Para entender o Salvador Card Manolo OK, tudo bem, agora apareceu o Salvador Card. Diz o SETPS que está trocando de sistema para garantir mais segurança nos ônibus. Que o Salvador Card vai ser melhor para o estudante, e que quem usa o smart-card dos outros é bandido. Que o Salvador Card vai garantir a segurança dos passageiros e reduzir assaltos, porque vai tirar o dinheiro dos ônibus. Não está na hora de parar para analisar direitinho a conversa do SETPS? Para mim, parece bastante claro que patrão é patrão e peão é peão; ora, se o SETPS só junta patrão, essa história do SETPS de querer o melhor pra gente não deve ter algo por trás? Mas vamos por partes, como diria lá o figura. Para entender o Salvador Card é preciso primeiro entender algumas coisas sobre Salvador e sua população (ou seja, nós), sobre o sistema de transportes da cidade e sobre a crise nesse sistema; depois disso tudo fica mais fácil entender o Salvador Card. O texto tem informações de várias fontes, muitos números e porcentagens, e é preciso prestar bastante atenção a cada uma delas e ir devagar; querer entender o Salvador Card sem elas é que nem querer entender de carro inventando mil e uma histórias sobre como ele funciona, ao invés de perguntar a um mecânico. Pode parecer chato, mas é preciso prestar atenção para depois não sair por aí comendo regue de quem está por fora das coisas ou de quem quer te enrolar. Tire um tempinho pra sentar e ler este texto, que é meio longo; se não der pra ler agora, leia depois, mas leia com calma. COMO ESTÁ O SISTEMA DE TRANSPORTE DE SALVADOR? Em crise. E o estudante não é o responsável por isso. Vamos devagarzinho, lembrando que a própria Prefeitura de Salvador já disse para o A Tarde há um tempo atrás que 72% da população de nossa cidade depende dos ônibus para seu deslocamento. Em primeiro lugar, é preciso saber: quem é que usa mais ônibus, o pobre, o rico ou o remediado? Uma pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República (SEDU/PR) em 2002 em dez cidades (Salvador incluída) demonstra que 27,5% dos usuários de ônibus são das classes D e E, 38,5% são da classe C, 27,5% são da classe B e 6,5% são da classe A. Dá pra ver que quem usa mais ônibus é quem está na classe C, e ganha entre R$ 497,00 e R$ 1.064,00 por mês. As pessoas que estão em outras faixas de renda também usam ônibus, só que bem menos que as pessoas que estão na faixa de renda chamada classe C. Lembrem que a classe A é a que ganha mais e a classe E é a que ganha menos. Só para ter uma idéia: segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), 10% da população de Salvador está na classe E, 38% na classe D, 29% na classe C, 11% na classe B2, 6% na classe B1, 4% na classe A2 e 1% na classe A1. Salvador é a terceira maior cidade do país, com 2.673.560 habitantes em 2005, mas é uma cidade pobre. Em segundo lugar, outra pergunta: quanto se gasta por mês com transporte? Não dá pra dizer que “gasta tantos reais por mês” porque cada família tem uma renda diferente da outra, mas a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2002/2003 (http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2002/default.shtm) diz que as famílias do Brasil todo gastam muito com transporte: é sua terceira maior despesa, variando entre 15,7% do orçamento na região Norte a 20,77% na região Centro-Oeste (as famílias do Nordeste gastam 16,01% de seu orçamento com transporte). Os gastos das famílias com transporte só perdem para os gastos com habitação e alimentação – interessante que no Brasil se gaste mais com o teto que com a barriga, não? Em terceiro lugar, é preciso perguntar ainda outra coisa: as passagens de ônibus subiram mais ou menos que os salários? Se as passagens sobem mais que os salários, isso quer dizer que o gasto com transporte vai pesar mais a cada aumento, e vai chegar uma hora em que não vai dar pra pegar ônibus todo dia, ou então o salário