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Revista Brasileira de Ensino de F
sica, vol. 20, n . 2, junho, 1998
O Problema de Dois Corpos:
Aplicac~oes Pouco Discutidas nos Cursos de Mec^anica
Rodrigo Dias Tarsia
Observatorio Astron^omico
Departamento de Fsica, ICEx - UFMG Caixa Postal 702, 30161 - 970 - Belo Horizonte
Trabalho recebido em 29 de marco de 1997
Neste artigo discute-se o problema de dois corpos perturbado pela presenca de uma terceira partcula, supondo existir a interac~ao gravitacional mutua entre elas. O formalismo
matematico simples e aplicado numa discuss~ao semiquantitativa de alguns casos tais como
estabilidade de satelites e mares oce^anicas.
1. Introduca~o
O problema de dois corpos tem import^ancia fundamental em Fsica, sendo estudado em todos os textos
de Mec^anica. Entretanto ele e sempre tratado com as
duas partculas isoladas do resto do Universo, hipotese
usada para colocar em evid^encia as caractersticas principais do movimento. O caso geral e aquele em que
cada uma das partculas sofre ac~ao de uma forca resultante externa ao sistema. Dependendo desta forca
o problema pode se tornar complicado, passando a ser
didaticamente desinteressante. Neste artigo apresentamos algumas aplicac~oes do caso geral, supondo existir
a interac~ao gravitacional mutua entre as partculas e
entre elas e uma terceira. O formalismo matematico e
simples e aplicavel a casos pouco discutidos nos livros
de Mec^anica, mas que enriquecem o estudo do problema.
2. O problema geral
Sejam tr^es partculas de massas m1 , m2 e m3 , interagindo gravitacionalmente. Estamos interessados em
descrever o movimento de m2 em relac~ao a m1 , na presenca de m3 . As equac~oes de movimento de m1 e m2
em relac~ao a um referencial inercial com origem em um
ponto O do espaco s~ao:
m1~r1 = F~21(i) + F~31(e)
(1)
m2~r2 = F~12(i) + F~32(e)
(2)
em que osndices (i) e (e) s~ao usados para reforcar o que
s~ao consideradas forcas internas e externas ao problema
de dois corpos.
Seja agora a mudanca de coordenadas:
+ m2~r2
R~ = m1m~r1 +
m
1
2
~r21 = ~r2 , ~r1
e as transformac~oes inversas:
~r1 = R~ , m m+2m ~r21
1
2
m
1
~r2 = R~ + m + m ~r21
1
2
em que R~ e o vetor-posic~ao do centro de massa do sistema (m1 ; m2 ) em relac~ao a O e ~r21, o vetor-posic~ao de
m2 em relac~ao a m1 .
Com essas express~oes e com a terceira lei de Newton, F~21(i) = ,F~12(i), as equac~oes (1) e (2) podem ser
transformadas em:
com
(m1 + m2 )R~ = F~31(e) + F~32(e)
!
(e)
(e)
~
~
F
F
(
i
)
32
31
~r21 = F~12 + m , m
2
1
= mm1+mm2
1
2
(3)
(4)
A primeira equaca~o descreve o movimento do centro de massa do sistema (m1 ; m2) em relac~ao a O; a
segunda, o movimento de uma partcula de massa reduzida em relac~ao a m1 . Assim, o movimento da
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partcula m2 , visto por m1 , e o mesmo que se m1 fosse
xa e m2 tivesse massa .
Se as forcas que atuam sobre as partculas s~ao de
origem gravitacional, a equac~ao acima ca escrita:
u^
G(m
u
^
1 + m2 )
32
31

~r21 = ,
u^21 + Gm3 r2 , r2
(5)
2
r21
32
31
em que u^jk e o vetor unitario na direc~ao e sentido de
~rjk . Esta equac~ao nos da a acelerac~ao de m2 em relac~ao
a m1 . O primeiro termo e o do movimento kepleriano
(descrito pelas leis de Kepler) de m2 em relaca~o a m1 .
O segundo termo, que chamaremos de acelerac~ao diferencial, representa a inu^encia de m3 sobre o movimento
relativo de m2 . Ele e a diferenca entre as acelerac~oes
de m2 e m1 , sob a ac~ao de m3 . Normalmente n~ao considerado nos livros, e o responsavel pelas aplicac~oes a
serem discutidas a seguir. Notemos que os casos de
nosso interesse s~ao aqueles em que a aceleraca~o diferencial e pequena em relac~ao a kepleriana; caso contrario,
o problema passa a ser de tr^es corpos.
