima questão que o Miller coloca é sobre alíngua. Se a linguagem, embora existente não é
mais a linguagem saussuriana, se “a linguagem é a elucubração sobre alíngua”, que é a definição
de Lacan no Seminário XX, então o que é a linguagem? É uma conseqüência de alíngua. Então
esquecemos a linguagem e vamos pensar a alíngua. No entanto, o que é alíngua? É uma
estrutura? Miller diz que não. No dispositivo analítico não há diálogo, diferentemente do discurso
como laço social, onde há uma certa possibilidade de comunicação. Lacan diz que não existe
comunicação, existe apenas o discurso como laço social, onde pensamos que nos comunicamos a
partir de um mal-entendido, a comunicação nunca é total, é apenas semblant do mal-entendido.
Isso não quer dizer que não haja um certo nível de comunicação, não há a comunicação total
absoluta, por isso Lacan diz que não existe a intersubjetividade, existe apenas a intrasubjetividade.
A segunda clínica vai ampliar essa noção no dispositivo analítico, que não é o laço social. No
dispositivo analítico, pode ser deixado em suspenso esse desejo de comunicação. Se não existe a
intersubjetividade como é que apesar disso nós nos comunicamos? Essa é a mesma questão da
filosofia atual, que também não acredita em comunicação.
É uma filosofia baseada na idéia que não existe o sujeito, só existe “mind”, existe uma atividade
neuronal que produz efeitos. Como uma atividade neuronal pode se relacionar com outra? Como
um aparelho neuronal pode se relacionar com outro? Pelos efeitos, pelas sinalizações. Haveria
comunicação humana da mesma forma que há comunicação entre os animais e que há
comunicação entre as máquinas, os computadores. Seria o mesmo princípio. Um computador se
comunica com o outro? Na verdade, no sentido antigo que se dá para comunicação, as máquinas
não se comunicam embora possam se relacionar, como os computadores em rede. A comunicação
humana é diferente porque pressupõe um sujeito.
A pergunta que se impõe é: Porque achamos que falamos a mesma coisa? Porque achamos que o
que o outro entende é o mesmo que queríamos dizer? Como é que se produz o sentido? A
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resposta da filosofia analítica é diferente da resposta da psicanálise. Miller sugere que para Lacan,
“the meaning is use”, um consenso de significação, socialmente compartilhado. Supomos que
entendemos a mesma coisa, desde que essa mesma coisa seja operativa. Isso dá certo na
maioria das vezes. É a idéia de funcionalismo. As máquinas produzem algo que funciona, no
sentido de uma comunicação, como os computadores fazem, é uma troca de comunicações que
funciona a partir de um código compartido, uma convenção compartida. O analista, por saber
disso, não dá tanta importância à noção de comunicação. Quando o analista está escutando o
paciente, ele não está preocupado com o que o paciente está querendo dizer, ele está preocupado
com a alíngua, a linguagem na qual está sendo dito, embora tenha sempre que fazer um semblant
de sentido, que é o que o leva a aceder ao outro. Mas esse sentido é sempre apenas um semblant,
não tem algo que queira ser dito, isso porque o dispositivo analítico permite ir além do sentido, ao
contrário das práticas psicoterapêuticas que nunca saem do sentido e são menos operativas,
menos eficazes que a prática analítica.
A prática analítica segundo Lacan, é tentar incidir na alíngua do sujeito e não na linguagem dele a
partir da idéia que a linguagem está condicionada por alíngua. O limite dessa clínica seria a
psicose, a psicossomática, porque não existe linguagem que dê conta dessas situações, ao
contrário da neurose, porque a paixão do neurótico é o sentido. Se a análise é operativa na
neurose é porque consegue reduzir a linguagem na neurose a alguns significante que condicionam
o sentido e à fantasia que condiciona esses significante. No sujeito que dirige um discurso ao
outro, existem esses elementos discretos que é a linguagem, que é a palavra que ele repete, com
fonemas, morfemas, é o uso que o sujeito faz da linguagem.
A alíngua é muito parecida com a língua materna; para aquele sujeito a vocalização que ele faz o
remete a certos elementos mínimos, essa é a idéia da alíngua, e a articulação desses elementos
mínimos é a fantasia. A fantasia, está sempre ligada à produção de sentido e a alíngua não está. A
alíngua precede a fantasia que vai condicionar o sintoma, que é a maneira particular pela qual um
sujeito usa a alíngua, isso é o sintoma. A alíngua é a materialidade da coisa que o sujeito articula
de uma certa forma. A forma pela qual um sujeito articula a alíngua é a fantasia.
Na clínica não se aponta a alíngua, isso é uma construção do analista. A linguagem existe mas
condicionada pela alíngua e o sintoma é a maneira pela qual o sujeito usa a linguagem. Lacan
desconsidera a linguagem como elemento útil e privilegia a alíngua para sair da idéia do
estruturalismo saussuriano e do sentido.
Como pensar isso na prática clínica da interpretação? A primeira clínica de Lacan baseava-se num
“querer dizer”, o analista no lugar de A, se perguntava o que será que ele, o paciente, está
querendo dizer? Supunha-se sempre que o paciente estava falando algo que queria dizer outra
coisa. Interpretava-se não o que ele estava falando, mas a significação oculta e implícita,
interpretava-se dando um sentido ao que estaria oculto sob o conteúdo manifesto.
Na segunda clínica de Lacan não é mais assim e embora não se anule a primeira clínica vai-se
mais além, porque aponta-se não mais ao querer dizer mas ao querer gozar, aponta-se ao gozo
próprio do paciente, e a pergunta é: ao me falar sobre isso, onde está o gozo? Não se interpreta o
gozo, mas trabalha-se sobre ele. Como? Depende da prática e da habilidade do analista, é da
ordem da experiência, o paradigma da interpretação que aponta o gozo, é o corte da sessão, uma
forma de intervir e de apontar o gozo.
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