vai ficar ainda mais curto do que já é (quem sabe que o salário dura dez a quinze dias sabe bem do que estou falando). Geralmente os aumentos de salários andam mais ou menos perto do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do IBGE, que mede o efeito do aumento de preços sobre os trabalhadores que ganham entre 1 a 8 salários mínimos. Tem anos em que o salário sobe mais que o INPC, tem outros anos que sobe menos que o INPC, mas o padrão certo é o INPC. O Ministério das Cidades fez uma pesquisa sobre o aumento de passagens de ônibus entre 1994 e 2003 (http://www.cidades.gov.br//media/TarifasOnibusUrbanos1994a2003.zip), e observou que TODAS as tarifas de ônibus das capitais tiveram aumento maior que o aumento do INPC. Enquanto o INPC subiu 150,4% entre 1994 e 2003, a passagem de ônibus em Brasília (a que menos subiu) aumentou 196,3%; a de São Paulo aumentou 240%; a de Fortaleza, 275%; as de Salvador e do Rio de Janeiro aumentaram 328,6%; e a passagem de ônibus em cidades como Rio Branco e Porto Velho aumentaram 400%. Vocês devem saber bem a agonia que é depois de cada aumento de passagem, então não preciso entrar em maiores detalhes; basta lembrar que os dois últimos aumentos aqui em Salvador (2003 e 2005) foram acompanhados de protestos de rua. Agora vamos entrar no sistema de transportes propriamente dito. Segundo o Anuário de Transportes Urbanos de Salvador de 2004 – o de 2005 ainda não foi publicado; o Anuário não existe em versão digital, só impressa, que só sai da STP com muito esforço – o número de passageiros de ônibus transportados entre 1995 e 2004 caiu 16,34%. Isso quer dizer que 87.181.190 passageiros de ônibus foram transportados a menos em 2004 que em 1995. Veja na tabela abaixo: Tabela 1: Variação de passageiros transportados 1991-2004 Ano 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 População 2.072.058 2.110.334 2.174.072 2.218.962 2.262.731 2.211.539 2.245.522 2.274.167 2.302.832 2.443.107 2.485.702 2.520.504 2.556.429 2.631.831 Passageiros pagantes de meia- Passageiros pagantes passagem de vale-transporte 35.894.248 201.250.012 65.659.562 213.861.724 78.166.867 221.379.089 88.140.904 230.153.987 85.507.304 237.994.723 99.046.015 235.058.304 62.832.692 204.355.726 76.809.319 196.899.171 64.023.236 185.660.248 71.174.822 191.550.326 70.478.409 188.809.533 81.845.051 176.115.398 85.162.636 165.756.250 120.593.677 165.756.250 Pagantes em espécie 257.407.995 197.393.976 198.764.944 180.105.678 209.961.795 177.222.459 209.413.156 226.361.756 243.150.485 239.246.703 213.642.380 215.572.721 193.381.454 159.932.705 Passageiros transportados no total 494.552.255 476.915.262 498.310.900 498.400.569 533.463.822 511.326.778 476.601.574 500.070.246 492.833.969 501.971.851 472.251.850 478.227.305 454.659.488 446.282.632 Fonte: Anuário de Transportes Urbanos de Salvador 2004 Mais ainda: se analisarmos todos os modos de pagamento (vale-transporte, meia-passagem, passagem inteira em dinheiro), ainda segundo o Anuário de Transportes 2004, veremos que o número de passagens registradas diminuiu, mas o número de passageiros que pagaram meia-passagem aumentou. Veja na tabela abaixo: Tabela 2: Evolução dos pagantes de meia-passagem 1991-2004 Ano Meiaspassagens registradas 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 35.894.248 65.659.562 78.166.867 88.140.904 85.507.304 99.046.015 62.832.692 Variação de meiaspassagens registradas em relação ao ano anterior 29.765.314 12.507.305 9.974.037 -2.633.600 13.538.711 -36.213.323 Variação de meiaspassagens registradas em relação ao ano anterior (%) 82,92% 19,04% 12,75% -2,98% 15,83% -36,56% 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 76.809.319 64.023.236 71.174.822 70.478.409 81.845.051 85.162.636 120.593.677 13.976.627 -12.786.083 7.151.586 -696.413 11.366.642 3.317.585 35.431.041 18,20% -22,24% 11,17% -0,97% 16,12% 4,05% 41,60% Fonte: Anuário de Transportes