SOCIEDADE DE EDUCAÇÃO DO VALE DO IPOJUCA - SESVALE
FACULDADE DO VALE DO IPOJUCA – FAVIP
COORDENAÇÃO DE PSICOLOGIA
LIZA MINELLE SOUZA NASCIMENTO
COM QUE ROUPA EU VOU? VESTINDO SENTIDOS DE SER-TRAVESTI EM
CARUARU-PE
CARUARU-PE
2011
LIZA MINELLE SOUZA NASCIMENTO
COM QUE ROUPA EU VOU? VESTINDO SENTIDOS DE SER-TRAVESTI EM
CARUARU-PE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao curso de Psicologia, da Faculdade do Vale
do Ipojuca, como parte dos requisitos para
obtenção do título de graduada em Psicologia.
Orientadora: Profª Ma. Suely Emilia de Barros
Santos
CARUARU-PE
2011
N244c
Nascimento, Liza Minelle Souza.
Com que roupa eu vou? Vestindo sentidos de ser-travesti em CaruaruPE. / Liza Minelle Souza Nascimento. -- Caruaru : FAVIP, 2011.
81 f. :
Orientador(a) : Suely Emília de Barros Santos.
Trabalho de Conclusão de Curso (Psicologia) -- Faculdade do Vale
do Ipojuca.
Inclui apêndice.
1. Ser-travesti. 2. Políticas públicas. 3. Violência. I. Título.
CDU 159.9[12.1]
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário: Jadinilson Afonso CRB-4/1367
DEDICATÓRIA
À minha Dindinha e a
Tia Mima, por terem me amado tanto.
AGRADECIMENTOS
A Deus por estar sempre comigo.
Aos meus pais Antônio e Alice por terem embarcado comigo na realização desse sonho, onde
permanecemos juntos mesmo na distância geográfica.
A minha irmã Gabi, por ser tão doce e amável.
A Gilmar por ter compreendido as minhas ausências, sempre me apoiando e amando.
Ao meu amigo Bruno, por estar sempre comigo nos momentos de felicidade e tristeza, pelo
seu acolhimento e cuidado na hora da angústia.
A minha amiga Claudia pelos deliciosos momentos vividos no aconchego do seu lar e a sua
família (Emanuel, Marília, Hugo e Gugu) por me aceitarem em suas vidas de maneira tão
terna.
A Elisângela por me fazer rir nas madrugadas de produção.
A Jâmes, Walisson e Sarah por serem tão divertidos e tornarem a minha vida mais alegre.
A Suely Emília pela sua presença verdadeira e acolhedora.
A Cristiane Calado minha psicóloga, pelo acolhimento.
A Jovelino, Suzy e Andréia pelas conversas, estudos e amizade.
A turma 0703 por todos os momentos felizes que passamos durante estes anos.
A todos os amigos e amigas que estiveram comigo nessa caminhada, pelo apoio e incentivo.
As travestis participantes da minha pesquisa pela disponibilidade, credibilidade e confiança.
EPÍGRAFE
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante,
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
Raul Seixas
RESUMO
Na cidade de Caruaru, chama a atenção o grande número de travestis, e a falta de políticas
públicas e sociais que atendam as necessidades desse segmento, nessa direção esse estudo tem
como objetivo geral compreender os sentidos possíveis de ser-travesti em Caruaru-PE. Para
tanto utilizamos como metodologia a narrativa, a qual se mostra como possibilidade de
contação de experiências; como modalidade de intervenção/investigação lançamos mão da
“Entrevista Clínica de Pesquisa” com três travestis e, como método de análise das narrativas a
“Analítica do Sentido”. Nessa busca pelos sentidos possíveis foram desvelados que sertravesti em Caruaru é estar em situação de violência, preconceitos, discriminação por parte da
família, da escola e da sociedade, é também estar em busca do ser-feminino, onde as
concepções tradicionais de gênero masculino e feminino são fragmentadas. A partir dessa
compreensão, este estudo nos convida a olharmos para a necessidade da construção e
efetivação de Políticas Públicas voltadas para o público de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (LGBTT), bem como para uma ação psicossocial na comunidade a
qual incida na vida cotidiana da sociedade caruaruense possibilitando qualidade de vida e
bem-estar humano para as travestis e a sociedade em geral.
Palavras-chave: Ser-travesti; Políticas públicas; Violência.
ABSTRACT
In the town of Caruaru, amazes by the large number of transvestites, and the lack of public
and social policies that meet the needs of those. In that direction,this study aims to realize the
possible sense to be transvestite in Caruaru-PE. So we use the narrative as a methodology,
which is shown as the possibility of "telling" of experiencies. As a form of intervention
/investigation, we use the "Clinical Research Interview" with three transvestites; and as a
method of narrative analysis, we use the" Analytics of Sense ". In this search for possibles
meanings has been revealed that to be a transvestite in Caruaru is to stay in a situation of
violence, prejudice, discrimination by family, school and society,it is also to be in search of
female being, where the traditionals conceptions of gender male and female are fragmented.
From this understanding, this study invites us to look at the need for the construction and
execution of public policies to the public Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender (LGBTT),
as well as a psychosocial action in the community which focuses everyday in the life of
caruaruensis society enabling quality of life and well-being for transvestites and for general
society .
Keywords: travestites being; violence; public policies.
SUMÁRIO
1
APRESENTAÇÃO: TROCANDO ROUPAS ............................................................... 10
2
OLHANDO PARA AS QUESTÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADES E
DIVERSIDADES .................................................................................................................... 13
3
FOCANDO O OLHAR NA TRAVESTILIDADE ....................................................... 18
4
ENTRE E VISTA: HISTÓRIAS CONTADAS VIA DEPOIMENTOS ..................... 23
4.1
Na estrada: trilhando caminhos para a compreensão da narrativa da
experiência ............................................................................................................................... 23
4.2
5
Narrando as experiências ........................................................................................ 26
COSTURANDO SENTIDOS DE SER-TRAVESTI EM CARUARU-PE ................. 70
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 76
10
1
APRESENTAÇÃO: TROCANDO ROUPAS
A temática relacionada a gênero sempre me fascinou, sobretudo quando se trata de
modelos que escapam à heterossexualidade hegemônica. Nesse contexto, há algum tempo,
observo as travestis que fazem “programa” na Praça do Rosário, conhecido ponto de
prostituição da cidade de Caruaru-PE. Ficava olhando fixamente para os seus corpos bem
definidos, seus cabelos e a maquiagem forte que parecem tentar revelar algo, penso então
como é ser travesti? Por que estão naquele lugar? E ainda por que a escolha por profissões
ligadas à estética ou a prostituição? A experiência como estagiária do Estágio Básico em
Psicologia Social, na Penitenciária Juiz Plácido de Souza, onde trabalhei com travestis
também contribuiu para a escolha dessa temática, pois notei que naquele espaço elas eram
vítimas de violência e exclusão.
Tive a curiosidade de acessar o site de busca Google, procurando por travestis em
Caruaru, e me deparei com um resultado impressionante, no qual, a maior parte das notícias
que apareceram estavam ligadas à morte por assassinato com suspeita de homofobia ou por
aplicação indevida de silicone ou ainda à prostituição. No último dia 17 de agosto de 2011 na
rede de TV SBT, foi exibido o programa Conexão Repórter que teve como título “o outro lado
da noite”. O programa trazia reportagens a respeito do dia-a-dia de uma travesti, a dificuldade
em arrumar um emprego, a violência à qual estão submetidas cotidianamente e comparava
uma reportagem feita pela mesma rede televisiva com travestis nos anos 80, chamando a
atenção sobre o quanto a realidade para esse segmento ainda é difícil e como pouca coisa
mudou. Este fato me inquietou e instigou ainda mais, me impulsionando a voltar o meu olhar
para as travestis em Caruaru, pois corrobora com a questão da não-visibilidade das travestis
ou o fato de serem ignoradas pela sociedade, bem como com a violência a que são submetidas
diariamente.
Durante a orientação do meu Trabalho de Conclusão de Curso - TCC meu amigo
Bruno Robson lembrou que um dia quando fui questionada sobre o motivo da minha escolha
para trabalhar com travestis, respondi firmemente que seria “chocar!”. Naquele momento, eu
ainda não havia me dado conta do sentido do que e havia dito, no entanto, quando a Profª Ma.
Suely Emilia me perguntou o que é que chocar? Comecei a refletir e descobri que o choque
vem da própria aparência das travestis que são perfeitas e sexies ao mesmo tempo em que é
diferente e escapa ao padrão e por isso é marginalizada, e ainda, percebo, também, agora, que
esta temática causa impacto em muitas pessoas, pois quando digo o título deste trabalho,
muitos o recebem com estranheza e até mesmo ficam chocados.
