Para entender o Salvador Card
Manolo
OK, tudo bem, agora apareceu o Salvador Card. Diz o SETPS que está trocando de sistema para garantir mais
segurança nos ônibus. Que o Salvador Card vai ser melhor para o estudante, e que quem usa o smart-card dos
outros é bandido. Que o Salvador Card vai garantir a segurança dos passageiros e reduzir assaltos, porque vai
tirar o dinheiro dos ônibus. Não está na hora de parar para analisar direitinho a conversa do SETPS? Para mim,
parece bastante claro que patrão é patrão e peão é peão; ora, se o SETPS só junta patrão, essa história do
SETPS de querer o melhor pra gente não deve ter algo por trás?
Mas vamos por partes, como diria lá o figura. Para entender o Salvador Card é preciso primeiro entender
algumas coisas sobre Salvador e sua população (ou seja, nós), sobre o sistema de transportes da cidade e sobre a
crise nesse sistema; depois disso tudo fica mais fácil entender o Salvador Card. O texto tem informações de
várias fontes, muitos números e porcentagens, e é preciso prestar bastante atenção a cada uma delas e ir
devagar; querer entender o Salvador Card sem elas é que nem querer entender de carro inventando mil e uma
histórias sobre como ele funciona, ao invés de perguntar a um mecânico. Pode parecer chato, mas é preciso
prestar atenção para depois não sair por aí comendo regue de quem está por fora das coisas ou de quem quer te
enrolar. Tire um tempinho pra sentar e ler este texto, que é meio longo; se não der pra ler agora, leia depois,
mas leia com calma.
COMO ESTÁ O SISTEMA DE TRANSPORTE DE SALVADOR?
Em crise. E o estudante não é o responsável por isso. Vamos devagarzinho, lembrando que a própria
Prefeitura de Salvador já disse para o A Tarde há um tempo atrás que 72% da população de nossa cidade
depende dos ônibus para seu deslocamento.
Em primeiro lugar, é preciso saber: quem é que usa mais ônibus, o pobre, o rico ou o remediado? Uma
pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República
(SEDU/PR) em 2002 em dez cidades (Salvador incluída) demonstra que 27,5% dos usuários de ônibus são das
classes D e E, 38,5% são da classe C, 27,5% são da classe B e 6,5% são da classe A. Dá pra ver que quem usa
mais ônibus é quem está na classe C, e ganha entre R$ 497,00 e R$ 1.064,00 por mês. As pessoas que estão
em outras faixas de renda também usam ônibus, só que bem menos que as pessoas que estão na faixa de renda
chamada classe C. Lembrem que a classe A é a que ganha mais e a classe E é a que ganha menos. Só para ter
uma idéia: segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), 10% da população de Salvador
está na classe E, 38% na classe D, 29% na classe C, 11% na classe B2, 6% na classe B1, 4% na classe A2 e 1%
na classe A1. Salvador é a terceira maior cidade do país, com 2.673.560 habitantes em 2005, mas é uma cidade
pobre.
Em segundo lugar, outra pergunta: quanto se gasta por mês com transporte? Não dá pra dizer que “gasta
tantos reais por mês” porque cada família tem uma renda diferente da outra, mas a Pesquisa de Orçamento
Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2002/2003
(http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2002/default.shtm) diz que as famílias
do Brasil todo gastam muito com transporte: é sua terceira maior despesa, variando entre 15,7% do
orçamento na região Norte a 20,77% na região Centro-Oeste (as famílias do Nordeste gastam 16,01% de seu
orçamento com transporte). Os gastos das famílias com transporte só perdem para os gastos com habitação e
alimentação – interessante que no Brasil se gaste mais com o teto que com a barriga, não?