Urbanos de Salvador 2004 Em 2004 a meia-passagem representou 27,02% do total de passagens – antes desse salto de 2004, representava entre 15% a 18% do total de passagens. Vá guardando estas informações na cabeça ou anote em algum lugar, porque vamos precisar de todas elas mais adiante. Finalmente, vamos ver o trem suburbano, aquela velha linha Calçada-Paripe que é a salvação dos quebrados. Novamente segundo o Anuário de Transportes 2004, este modo de transporte teve 204,40% de aumento de passageiros acumulado entre 1995 e 2004. Se observarmos o quanto os passageiros do trem suburbano representam no total de passageiros transportados de Salvador (juntando ônibus, elevadores, planos inclinados, trem e ferry-boat), dá pra ver que esse aumento começa em 2000 (de 0,2% para 0,4%) e prossegue por toda a década: 0,6% em 2001, 0,6% em 2002, 0,9% em 2003, 1,0% em 2004. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) informa que o número de funcionários do setor diminuiu (166 em 2000, 173 em 2001, 181 em 2002, 178 em 2003, 177 em 2004 – ver em http://www.cbtu.gov.br/operadoras/veja/caractempresas.pdf) e o número de trens não passa de 6 já faz um tempo (pelo menos desde 1992, como se vê em http://br.geocities.com/row701/ferrovia-textos-01.htm e http://www.salvador.ba.gov.br/noticias.php?codNot=1522). Por último, resta perguntar: quem paga os custos do sistema de ônibus? É a passagem inteira paga pelo passageiro comum e a metade da passagem paga pelo estudante. Todos os custos do sistema de ônibus são pagos pelo passageiro que paga inteira: a passagem dos carteiros, policiais, oficiais de justiça, funcionários de juizado de menores e outros que têm gratuidade; a metade da meia-passagem que o estudante não paga, os impostos cobrados da empresa; os salários dos motoristas, cobradores, despachantes e todos os empregados das empresas; a remuneração dos acionistas da empresa; tudo isso e outras despesas do sistema de transportes são pagas pelo passageiro que paga inteira, e pela metade da passagem que o estudante paga. Por sinal, esse jeito de pagar os custos do sistema de ônibus é uma bola de neve de exclusão social, e das piores. Para ter uma idéia da coisa, vamos bolar uma situação em que todos os custos do sistema (peças, salários, manutenção, garagem, impostos, ônibus novos, etc.) e todos os custos dos passageiros (aluguel, alimentação, roupas, material escolar, etc.) estão congelados. Agora pegue esse sistema, tudo congelado do jeito que está, e aumente alguma coisa no lado dos custos do sistema – os combustíveis, por exemplo. Os empresários de ônibus vão pressionar a prefeitura para aumentar a passagem, e a prefeitura dificilmente tem como negar. A passagem aumenta, e isso vai bater no bolso dos passageiros. Muitos passageiros já vivem no limite, e terão que cortar gastos em outras áreas, ou então deixar de andar de ônibus – e cada vez mais pessoas deixam de andar de ônibus em Salvador. Se pessoas deixam de andar de ônibus, isso significa que restam menos pessoas para dividir os custos do sistema. Quanto menos pessoas restarem para dividir os custos, tanto maior é o “pedaço” que fica para cada uma – ou seja, a passagem vai ter que aumentar. Se a passagem aumenta, tem muita gente que já vive no limite, e tem que cortar gastos ou então deixar de andar de ônibus – e cada vez mais pessoas deixam de andar de ônibus. Quanto menos pessoas restarem para dividir os custos, tanto maior é o “pedaço” que fica para cada uma – ou seja, a passagem vai ter que aumentar de novo. E começa tudo outra vez, até encher o saco. No mundo real, em que os preços não estão congelados, todos os preços variam em direções diferentes e com intensidades diferentes, mas o resultado continua sendo parecido com esse: a cada dia mais pessoas deixam de andar de ônibus. Se não acredita, veja de novo a Tabela 1, com a variação dos passageiros transportados, e aí