Manuel Alegre O MIÚDO QUE PREGAVA PREGOS NUMA TÁBUA Novela 2.ª edição 1. É difícil escrever um livro. Não se sabe por onde começar nem por onde seguir. Não se sabe sequer quem é quem. Por exemplo: este miúdo sentado no pátio de uma casa na Rua Duque da Terceira, no Porto, a pregar pregos muito direitos numa tábua. Quem me garante ao certo que sou eu? Agora há um avô recostado numa poltrona com uma guitarra adormecida no colo. E eis que minha mãe e minha avó pegam em mim muito aflitas e me levam a correr para uma farmácia depois de eu (provavelmente o miúdo que pregava pregos numa tábua) ter engolido uns comprimidos granulados de um remédio do avô (talvez o mesmo recostado numa poltrona). Vá lá saber-se quem é o miúdo que sobe ao andar de cima e vê a mãe 11 numa grande cama entre lençóis muito brancos a mostrar-lhe um embrulho pequenino de onde sai uma cabeça cheia de pêlos negros. – É a tua irmã – diz a mãe. Ao que o miúdo (talvez eu) responde com (dirão mais tarde) uma inconveniência. Sim, é difícil escrever um livro. Como contar a aflição do miúdo (talvez o da tábua, possivelmente o mesmo dos comprimidos, se calhar eu) quando lhe vestem uma camisola azul de mangas curtas. Sente-se completamente despido, tão nu com se estivesse de pirilau ao léu, e assim passará o dia todo, mesmo em Aveiro, diante da família que foram visitar, depois de o avô (o da guitarra) que tudo lhe perdoa, lhe ter dado uma palmada para ver se o cala. Mas quem cala quem? Parece que este (mas possivelmente estou a presumir) não é de se calar. Eis senão quando o tal que não suporta mangas curtas está na varanda de uma casa na Costa Nova e vê passar num barco a motor um homem, digamos um cavalheiro, de pé, com um boné azul, a dizer-lhe adeus. Apetece-me escrever, mas como ter a certeza, que é o meu avô paterno (não o da guitarra), esse que passa de pé no meio do barco, ainda agora sinto um 12 nó na garganta, porque tenho a impressão de que aquele aceno de mão foi mesmo um adeus, nunca mais o vi, supondo que o miúdo que está na varanda é o mesmo que pregava pregos, engoliu os comprimidos, fez uma fita por causa das mangas curtas e agora, passados tantos anos, está a ponto de acreditar que é este que escreve e já não é capaz, nunca mais foi, de pregar um prego. 13 2. Ninguém ao certo sabe quem é quem nem se o que foi chegou a ser ou é fruto da imaginação ou de algo que alguém contou não se sabe quando nem a quem, talvez a mim, que não estou certo de ter sido o miúdo que pedala no seu carro de pedais e quatro rodas no passeio da Rua Duque da Terceira quando, de repente, vê uns sujeitos de gabardina arrastar para um Citroën preto o médico que mora na casa em frente e é amigo do avô (o da guitarra). Quem me garante que o miúdo que pregava pregos viu mesmo o que conto e não está a confundir esta cena com muitas outras vistas mais tarde em filmes de guerra e resistência? Seja como for, nos ouvidos do miúdo que pedalava no seu carro, ou nos deste que escre15 ve, ainda ecoa a voz grave do avô que, segundo se conta, tocava muito bem guitarra: – Pulhas, pulhas – dizia ele, que vejo agora de chapéu branco na mão a clamar para as pessoas sentadas nas esplanadas da Avenida, em Espinho: – Viva a Inglaterra! Se por acaso o miúdo sou (ou fui) eu, então o avô que tocava guitarra é o materno, o mesmo que nesse Dezembro de 1940, estando o narrador (ou o presumível miúdo que pregava pregos) na quinta de seus bisavós em São Pedro do Sul, se sentiu mal quando jogava cartas no clube da terra e agora chega de maca trazido pelos bombeiros, estou a vê-lo, partindo do princípio que sou eu, acena-me, e o miúdo, seja lá quem for, percebe imediatamente que é como o aceno do outro, nunca mais o verá. – Foi fazer uma grande viagem – dirão a mãe, a avó, o pai, mas o puto (lá estou eu outra vez a presumir) não se deixa levar, acho que sabe, ainda que não queira saber, de tal modo que um dia, estando todos à mesa, de repente diz: – O avô morreu. E a avó começa a chorar. 