Em terceiro lugar, é preciso perguntar ainda outra coisa: as passagens de ônibus subiram mais ou menos que
os salários? Se as passagens sobem mais que os salários, isso quer dizer que o gasto com transporte vai pesar
mais a cada aumento, e vai chegar uma hora em que não vai dar pra pegar ônibus todo dia, ou então o salário
vai ficar ainda mais curto do que já é (quem sabe que o salário dura dez a quinze dias sabe bem do que estou
falando). Geralmente os aumentos de salários andam mais ou menos perto do Índice Nacional de Preços ao
Consumidor (INPC) do IBGE, que mede o efeito do aumento de preços sobre os trabalhadores que ganham
entre 1 a 8 salários mínimos. Tem anos em que o salário sobe mais que o INPC, tem outros anos que sobe
menos que o INPC, mas o padrão certo é o INPC. O Ministério das Cidades fez uma pesquisa sobre o aumento
de
passagens
de
ônibus
entre
1994
e
2003
(http://www.cidades.gov.br//media/TarifasOnibusUrbanos1994a2003.zip), e observou que TODAS as tarifas
de ônibus das capitais tiveram aumento maior que o aumento do INPC. Enquanto o INPC subiu 150,4%
entre 1994 e 2003, a passagem de ônibus em Brasília (a que menos subiu) aumentou 196,3%; a de São Paulo
aumentou 240%; a de Fortaleza, 275%; as de Salvador e do Rio de Janeiro aumentaram 328,6%; e a
passagem de ônibus em cidades como Rio Branco e Porto Velho aumentaram 400%. Vocês devem saber bem a
agonia que é depois de cada aumento de passagem, então não preciso entrar em maiores detalhes; basta lembrar
que os dois últimos aumentos aqui em Salvador (2003 e 2005) foram acompanhados de protestos de rua.
Agora vamos entrar no sistema de transportes propriamente dito. Segundo o Anuário de Transportes Urbanos
de Salvador de 2004 – o de 2005 ainda não foi publicado; o Anuário não existe em versão digital, só impressa,
que só sai da STP com muito esforço – o número de passageiros de ônibus transportados entre 1995 e 2004
caiu 16,34%. Isso quer dizer que 87.181.190 passageiros de ônibus foram transportados a menos em 2004
que em 1995. Veja na tabela abaixo:
Tabela 1: Variação de passageiros transportados 1991-2004
Ano
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
População
2.072.058
2.110.334
2.174.072
2.218.962
2.262.731
2.211.539
2.245.522
2.274.167
2.302.832
2.443.107
2.485.702
2.520.504
2.556.429
2.631.831
Passageiros
pagantes de meia- Passageiros pagantes
passagem
de vale-transporte
35.894.248
201.250.012
65.659.562
213.861.724
78.166.867
221.379.089
88.140.904
230.153.987
85.507.304
237.994.723
99.046.015
235.058.304
62.832.692
204.355.726
76.809.319
196.899.171
64.023.236
185.660.248
71.174.822
191.550.326
70.478.409
188.809.533
81.845.051
176.115.398
85.162.636
165.756.250
120.593.677
165.756.250
Pagantes em
espécie
257.407.995
197.393.976
198.764.944
180.105.678
209.961.795
177.222.459
209.413.156
226.361.756
243.150.485
239.246.703
213.642.380
215.572.721
193.381.454
159.932.705
Passageiros
transportados
no total
494.552.255
476.915.262
498.310.900
498.400.569
533.463.822
511.326.778
476.601.574
500.070.246
492.833.969
501.971.851
472.251.850
478.227.305
454.659.488
446.282.632
Fonte: Anuário de Transportes Urbanos de Salvador 2004
Mais ainda: se analisarmos todos os modos de pagamento (vale-transporte, meia-passagem, passagem inteira
em dinheiro), ainda segundo o Anuário de Transportes 2004, veremos que o número de passagens registradas
diminuiu, mas o número de passageiros que pagaram meia-passagem aumentou. Veja na tabela abaixo:
Tabela 2: Evolução dos pagantes de meia-passagem 1991-2004
Ano
Meiaspassagens
registradas
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
35.894.248
65.659.562
78.166.867
88.140.904
85.507.304
99.046.015
62.832.692
Variação de meiaspassagens
registradas em
relação ao ano
anterior
29.765.314
12.507.305
9.974.037
-2.633.600
13.538.711
-36.213.323
Variação de meiaspassagens
registradas em
relação ao ano
anterior (%)
82,92%
19,04%
12,75%
-2,98%
15,83%
-36,56%
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
76.809.319
64.023.236
71.174.822
70.478.409
81.845.051
85.162.636
120.593.677
13.976.627
-12.786.083
7.151.586
-696.413
11.366.642
3.317.585
35.431.041
18,20%
-22,24%
11,17%
-0,97%
16,12%
4,05%
41,60%
Fonte: Anuário de Transportes Urbanos de Salvador 2004
Em 2004 a meia-passagem representou 27,02% do total de passagens – antes desse salto de 2004, representava
entre 15% a 18% do total de passagens. Vá guardando estas informações na cabeça ou anote em algum lugar,
porque vamos precisar de todas elas mais adiante.