fica mais certo o que estou dizendo: o número de passageiros transportados continua caindo, mesmo quando a população de Salvador cresce. De 2000 para 2001 houve uma queda de 6,29% no número de passageiros transportados – a segunda maior queda nos últimos 15 anos, perdendo apenas para uma redução de 7,29% de passageiros transportados entre 1996 e 1997. Entre 2001 e 2002 foram transportados 1,25% de passageiros a mais; logo depois, de 2001 para 2002, o sistema de ônibus transportou 5,18% de passageiros a menos, e entre 2003 e 2004 a redução foi de 1,88% de passageiros transportados. SIM, E DAÍ? Já temos informações até demais. Dessas informações dá pra tirar algumas conclusões. PRIMEIRA CONCLUSÃO: O número de usuários de transporte diminuiu por causa do aumento da passagem maior que o aumento dos salários, e por causa disso mais pessoas usam outros meios de transportes mais baratos (trem, bicicleta) ou andam a pé. Pena que a SETIN/STP não pesquise quantas pessoas andam a pé em Salvador; esta informação seria essencial para dar garantia a esta conclusão. Mas pensem no seguinte: as pessoas deixam de andar de ônibus, mas continuam precisando se deslocar de um ponto a outro da cidade, por qualquer motivo que seja (compras, médico, trabalho, visita a parentes, etc.). Como fazem isso se não têm condições de pagar a passagem? A meu ver, quem não tem dinheiro para andar de trem ou precisa andar entre lugares da cidade fora da linha Calçada-Paripe é forçado a andar de bicicleta ou a pé. Outra solução é mendigar dinheiro para o transporte, como qualquer pessoa vê todos os dias na Lapa, Rodoviária, Barroquinha, Aquidabã e outras estações de ônibus. SEGUNDA CONCLUSÃO: Por causa do aumento de passagens de ônibus muito maior que o aumento de salários, pessoas que têm parentes estudantes usam o smart-card para economizar no transporte. O smart-card é usado pelas famílias mais carentes para recompor a renda familiar, assim como o vale transporte (para quem está formalmente empregado, e não para quem está no setor precarizado do trabalho – camelôs, biqueiros, etc.). Não adianta ficar naquela questão superficial de saber se a meia-passagem é ou não é direito, se quem usa o cartão sem ser estudante está certo ou errado; é preciso pensar na criatividade das pessoas para continuar sobrevivendo sob o capitalismo, em especial os trabalhadores. Da mesma forma que o vale-transporte é transformado em moeda pelo trabalhador e ajuda na sua sobrevivência (quem nunca comprou comida para casa com vale-transporte nunca vai saber do que estou falando, evidentemente), a meia-passagem é uma forma de "impor preço" mais barato contra as empresas de transporte: se a tarifa sobe muito mais que o salário, o trabalhador e sua família dão um jeito de pagar menos para não se verem forçados a deixar de andar de ônibus. Aí a mãe usa o cartão do filho, o tio usa o cartão da sobrinha, a prima usa o cartão da prima, a vizinha usa o cartão da vizinha, e por aí vai. É a boa e velha luta de classes aparecendo onde menos se espera: o patrão da empresa de transportes quer garantir seu lucro, mas esse lucro só acontece se os trabalhadores forem mais prejudicados e explorados do que já são, tanto no lugar onde trabalham quanto fora dele; o trabalhador dá seu jeito de resistir usando o cartão dos parentes, traseirando, passando junto na catraca... Não é “culpa” de um ou de outro: numa sociedade de produtores de mercadorias – para falar como um velho economista alemão – o empresário tem que conseguir lucro para manter o negócio andando, e o trabalhador precisa comprar dos empresários as coisas de que precisa para se manter vivo. Trabalhadores e empresários, cada um como uma classe diferente da outra, viverão nesta relação de conflito uns contra os outros enquanto durar o sistema capitalista. Agora sim, dá pra comentar sobre o Salvador Card e outras coisas mais. POR QUE O SALVADOR CARD