11
No que se refere ao meu envolvimento com a temática, nesse momento me vem à
memória cenas de quando eu era criança, às vezes quando brincava colocava um lenço na
cabeça dizendo que eram os meus cabelos, usava os sapatos de salto alto de minha mãe e
passava um batom escuro, em algumas ocasiões eu assumia diversos papéis, e de certa forma
já não era mais eu. Na adolescência o que mais queria era ser diferente de tudo e de todos, e
por isso pintava as unhas com esmalte colorido, usava roupas “estranhas”, por diversas vezes
eu desejei não ser mais eu, pois ser eu pesava muito, eu não me achava bonita e muito menos
interessante, em dado momento até me tornei super religiosa. Acho que me “travesti” tantas
vezes para velar ou revelar como me sentia. Assim fico pensando: será que a mostração da
alegria que tantas vezes vi esboçada nos rostos das travestis vela ou revela algo? Será que elas
são como eu?
Foi a partir dessas inquietações que me vi provocada a trabalhar com as travestis na
cidade de Caruaru-PE. Este trabalho tem como objetivo geral compreender alguns sentidos
possíveis de ser travesti na cidade de Caruaru-PE e como objetivos específicos, discutir
alguns olhares teóricos sobre diversidade sexual, gênero e sexualidades; Cartografar a
realidade das travestis na cidade de Caruaru-PE; Compreender as narrativas das travestis na
cidade de Caruaru-PE; Analisar os sentidos de ser travesti fazendo articulações com
discussões teóricas sobre a temática.
Não poderia deixar de expor aqui um importante momento que ocorreu durante a
construção do projeto, em que fui convidada pelo presidente do Grupo de Resistência Gay da
cidade de Caruaru-PE, para participar de uma palestra sobre a lei que legitima a união estável
entre pessoas do mesmo sexo, realizada no ROTARY CLUB, onde estavam presentes muitas
pessoas da sociedade caruaruense que debateram sobre a temática e solicitaram que eu
também desse a minha contribuição, uma vez que estou estudando sobre a temática de gênero.
Este foi o momento em que começou a descortinar-se explicitamente na prática a relevância
social deste trabalho, abrindo espaços para discussão e debate nos diversos segmentos da
cidade, pretendendo ainda defender a dignidade humana das travestis, bem como lançar um
olhar para as políticas públicas e sociais voltadas para esse grupo na cidade de Caruaru-PE.
Evidencio ainda que este trabalho pode contribuir socialmente no que diz respeito ao
combate à homofobia, trazendo uma reflexão acerca dos direitos humanos que devem ser
garantidos, voltados para a elaboração de políticas públicas.
No âmbito pessoal este trabalho torna-se importante, pois aqui temos a oportunidade
de unir o que aprendemos no curso de Psicologia durante todos estes anos a uma temática que
12
sempre nos chamou a atenção, contribuindo para o nosso crescimento enquanto pessoas e
também enquanto profissionais.
Destaco ainda a carência de literatura relacionada ao tema travestis no âmbito nacional
e quando se trata do tema no município esta é praticamente inexistente, encontrei apenas
matérias jornalísticas na imprensa escrita ou na internet que em sua maioria possuem cunho
sensacionalista, o que reforça ainda mais o preconceito e a intolerância existentes em nossa
sociedade. Academicamente considero primordial a realização de estudos e pesquisas nessa
área com fins de produção de conhecimentos, uma vez que a diversidade sexual é um
fenômeno presente em nossa realidade social e que, em especial, a ciência psicológica precisa
se debruçar. Aqui se revela a relevância acadêmico-científica desse trabalho.
Após a escrita do projeto houve a apresentação para a banca, onde várias pessoas
estavam presentes dentre elas o presidente do Grupo de Resistência Gay da cidade de
Caruaru-PE convidado por mim. Naquele momento eu estava muito apreensiva me sentindo
insegura, pois eu sabia falar do que havia escrito e ao mesmo tempo com medo de errar, mas
no final me senti aliviada, afinal eu sabia que a minha primeira etapa estava cumprida e o
principal é que eu tinha a certeza que havia exposto a relevância social do meu projeto.
Muitas contribuições foram dadas pela Prof ª Ma. Etiane Oliveira. Assim sendo agora
embarco nessa segunda etapa da construção do trabalho de conclusão de curso. Tenho
enfrentado muitas dificuldades com relação à escrita, fico pensando então, será que estou me
afastando do meu tema? E depois concluo que não, afinal tenho lido muitos livros e visto
tantos vídeos sobre a realidade das travestis brasileiras que agora, posso dizer que já me
movimento com muito desejo em desvendar como é ser-travesti em Caruaru-PE.
13
2
OLHANDO PARA AS QUESTÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADES E
DIVERSIDADES
Desde 2008, foi criada a Política de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais - LGBTT, que partiu do Programa Brasil sem Homofobia, criado pela
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e a ser implementado
pelo Sistema Único de Saúde - SUS (BRASIL, 2008). Tal política visa como já é proposto na
Constituição do país, garantir acesso à saúde a todos e todas (BRASIL, 1988).
Na cidade de Caruaru-PE chama a atenção o grande número de travestis e a escassez
da efetivação de políticas públicas e sociais voltadas para esse segmento. Observamos apenas
a existência do Centro de Orientação e Apoio Sorológico - COAS, que trabalha com a questão
da prevenção as DST‟s (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e o do Centro de Saúde
Amélia Pontes que atende pessoas portadoras de HIV/AIDS e outras DST‟s. E quanto aos
movimentos organizados pela própria classe LGBTT estes parecem existir ainda de forma
tímida na cidade, segundo constatamos em conversas com algumas pessoas que participam
deste movimento.
Para falar do tema travesti será necessário primeiramente que nos situemos a respeito
de alguns caminhos que iremos percorrer. Aqui tomaremos como perspectiva de
compreensão, a Fenomenologia Existencial, uma vez que este é um modo que nos aproxima
do fenômeno, como nos diz Carmo (2002, p.22): “Não somos nós que interferimos nas coisas:
são elas que se mostram a nós, ou melhor, que se deixam revelar”.
A sociedade durante muito tempo esteve acostumada a discursos que postam modelos
de gênero e sexualidades ditos “normais”, preestabelecidos e naturalizados, à dualidade
feminino e masculino. Atualmente assistimos a uma infinidade de “novas” modalidades de
gênero, que parecem causar certa estranheza. Concordamos com Portella; Medrado (2004, p.
21, aspas dos autores) quando dizem:
[...] aquilo que aparece como óbvio, „homem é homem e mulher é mulher‟, é
resultado de uma elaboração cultural engenhosa que investe de significado corpos
biológicos diferenciados, inclusive reivindicando a dimensão biológica para
configurar essa diferenciação.
O corpo travesti parece romper com o modelo heterossexual hegemônico (homem,
branco, heterossexual), pois se apresenta como uma mistura entre feminino e o masculino,
criando novos modos de se mostrar, como pontua Fernandez (2000 apud PERES, 2005) há
uma identificação com o gênero feminino no momento em que a travesti se veste e se pinta e
14
quando busca mudanças corporais como aplicação de silicone e uso de hormônios, ficando
estampadas as características femininas, no entanto o sexo masculino continua ali, presente, e
a travesti não procura escondê-lo, apenas o considera como algo de sua intimidade sexual
(SILVA, 2007). A partir dessa concepção, compreendemos que existe um trans-gênero, aqui
entendido como um trânsito entre os gêneros, como foi evidenciado na etnografia escrita por
Silva (2007) em que existem as características que culturalmente são estabelecidas como
femininas, mas também aparece o que é tido como próprio do modo de ser do gênero
masculino em algumas atitudes, como por exemplo, quando reagem em uma briga precisando
usar a força.
Scott (1995) nos fala de gênero enquanto uma categoria de análise perpassada pela
história e cultura, que está em constante transformação. Strey (2007, p. 183) corrobora com
esta idéia e ainda sugere que:
O sexo biológico com o qual se nasce não determina em si mesmo, o
desenvolvimento posterior em relação a comportamentos, interesses, estilos de vida,
[...]. Isso tudo seria determinado pelo processo de socialização e outros aspectos da
vida em sociedade decorrentes da cultura, que abrange homens e mulheres desde o
nascimento e ao longo de toda a vida, em estreita conexão com as diferentes
circunstâncias socioculturais e históricas.
O movimento feminista na década de 1960 ocupa lugar de destaque na construção das
discussões sobre gênero, afinal este movimento político trouxe em seu bojo questionamentos
a respeito da opressão, submissão e do lugar das mulheres, nos mais diversos contextos
sociais acarretando mudanças significativas no modo de pensar não apenas os papéis das
mulheres, mas também dos homens (LOURO, 2010). O debate sobre gênero e sexualidades
atualmente parecem estar mais presentes no campo acadêmico, embora no cotidiano social
estes temas permaneçam sob resistência, causando ainda grande inquietação.
