04 | Y 22|JULHO|2005
música|reportagem
qual é a
chave
que abre o
castelo
de chuchurumel?
Fui à serra à carqueja / Empanquei num sargaço /
Onde está a chave do “castelo de
Chuchurumel? Em Quadrazais, Aldeia do Bispo,
Trancoso e Miguel Chôco. Está com mulheres cuja voz foi
moldada ao longo dos anos e de aventuras de contrabando.
Os Chuchurumel – os músicos César Prata e Julieta Silva,
com convidados – registaram documentos sonoros destas
mulheres a cantar tradicionais, reinterpretaram temas
a partir de um leque de instrumentos que vai da guitarra
acústica ao piano e que inclui electrónica e instrumentos
percussivos inventados. É a música de “No castelo de
Chuchurumel”.
JOÃO PACHECO texto | LIONEL BALTEIRO fotografias
Ninguém se fie nos homens / Que até no andar são falsos
08 | Y 22|JULHO|2005
música|reportagem
a ideia inacabada
A ideia é óptima: os Chuchurumel (César Prata e Julieta
Silva, com músicos convidados e amigos nas recolhas)
percorreram as aldeias da Guarda, registaram documentos
sonoros de malta mais velha a interpretar canções
tradicionais ou a falar de outros tempos, reinterpretaram
alguns desses temas a partir de uma base sonora que inclui
um leque de instrumentos que vai da guitarra acústica
ao piano (eléctrico?, podíamos jurar que sim) passando
por gaitas-de-foles, acordeões, concertinas, ocarinas,
braguesas, etc.
Mais: há pedras e pausas a executarem funções percussivas
e uma série de instrumentos percussivos construídos por
César Prata. A isto alia-se uma componente electrónica,
que não estando omnipresente também não é despicienda.
A ideia é óptima.
Curiosamente, resulta melhor quando a coisa se atém
aos instrumentos tradicionais (em particular quando o
acordeão ou a guitarra estão presentes), nos momentos
mais dançáveis e cantados (isto apesar das vozes de Júlia
Fonseca e Maria Augusta Moleira ainda precisarem de
maior confiança) do que nos que apostam na electrónica
ou numa veia mais experimentalista. Exemplos? A
“ciganada” de “Castanheira da Serra” (acordeão, guitarra
e adufe) e voz; ou “Aninhas” (também de recolha), quase
valseada.
E depois há momentos de maior experimentalismo,
como o bordão repetitivo de “Se soenes crunhe penhar”,
pejado dos tais “sons”, provavelmente provenientes de
instrumentos por eles criados. Há intersecção de cantigas
recolhidas com instrumentais dos Chuchurumel, como
em “Canção da azeitona” (a recolha é magnífica) que vai
desabar num tema com o piano ao comando enquanto o
grupo faz um novo arranjo vocal para o tema da recolha.
Há também uma óptima recolha que parece inalterada: “A
senhora do desterro”. E originais construídos a partir de
simples melodias que soam a tradicionais, como “Castelo
Rodrigo”, baseados num instrumento melódico, alguma
percussão e sons digitais ou de instrumentos inventados
– neste caso acabam com gaita e castanholas. São os
melhores momentos do disco, estes em que se aposta na
simplicidade melódica.
Qual é, então, o problema de “No Castelo de
Chuchurumel”? É que à ideia não corresponde uma prática
condigna: o cruzamento dos samples das recolhas não
se integra plenamente com o fundo instrumental criado
pela banda, o alargado uso de percussões peca pela fraca
captação dos mesmos (é preciso mais cuidado com a
produção), o que impede crescendos ou multiplicidade
de leitura (quase sempre acontece pouca coisa, aqui),
há opções sonoras que são de lamentar, nomeadamente
alguma da electrónica. Lá está: se idealmente a intromissão
da digitália nas recolhas (ou nas melodias que reproduzem
temas de recolhas) seria meta apetecível (pegar num
discurso localizável no tempo e contextualizável no modo,
na forma e na função social e redefini-lo de acordo com
coordenadas estéticas da modernidade, assim reescrevendo
a noção de folclore), na prática peca pela mais mesquinha
das razões: uma certa inocência no modo de usar as
estruturas digitais e uma certa autocomplacência nos
próprios sons escolhidos enquanto ornamento.