16 Então, o miúdo que não acreditou que o avô tivesse ido fazer uma viagem, vê, pela primeira vez vê, o pai passar a mão pela cabeça da avó, sua sogra. Um gesto de ternura. Fica espantado. Porque há entre os dois uma guerra surda. Por razões antigas: o pai e a mãe casaram-se à revelia das respectivas famílias, monárquica, a do pai, republicana, a da mãe. Mas também por causa do miúdo que acaba de dizer: O avô morreu. Talvez tenha começado naquela manhã, na casa do Porto, quando o miúdo atirou um boneco à cara do pai, que não apreciou: – Vem cá. Mas a avó agarra o miúdo que atirou o boneco à cara do pai. – Ele é meu filho – diz o pai. – Ele é meu neto – diz a avó. E agora estão na praia, em Espinho. O miúdo que não suporta mangas curtas também embirra com o mar. O pai quer levá-lo a molhar os pés. A avó não deixa. Então o pai leva-o às cavalitas e desata a correr para as ondas, enquanto diz: Nós não temos medo do mar, nós não temos medo do mar. 17 E atira-se com o miúdo agarrado ao pescoço. Nada com ele assim pelo mar dentro. O miúdo chora, cada vez mais agarrado ao pescoço do pai que de súbito pára, levanta-o nos braços, solta uma gargalhada e diz: – Nós não temos medo do mar. Então o miúdo que se assustava com as ondas abraça o pai e repete com ele: – Nós não temos medo do mar. A avó chora. O pai passa-lhe a mão pela cabeça. E nós não temos medo do mar. 18 3. Entretanto o miúdo cresceu, quer seja o que pregava pregos muito direitos numa tábua, quer o que engoliu os comprimidos do avô, quer o que se rebelou contra a humilhação das mangas curtas, quer os outros todos ou eu próprio, que não sei se fui cada um deles menos um, este que conta e tem tendência ora a efabular ora a querer ser tão verdadeiro que põe em dúvida o que de facto foi e até de si mesmo suspeita. Seja ele quem for, o certo é que o miúdo cresceu. E agora está aqui (mas ainda será ele?) a ver se consegue escrever um livro, sem saber o quê nem como. Pois que outro livro pode escrever-se? Vida de tantas vidas na tão curta vida. Ora vejamos o miúdo, agora com dez anos, diante de um espelho que alonga a figura. Como 19 serei daqui a outros dez anos? pergunta, enquanto se vê naquele espelho de onde um outro olha para ele. Assusta-se, o miúdo que engoliu os comprimidos do avô olha para ele e vê outro e esse outro é ele. Uns tempos depois, está sentado no parapeito sobre o rio, no Largo de Além da Ponte, o tal onde acampam os ciganos e os saltimbancos montam as suas tendas. Olha as águas do rio e tem pela primeira vez a percepção do tempo que passa e da efemeridade de tudo, de si mesmo, das águas do rio, das palavras que andam no ar e se encadeiam ao ritmo do bater do seu próprio coração. Então o miúdo que pregava pregos numa tábua chega a casa e aponta num caderno de duas linhas aquelas palavras que de certo modo ouviu no canto dos pássaros e leu nas águas do rio. Palavras que desapareceram, como ele próprio então com dez anos, como o próprio largo que já não é o mesmo, era de terra e agora está empedrado e mais pequeno, já não há feiras de burros, nem cheiro de fogueiras, nem barracas de circo que ora chegavam ora em uma manhã desapareciam, deixando dentro do miúdo uma saudade de tudo o que passa e anda pelos caminhos. 20 Que é o que, de outra maneira, lhe dirá uns doze anos mais tarde, na Feira dos 23, na margem esquerda do Mondego, em Coimbra, Zé Mafra, um cigano seu amigo: – Cigano não tem casa, cigano só tem caminhos – disse ele, sem saber que estava a fazer um poema. Voltando atrás, o miúdo que pedalava no carro de quatro rodas no passeio da Rua Duque da Terceira, ainda está em frente do espelho, fixa aquele momento que ele sabe irrepetível, vê-se de fora para dentro e de dentro para fora, promete que de dez em dez anos se olhará assim naquele ou noutro espelho para saber se será sempre o mesmo ou se o mesmo que parecerá sempre não poderá ser afinal um outro. No rosto e no resto. 21 4. Avancemos então por aí fora. Um livro é como uma estrada, muitas são as curvas, ora avança ora recua, ora vai dar a nenhures, que é talvez onde agora estou. Na terra de ninguém, ou aquela que fica junto à fronteira e que sempre tanto me fascinou, Talvera, diz-se em provençal, a língua, como a italiana, da poesia. Talvera, junto à raia, terra de ninguém. Ou a terra de ninguém da guerra, a clássica e a moderna, uma pequena clareira perto de Quipedro, eles do lado de lá, no meio da floresta, nós do lado de cá, por detrás de jipes, unimogues e GMC. Veja-se onde um livro nos leva, da palavra nenhures à palavra Talvera, e desta que não é propriamente a de ninguém da guerra de trincheiras, mas a do perigo e da morte, a uma clareira no meio do mato, entre Nambuangongo e Quipedro, em 23