Após tais discussões provocadas pelo movimento feminista, na década de 1970, diante
da efervescência política da época, começaram a surgir expressivamente movimentos de luta
pela igualdade de direitos homossexuais. Muitos artistas e intelectuais começaram a participar
deste momento e o discurso vigente passa a incluir a possibilidade de um modo próprio de ser
homossexual e a integração dos mesmos à sociedade. Imagens caricatas de homossexuais dão
lugar a outro modo de mostração a partir de imagens positivas, também nessa época surgiram
algumas teorias e debates acadêmicos voltados para o fortalecimento da identidade gay.
Entretanto, na década de 1980 apareceram os primeiros casos de HIV/AIDS entre
homossexuais, a intolerância e a homofobia participaram mais fortemente do cotidiano social,
e mais, as críticas à militância gay se acirram e este movimento já demonstrava sua
15
fragilidade, afinal não se questionava a ordem social vigente apenas buscava-se a inserção dos
homossexuais ao sistema já estabelecido (LOURO, 2001).
Já na década de 1990 a discussão acerca do público homossexual ganha um novo
olhar; além de um movimento político, o debate é perpassado efetivamente por estudos
teóricos que questionam os posicionamentos anteriores à respeito de identidade. É nesse
cenário que se desenvolve a chamada Teoria Queer ou Analítica Queer:
As teóricas e teóricos dessa perspectiva partem do pressuposto de que as identidades
são sempre múltiplas e descontínuas constituídas por variações infinitas de
possibilidades, pois sua configuração traz elementos relacionados com sexualidades,
orientação sexual, raças e etnias, classes sociais, expressões de gêneros, posições
geracionais, nacionalidades etc. (PERES, 2011, p. 98).
Os Estudos Queer, ancoram-se principalmente na concepção pós-estruturalista, contra
a normatização, impostos por meio dos discursos e do uso do poder, e os binarismos
(homem/mulher, macho/fêmea etc.). Sendo assim, tal teorização busca subsídios nas obras do
filósofo Foucault tomando como leme, suas idéias sobre o poder, para falar de gênero e
sexualidades (LOURO, 2001; PERES, 2005; PERES, 2011; SOUZA; CARRIERI, 2010).
Fávero (2010) considera a temática de gênero partindo da interrelação entre as
práticas individuais e coletivas permeadas por crenças e valores, fortemente estabelecidos e
chama atenção ainda, para as relações de poder que colaboram para que muitos conceitos e
ideologias sejam mantidos. Olhando para a sociedade atual, que colhe os frutos do feminismo
aparentemente tudo mudou, no entanto percebemos que não é bem assim, ainda convivemos
com muitos paradoxos, a exemplo dos salários das mulheres que ainda são inferiores aos dos
homens, ou ainda a estranheza que ainda temos ao ver algum homem chorar! Ela assinala que
o poder é utilizado para a dominação, para alcançar algo ou objetivo que se pretende. Nessa
direção o poder perpassa todas as relações na sociedade e é lançado no sentido de normatizálas.
Butler (2001) lança mão de alguns pressupostos foulcaultianos, como as relações de
poder, para elaborar sua concepção a respeito de gênero e sexualidades. Para a autora, existe
uma performatividade de gênero, onde os discursos são capazes de produzir normas que
regulamentam os modos de pensar e agir do sujeito, chegando a materializar-se em seus
próprios corpos, há na realidade uma reiteração constante dos conceitos de sexo/gênero, onde
tudo colabora para uma naturalização dos mesmos. E nesse sentido Benedetti (2005, p. 94)
concorda dizendo que:
16
O gênero deve ser compreendido então como uma lógica social que institui
significado a corpos, práticas, relações, crenças, e valores, Ainda que seja variável e
diverso culturalmente, parece fazer parte de um princípio que confere sentido à
realidade em que vivemos. Mais do que um fator cultural de diferenciação, deve ser
entendido como as próprias condições de produção da lógica que institui as
diferenças entre o feminino e o masculino.
De acordo com Scott (1995) a palavra “Gênero” ainda está associada às mulheres, em
decorrência do seu entrelaçamento com o feminismo, tal conceituação torna-se fundamental
por abranger homens e mulheres, rompendo assim com as idéias que tendem a naturalizar as
relações entre os sexos:
Ademais, o gênero é [...] utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O
seu uso rejeita explicitamente as explicações biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de
que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O
gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as „construções sociais‟: a criação
inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é segundo essa definição, uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado (SCOTT, 1995, p. 5, aspas da
autora).
A sexualidade vem sendo abordada há muito tempo e de diferentes formas, algumas
que inclusive colaboraram com a visão biologizante da sexualidade que é perpetuada até os
dias de hoje na sociedade. Beauvoir (1976 apud FÁVERO, 2010) faz uma leitura,
apresentando um olhar para a sexualidade pautada num modelo hierárquico patriarcal, em que
o pai explicita a autoridade e o poder. Tal concepção começou a estabelecer-se de forma
incipiente na pré-história e perdura até século XXI, claro que com modificações, mas
preservando basicamente os mesmos moldes de oposição entre mulheres e homens,
demarcados pelas diferenças sexuais, que direcionam e dividem o que é naturalmente “coisas”
e afazeres femininos e masculinos.
Diante desse cenário descortina-se o tema da diversidade sexual. Lima (2007) discorre
a respeito desta questão, inicialmente fazendo uma reflexão sobre o termo diversidade
trazendo o conceito estrito “diferente, diverso, distinto” (LIMA, 2007, p. 93) e depois fala dos
seus usos cotidianos, questionando sobre até que ponto a diversidade sexual não está a favor
da desigualdade. É comum escutar as expressões, como será que fulano virou gay? Será que
ele já nasceu assim? Parece que é sempre necessária uma prova, um diagnóstico sustentado
pelo outro. O autor nos fala ainda da sua experiência na clínica social com travestis que estão
em situação de vulnerabilidade social, expostas à violência e exploração. E por fim questiona:
“Será que somos livres para ser sermos diversos?” (LIMA, 2007, p. 99).
17
No cenário atual parece que ainda permanecemos ligados ao modelo normatizado
socialmente: homem, branco e heterossexual, o que faz com que todos os outros modos de ser
homem sejam desconsiderados ou vistos com estranheza. O autor sugere ainda que a palavra
diversidade tem sido utilizada como substituição para LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, e
Travestis e transexuais) o que acaba mascarando as dificuldades e entraves enfrentados pelos
“diversos” como nomeia Lima (2007). Desse modo, esse autor afirma que a “Diversidade
pode mascarar as estruturas subjacentes de desigualdades econômicas, sociais, culturais e
sexuais (LIMA, 2007, p. 100).
18
3
FOCANDO O OLHAR NA TRAVESTILIDADE
Em 1973, nos Estados Unidos houve uma grande manifestação realizada por
homossexuais que reivindicavam o direito a não serem tratados como doentes, em frente ao
auditório em que estava acontecendo o Congresso da American Psychiatry Association
(APA). Tal protesto foi sufocado violentamente por policiais, no entanto apesar da sociedade
estadunidense está comovida com a guerra, tal movimento causou grande repercussão fazendo
com que alguns anos depois a homossexualidade começasse a ser pensada não mais como
uma patologia, porém vale ressaltar que ainda permanecia uma categoria dos homossexuais
egodistônicos e só na versão 9 do CID (OMS, 1975) (Classificação Internacional das
Doenças) da Organização Mundial da Saúde e versão 3 do DSM (APA, 1980) (Diagnostican
Statistical Manual of Mental Desorders)1 em 1980, que o termo homossexualismo é retirado
totalmente desses manuais (TRIPICCHIO, 2007).
No que diz respeito às transexuais e travestis na 10ª edição do CID (OMS, 1993)
aparecem algumas classificações no grande grupo dos Transtornos de Personalidade da
Identidade Sexual, sendo o transexual caracterizado pela inadequação ao seu sexo biológico e
desejo de mudança do mesmo através de procedimento cirúrgico, nessa mesma categoria
destaca-se a travesti bivalente, que tem o desejo temporário em usar as roupas do sexo oposto
para sentir-se pertencente a ele, mas sem o objetivo de obter excitação sexual através das
vestimentas; por outro lado, na categoria dos Transtornos da Preferência Sexual aparece o
travestismo fetichista que é considerado uma parafilia2:
Travestismo Fetichista: Vestir roupas do sexo oposto, principalmente com o objetivo
de obter excitação sexual e de criar a aparência de pessoa do sexo oposto. O
travestismo fetichista se distingue do travestismo transexual pela sua associação
clara com uma excitação sexual e pela necessidade de se remover as roupas uma vez
que o orgasmo ocorra e haja declínio da excitação sexual. Pode ocorrer como fase
preliminar no desenvolvimento do transexualismo (OMS, 1993, s/p).
A repercussão da patologização é notória por alimentar ainda mais o preconceito e a
subjugação das pessoas que escapam ao modelo normatizado socialmente, alimentando
inclusive atitudes de violência. Quando se fala em relações entre pessoas do mesmo sexo a
1
Diagnostican Statistical Manual of Mental Desorders que uma publicação da American Psychiatric Association,
Washington D.C. elaborado para fins de catalogação e generalização dos transtornos mentais, dando suporte aos
profissionais de saúde mental no diagnóstico e tratamento de tais perturbações). Disponível em:<
http://www.psicologia.com.pt/instrumentos/dsm_cid/dsm.php> Acesso em: 23/05/2011.