AGORA? Por que o SETPS e a Prefeitura querem mudar a tecnologia agora e implementar a bilhetagem eletrônica? Segurança não tem nada a ver com o caso: isso é história do SETPS para encobrir a verdade, ou, no mínimo, é uma verdade contada pela metade. Pode perguntar a qualquer cobrador, este mesmo figura que já foi eliminado em 16% das cidades que implementaram a bilhetagem eletrônica (segundo o estudo “Panorama Geral da Arrecadação Automática de Tarifas nos Sistemas de Transportes Públicos Brasileiros”, publicado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU – em dezembro de 2003): eles têm um limite de dinheiro (entre R$ 50,00 a R$ 70,00) que pode ficar no caixa, aquele perto da roleta; o dinheiro que ultrapassa esse limite vai para o cofre que fica embaixo da cadeira do cobrador. O cobrador tem duas opções: guardar no cofre todo dinheiro acima do limite que fica no caixa, ou deixar algo a mais. Assaltantes não gostam muito quando encontram pouco dinheiro no caixa, e agridem os cobradores que guardam todo o dinheiro no cofre; assim, os cobradores preferem deixar mais dinheiro no caixa e pagar o prejuízo de seu próprio bolso a correr o risco de uma agressão, ou mesmo de morte. De toda forma, deu pra ver que a empresa não se prejudica: se o dinheiro roubado está abaixo do limite, com certeza há seguro para isso – pago pelas nossas passagens; se o dinheiro roubado está acima do limite, é o cobrador quem paga. Pior: vamos agora pensar num assalto a ônibus depois do Salvador Card ser implementado. Tudo bem, não tem mais dinheiro no caixa nem no cofre. Mas e os passageiros? Quem disse que dá pra andar sem dinheiro nenhum na rua? Sem relógio? Sem bolsa? Sem sacolas de compras? Sem livros? Sem qualquer coisa, por menor que seja, que interesse a um assaltante? O alvo vai simplesmente mudar: ao invés do caixa, os passageiros é que serão assaltados, como sempre foram. Segurança tem pouco a ver com o assunto. Na verdade, a segurança em questão é a segurança da empresa não perder dinheiro, pois os passageiros continuam sujeitos a assaltos. Então por que o SETPS e a Prefeitura querem implementar o Salvador Card? Por causa da nossa segunda conclusão: os parentes dos estudantes não têm mais como pagar passagem inteira, e usam os cartões para não terem que deixar de andar de ônibus. Vamos bem devagar para entender qual é o caso. Já vimos que a parentada toda usa o cartão da molecada: pai, mãe, tia, tio, irmão, irmã, prima, primo... tudo isso porque a passagem aumenta mais que o salário. Voltem para a tabela das meias-passagens; reparem como o número de meias-passagens registradas cresce a partir de 2001, e em 2004 o número é o maior de toda a história (120.593.677). Para ser mais exato, a variação de meias-passagens registradas entre 2003 e 2004 é também a maior de toda a história (41,60%). Acho que todos se lembram: a Revolta do Buzu foi a uma revolta popular que aconteceu em agosto/setembro de 2003 contra o aumento de passagens de ônibus – o segundo aumento de passagens em menos de um ano (o primeiro em 13 de janeiro, de R$ 1,10 para R$ 1,30, e o segundo em 31 de agosto, de R$ 1,30 para R$ 1,50). Se a gente continuar entendendo que o aumento de meias-passagens registradas acontece porque os principais usuários de transporte (classe C, com renda entre R$ 497,00 e R$ 1.064,00 por mês) já não têm mais condições de pagar pelo preço da passagem e a parentada usa o cartão para poder continuar andando de ônibus pela cidade, fica claro que os dois aumentos de 2003 deram um baque muito grande nas famílias de trabalhadores, e todo mundo começou a usar os smart-cards da molecada pra poder andar de ônibus. Nessa mesma linha, dá pra dizer tranqüilamente que essa prática continua aumentando depois do aumento de 2005 para R$ 1,70. Basta voltar um pouco e ver de novo a Tabela 1: a situação está ficando tão braba para os usuários de transportes – geralmente trabalhadores – que o número de pessoas que pagam meia está ficando bem próximo do número de pessoas que pagam inteira com dinheiro. Isso significa menos dinheiro entrando no sistema de ônibus, o pesadelo dos empresários. Por isso, me parece que os empresários de ônibus, quando implementaram o Salvador Card, pensaram antes de qualquer coisa em reduzir o número de meias-passagens no sistema a qualquer custo. Vamos devagar, de novo, e dá pra entender como isso acontece. a) Redução do número de meias-passagens pelo limite de recargas Uma primeira pista está no número máximo de recargas permitidas por mês no Salvador Card: apenas três recargas. Vou copiar as palavras de Fabrício no texto “Bilhete Eletronico, UNE, UEB e Empresários” (http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2006/04/350045.shtml), que resume bem a situação: Um breve cálculo: considerando que utilizemos em média 4 vezes por dia o smartcard durante todos os dias do mês, o gasto total com transporte é de R$102,00. Então para usar o smartcard durante todo o mês, teriamos que em média fazer 3 recargas de R$34,00. Quem tem R$34,00 inteiro pra recarregar no cartão? A grande maioria dos estudantes, inclusive eu, vai conseguindo dinheiro aos poucos, durante o mês. Agora vamos imaginar os milhares de secundaristas e universitários, carentes, que fazem trabalhos informais ou vivem da grana irregular dos pais, tendo que fazer pagamento antecipado de passagem! Essa galera não vai ter como recarregar, e vai se lascar, porque apesar de ter dinheiro pra pagar a meia passagem não vai ter como carregar no cartão. Horácio Brasil, presidente do SETPS, está ciente disso; declarou em entrevista ao Correio da Bahia (1.º de abril de 2006) que quem comprar os primeiros créditos até 31 de maio ganhará 10 créditos gratuitos. Esta esmola pode chamar os estudantes para um primeiro momento, mas não resolve a situação de quem continuará sem ter como juntar os R$ 34,00 de uma só vez para pagar a recarga. Ao longo do tempo, é bastante provável que muitos estudantes não terão condições de pagar este preço pela recarga do cartão e deixarão de andar de ônibus – quem não tem dinheiro para pagar a meia não terá dinheiro para pagar a inteira. O SETPS pretende, portanto, reduzir o número de usuários de meia-passagem com esse mecanismo simples e eficaz de exclusão social. b) Redução de cartões válidos pelo controle de freqüência O Salvador Card será interligado com o Sistema Nacional de Acompanhamento da Freqüência Escolar (SAFE), parte do Projeto Presença (http://portal.mec.gov.br/projetopresenca/), do Ministério da Educação. O que é este sistema? É um banco de dados eletrônico que acompanhará a freqüência do aluno na escola; o aluno receberá um cartão eletrônico, que passará numa máquina de controle de freqüência a cada vez que aparecer na escola. Segundo o Ministério da Educação, “o cartão tornará possível a realização de parcerias em atividades sociais e culturais, benefícios em transportes coletivos e formação de clubes de estudante, dentre outras ações – todas visando a facilitar o acesso ao conhecimento, garantir a permanência do aluno na escola e promover a qualidade da educação” (http://portal.mec.gov.br/projetopresenca/index.php?option=content&task=category§ionid=26&id=128&It emid=373). Segundo o SETPS, se o aluno deixar de freqüentar a escola por 30 dias terá seu cartão bloqueado. Não sei vocês, mas durante um bom tempo de minha vida estive – e estou – desempregado. Nos dois últimos anos de faculdade foi um aperto conseguir grana para ir às aulas todo dia. E olhe que venho de uma família que tem um “histórico econômico” de classe média, apesar de hoje estar todo mundo desempregado, e tivemos a quem recorrer nas horas de aperto mais brabo. Como vimos, a tarifa de ônibus sobe muito mais que o salário. A despesa de transporte continua sendo a terceira maior para a família