Mas não é só: alguns temas alongam-se em demasia,
outros não dão chance à melodia. Como se se castrassem
por autoimposição ou regras pré-definidas.
Um disco falhado? Não. Tem temas que funcionam bem,
tem rascunhos de ideias, pontas por pegar futuramente
– acima de tudo duas: maior predominância dos
instrumentos melódicos em temas de “dança” e uma ainda
maior aposta nas percussões “inventadas” em conjugação
com as electrónicas. Falha no seu inacabamento e, por
vezes, falta de força. Mas é um começo com área de cultivo
e sementes suficientemente viçosas para um dia resultar
em bom fruto. Por enquanto está verde. João Bonifácio
CHUCHURUMEL
No castelo de Chuchurumel
Ed. Autor
6|10
Se você quiser entrar / Na casa da namorada, / Ande-me sempre bem posto / Ainda que dinheiro não haja
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Y|07
reportagem|música
Fnac do Colombo depois de amanhã – em quadrazenho, depois
de amatriz.
maria augusta moleira
quer um rapaz novo que não tenha dentes
Já foi morada de gente com alcunhas como Tomba-Lobos, Ratatau,
Boxaxê, Mata-o-Boi ou Manhonho, segundo escreveu o estudioso
de origem quadrazenha Josué Pinharanda Gomes. Quadrazais é
hoje uma terra de mulheres de negro e filhos emigrados. Vive-se
longe dos números demográficos de 1950, quando os responsáveis
por um censo lhe descobriram 4000 habitantes. Agora as ruas têm
pouca gente, sobretudo mulheres de idade avançada. A população
da freguesia andará pelos 800 habitantes – incluindo a povoação
de Ozendo – segundo o “site” da Câmara Municipal de Sabugal.
No dia combinado, Julieta Silva e César Prata voltaram à aldeia
raiana para entregar a Maria Augusta Moleira exemplares de “No
castelo de Chuchurumel”, a serem distribuídos pela família. Um
vizinho havia sido mobilizado para a tarefa de vigiar a chegada do
automóvel dos visitantes, mas ter-se-á distraído com o calor. Outro
vizinho sugeriu que Dona Maria Augusta – não estando em casa
– teria ido à venda.
Afinal estava a chegar: subiu a rua íngreme sem esforço, acompanhada pela mulher do Presidente da Junta e por outra quadrazenha
emigrada. Antes de entrar em casa absteve-se de puxar as orelhas
ao vizinho que não cumprira a sua função de vigia, um homem de
setentas que insistia ter permanecido sempre ali.
De pé na sala de estar da vivenda confortável de Maria Augusta, as outras duas mulheres tentam assumir os papéis de personagens principais da acção. Agarram-se a fotocópias e cantam
uma encomendação das almas. Descrevem como tudo acontecia
durante a Quaresma em Quadrazais: ao fim do dia vários grupos
encomendavam as almas ao mesmo tempo a partir de pontos
elevados da aldeia.
Maria Augusta conhece uma forma diferente de encomendar
as almas, as outras mulheres encolhem os ombros e dizem: “Ela
já não sabe”. Não: o papel é que está mal escrito, garante Maria
Augusta. As duas personagens secundárias não desistem: começam agora a cantar um hino de Quadrazais, composto em 1940.
Nenhuma das palavras do hino é em quadrazenho e a melodia
nada tem a ver com os cantares essenciais que a ex-contrabandista
sempre conheceu.
Talvez por isso Maria Augusta fica contente com a ideia de subir
de automóvel até ao Talefe. As personagens secundárias não cabem no carro, têm de ficar para trás. De resto já estão habituadas
a ficar para trás, no que toca a idas ao Talefe: a sardinhada que os
homens fazem lá em cima é só para homens, nem sequer a mulher
do Presidente da Junta participa. A caminho do carro Maria Augusta
Moleira põe-se a cantarolar: “Fui à serra à carqueja / Empanquei
num sargaço / Ninguém se fie nos homens / Que até no andar são
falsos”. E acrescenta: “ou nas mulheres, que é igual”.