2
As Parafilias são caracterizadas por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que
envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo
no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (OMS, 1993).
19
palavra usada é sempre “homossexualismo” sem assim se dar conta que o sufixo “ismo”
denota doença, portanto, destacamos que, neste estudo será usada a palavra homossexualidade
uma vez que esta, fala da relação entre dois seres humanos e por que não no caso das
travestis, enquanto travestilidade no sentido da valorização da diversidade de gênero e das
sexualidades. O termo travestilidade aparece no texto de Peres (2005) visando abarcar as
muitas possibilidades de existência das travestis, seus modos próprios de ser. Lionço (2009)
nos fala a respeito das pesquisas etnográficas relacionadas às travestis, sugerindo que a
categorização das travestis citadas acima não abrange os modos de vida evidenciados aqui no
Brasil, restringindo as experiências das travestis unicamente ao sexo desconsiderando
totalmente o gênero. Nesse contexto a autora diz:
Pode-se afirmar que transexuais e travestis são sujeitos que se constituem
subjetivamente como indivíduos pertencentes a um gênero que não corresponde
linearmente ao sexo de nascimento, sendo a diferença fundamental o fato de as
travestis sustentarem uma ambiguidade ou duplicidade sexual na própria afirmação
identitária (LIONÇO, 2009, p. 54).
Marchi (2011) defende que seja necessária inclusive, uma diferenciação entre os
termos homossexualidade, travestilidade e transexualidade, visto que cada categoria tem as
suas especificidades. A “transfobia” (aspas da autora), por exemplo, remete a algo extremo,
afinal as travestis são impedidas de ir à escola, talvez por serem constantemente rechaçadas e
humilhadas, e quando o quesito é trabalho formal, a possibilidade de inserção é muito baixa,
como foi evidenciado no programa Conexão Repórter no SBT3 em que uma travesti com uma
câmera escondida se dirigiu a várias empresas na tentativa de encontrar um emprego e todas
elas nem se quer marcaram uma entrevista e outras nem receberam o seu currículo. Assim
sendo, a travesti é tolhida dos seus direitos básicos, educação, saúde, trabalho, moradia, bem
estar e na maioria das vezes recorrem à prostituição como única saída possível para o seu
provimento, uma vez que todas as portas foram fechadas.
Parece que o fenômeno acima citado aponta o quanto a sociedade brasileira discrimina
as travestis. Será que isso decorre do fato das travestis explicitarem a diversidade de gênero e
plasticidade das sexualidades às quais estamos vivenciando atualmente? É interessante a
forma que algumas pessoas em Caruaru-PE se mostram frente ao fenômeno da travestilidade:
“Poxa!!... olha só como ele é um rapaz bonito!... ele podia gostar de mulher... ou pelo menos
ser só gay!... não precisava se vestir de mulher! (fala de um passageiro num ônibus em que eu
me encontrava, enquanto olhava as travestis na Praça do Rosário). E nesse ponto vão
3
Programa exibido no dia 17/08/2011.
20
descortinando-se outros fenômenos, a exemplo da exclusão social, ou será que podemos
nomear de “inclusão precária, instável e marginal”, como pontua Martins (1997)? Esta
modalidade refere-se a um processo mascarado, onde a travesti é marginalizada ao tempo em
que está inclusa em outros serviços como a prostituição, mantendo assim a grande
engrenagem da ordem social vigente. Vale apontar que ao se referir a “inclusão precária,
instável e marginal”, Martins (1997 p. 26) assinala:
[...] exclusão de fato não existe. Ela é na sociedade moderna, apenas um momento
da dinâmica de um processo mais amplo: um momento insuficiente para
compreender e explicar todos os problemas que a exclusão efetivamente produz na
sociedade atual.
Ainda sobre o processo de subjugação e inclusão/exclusão das travestis, Rios (2009)
sugere que as posturas preconceituosas e discriminatórias partem dos binarismos e do
heterossexismo, chamando a atenção para a normatização e institucionalização da
heterossexualidade, fazendo com que todas as outras categorias de gênero sejam
drasticamente descartadas e repudiadas, impedindo que qualquer atitude positiva proveniente
dessas tornem-se invisíveis. O autor pontua a relevância da contextualização acerca dos
termos preconceito e discriminação. Entende o primeiro como idéias preconcebidas de caráter
negativo que permanecem no campo mental sem a verbalização, já o último acontece de
forma materializada, é a prática do preconceito que gera violação de direitos.
Todos esses processos nos remetem à violência à qual as travestis estão
constantemente expostas, violência esta que se inscreve em seus próprios corpos, muitas
vezes desde a infância onde são percebidas as primeiras “diferenças”. Minayo; Souza (1998,
p. 514) pontuam que:
[...] a violência consiste em ações humanas de indivíduos, grupos, classes, nações
que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade
física, moral, mental ou espiritual. Na verdade, só se pode falar de violências, pois
se trata de uma realidade plural, diferenciada, cujas especificidades necessitam ser
conhecidas.
Dessa maneira, a violência apresenta-se como um fenômeno multifacetado, onde é
preciso que se considere a sua dimensão histórica e sociocultural. Abramovay; Barreira;
Minayo (1999 apud ABRAMOVAY, 2002) expõem que existe a violência direta, indireta e
simbólica. A primeira refere-se aos atos que violam o físico como os espancamentos e
homicídios, a segunda consiste em todos os atos violentos de cunho psicológico ou emocional
e por fim a violência simbólica é aquela que implica em prejuízo moral ou que limite a
21
liberdade de Expressão por meio do uso do poder institucional ou interpessoal. Arblaster
(2002 apud ABRAMOVAY, 2002, p.19) afirma que “inclusive uma política que conduza à
morte de pessoas pela fome ou doenças pode ser qualificada de violenta”. Será que o poder
público ao negar uma série de direitos básicos às travestis não está agindo de forma negligente
e violenta?
O substantivo travesti que constantemente é usado no masculino, desconsiderando-se
totalmente a identificação que é feminina, como nos diz Benedetti (2000 apud PERES, 2005).
O autor vai além, citando sua experiência com as travestis de Londrina-PR, em que aparece o
desconforto e constrangimento das mesmas ao serem chamadas em alguns lugares públicos
pelo nome masculino de registro, ao tempo em que o seu corpo apresenta as características
tidas como femininas. Ele salienta ainda que esta aparência das travestis sacode as concepções
rígidas de gênero, pois é tão comum uma pessoa confundir uma travesti com uma mulher e
vice-versa, pois ambas utilizam as vezes o mesmo modelo de estética (maquiagens, silicone
etc.).
Com vistas nesse arcabouço teórico apresentado, buscamos refletir sobre as condições
de existência das travestis que parece está diretamente ligada às questões de gênero e
sexualidades. Chama-nos a atenção ainda que apesar de algumas mudanças no que diz
respeito a essas temáticas e a abertura desse debate atualmente, ainda permanece o
preconceito que parece tentar conter as travestis ignorando-as ou até assassinando-as.
Na I Conferência Regional Agreste LGBT4 a Secretária Especial da Mulher, Louise
Caroline Santos de Lima e Silva 5, pontuou que a cidade de Caruaru apresenta um alto índice
de morte de LGBT e não existem registros desse fato, provavelmente por negligência,
desconhecimento ou até pela própria construção cultural que é homofóbica e ainda, que é
inaceitável que em pleno século XXI ainda se diga: gays, lésbicas, travestis e transexuais se
tranquem no armário, se escondam!!! Ela vai além e afirma que se foi através da cultura que
nos criamos repudiando o diferente, também será através dela que elaboraremos uma cultura
de paz e tolerância! Este foi um importante momento para a toda população LGBT do agreste,
onde efetivamente buscou-se o diálogo entre a sociedade civil e gestores para a elaboração de
políticas públicas e sociais para este seguimento. Contudo apesar de alguns direitos estarem
sendo conquistados a exemplo da união estável entre homoafetivos e do Programa Brasil sem
4
A I Conferência Regional Agreste LGBT teve como temática Por um agreste livre da Pobreza e da
Discriminação: promovendo a cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.e foi realizada no
dia 22 de outubro de 2011 pelo GRGC (Grupo Resistência Gay de Caruaru).
5
Reflexões obtidas através de anotações da palestra de abertura da I Conferência Regional Agreste LGBT em
Caruaru, realizada pela secretaria municipal da Secretaria da Mulher de Caruaru em 22 de outubro de 2011.
22
Homofobia (BRASIL, 2004), muito ainda tem para ser feito para que estes direitos sejam de
fato garantidos e é nesse cenário que retomemos então a questão norteadora desse estudo:
quais os sentidos possíveis de ser travesti na cidade de Caruaru-PE?