Finalmente, vamos ver o trem suburbano, aquela velha linha Calçada-Paripe que é a salvação dos quebrados.
Novamente segundo o Anuário de Transportes 2004, este modo de transporte teve 204,40% de aumento de
passageiros acumulado entre 1995 e 2004. Se observarmos o quanto os passageiros do trem suburbano
representam no total de passageiros transportados de Salvador (juntando ônibus, elevadores, planos inclinados,
trem e ferry-boat), dá pra ver que esse aumento começa em 2000 (de 0,2% para 0,4%) e prossegue por toda a
década: 0,6% em 2001, 0,6% em 2002, 0,9% em 2003, 1,0% em 2004. A Companhia Brasileira de Trens
Urbanos (CBTU) informa que o número de funcionários do setor diminuiu (166 em 2000, 173 em 2001, 181 em
2002, 178 em 2003, 177 em 2004 – ver em http://www.cbtu.gov.br/operadoras/veja/caractempresas.pdf) e o
número de trens não passa de 6 já faz um tempo (pelo menos desde 1992, como se vê em
http://br.geocities.com/row701/ferrovia-textos-01.htm
e
http://www.salvador.ba.gov.br/noticias.php?codNot=1522).
Por último, resta perguntar: quem paga os custos do sistema de ônibus? É a passagem inteira paga pelo
passageiro comum e a metade da passagem paga pelo estudante. Todos os custos do sistema de ônibus são
pagos pelo passageiro que paga inteira: a passagem dos carteiros, policiais, oficiais de justiça, funcionários de
juizado de menores e outros que têm gratuidade; a metade da meia-passagem que o estudante não paga, os
impostos cobrados da empresa; os salários dos motoristas, cobradores, despachantes e todos os empregados das
empresas; a remuneração dos acionistas da empresa; tudo isso e outras despesas do sistema de transportes são
pagas pelo passageiro que paga inteira, e pela metade da passagem que o estudante paga.
Por sinal, esse jeito de pagar os custos do sistema de ônibus é uma bola de neve de exclusão social, e das
piores. Para ter uma idéia da coisa, vamos bolar uma situação em que todos os custos do sistema (peças,
salários, manutenção, garagem, impostos, ônibus novos, etc.) e todos os custos dos passageiros (aluguel,
alimentação, roupas, material escolar, etc.) estão congelados. Agora pegue esse sistema, tudo congelado do jeito
que está, e aumente alguma coisa no lado dos custos do sistema – os combustíveis, por exemplo. Os
empresários de ônibus vão pressionar a prefeitura para aumentar a passagem, e a prefeitura dificilmente tem
como negar. A passagem aumenta, e isso vai bater no bolso dos passageiros. Muitos passageiros já vivem no
limite, e terão que cortar gastos em outras áreas, ou então deixar de andar de ônibus – e cada vez mais pessoas
deixam de andar de ônibus em Salvador. Se pessoas deixam de andar de ônibus, isso significa que restam
menos pessoas para dividir os custos do sistema. Quanto menos pessoas restarem para dividir os custos, tanto
maior é o “pedaço” que fica para cada uma – ou seja, a passagem vai ter que aumentar. Se a passagem aumenta,
tem muita gente que já vive no limite, e tem que cortar gastos ou então deixar de andar de ônibus – e cada vez
mais pessoas deixam de andar de ônibus. Quanto menos pessoas restarem para dividir os custos, tanto maior é o
“pedaço” que fica para cada uma – ou seja, a passagem vai ter que aumentar de novo. E começa tudo outra vez,
até encher o saco.