No regresso a casa lamentará o estado dos terrenos que antes
eram cultivados e agora são só mato. “Era tão bonito o tempo do
trabalho”. Agora o que queria mesmo era um rapaz novo, que não
tivesse dentes. Que trabalhasse e não comesse.
para júlia fonseca
não há toque como o da concertina
Junto à estrada entre Quadrazais e Sortelha há um reservatório
de água pintado de branco onde alguém escreveu: “Portugal de
tanga. Boa!”. Com a bagageira cheia de carqueja e rosmano e o
termómetro do carro a apontar 30 graus, a hora de almoço apanhou os Chuchurumel perto de Sortelha. Esta aldeia muralhada
tem um castelo de conto tradicional que poderia ser o castelo da
lenga-lenga sobre a chave do castelo de Chuchurumel.
A lenga-lenga começa com: “Aqui está a chave que abre a porta
do castelo de Chuchurumel”. E continua: “Aqui está o cordel que
prende a chave que abre a porta do Castelo…” E por aí adiante.
As chaves ver-se-ão mais tarde, penduradas numa parede da casa
onde Julieta Silva vive com o marido: professor de equitação e
agricultor em potência. Mas o lugar de Miguel Chôco ainda está
muito longe e neste momento nada faz prever o que viria a ser o
coelho à Chuchurumel.
Comidas as bifanas e o chouriço assado à Sortelha, há que voltar
à estrada em direcção a uma das aldeias portuguesas que se chama
Aldeia do Bispo. Esta é no concelho da Guarda e é a terra de Júlia
Fonseca, outra das “informantes” que aceitaram cantar para os
microfones dos Chuchurumel. Pelo caminho passa-se por
chamada Rosa Maria
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música|reportagem
Do cimo do Talefe ouve-se o som do vento sobre os pinheiros.
Lembra a rebentação das ondas ouvida a partir da praia. O Talefe
também é conhecido por Cruz da Terra, faz parte da Reserva
Natural da Serra da Malcata e cheira à carqueja raiana com que
se há-de temperar o jantar. Para ver Espanha é desnecessário
subir à torre de observação, essencial em época de incêndios. A
Reta Frenha é “aquele alto que se vê ali ao longe”, aponta Maria
Augusta Moleira. Era por aqui que iam os contrabandistas, sempre a pé pelo caminho da “Reta Frenha”. O que em na gíria de
contrabandista de Quadrazais significava “Espanha”.
À frente caminhavam as mulheres, sempre a cantar. Os homens
seguiam 100 metros atrás, dissimulados pela noite. Num esforço
histórico à professor Hermano Saraiva, imagine-se que cantavam esta canção enfeitiçada:
“Menina dê os seus olhos / Olha por quem eles
se mata / Azeitona cor de bílis / Ai traz o caroço
escondido”. Até que apareciam os agentes da
Guarda-Fiscal. Havia um sargento que era gago, conta Maria
Augusta divertida. E lá vinha a pergunta: “Ó seus diabos, o que
vêm vocês a cantar?”. As mulheres calavam-se.
Era o sinal: quando os contrabandistas deixavam de ouvir
o cantar feminino davam logo às de Vila Diogo, que é como
quem diz corriam a bom correr para escapar à autoridade
fronteiriça. Nesses tempos a fronteira era coisa séria: defendiam-na guardas armados e leis que valeram dois períodos
de prisão a Maria Augusta Moleira, ex-contrabandista e uma
das vozes de “No castelo de Chuchurumel”, o primeiro álbum
dos Chuchurumel.
Para construírem o seu “Castelo” os Chuchurumel reuniram
versões de músicas tradicionais portuguesas. E também algumas
gravações de conversas e cantares recolhidos em aldeias como
Quadrazais. Impunha-se o regresso aos sítios e às vozes que
ajudaram a construir o disco, para o grupo oferecer o produto
acabado – e para os leitores do Y conhecerem os ingredientes
deste som.
Uma particularidade do álbum dos Chuchurumel é a música
“Se soenes crunhe penhar”, raro exemplo de música tradicional
de Quadrazais palavreada em quadrazenho. Na gíria secreta
dos contrabandistas desta aldeia do concelho do Sabugal, “se
soenhes crunhe penhar” significava “se você quiser entrar”. Percebe-se logo o tom da cantiga pela primeira
quadra traduzida para português legal: “Se
você quiser entrar / Na casa da namorada,
/ Ande-me sempre bem posto / Ainda que
dinheiro não haja”. Ou em quadrazenho:
“Inda que galhal não haja”.