23
4
ENTRE E VISTA: HISTÓRIAS CONTADAS VIA DEPOIMENTOS
4.1 Na estrada: trilhando caminhos para a compreensão da narrativa da experiência
Nesse movimento em busca dos sentidos possíveis de ser travesti na cidade de
Caruaru-PE, lançamos um olhar para o fenômeno através de uma pesquisa qualitativa numa
perspectiva Fenomenológica Existencial.
A palavra “fenômeno” é de etimologia grega significando o que aparece. “Fenomenologia, é, assim, o estudo do fenômeno [...]. Implica permitir que as coisas se manifestem como
são [...]” (CARMO, 2002, p.22). Faz-se mister dizer que o modo de pensar fenomenológico
nos aproxima do fenômeno tal como ele se apresenta, como se mostra, não sendo necessário
aprioris intelectuais. Nesse sentido para termos acesso ao fenômeno é necessário que
estejamos implicados e lancemos mão da interrogação, deixando assim de lado os
instrumentais técnicos racionais e tomando o querer saber de algo e como este algo é como
nos diz Critelli (2006).
O método qualitativo é utilizado para o estudo do universo social, nas atividades
humanas, buscando compreender aquilo que não pode ser abrangido pelos números, assim
sendo ela é capaz de abarcar o não quantificável, ou seja, os fenômenos humanos subjetivos,
crenças, valores, sentimentos (MINAYO, 2002). Nessa perspectiva, nos apropriamos desse
método por compreender que nessa pesquisa lidamos diretamente com os fenômenos que
surgiram a partir da fala das travestis sobre as suas vidas e realidade. A esse respeito Minayo
(2002, p. 22) nos diz que: “A abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados
das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e
estatísticas”. A análise da narrativa proposta por Benjamin (1994) é a nossa metodologia, pois
acreditamos que são os próprios sujeitos a partir das suas experiências denotadas em
depoimentos que nos levarão à compreensão dos fenômenos a serem revelados, quando
lançamos a questão provocadora: quais os sentidos possíveis de ser travesti na cidade de
Caruaru-PE?
Benjamim (1994) nos fala da narrativa enquanto experiência revivida através da fala.
Para ele o narrar tem se perdido no tempo, pois a cada dia as experiências deixam de ser
expressas através da fala, dando lugar aos livros e romances, a um momento mais intimista,
perdendo-se então a magia do contar e mergulhar nas histórias. Sendo assim, “o narrador
assimila à sua substância mais intima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom é poder contar
a sua vida; sua dignidade é poder contá-la inteira” (BENJAMIN, 1994, p. 221). Nessa direção
24
as travestis tiveram a possibilidade de rememorar as suas experiências traduzidas em
depoimentos. Para Santos (2005, p. 91, aspas da autora) a narrativa constitui-se como “um
dizer no fazer situado” da existência humana. É desse modo que apreendemos os sentidos
possíveis de ser-travesti em Caruaru-PE
O nosso modo de acesso às narrativas dos sujeitos-narradoras, ou seja, a modalidade
de intervenção/investigação para o acolhimento dos depoimentos foi a “Entrevista Clínica de
Pesquisa”, pois além da preocupação com os objetivos aqui propostos, existe a elucidação da
realidade subjetiva e social vividas pelo entrevistado (LÉVY, 2001). Para este autor esta
modalidade de pesquisa apresenta-se como a possibilidade da exploração dos fatos e
vivências pelos próprios sujeitos, ao tempo em que se tem uma visão mais ampla dos
fenômenos, alcançando-se os objetivos propostos pela pesquisa. O autor salienta ainda que “a
situação da entrevista clínica, baseada em uma escuta compreensiva de caráter não diretivo,
foi concebida, precisamente, para favorecer, no entrevistado, o trabalho de “elaboração de seu
pensamento subjetivo” (LÉVY, 2001. p. 91 aspas do autor). A entrevista clínica, então, para
este autor, entrelaça os objetivos da pesquisa a serem alcançados e a rememoração subjetiva
dos fatos vivenciados pelas participantes da pesquisa.
Quanto ao procedimento técnico a ser utilizado para a interpretação dos sentidos,
utilizamos a transcrição das falas colhidas através das entrevistas, a literalização que
compreende a textualização das mesmas, a autenticação que é a devolução dos depoimentos
às sujeitos-narradoras e a análise dos depoimentos propostas por Santos (2005).
Como método de analise dos depoimentos utilizaremos a “Analítica do Sentido”
proposta por Critelli (2006). Em seu livro a autora apresenta uma importante compreensão
epistemológica da ciência e da cientificidade, fazendo uma crítica ao modelo metafísico que
busca uma verdade unívoca e estática e apresentando a fenomenologia como possibilidade
para a apreensão do conhecimento, considerando a verdade como relativa e provisória. Tornase impossível então uma neutralidade, pois em toda busca do conhecimento existe sempre
uma afetabilidade, onde não apenas os sujeitos/narradores aparecem, mas o pesquisador
também surge co-participante.
A seguir apresentamos as etapas do “movimento de realização” proposto sobre Critelli
(2006), na leitura de Santos (2005, p.92-93, grifos da autora) que está dividida em cinco
etapas:
a) Desvelamento – modo como sou afetada, enquanto pesquisadora, pelos
depoimentos das sujeitos/narradoras (o momento da afetabilidade, ou do sentido
sentido).
25
b) Revelação – vem do impacto que o desvelamento do fenômeno provoca. No
entanto, aqui, a questão já está no nível de revelação porque já estou, como
pesquisadora, na busca de um sentido (o momento da compreensibilidade, pelo qual
o sentido sentido se transforma em significado sentido).
c) Testemunho – é a literalização (dizer a partir das palavras das sujeitos/narradoras).
Neste momento, dou à mostra o que me foi revelado; isto é, a partir do depoimento,
estou dando o testemunho do que se revelou (o momento da comunicabilidade, pelo
qual ocorre a expressão do significado sentido).
d) Veracização– é o início da minha dissertação. Nesse momento, dou o meu
depoimento acerca desses passos anteriores, articulando-o com os conhecimentos
prévios encontrados durante essa produção. Propriamente posso dizer que é o
momento da mostração da minha compreensão (mostração argumentativa na minha
pesquisa) ou, simplesmente, o início da mostração do sentido.
e) Autenticação – é o momento que, por fim, levarei a minha pesquisa a público,
autenticando-a.
As sujeito-narradoras desta pesquisa foram três travestis da cidade de Caruaru, sendo
que uma delas, no final da entrevista, revelou que além de sua experiência com o processo de
travestilidade, reconhece-se, também, como transexual não operada, todas elas tem idade
superior a 18 anos. Vale acrescentar que os nomes das sujeito-narradoras, assim como de
outras pessoas citadas por elas e de instituições que aparecem nas entrevistas são fictícios no
intuito de resguardar as identidades. Os nomes fictícios trazidos aqui são de cantoras famosas,
que trazem em si um grande glamour admirado frequentemente pela comunidade LGBTT e
cada fala está destacada com cores distintas, tendo o sentido de valorização da diversidade e
também para melhor identificar a suas falas.
Em função da pesquisa qualitativa não visar a generalização, a quantidade de travestis
que participaram das entrevistas não foi o nosso foco, mas sim ser travesti em Caruaru-PE. O
contato com as mesmas foi facilitado pelo presidente do Grupo de Resistência Gay da cidade
de Caruaru-PE, e também por um amigo nosso que, por transitar em muitos espaços que têm a
participação do público LGBTT, pode favorecer o nosso acesso. Na entrevista interventiva às
vezes nos deparamos com situações inusitadas, sendo assim a primeira entrevista foi realizada
com duas travestis conjuntamente, na residência de uma delas por ser mais cômodo para as
mesma; já a segunda entrevista ocorreu no local de trabalho da travesti, um salão de beleza.
Na primeira etapa foram apresentados os objetivos da pesquisa e lido com as travestis o TCLE
(Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), em que foram explicitados os objetivos da
pesquisa e, também, que a entrevista seria áudio gravada, posteriormente ao ser indagadas, as
mesmas aceitaram fazer parte da pesquisa.
26
4.2
Narrando as experiências
Entrevista com Rihanna e Lady Gaga 14/10/2011 19h
Liza: Eu gostaria de saber... qual o sentido de ser travesti em Caruaru?
Rihanna: Você ser uma travesti em Caruaru... é você ser motivo de chacota!!!
Lady Gaga: Muita turbulência na vida!!! O sentido de você ser uma travesti em Caruaru é ser
motivo de agressão!! Não tem sentido bom para ser o que a gente já nasce pré-destinado a
ser!!!
Rihanna: Por mais que você seja bonita... termina você sendo motivo de chacota!! Ser uma
travesti em Caruaru é isso!!!
Lady Gaga e Rihanna apontam que ser-travesti em Caruaru é ser motivo de chacota,
turbulência e agressão. Lady Gaga ao afirmar que não existe sentido bom para o que já se
nasce pré-destinado a ser, estaria ela revelando uma certa “naturalização do gênero”?