No mundo real, em que os preços não estão congelados, todos os preços variam em direções diferentes e com
intensidades diferentes, mas o resultado continua sendo parecido com esse: a cada dia mais pessoas deixam
de andar de ônibus. Se não acredita, veja de novo a Tabela 1, com a variação dos passageiros transportados, e
aí fica mais certo o que estou dizendo: o número de passageiros transportados continua caindo, mesmo
quando a população de Salvador cresce. De 2000 para 2001 houve uma queda de 6,29% no número de
passageiros transportados – a segunda maior queda nos últimos 15 anos, perdendo apenas para uma redução de
7,29% de passageiros transportados entre 1996 e 1997. Entre 2001 e 2002 foram transportados 1,25% de
passageiros a mais; logo depois, de 2001 para 2002, o sistema de ônibus transportou 5,18% de passageiros a
menos, e entre 2003 e 2004 a redução foi de 1,88% de passageiros transportados.
SIM, E DAÍ?
Já temos informações até demais. Dessas informações dá pra tirar algumas conclusões.
PRIMEIRA CONCLUSÃO: O número de usuários de transporte diminuiu por causa do aumento da
passagem maior que o aumento dos salários, e por causa disso mais pessoas usam outros meios de
transportes mais baratos (trem, bicicleta) ou andam a pé. Pena que a SETIN/STP não pesquise quantas
pessoas andam a pé em Salvador; esta informação seria essencial para dar garantia a esta conclusão. Mas
pensem no seguinte: as pessoas deixam de andar de ônibus, mas continuam precisando se deslocar de um ponto
a outro da cidade, por qualquer motivo que seja (compras, médico, trabalho, visita a parentes, etc.). Como
fazem isso se não têm condições de pagar a passagem? A meu ver, quem não tem dinheiro para andar de trem
ou precisa andar entre lugares da cidade fora da linha Calçada-Paripe é forçado a andar de bicicleta ou a pé.
Outra solução é mendigar dinheiro para o transporte, como qualquer pessoa vê todos os dias na Lapa,
Rodoviária, Barroquinha, Aquidabã e outras estações de ônibus.
SEGUNDA CONCLUSÃO: Por causa do aumento de passagens de ônibus muito maior que o aumento
de salários, pessoas que têm parentes estudantes usam o smart-card para economizar no transporte. O
smart-card é usado pelas famílias mais carentes para recompor a renda familiar, assim como o vale transporte
(para quem está formalmente empregado, e não para quem está no setor precarizado do trabalho – camelôs,
biqueiros, etc.). Não adianta ficar naquela questão superficial de saber se a meia-passagem é ou não é direito, se
quem usa o cartão sem ser estudante está certo ou errado; é preciso pensar na criatividade das pessoas para
continuar sobrevivendo sob o capitalismo, em especial os trabalhadores. Da mesma forma que o vale-transporte
é transformado em moeda pelo trabalhador e ajuda na sua sobrevivência (quem nunca comprou comida para
casa com vale-transporte nunca vai saber do que estou falando, evidentemente), a meia-passagem é uma forma
de "impor preço" mais barato contra as empresas de transporte: se a tarifa sobe muito mais que o salário, o
trabalhador e sua família dão um jeito de pagar menos para não se verem forçados a deixar de andar de ônibus.
Aí a mãe usa o cartão do filho, o tio usa o cartão da sobrinha, a prima usa o cartão da prima, a vizinha usa o
cartão da vizinha, e por aí vai.
É a boa e velha luta de classes aparecendo onde menos se espera: o patrão da empresa de transportes quer
garantir seu lucro, mas esse lucro só acontece se os trabalhadores forem mais prejudicados e explorados do que
já são, tanto no lugar onde trabalham quanto fora dele; o trabalhador dá seu jeito de resistir usando o cartão dos
parentes, traseirando, passando junto na catraca... Não é “culpa” de um ou de outro: numa sociedade de
produtores de mercadorias – para falar como um velho economista alemão – o empresário tem que conseguir
lucro para manter o negócio andando, e o trabalhador precisa comprar dos empresários as coisas de que precisa
para se manter vivo. Trabalhadores e empresários, cada um como uma classe diferente da outra, viverão nesta
relação de conflito uns contra os outros enquanto durar o sistema capitalista.