3. O sistema Terra-Lua
A Lua descreve uma orbita kepleriana elptica em
torno da Terra, cuja excentricidade e 0,055. O perodo
do movimento e de 27,32 dias; a dist^ancia media da
Lua a Terra e de cerca de 384000 km. O plano da
orbita lunar faz um ^angulo de 5,1 graus com o da orbita
da Terra em torno do Sol (a Eclptica). Tanto o Sol
como os outros planetas inuenciam no movimento da
Lua em relac~ao a Terra atraves do termo n~ao kepleriano da equac~ao (5), mas o Sol, por sua massa, e o
que tem maior import^ancia. Calculemos ent~ao a acelerac~ao diferencial para o caso de m3 ser o Sol. Desprezando a inclinac~ao do plano orbital da Lua em
relac~ao a Eclptica, podemos ver que o valor maximo
deste termo ocorre com a Lua, a Terra e o Sol alinhados,
quando u^32 = u^31. Nesse caso, r31 = r = 1; 496 1011
m (dist^ancia media Terra-Sol), r21 = d = 3; 84 108 m e
r32 = r d. Ent~ao:
GMS 2GMS d
S
ad = (rGM
d)2 , r2 ' r3
pois d << r. Portanto, a inu^encia do Sol e inversamente proporcional ao cubo da sua dist^ancia a Lua.
Assim a acelerac~ao diferencial (ad ) pode ser considerada como o efeito de uma perturbac~ao ao movimento
kepleriano puro. O valor desta acelerac~ao, em relac~ao
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a produzida pela atrac~ao gravitacional da Terra sobre
a Lua (ag ) e dado por:
ad = 2MS d 3 =' 0; 01
ag (MT + ML ) r
com ML =MT = 0; 0123, MS = 1; 99 1030 kg e
MT = 5; 98 1024 kg.
Apesar de pequeno, este termo e facilmente mensuravel. Ent~ao, quando os tr^es corpos est~ao alinhados,
o Sol tende a afastar a Lua da Terra e quando a direc~ao
Terra-Lua faz um ^angulo reto com a direca~o Terra-Sol,
o efeito e o de aproximar a Lua da Terra. Em qualquer
caso, o Sol modica a forma da orbita lunar em torno
da Terra.
4. Limite de estabilidade
Um outro efeito da presenca da aceleraca~o diferencial e o fato de que passa a existir um limite para a
estabilidade do movimento de m2 em relac~ao a m1 , na
presenca de m3 . Com efeito, se d e a dist^ancia entre
m1 e m2 e r a entre m3 e m1 , a acelerac~ao diferencial
maxima de m2 , devida a presenca de m3 e:
Gm3
3
ad = (rGm
,
2
, d)
r2
Quando esta acelerac~ao se iguala a kepleriana, temos:
r3 (2d , r) = m1m+ m2 (d , r)2 d2
3
Esta equac~ao da a maior dist^ancia d a que m2 pode
car de m1 de modo que ainda permaneca gravitando
em torno de m1 . Quando m2 << m1 e m1 << m3 , ela
se reduz a:
1=3
m1
d = 2m
r
3
No caso do sistema Terra-Lua com a presenca do
Sol, r = 1; 7 109 m, valor que e 4,8 vezes a dist^ancia
Terra - Lua. Logo a Lua e estavel em sua orbita em
torno da Terra.
5. Mares oce^anicas
O mesmo formalismo pode ser aplicado para se ter
uma explicac~ao simples sobre as mares oce^anicas. As
forcas de mare ocorrem toda vez que um corpo de dimens~ao nita se acelera como um todo sob ac~ao de uma
forca que varia ao longo da dimens~ao deste corpo. Devido ao fato da Terra n~ao ser innitamente pequena
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em relac~ao as suas dist^ancias ao Sol e a Lua, as forcas
de atrac~ao gravitacional desses corpos sobre os varios
pontos da Terra n~ao s~ao iguais, resultando numa forca
perturbadora que e func~ao da direca~o e da dist^ancia
entre esses pontos e o corpo perturbador.