Benedetti (2005) destaca em sua pesquisa realizada em Porto Alegre que a maior das suas
informantes, como nomeia o próprio autor, referem-se a sua sexualidade como algo
determinado pela natureza humana, que acontece de maneira inata, o
que
parece
se
aproximar do que disse Lady Gaga: “o que a gente nasce pré-destinado a ser”. E Rihanna com
ar de pesar, pontua que, por mais que haja beleza ainda não é suficiente para agradar os duros
olhares lançados sobre as travestis. Estes depoimentos nos remetem então ao que Silva (2007,
p. 64) pontua:
O riso, a piada, a ironia envolvem o travesti quase em termos sensoriais, misturados
aos vestidos, às calcinhas, ao rímel, num trabalho penetrante e dissolvente. O
travesti sente na pele o brilho da purpurina e a acidez da humilhação.
Liza: É motivo de chacota?
Lady Gaga: A gente tinha que falar assim... é como se a gente tivesse no tempo antigo aqui
na cidade!
Rihanna: Nunca mudou a cabeça das pessoas aqui em Caruaru!!!
Lady Gaga: Em alguns lugares... outros países e outras cidades é diferente!!!
Rihanna: Tem gente que olha para você assim... como se fosse uma coisa anormal... não é?
Liza: Então vocês estão me dizendo que ser travesti em Caruaru é ser motivo de chacota e de
estranheza por parte das outras pessoas!
Ambas: É!!!
27
Na fala de ambas aparece que o ser-travesti em Caruaru está ligado à “anormalidade”,
a chacotas e ainda que atualmente em outras localidades este fenômeno pareça ser mais bem
aceito. Será que a travestilidade coloca a sociedade caruaruense diante das fragilidades do
modelo patriarcal tão difundido culturalmente no Brasil? E ainda, será que esta
“anormalidade” salientada por Rihanna, tem a ver com o que foi perpetuado por muito tempo
pelos aparatos científicos, que a homossexualidade e a travestilidade seriam casos
patológicos?
Sobre o patriarcado Fávero (2010) nos diz que foi a partir da centralização do poder da
família no pai, que os papéis de homem e mulher tornaram-se preestabelecidos e
naturalizados com justificativas científicas da inferioridade feminina, inclusive religiosas,
então o que escapa a tal modelo é tido como anormal. Bento (2011) afirma que atualmente
mundialmente existe uma verdadeira batalha de ativista, estudiosos e organizações, para que
ocorra a despatologização de gênero com a exclusão do TIG (Transtorno de Identidade de
Gênero) do DSM-IV. Concordamos com Bento (2011) e acrescentamos que todo esse
processo histórico e cultural colabora com a legitimação da homolesbotransfobia e de todas as
ações discriminatórias contra os LGBTT6.
Liza: E como é que vocês se sentem diante dessa realidade?
Lady Gaga: Para mim não importa o que as pessoas dizem!! O que importa é a minha família
que me aceita!!! Eu sou bem querida pelos meus irmãos... fui bem querida pelo meu pai... e
não importa o que outras pessoas dizem!... Eu quero saber entre eu e minha família!!
Rihanna: No meu caso quando eu cheguei aqui... vinda de São Paulo eu estranhei porque lá
ninguém olhava para mim como se eu fosse um monstro!!!
Lady Gaga: Uma pessoa diferente ou coisa assim!!!
Rihanna: E eu até então usava bastante roupas femininas!!! Meu cabelo era maior e pintado
de vermelho!... Eu tinha seios e com o passar do tempo eu tirei os meus seios... cortei o
cabelo! Comecei a adotar uma vida e umas coisas que eu não gosto!!! Não gosto de usar essas
blusas!!!
Liza: Então você adotou esse novo modo de vida depois que veio para Caruaru? Por causa da
população?
Rihanna: Sim!!
6
LGBTT é a sigla que designa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis.
28
Evidenciamos aqui a estranheza de Rihanna frente o comportamento das pessoas em
Caruaru com relação à sua aparência e ainda a mudança desta em detrimento dessas pessoas.
Será que neste ponto ela está sinalizando que a cultura nordestina traz em si ranços do
patriarcado e do machismo? De acordo com Dutra (2000 apud PERES, 2005, p. 32) em
pesquisa realizada no Ceará:
Na região nordeste brasileira, na qual o machismo é mais acentuado e cujos
indicativos sócio-econômicos são precários, se comparados com as regiões sul e
sudeste, ocorrem verdadeiras atrocidades contra a cidadania das travestis, que vão
desde agressões físicas e letais até discriminações que impedem o acesso à escola,
ao trabalho e ao lazer, comprometendo a própria dignidade das travestis, que como
último recurso, se apropriam da prostituição como modo de sobrevivência.
Nesse sentido a Organização não-governamental GGB (Grupo Gay da Bahia) aponta
que nos últimos dois anos o número de agressões e mortes entre LGBTT tem aumentado no
Brasil, sendo que em 2010 foram 260 casos e em 2009 198 casos registrados. Chama atenção
ainda que os estados da Bahia e Alagoas aparecem no topo da lista, apresentando os maiores
números de casos de violência perpetradas contra LGBTT. Para o antropólogo Luiz Mott "a
homofobia no Brasil tem muito a ver com a violência que herdamos da escravidão, quando
tínhamos 'machos' muito violentos para manter a população dominada".7
Lady Gaga: Quanto a mim... eu passo qualquer barra... qualquer barreira eu tiro assim de
letra!! Até por que eu dependo de mim mesma e não das pessoas!!! Não importa o que elas
digam!! Mas sim o que eu sou... o que eu faço!!! Eu sou uma pessoa digna!... Eu fui prostituta
de avenida... vendi uma coisa que era minha... nunca peguei nada de ninguém... nunca usei
drogas na minha vida!!! A droga que eu usei até hoje foi a bebida!!! Eu não estou
incomodando terceiros!!! Eu sempre vivi a minha vida... nunca fiz coisas erradas... porque
Deus sempre foi um pai poderoso em minha vida como em outras vidas também... estou
levando a vida! Eu peço a Ele a força para seguir a batalha... sou uma transexual ainda não
operada... sei que ainda vou passar por um pequeno risco em minha vida e saúde mas eu
quero!!!
Lady Gaga nos fala sobre superação, dignidade e direitos em seguida ela pede a Deus
força para seguir a batalha. De qual batalha fala Lady Gaga? Seria a batalha contra a
7
Artigo: BA é o estado com maior nº de homossexuais assassinados. Disponível em:
www.ggb.org.br/bahia%20o%20estado%20com%20maior%20nr%20de%20homossexuais%20assassinados%20
2011.html. Acesso em: 26 de dezembro de 2011.
29
indiferença, a intolerância e o preconceito expressos socialmente?
Sobre esse fato
(SILVEIRA, 2006, p. 237) afirma:
O preconceito é uma tentativa de fixar e cristalizar identidades, pois as práticas
preconceituosas e discriminatórias negam a possibilidade do outro (da diferença) de
ter acesso ao arsenal da igualdade e equidade (humanidade). Isto, todavia, não se
constitui apenas de vontades e de ações particulares. O preconceito está imbricado
na categoria inclusão/exclusão, presente na sociedade que prega a construção
diferenciada e não-plural de seus membros [...].
Então o preconceito, a discriminação e a negação de direitos fazem com que Lady
Gaga recorra a prostituição como forma de sobrevivência, afinal na sociedade capitalista fazse necessário que todos participem da engrenagem que a move, nesse sentido percebemos que
Lady Gaga é incluída economicamente neste mercado da prostituição, entretanto esta dita
inclusão ocorre de forma precária e marginal ocasionando a desintegração social e
comprometendo a sua dignidade humana (MARTINS, 1997).
Liza: E para você Rihanna é motivo de sofrimento ser tratada dessa forma?
Rihanna: É!!! Porque em São Paulo talvez por viver longe da minha família... eu me sentia
bem da forma que eu sou!!! E aqui por minha família ser toda evangélica foi um motivo de
choque... minha irmã mesmo quando me viu... ela foi me abraçar depois de quase onze anos...
antes de me abraçar ela deu dois passos para trás ai depois que me abraçou!
Liza: Ela não tinha te visto ainda... travestida?
Rihanna: Não! Eu assumi a minha realidade travesti lá fora! Aqui eu sempre fui uma “bicha
poica”!! Por mais “pintosa” e afeminada era uma coisa comportada!! Então foi pela rejeição
da minha família que eu fui mudando!!! E terminei sendo uma andrógina... porque hoje eu
não sou nem uma travesti... nem tão gay... sou uma coisa que as pessoas ficam na dúvida!