do peão que não tem a quem recorrer. Para não cortar gastos com habitação e alimentação, é preciso cortar em diversos outros setores, inclusive transporte. Não são poucas as famílias que conheço só aqui na Boca do Rio, onde moro, que revezam os dias de mandar os filhos à escola porque não há dinheiro para o transporte de todos em todos os dias do mês. Não é que os estudantes deixem de freqüentar a escola somente por isso, mas há de se convir que numa cidade com índice de desemprego de aproximadamente 23% (Pesquisa de Emprego e Desemprego DIEESE/SEADE fevereiro 2006 http://www.dieese.org.br/ped/ssa/pedssa0206.pdf) este é um fator essencial. Daí o círculo vicioso em que se entra: uma família que não tem dinheiro para mandar os filhos à escola vê a meia-passagem de um deles ser cortada por baixa freqüência. Se já não tinha dinheiro antes para mandar o filho à escola, menos ainda agora, que a despesa será dobrada. Se o cartão antes era compartilhado pela família para diminuir as despesas com transporte, agora este “recompositor de renda” deixa de existir, e a família se vê obrigada a gastar mais com transporte ou, se já estava no limite com o compartilhamento de cartão, a andar a pé. Exclusão social simples e direta. TRANSPORTE É SERVIÇO PÚBLICO, E NÃO MERCADORIA Sim, transporte é serviço público, e não pode ser tratado como mercadoria – ao contrário do que a Prefeitura de Salvador e o SETPS vêm fazendo há algum tempo. Só pra ter certeza, vamos ver o que a legislação sobre transportes diz sobre o assunto? CONSTITUIÇÃO FEDERAL: "Art. 30. Compete aos Municípios: (...) V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial." (http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm) LEI ORGÂNICA DE SALVADOR: "Art. 239. O transporte coletivo é um serviço público essencial a que todo cidadão tem direito, sendo de responsabilidade do Poder Público Municipal o planejamento, o gerenciamento, e a operação do mesmo." (http://www.cms.ba.gov.br/lom/lom.pdf) Se as pessoas “fraudam” a meia-passagem, em minha opinião, e de acordo com as informações que já vimos, é porque a Prefeitura (a de agora, a de antes e todas as outras) tem sido totalmente incompetente na gestão do sistema de transporte, e não consegue atender ao que manda a Lei Orgânica de Salvador – que o transporte coletivo tenha uma tarifa condizente com o poder aquisitivo da população (art. 238) e que os planos de transporte priorizem o atendimento à população de baixa renda (art. 241, I). Cede apenas aos apelos e interesses do SETPS e trata o transporte como mercadoria, e não como o meio de exercício do direito de ir e vir dos cidadãos, em especial dos trabalhadores e da população de baixa renda. Por mais que no aumento de 2005 o secretário de transportes, Nestor Duarte, tenha aparecido como mediador, como boa pessoa, como político dedicado a proteger o povo contra aumentos abusivos, sabemos bem qual foi a jogada: o SETPS jogou o preço da passagem pra cima (R$ 2,20), entidades estudantis e Prefeitura puxaram o preço para baixo (R$ 1,70), e o direito de ir e vir das pessoas foi – e é – negociado como no balcão de uma mercearia. Meios não faltam para garantir o transporte do povo pobre, diversos estudos já dão boas idéias; além das óbvias dificuldades de implementação do que quer que seja num setor tão grande da economia municipal, há também o fato da Prefeitura dificilmente entrar em desacordo com o SETPS quanto às tecnologias a serem adotadas e quanto ao próprio modelo de transporte. Pode haver atritos entre os dois quando a tarifa aumenta, mas isso passa rapidinho. Resta ao trabalhador, principal usuário dos transportes em Salvador, dar seus pulos para resolver uma situação que, no atual sistema, tem que ser resolvida pelo poder público: a exclusão social. Isso até que, num pulo desses, o trabalhador mude completamente a situação social a seu favor – e aí a história será outra.