Agora sim, dá pra comentar sobre o Salvador Card e outras coisas mais.
POR QUE O SALVADOR CARD AGORA?
Por que o SETPS e a Prefeitura querem mudar a tecnologia agora e implementar a bilhetagem eletrônica?
Segurança não tem nada a ver com o caso: isso é história do SETPS para encobrir a verdade, ou, no mínimo, é
uma verdade contada pela metade.
Pode perguntar a qualquer cobrador, este mesmo figura que já foi eliminado em 16% das cidades que
implementaram a bilhetagem eletrônica (segundo o estudo “Panorama Geral da Arrecadação Automática de
Tarifas nos Sistemas de Transportes Públicos Brasileiros”, publicado pela Associação Nacional das Empresas
de Transportes Urbanos – NTU – em dezembro de 2003): eles têm um limite de dinheiro (entre R$ 50,00 a R$
70,00) que pode ficar no caixa, aquele perto da roleta; o dinheiro que ultrapassa esse limite vai para o cofre que
fica embaixo da cadeira do cobrador. O cobrador tem duas opções: guardar no cofre todo dinheiro acima do
limite que fica no caixa, ou deixar algo a mais. Assaltantes não gostam muito quando encontram pouco dinheiro
no caixa, e agridem os cobradores que guardam todo o dinheiro no cofre; assim, os cobradores preferem deixar
mais dinheiro no caixa e pagar o prejuízo de seu próprio bolso a correr o risco de uma agressão, ou mesmo de
morte. De toda forma, deu pra ver que a empresa não se prejudica: se o dinheiro roubado está abaixo do limite,
com certeza há seguro para isso – pago pelas nossas passagens; se o dinheiro roubado está acima do limite, é o
cobrador quem paga. Pior: vamos agora pensar num assalto a ônibus depois do Salvador Card ser
implementado. Tudo bem, não tem mais dinheiro no caixa nem no cofre. Mas e os passageiros? Quem disse que
dá pra andar sem dinheiro nenhum na rua? Sem relógio? Sem bolsa? Sem sacolas de compras? Sem livros? Sem
qualquer coisa, por menor que seja, que interesse a um assaltante? O alvo vai simplesmente mudar: ao invés do
caixa, os passageiros é que serão assaltados, como sempre foram.
Segurança tem pouco a ver com o assunto. Na verdade, a segurança em questão é a segurança da empresa não
perder dinheiro, pois os passageiros continuam sujeitos a assaltos. Então por que o SETPS e a Prefeitura
querem implementar o Salvador Card? Por causa da nossa segunda conclusão: os parentes dos
estudantes não têm mais como pagar passagem inteira, e usam os cartões para não terem que deixar de
andar de ônibus. Vamos bem devagar para entender qual é o caso.
Já vimos que a parentada toda usa o cartão da molecada: pai, mãe, tia, tio, irmão, irmã, prima, primo... tudo isso
porque a passagem aumenta mais que o salário. Voltem para a tabela das meias-passagens; reparem como o
número de meias-passagens registradas cresce a partir de 2001, e em 2004 o número é o maior de toda a
história (120.593.677). Para ser mais exato, a variação de meias-passagens registradas entre 2003 e 2004 é
também a maior de toda a história (41,60%). Acho que todos se lembram: a Revolta do Buzu foi a uma revolta
popular que aconteceu em agosto/setembro de 2003 contra o aumento de passagens de ônibus – o segundo
aumento de passagens em menos de um ano (o primeiro em 13 de janeiro, de R$ 1,10 para R$ 1,30, e o segundo
em 31 de agosto, de R$ 1,30 para R$ 1,50). Se a gente continuar entendendo que o aumento de meias-passagens
registradas acontece porque os principais usuários de transporte (classe C, com renda entre R$ 497,00 e R$
1.064,00 por mês) já não têm mais condições de pagar pelo preço da passagem e a parentada usa o cartão para
poder continuar andando de ônibus pela cidade, fica claro que os dois aumentos de 2003 deram um baque
muito grande nas famílias de trabalhadores, e todo mundo começou a usar os smart-cards da molecada
pra poder andar de ônibus. Nessa mesma linha, dá pra dizer tranqüilamente que essa prática continua
aumentando depois do aumento de 2005 para R$ 1,70.