A narrativa de Rihanna parece descortinar a sua relação com a família de religião
evangélica e com a sua própria travestilidade. Rihanna estaria revelando aqui que não
encontra possibilidades de ser-travesti em Caruaru, sendo-lhe reservado apenas o lugar da
violência? Aqui se evidencia a violência mais cruel ao nosso ver, aquela que demanda do
sujeito despir-se de si mesmo para ser um outro não desejado por ele, mas pelos demais. Esta
violência causa dor em quem ouvi falar, e em quem é marcado por ela em cada dia da sua
30
vida? Nesse momento rememoramos a letra traduzida da música Hair8 da cantora Lady Gaga
que fala exatamente sobre ser quem realmente é:
Sempre que me visto bem, meus pais brigam comigo/ (Uh huh, uh huh)/ E se eu
estiver/ bonitona, mamãe cortará meu cabelo à noite/ (Uh huh, uh huh)/ De manhã,
eu perdi minha identidade/ (Uh huh, uh huh)/ Eu grito, mamãe e papai, por que não
posso ser quem eu quero ser?/ (Uh huh, uh huh) Quero ser/ Só quero ser eu mesma,
e quero que você me ame/ Pelo que eu sou/ Só quero ser eu mesma, e quero que
você saiba/ Eu sou meu cabelo/ Eu cansei, essa é minha oração/ Que eu vou morrer
vivendo tão livre quanto o meu cabelo/ Eu cansei, essa é minha oração/ Que eu vou
morrer vivendo tão livre quanto o meu cabelo.
Lady Gaga: Como se fosse um traveco! Porque o traveco é o começo de tudo... entre a
travesti e a transexual... que é o meu caso! A transexual é um dos últimos degraus do
homossexualismo!!
Liza: Como é que tudo começa?
Lady Gaga: Tudo começa na fala das pessoas... “bicha incubada”!!! Outros dizem gay!!!
Tudo começa quando você é mais novo... que vai crescendo... e vai entrando um degrau a
mais... vai se introduzindo com as outras... umas vão se ”intravecando” e naquela
“intravecação” querem colocar o silicone e transformar mais um pedaço!!! É quando vai
entrando para o travestilismo... e algumas partem para o transexualismo que é o meu caso! De
não aceitar aquilo que tem no corpo... a gente não quer passar por cima da lei de Deus... por
que Deus é um pai poderoso e Ele escreve tudo certo!!! No meu caso eu só quero consertar
um pequeno erro que nasceu em mim!!! Se o homossexualismo fosse safadeza não nascia o
hermafrodita!!! As pessoas tem que estudar isso... o hermafrodita vem dali de dentro da
barriga... gerado da mãe! As pessoas não querem ver esse lado!!! E a gente não está na vida
homossexual porque nós optamos por isso! Nós nascemos assim!!!
Será que Lady Gaga está nos falando que existem etapas para a constituição da
identidade de gênero travesti? De acordo com a sujeito/narradora o ser-travesti inicia-se com a
descoberta da homossexualidade, despertando o olhar dos outros, que começam a fixar rótulos
depreciativos, o que parecem não ser suficientes para impedi-las de se tornarem travestis; o
contato com outras travestis também parece colaborar para a construção da sua identidade,
afinal o contato com outras que se travestem possibilita o aprendizado das técnicas a serem
utilizadas para a metamorfose (PELÚCIO, 2009).
8
Disponível em: <http://letras.terra.com.br/lady-gaga/1835519/traducao.html>. Acesso em: 18 de Nov. de 2011.
31
Na cultura brasileira existe a possibilidade do trânsito entre o feminino e masculino,
seus valores e práticas, e estes não estão plenamente demarcados pelos limites do corpo. Já no
que concerne aos papéis sexuais:
[...] pelo contrário, a rigidez dos valores e significados atribuídos às práticas e
desejos sexuais nesse contexto é um dos fatores que enquadra as travestis na
categoria mais ampla dos homossexuais, ou, em linguagem êmica, na categoria de
viados. Estas é mais uma ambigüidade que cerca as travestis: enquanto o olhar
institucional e da sociedade ampla as vê como homossexuais- concebendo-as a partir
dos valores atribuídos aos papéis e práticas sexuais -, as travestis se transformam e
se fabricam com valores pautados em conceitos de outra ordem, sobretudo aqueles
relativos ao gênero e seus usos. (BENEDETTI, 2005, p. 130)
Outro aspecto importante salientado por Lady Gaga, é a explicação de não estar indo
contra as leis de Deus, que ser homossexual não é safadeza e ainda que já se nasce assim, aqui
nos lembramos do que diz Medrado (2008, p. 22): “Hoje já se sabe que ser gay, lésbica,
bissexual, ou transgênero não é uma opção, porque não implica em escolha. O homossexual
não opta por ser homossexual, assim como o heterossexual não escolhe ser heterossexual.
[...]”. Existem, portanto, muitos mitos e tabus diante da nossa sexualidade, sobretudo por
influência da ideologia judaico-cristã que vigora em nossa sociedade, fomos ensinados que o
sexo serve para ter filhos e todos que escapam a essa regra e o utilizam como fonte de prazer
são vistos como “sem vergonha” e promíscuos (MEDRADO, 2008).
Liza: Então não é uma escolha?
Lady Gaga: Não... não é uma escolha! Com sete... oito anos eu lavava a casa... roupa... eu
brincava de boneca... trocava o carrinho de latinha que o meu pai comprou por uma boneca e
brincava de casinha!!! Meu pai sentiu que eu não era aquela pessoa que a sociedade queria!!!
E por causa disso ele soube que eu tinha que viver a minha vida... e ele aceitou!! Pela pessoa
que eu sou! O que o meu pai nunca quis foi que eu vivesse em vida errada! Eu convivi com
pessoas dignas e pessoas erradas... mas Deus é um pai muito poderoso em minha vida... me
deu força e eu nunca entrei em vida errada! Porque ter homossexualismo não é viver em vida
errada!!!
Lady Gaga nos fala sobre a aceitação da sua família a respeito do seu processo de
transformação, explicando que desde criança já apresentava comportamentos que
culturalmente são tidos como femininos, para ela isso não é uma escolha e justifica ainda que
32
ser homossexual não é estar em vida errada. Quando ela nos fala sobre a questão de gênero
nos remete ao documentário Memorial da Travestis e Trans de BH9, onde elas expõe:
Eu nasci travesti e vou morrer travesti! Sempre gostei de me produzir, me maquiava,
penteava as minhas sobrinhas e minhas irmãs; Desde criança eu sempre tive atração
física por homens, pelos menininhos, né? Começa assim! [...] Claro que o pessoal lá
em casa não ficou feliz, não batia palmas, mas a minha mãe dizia que preferia que
eu fosse isso, do que me tornar um marginal, um ladrão alguma coisa!
O ser-travesti então está ancorado num desejo e os “seus corpos são fabricados em
função desse desejo”, que nem sempre é sexual (KULICK, 2008 apud ANTUNES, 2010, p.
80). Esse desejo parece começar a surgir ainda na infância com o uso de “aparatos femininos”
e também o fazer “coisas de meninas”. Pelúcio (2009), Benedetti (2005) e Silva (2007)
também perceberam em seus estudos que o começo da travestilidade aparece ainda na
infância quando descobrem que existe algo “diferente” do que é desejável socialmente.
Rihanna: Eu me sinto triste porque quero usar uma roupa que eu gosto... mas não posso
porque eu moro perto da minha família!! No meu trabalho não!... eles me aceitam! Quando eu
chego com uma roupinha mais afeminada eles elogiam!!! Eu tenho minhas coisas... minha
casa própria! É rejeição que eu sinto por causa da minha família!!! Acho que é carência que a
gente sente... eu já fiquei tanto tempo afastada da minha família que eu tento agradar o
máximo possível!!!
Liza: E não se agrada!
Rihanna: É!... não me agrado!... eu fico triste e frustada!!! Não consigo!!! Eu descobri a
minha homossexualidade muito cedo e com onze anos de idade a minha mãe me botou para
fora de casa!!!
Será que Rihanna está dizendo que apesar de ter estabilidade financeira, não consegue
mostrar-se de fato como travesti pelo afastamento da sua família e que mesmo tentando
agradá-los, sente-se frustrada? Duque (2009, p.149) nos diz que “Na família e na escola se
impõe a heteronormatividade, a obrigação de seguir uma relação causal e linear que leva do
sexo biológico (genital) ao gênero e daí às práticas sexuais”. A imposição conduz a travesti ao
sofrimento e frustração, uma vez que socialmente esta é estabelecida como o porto seguro.
9
O documentário Memorial das Travestis e Trans de BH foi realizado pela Universidade Federal de Minas
Gerais no Projeto Educação sem homofobia. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=jfC5B1dsc2M
e http://www.youtube.com/watch?v=g_6YPxjOxH4&feature=related
33
Rihanna também nos conta que no contexto profissional é possível assumir-se enquanto
travesti, no entanto na família torna-se difícil, o que a deixa triste e frustrada. Antunes (2010)
nos diz existem mecanismos de saber-poder estabelecidos socialmente, onde instituições
como o Estado, a igreja e a família são responsáveis pela manutenção das normas de gênero, e
quem escapa a este modelo preestabelecido é automaticamente vítima do preconceito e
consequentemente excluído.