Nem sempre a choina côpia penha, ou seja, nem sempre a noite
boa está. Não havendo luar eram as estrelas que iluminavam a terra
sob os pés, apenas o bastante para ser possível vencer o relevo
do “caminho direito”, como os contrabandistas quadrazenhos
chamavam ao trajecto mais curto até Espanha. Sendo noite de luar
Maria Augusta conseguia dar uso aos alipantes sem dificuldade.
Adicava onde pôr os pés para não empancar em sargaços. E sobretudo para evitar os fachos. Os fachos eram os guardas-fiscais
espanhóis e portugueses, está bem de ver. Andavam sempre à
coca daqueles quadrazenhos de má raça, aqueles diabos que
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palmilhavam a raia escondidos pela noite e pela vegetação. Os
quadrazenhos levavam às costas carregamentos de produtos de
contrabando e usavam palavras secretas como “Reta Frenha”,
“alipantes” ou “adicar”. Ou seja “Espanha”, “olhos” e “ver”, na
gíria de contrabandista de Quadrazais. “Era sempre mais esperto
o contrabandista que o guarda, como os ciganos.”
Apesar da esperteza lendária dos quadrazenhos, a comida
escasseava: alhos com pão era o “farnel de pobre” que Maria
Augusta Moleira e os outros contrabandistas levavam para a
serra. Não dá para esquecer a fome nem as noites em trânsito:
ficaram marcas em cada canção. A voz da ex-contrabandista foi
sendo moldada pelos trabalhos de 87 anos e hoje soa como se
já não fosse apenas de uma mulher. É a voz de toda a terra e a
voz da carqueja que mais à frente há-de temperar um coelho à
contrabandista, transformado em coelho à Chuchurumel. Na voz
de Maria Augusta vêem-se estes montes abandonados ao mato,
o invisível lince da Malcata e os contrabandistas de Quadrazais,
quase tão extintos como o lince.
Por ter essa voz da terra e continuar a cantar como fez toda a
vida, Maria Augusta dá uma consistência única às músicas gravadas
pelos Chuchurumel. “Chuchurumel” soa quase a quadrazenho e
esconde os nomes de Julieta Silva e César Prata, dois músicos que
partem da música tradicional portuguesa para criar um som ao
mesmo tempo tradicional e inovador. E ecológico: “No Castelo de
Chuchurumel” vende-se embalado em sacos feitos com restos de
tecido, para poupar papel e plástico. Toda a informação adicional
está disponível no site www.chuchurumel.com. O “Castelo” vai
ser apresentado amanhã nas Fnacs de Almada e de Cascais. E na
Numa aldeia alentejana / Onde o Sol fez maravilhas / E uma ditosa cigana / Deu à luz duas filhas / Uma chamada Maria Rosa / E outra
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reportagem|música
placas toponímicas como “Dirão da Rua” ou “Barroco do
Leão” e é difícil não pensar na quantidade de Marias Augustas
Moleiras e Júlias Fonsecas que poderiam justificar ainda novas
recolhas como as efectuadas há dezenas de anos por equipas
como as de Michel Giacometti.
A chegada a Aldeia do Bispo serve de exemplo para futuros
planos turísticos que incluam zonas demarcadas de incêndios. “Já
nos arderam as arvorezinhas duas vezes este ano.” Ainda há dias
Júlia Fonseca enfrentou as chamas que subiam monte acima em
direcção a Aldeia do Bispo. Foi para a horta e impediu o avanço
do incêndio empunhando um regador, que ia enchendo com água
do tanque. Diga-se de passagem que água é coisa que não há
desde Maio nos fontanários ligados à rede pública do município
da Guarda. Segundo o aviso afixado no fontanário junto à igreja
de Aldeia do Bispo, a situação de seca extrema é o motivo desta
medida tomada pela comissão de crise do município da Guarda.
De volta ao incêndio, claro que além do regador de Júlia
Fonseca também lá andavam bombeiros e meios aéreos, mas
é impossível duvidar dos olhos brilhantes desta senhora de 79
anos e saúde de ferro, ou de outro metal menos enferrujável.
“Atalhei o fogo ali.”