Basta voltar um pouco e ver de novo a Tabela 1: a situação está ficando tão braba para os usuários de
transportes – geralmente trabalhadores – que o número de pessoas que pagam meia está ficando bem
próximo do número de pessoas que pagam inteira com dinheiro. Isso significa menos dinheiro entrando
no sistema de ônibus, o pesadelo dos empresários. Por isso, me parece que os empresários de ônibus, quando
implementaram o Salvador Card, pensaram antes de qualquer coisa em reduzir o número de meias-passagens
no sistema a qualquer custo. Vamos devagar, de novo, e dá pra entender como isso acontece.
a) Redução do número de meias-passagens pelo limite de recargas
Uma primeira pista está no número máximo de recargas permitidas por mês no Salvador Card: apenas três
recargas. Vou copiar as palavras de Fabrício no texto “Bilhete Eletronico, UNE, UEB e Empresários”
(http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2006/04/350045.shtml), que resume bem a situação:
Um breve cálculo: considerando que utilizemos em média 4 vezes por dia o smartcard
durante todos os dias do mês, o gasto total com transporte é de R$102,00. Então para
usar o smartcard durante todo o mês, teriamos que em média fazer 3 recargas de
R$34,00. Quem tem R$34,00 inteiro pra recarregar no cartão? A grande maioria dos
estudantes, inclusive eu, vai conseguindo dinheiro aos poucos, durante o mês.
Agora vamos imaginar os milhares de secundaristas e universitários, carentes, que fazem
trabalhos informais ou vivem da grana irregular dos pais, tendo que fazer pagamento
antecipado de passagem! Essa galera não vai ter como recarregar, e vai se lascar,
porque apesar de ter dinheiro pra pagar a meia passagem não vai ter como carregar no
cartão.
Horácio Brasil, presidente do SETPS, está ciente disso; declarou em entrevista ao Correio da Bahia (1.º de abril
de 2006) que quem comprar os primeiros créditos até 31 de maio ganhará 10 créditos gratuitos. Esta esmola
pode chamar os estudantes para um primeiro momento, mas não resolve a situação de quem continuará sem ter
como juntar os R$ 34,00 de uma só vez para pagar a recarga. Ao longo do tempo, é bastante provável que
muitos estudantes não terão condições de pagar este preço pela recarga do cartão e deixarão de andar de ônibus
– quem não tem dinheiro para pagar a meia não terá dinheiro para pagar a inteira. O SETPS pretende, portanto,
reduzir o número de usuários de meia-passagem com esse mecanismo simples e eficaz de exclusão social.
b) Redução de cartões válidos pelo controle de freqüência
O Salvador Card será interligado com o Sistema Nacional de Acompanhamento da Freqüência Escolar (SAFE),
parte do Projeto Presença (http://portal.mec.gov.br/projetopresenca/), do Ministério da Educação. O que é este
sistema? É um banco de dados eletrônico que acompanhará a freqüência do aluno na escola; o aluno receberá
um cartão eletrônico, que passará numa máquina de controle de freqüência a cada vez que aparecer na escola.
Segundo o Ministério da Educação, “o cartão tornará possível a realização de parcerias em atividades sociais e
culturais, benefícios em transportes coletivos e formação de clubes de estudante, dentre outras ações – todas
visando a facilitar o acesso ao conhecimento, garantir a permanência do aluno na escola e promover a qualidade
da
educação”
(http://portal.mec.gov.br/projetopresenca/index.php?option=content&task=category&sectionid=26&id=128&It
emid=373). Segundo o SETPS, se o aluno deixar de freqüentar a escola por 30 dias terá seu cartão bloqueado.
Não sei vocês, mas durante um bom tempo de minha vida estive – e estou – desempregado. Nos dois últimos
anos de faculdade foi um aperto conseguir grana para ir às aulas todo dia. E olhe que venho de uma família que
tem um “histórico econômico” de classe média, apesar de hoje estar todo mundo desempregado, e tivemos a
quem recorrer nas horas de aperto mais brabo.