Suponhamos a Terra solida e esferica, inteiramente
coberta por uma camada de agua. A acelerac~ao de
uma partcula de agua, devido a atraca~o gravitacional
da Terra e
g0 = GM
R2
em que M e R s~ao a massa e o raio da Terra. Com a presenca da Lua, a acelerac~ao diferencial desta partcula de
agua, sera:
Gm u^
u
^
,
ad = Gm
r
2
r
a2 a
em que m e a massa da Lua, e a, a dist^ancia Terra-Lua
r a dist^ancia partcula - Lua. De acordo com a posic~ao
da partcula de agua, r muda de valor e u^r ; de direca~o.
O Ap^endice contem uma deduc~ao simples para a acelerac~ao diferencial; por enquanto vamos procurar fazer
a discuss~ao de modo mais intuitivo para que os efeitos
fsicos quem mais claros. A Figura 1 mostra a Terra,
a Lua e quatro pontos (A,B,C,D) do oceano.
No ponto A, a acelerac~ao diferencial vale
Gm 2GmR
ad = wa + wt = (a Gm
, R)2 , a2 ' a3
Como wa e maior que wt , ad tem sentido voltado
para a Lua a acelerac~ao total da partcula em A
~a = ~g0 + ~ad
passa a ser menor que g0.
No ponto B, teremos:
Gm 2GmR
ad = wb + wt = (a Gm
+ R)2 , a2 ' a3
e, como agora wt e maior que wb, a acelerac~ao diferencial esta dirigida para fora da Terra. Assim, da mesma
forma que em A, a aceleraca~o total em B e menor que
go .
Nos pontos C e D, as acelerac~oes wc e wd fazem um
^angulo obtuso com wt. Elas podem ser decompostas
em duas componentes, uma paralela e oposta a wt e
outra, perpendicular a esta, voltada para o centro da
Terra. Dessa forma, em C e D, a acelerac~ao resultante
torna-se maior que g0. Entre C e D, no trecho CAD, a
aceleraca~o resultante esta dirigida para A e no trecho
CBD, ela esta dirigida para B. O efeito total e ent~ao do
oceano se precipitar, em uma metade da Terra, no sentido do ponto A, onde a Lua esta no z^enite, e na outra
metade, para o ponto B, onde ela se encontra no nadir.
O involucro do oceano torna-se um elipsoide com o eixo
maior apontado para a Lua. Proximo a A e B ocorrera
a mare alta e em C e D, a mare baixa.
Com a rotac~ao da Terra, os pontos de mare alta e
baixa se deslocam sobre a superfcie de nosso planeta.
Por isso, no intervalo de tempo entre duas passagens sucessivas da Lua pelo meridiano de um local (em media,
igual a 24 horas e 52 minutos), os pontos de mare alta
d~ao uma volta em torno da Terra e, durante este intervalo de tempo, havera duas mares altas e duas baixas.
As mares produzidas pelo Sol s~ao semelhantes as da
Lua, mas como a raz~ao entre as acelerac~oes devidas a
Lua e ao Sol e:
m RS 3 ' 2; 2
M RL
a forca da mare solar e 2,2 vezes mais fraca que a da
lunar.
Durante as luas Nova e Cheia, os uxos de mare
solar e lunar comecam simult^aneamente e observa-se a
mare alta maxima; nos quartos Crescente e Minguante
da Lua, nos momentos da mare alta lunar tem lugar a
mare baixa solar e observa-se a mare mnima. Deve-se
notar que, na realidade o fen^omeno das mares e mais
complicado que o esquema simples apresentado acima;
provavelmente o efeito mais importante n~ao discutido,
e o de que os oceanos est~ao sujeitos a oscilac~oes naturais. Alem disso, a Terra n~ao esta coberta totalmente
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pelas aguas; a onda de mare encontra formas de litoral
diferentes e complexas, bem como fundos de mar diferentes. Isso produz atrito e em consequ^encia, o maximo
de mare em um ponto da Terra, n~ao coincide com o
momento de culminac~ao da Lua neste ponto, podendo
haver atrasos de ate 6 horas. Da mesma forma, a altura
da mare n~ao e a mesma em todos os lugares.
6. Limite de Roche
Em 1880, Edouard Roche mostrou que se um
satelite se aproximar de um planeta alem de uma
dist^ancia mnima, forcas de mare podem destru-lo.