Quando não está a apagar fogos com água do tanque, Júlia
Fonseca estará a apanhar batatas às seis da manhã ou a bordar
de costas para a televisão. Bebe água da fonte como sempre fez
e canta. “Cantei sempre. Toda a vida a cantar. A gente passou a
vida sempre amargurada. Naquela altura era fome, peste e guerra.
A gente com fome tinha vontade de cantar, dançar.”
Aos 12 anos foi trabalhar para a ceifa, para Belmonte. Apesar de
toda a exploração laboral de que foi alvo, trabalhar nos ranchos da
ceifa serviu-lhe para aprender canções e canções e canções. Não
se lembra de todas mas há dias em que lhe voltam à cabeça sons
desses tempos, de quando esperava que o seu rancho fosse escolhido
por um patrão para mais um dia a ceifar de sol a sol. A madrugada
começava na praça dos ranchos na Guarda, onde fica hoje o Hotel
Turismo. Todos cantavam e Júlia ia aprendendo cantigas novas.
Começado o trabalho era cantar para não perder as forças.
“Começando a cantá-las, sei-as: há uma de que só sei um verso,
mas ainda hei-de desencantá-la.” O chuchurumélico César Prata repete
embevecido “desencantá-la, desencantá-la”… Júlia Fonseca passa à
frente e canta “o verso” já desencantado: “Numa aldeia alentejana /
Onde o Sol fez maravilhas / E uma ditosa cigana / Deu à luz duas filhas
/ Uma chamada Maria Rosa / E outra chamada Rosa Maria”.
No céu as andorinhas voam loucas e cá em baixo, em frente à
igreja de Aldeia do Bispo, Júlia conta o que é ganhar as alvíssaras.
Um dia por ano, o primeiro a tocar o sino da igreja a seguir à meianoite ganha as alvíssaras, que não são nada de palpável. Houve
um ano que os rapazes ainda estavam a correr pela torre sineira
acima e o sino tocou sem que lhe mexessem. Não foi bruxaria:
uma vizinha tinha preso uma corda ao sino e bastou-lhe vir até à
porta de casa e puxá-la para ganhar as alvíssaras.
Ali ao lado, sentados à sombra da Igreja, quatro raparigas e um
rapaz jogam à batota. “Trunfo é quê? Espadas.” Em casa de Júlia
Fonseca há apontamentos de escola esquecidos ao pé da televisão:
qualquer coisa sobre a força da gravidade. Chega a hora de a estrela
do grupo de cantares de Aldeia do Bispo falar com tristeza dos gostos
musicais dos netos: “Eles agora só querem aqueles fandangos: tão
tão tão… Para mim não há toque como o da concertina”.
A mina de água é um túnel onde mal cabe uma pessoa de gatas.
Ao passar por lá Júlia começa a falar mais baixo, e conta com ar de
menina travessa: “Quando eu era garota entrava aqui por baixo e
saía lá em cima”. Daqui não se vê, mas lá em cima é no topo de uma
encosta. Essas aventuras foram há muito tempo. Júlia Fonseca foi
obrigada a crescer depressa e muitas vezes pedia a Deus que lhe
realizasse desejos surreais, mais próprios de uma criança perante
Aladino. “Pus tantas vezes as mãos”, pedindo a Deus que deixasse
“os ricos pobres e os pobres ricos”. O desejo nunca foi atendido
mas desde o 25 de Abril muitas coisas mudaram para melhor, diz.
Refere-se também às pensões de reforma: “Se não fossem as tenças
estávamos noutra crise como as de antigamente”.
césar prata e julieta silva
na sala de ensaios
Na voz de Júlia Fonseca encontra-se uma das chaves para o castelo
de Chuchurumel. Tal como na voz e nos olhos da ex-contrabandista
quadrazenha. Ou na sua receita de coelho temperado com arbustos da serra como a carqueja, rosmano e segurelha. Mas não fôra
César Prata e Julieta Silva e não poderíamos ouvir preciosidades
como “Se soenes crunhe penhar”. Talvez esteja então em Trancoso
uma das chaves do castelo.
A sala de ensaios dos Chuchurumel ocupa uma parte do sótão
da casa em Trancoso onde vive César Prata e família. César nasceu
na Guarda há 42 anos e é professor de Português e História, des-
há instrumentos musicais
na parede, no chão, em
estantes. vários foram
inventados e construídos
a partir de materiais
orgânicos como canas
e feijões
tacado este ano para os serviços de acção cultural do município da
Guarda. E é músico, autor entre outros de “Canções do Ceguinho”
(2003), um álbum tão bom como desconhecido, composto a partir
de folhetos de cordel de faca e alguidar.