Como vimos, a tarifa de ônibus sobe muito mais que o salário. A despesa de transporte continua sendo a
terceira maior para a família do peão que não tem a quem recorrer. Para não cortar gastos com habitação e
alimentação, é preciso cortar em diversos outros setores, inclusive transporte. Não são poucas as famílias que
conheço só aqui na Boca do Rio, onde moro, que revezam os dias de mandar os filhos à escola porque não há
dinheiro para o transporte de todos em todos os dias do mês. Não é que os estudantes deixem de freqüentar a
escola somente por isso, mas há de se convir que numa cidade com índice de desemprego de aproximadamente
23%
(Pesquisa
de
Emprego
e
Desemprego
DIEESE/SEADE
fevereiro
2006
http://www.dieese.org.br/ped/ssa/pedssa0206.pdf) este é um fator essencial.
Daí o círculo vicioso em que se entra: uma família que não tem dinheiro para mandar os filhos à escola vê a
meia-passagem de um deles ser cortada por baixa freqüência. Se já não tinha dinheiro antes para mandar o filho
à escola, menos ainda agora, que a despesa será dobrada. Se o cartão antes era compartilhado pela família para
diminuir as despesas com transporte, agora este “recompositor de renda” deixa de existir, e a família se vê
obrigada a gastar mais com transporte ou, se já estava no limite com o compartilhamento de cartão, a andar a
pé. Exclusão social simples e direta.
TRANSPORTE É SERVIÇO PÚBLICO, E NÃO MERCADORIA
Sim, transporte é serviço público, e não pode ser tratado como mercadoria – ao contrário do que a Prefeitura de
Salvador e o SETPS vêm fazendo há algum tempo. Só pra ter certeza, vamos ver o que a legislação sobre
transportes diz sobre o assunto?
CONSTITUIÇÃO FEDERAL: "Art. 30. Compete aos Municípios: (...) V - organizar e prestar, diretamente
ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo,
que
tem
caráter
essencial."
(http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm)
LEI ORGÂNICA DE SALVADOR: "Art. 239. O transporte coletivo é um serviço público essencial a que
todo cidadão tem direito, sendo de responsabilidade do Poder Público Municipal o planejamento, o
gerenciamento, e a operação do mesmo." (http://www.cms.ba.gov.br/lom/lom.pdf)
Se as pessoas “fraudam” a meia-passagem, em minha opinião, e de acordo com as informações que já vimos, é
porque a Prefeitura (a de agora, a de antes e todas as outras) tem sido totalmente incompetente na gestão
do sistema de transporte, e não consegue atender ao que manda a Lei Orgânica de Salvador – que o
transporte coletivo tenha uma tarifa condizente com o poder aquisitivo da população (art. 238) e que os
planos de transporte priorizem o atendimento à população de baixa renda (art. 241, I). Cede apenas aos
apelos e interesses do SETPS e trata o transporte como mercadoria, e não como o meio de exercício do
direito de ir e vir dos cidadãos, em especial dos trabalhadores e da população de baixa renda.
Por mais que no aumento de 2005 o secretário de transportes, Nestor Duarte, tenha aparecido como mediador,
como boa pessoa, como político dedicado a proteger o povo contra aumentos abusivos, sabemos bem qual foi a
jogada: o SETPS jogou o preço da passagem pra cima (R$ 2,20), entidades estudantis e Prefeitura puxaram o
preço para baixo (R$ 1,70), e o direito de ir e vir das pessoas foi – e é – negociado como no balcão de uma
mercearia. Meios não faltam para garantir o transporte do povo pobre, diversos estudos já dão boas idéias; além
das óbvias dificuldades de implementação do que quer que seja num setor tão grande da economia municipal,
há também o fato da Prefeitura dificilmente entrar em desacordo com o SETPS quanto às tecnologias a serem
adotadas e quanto ao próprio modelo de transporte. Pode haver atritos entre os dois quando a tarifa aumenta,
mas isso passa rapidinho.
Resta ao trabalhador, principal usuário dos transportes em Salvador, dar seus pulos para resolver uma situação
que, no atual sistema, tem que ser resolvida pelo poder público: a exclusão social. Isso até que, num pulo
desses, o trabalhador mude completamente a situação social a seu favor – e aí a história será outra.
Download

Para entender o Salvador Card