Embora a determinac~ao rigorosa desta dist^ancia seja
complicada, o formalismo descrito e aplicado acima
pode ser usado para termos uma boa aproximaca~o.
Seja um satelite de massa m e raio r, orbitando
em torno de um planeta de massa M >> m, a uma
dist^ancia d. A aceleraca~o gravitacional produzida pelo
planeta sobre o satelite, e GM=d2 . A acelerac~ao diferencial que atua em um ponto da superfcie do satelite,
sobre a linha que une os centros do planeta e do satelite,
e dada por:
GM 2Gmr
ad = (dGM
r)2 , d2 ' d3
A acelerac~ao angular do centro do satelite e:
1=2
! = GM
d3
e a acelerac~ao diferencial centrpeta entre a superfcie
do satelite e seu centro e:
a1 = w (d r) , w d = w r = Gmr
d3
Para que o satelite n~ao se fragmente e necessario
que a combinac~ao a1 + ad seja igual a acelerac~ao autogravitacional do satelite, Gm=r2 , o que da:
1=3
r
d = 3M
m
A dist^ancia d e a menor dist^ancia que o satelite pode
car do planeta sem ser destruido pelos efeitos de mare.
Em termos de densidades,
3 1=3
1=3
M
d= R ' 1; 44 M
R
m
m
2
2
2
em que M e m s~ao as densidades volumetricas do
planeta e do satelite e R, o raio do planeta.
Os calculos completos resultam em que, para corpos
solidos ou gelo, de raio maior que 20 km, o coeciente numerico da equac~ao acima e 1,38; para um corpo
caindo diretamente sobre um planeta, o coeciente e
1,19. Para o sistema Terra-Lua, d ' 2; 9 RT = 18500
km. Devemos notar que os satelites do sistema solar
est~ao alem do limite de Roche; ja os aneis de Saturno,
que se localizam entre 80000 Km e 136000 km do centro
do planeta, o limite de Roche e 150000 km. O mesmo
acontece com os aneis de Jupiter, Urano e Netuno.
Ap^endice
A Figura 2 mostra o ponto P do oceano sujeito a
forca de atrac~ao gravitacional da Terra e da Lua.
A acelerac~ao de P, devido a atrac~ao gravitacional
da Terra e:
g0 = GM
R2
T
A aceleraca~o diferencial a que esta sujeito P e
Gm
~ad = f~ , ~gL = Gm
r2 u^r , R2 u^x
em que M e a massa da Terra e m, a da Lua.
Como r2 = R2 + R2T , 2RRT cos, o segundo termo
da aceleraca~o diferencial ca:
u^r
f~ = GM
R2 1 , 2(RT =R)cos + (RT =R)2
Como tambem (RT =R) << 1 a express~ao acima pode
ser desenvolvida e, em primeira ordem em (RT =R),
temos:
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f~ = GM
R2 f1 + 2(RT =R)cosgu^1 g
Tambem em primeira ordem,
sen ' (RT =R)sen ; cos ' 1
Com isso, a express~ao da acelerac~ao diferencial do
ponto P ca:
GMR ~ad = R3 T (2cos u^x , sen u^y )
e a acelerac~ao total do ponto P e:
~ge = ~g0 + ~ad
A acelerac~ao diferencial e maxima para = 0,
com direca~o e sentido para Lua, havendo ent~ao uma
diminuic~ao de ~ge no ponto sub-lunar (em que nosso
satelite esta no z^enite). Quando = =2 (na direc~ao
perpendicular a da Lua), a acelerac~ao diferencial e
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mnima e aponta para o centro da Terra; a acelerac~ao
total e maxima. Entre esses dois pontos, ~ge n~ao tem
a direc~ao do centro da Terra; como a agua n~ao suporta forcas tangenciais, o envelope aquoso se distorce
de modo tal que ~ge seja normal a supercie da agua. A
massa oce^anica tende ent~ao a se deslocar para as regi~oes
da Terra situadas ao longo da reta que une os centros
da Terra e da Lua, em ambos os lados da Terra.
Bibliograa
D.L. Boulet,Methods of Orbit Determinations for the
Microcomputer Willmann-Bell inc., Richmond, Virginia, 1991.
E.M. Rogers, Physics for the Inquiring Mind - Princeton University Press, Princeton, N.J. 1960.
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