Mas voltemos ao “Castelo de Chuchurumel” e à sala de ensaios de
César Prata. Este canto de sótão só por si já justificaria a viagem: há
instrumentos musicais na parede, amontoados no chão, arrumados
em estantes. Vários foram inventados e construídos pelo próprio
César Prata, a partir de materiais orgânicos como canas e feijões.
Mas também pedras, caleiras, paus, cestos para fruta, sebes de
caninhas que costumam servir para delimitar espaços em jardins… E
“piercings”, peneiras, cabaças, potes de barro ou copos de nora.
Miguel Chôco fica a poucos quilómetros deste sótão de Trancoso. Julieta Silva vive neste lugar onde a estrada acaba. Tem 29
anos, é cantora, pianista e acordeonista. E quase se envergonha
da sua licenciatura coimbrã em Economia, arte que não tenciona
praticar. Julieta vive com o marido Nuno, um piano, uma concertina, um galgo chamado Magriço, duas éguas e um gato. Quase
todos os móveis da casa são improvisados, oferecidos, reciclados.
Na cozinha há uma mesa enorme tapada com uma toalha: era
uma mesa de pingue-pongue. Sobre outra mesa está um livro
dedicado aos instrumentos musicais tradicionais portugueses. Na
cozinha encontrar-se-á um guia sobre cogumelos, onde se pode
aprender formas de os conhecer, colher e conservar. Junto ao
piano vê-se um bordado feito por Julieta, a partir de um livro onde
foram reproduzidas as incisões feitas por pastores na madeira dos
seus cajados. E há dezenas de chaves velhas presas a uma tábua
pendurada na parede: sozinha nenhuma serve para abrir a porta
do castelo de Chuchurumel.
finalmente, o coelho à chuchurumel
Aqui está a carqueja que tempera o coelho à contrabandista.
Aqui está o fogo que queima a carqueja que tempera o coelho
à contrabandista. Aqui está o regador que apaga o fogo que
queima a carqueja que tempera o coelho à contrabandista. E
aqui está o coelho à contrabandista transformado em coelho à
Chuchurumel.
Não havendo – como não houve – tempo para temperar o
coelho de um dia para o outro, há que alterar a receita raiana
ensinada em Quadrazais por Maria Augusta Moleira. Também não
há nenhuma panela de ferro como exigiria a tradição, mas há-de
correr tudo bem, até porque o coelho foi criado aqui em Miguel
Chôco e a fome é muita.
Faz-se um refogado (com cebola, azeite e alho), junta-se o coelho
partido aos pedaços incluindo fígado e afins, tudo regado com vinho
branco. E, claro: as partes menos secas da carqueja, do rosmano
e da segurelha, tudo colhido por mão de ex-contrabandista. O
segredo? Cogumelos apanhados na altura certa nos arredores de
Miguel Chôco: “boletus edulis”, cortados às lâminas e secos.
Enquanto o coelho se vai cozinhando em lume quase brando,
Julieta volta à sala e toca concertina, acompanhada ao piano pelo
repórter fotográfico do Y. Chegados à mesa, o coelho à Chuchurumel sabe tão bem que quase de certeza é crime. Ou pelo menos
pecado. Lá fora há o cheiro de um incêndio e o galgo Magriço que
exige mais festas. Será caso de pôr as mãos e pedir que a horta
de Júlia Fonseca não volte a ser ameaçada pelo fogo? E Maria
Augusta Moleira, estará sozinha em casa com as suas palavras
que já foram secretas? “Ânsia” era água. “Esquilona” era hora.
“Mata Liria” era Lisboa. “Bagarosa” significava cadeira. Um burro
era um “nuco” e a um gato chamava-se “miante”.
“Agazear” era um verbo que só fazia sentido em Quadrazais
e não tem sinónimo no nosso português de guarda fronteiriço.
Agazear: gritar junto à janela da namorada, no regresso da Reta
Frenha. Era o sinal de que estava tudo bem: “Ai… Hi… Hi”.
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qual é a que abre o de chuchurumel?