Em relação ao gênero sexual, comportamentos e vestimentas são constantemente
reiterados pelo sujeito no sentido de confirmar o que se espera culturalmente do seu
corpo. Dessa maneira o mecanismo de controle é reforçado e realimentado. Porém,
onde há controle, há resistência. (CASTRO, 2009; FOUCAULT, 1993; LEITE
JÚNIOR, 2006 apud ANTUNES, 2010)
Rihanna ao usar “roupinhas mais afeminadas”, parece estar resistindo ao que está
posto culturalmente, é claro a duras penas, afinal quem resiste a este modelo opressor sofre as
conseqüências, no entanto também pode apropriar-se da sua vida.
Liza: Ela descobriu?
Rihanna: Sim!!! Eu sempre gostei mais do meu pai do que da minha mãe!!! E ela não aceitou
e me colocou para fora de casa e eu fui morar na casa de uma família aqui em Caruaru onde
passei ainda uns três anos! A dona da casa sempre dizia que eu tinha horário para acordar e
não tinha para dormir... que eu era um empregado!!! Então no final de ano eu não ganhava
roupa e as que eu ganhava era do filho dela que sobrava !!! Foi uma carência absurda que eu
senti!!! Morando perto da casa da minha família e ao mesmo tempo longe!!! Depois de tudo
eu optei em ir para fora... para Recife... onde me joguei na avenida e comecei a me prostituir e
vi que na prostituição eu tinha uma vida digna... dormia na hora que queria... comia o que
queria... e comprava a roupa que queria!!! Então você tinha uma VIDA!!! Não aquela vida
que as pessoas dizem... “quem está numa esquina é safado!” NÃO!!! A gente está na esquina
porque precisa!!! Do Recife eu fui para Fortaleza e voltei para Caruaru e depois fui para
Natal! Fui morar numa casa de prostituição e morei lá um anos e meio... e lá aconteceu uma
das piores coisas da minha vida!!! Conheci um cliente e quando chegou no programa ele disse
que tinha uma fantasia de ficar na beira da praia... ao chegar tinha mais quatro homens... a
gente começou a beber... usar drogas... e eu pensei... vou transar com eles e depois está tudo
bem! Só que não foi assim!... quando começamos a transar eles me bateram... transei com os
cinco e no final eles me deram três tiros e me deixaram lá!!
34
Nessa narrativa Rihanna estaria trazendo à tona a sua prostituição como saída possível
para sobreviver e ter uma vida digna, uma vez que foi expulsa de casa em decorrência da sua
travestilidade? Será que ela escancara aqui mais uma vez a violência à qual foi submetida? A
este respeito Kulick (2008 apud BENEDETTI, 2005) em pesquisa com travestis em Salvador,
afirma que a saída de casa, algumas por vontade própria, por não suportar a violência ou
tendo sido expulsas, é o primeiro degrau para a construção da identidade travesti. Quanto a
prostituição segundo Carvalho (2006), a negação das possibilidades de emprego para as
travestis colaboram para que as mesma busquem a prostituição como forma de sobrevivência
e é nessa mesma atividade que se deparam com toda sorte de perigo, dentre eles a agressão
física. Parece que a prostituição se configura para Rihanna como o momento em que pôde de
fato encontrar uma vida digna e independente, o que não acontecia na casa onde trabalhou, e
também foi nessa profissão que atravessou um momento marcante de violência.
Lady Gaga: E foi identificado aquele cliente?
Rihanna: Não!... até hoje ninguém nunca encontrou aqueles meninos que fizeram aquilo
comigo! Eu sempre gostei de transar com camisinha por dois motivos... eu achava que
camisinha era para quem era rico!!! Chegar num programa e mostrar a camisinha era “bicha”
rica!!! No posto todo mundo que se prostituía só pegava camisinha se fizesse o exame de
HIV10!! E quando eu fiz deu positivo! Os médicos acham que foi naquele dia que eu me
contaminei com o vírus do HIV... quando eu tinha dezessete anos... e isso aconteceu comigo
e com mais três travestis!!! Aí eu pensei... por eu ter uma doença grave a minha família agora
vai me aceitar de volta!... mas foi quando a minha família me escorraçou de casa de vez!!! Eu
fui para São Paulo! Quando eu cheguei lá eu conheci uma cafetina... e foi lá que eu conheci
essas normas... travesti é uma coisa... transexual é outra e gay é outra!... quando eu cheguei
gay na casa dela... só bem afeminado... ela não me aceitou! Para morar na casa dela eu tinha
que colocar silicone... porque era uma norma das travestis!!! Então eu coloquei silicone!!
Rihanna conta que se depara novamente com a violência da rejeição advinda da sua
família ao descobrir que tem o vírus HIV. Peres (2008) versa que existe um rede de exclusão
e violência no tocante às travestis, que inicia-se pela família, passando pelos vizinhos, escola
e espalhando-se em toda a sociedade. O autor defende inclusive que a exclusão e a violência
são fatores que predispõe os sujeitos à epidemia do HIV/AIDS.
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HIV: Sigla em inglês que traduzindo significa Vírus da Imudeficiência Humana.
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Dando seguimento Rihanna nos fala sobre o começo da sua travestilidade. Neste
momento estaria ela nos falando que existem normas para a travestilização? Silva (2007, p.
170) revela a fala de Moema: “Travesti tem que ter silicone, hormônio. Não tem travesti sem
hormônio.” Quando Rihanna diz: “quando eu cheguei gay na casa dela... só bem afeminado...
ela não me aceitou! Para morar na casa dela eu tinha que colocar silicone... porque era uma
norma das travestis!!!” estaria ela evidenciando a normatização do corpo travesti? Surgi então
um paradoxo, visto que ao tempo que o corpo travesti rompe com o modelo fixo de identidade
de gênero, da heteronormatividade, parece recair novamente na fixidez de modelos. Peres
(2011, p. 100) nos fala das tecnologias que disciplinam e docilizam os corpos afirmando que
estes são: “indivíduos marcados por uma engrenagem regulatória e disciplinar que se orienta
pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais que determina corporalidades [...]”
Liza: Mas você botou silicone só por que era uma norma? Ou foi por que você quis?
Rihanna: Não! Era pela norma! Para eu ficar na casa da Marjorie que foi a cafetina que me
“bombou” uma norma da casa dela foi essa... ter que colocar silicone!!! E como eu sair daqui
sem conhecer ninguém só conhecia ela por telefone! Eu não tive outra opção... então eu
apliquei! Eu ia colocar quatro litros mas... quando chegou em um litro e meio eu desmaiei da
dor!!
Liza: Foi no seio que você colocou?
Rihanna: Não!... no seio eu botei uma prótese de silicone... pois eu fiquei com muito medo
da dor!!! Eu coloquei os três litros e comecei a trabalhar na Washigton Luis e na Avenida do
Socorro em São Paulo!
Lady Gaga: Eu com dezesseis anos conheci um empresário do Paraguai... ele tinha duas lojas
de sex shop e duas boates onde fazia tatuagem... eu aprendi e trabalho com isso até hoje! E
quanto ao silicone... só fazem dois anos que eu coloquei nos seios aqui em minha casa com
uma travesti “bombadeira” do Recife e está com nove anos que eu coloquei no rosto na casa
daquela que morreu!!...
Rihanna: A Carlos...
Lady Gaga: Isso! Aí no meu silicone eu cheguei a desmaiar três vezes... cheguei até mijar na
roupa!
Liza: Muita dor?
Lady Gaga: Nem tanto! Eu cheguei a levar oito anestesias em cada seio... mas mesmo
assim... tem uma reação muito grande no local... uma gastura ou coisa assim!!!
Liza: E quem anestesia é a bombadeira?
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Lady Gaga: É sim! Ela quem se encarrega de tudo!
Rihanna: O silicone é um líquido grosso... estilo uma pasta ou gelatina... e está entrando no
seu corpo!!! Quando a bombadeira me bombou... a seringa que ela usou foi seringa de dar
injeção em cavalo!!! E os buracos ela tampou com super bonder!!!
Lady Gaga: Nesse peito eu levei três furadas... e nesse eu levei duas! (Aponta o local das
furadas) Eu paguei por um litro mas... dessa quantidade vazou um copo para cá... (aponta para
o braço). Nem parece não é?
Lady Gaga e Rihanna em seus depoimentos revelam as dores e desejos da construção
do corpo travesti. Elas parecem evidenciar a satisfação da incorporação do feminino, apesar
de toda dor. Sobre este processo de mudança corporal Peres (2008, p. 2) destaca que:
[...] diante da falta de condições financeiras adequadas que permitam moldar seu
corpo com próteses de silicones e incisões cirúrgicas, muitas dessas pessoas se
submetem a um processo alternativo de “escultura” corporal, realizado por outra
pessoa chamada de “Bombadeira” (que bomba/injeta silicone industrial em outro
corpo), muitas vezes sem nenhuma assepsia, correndo riscos de complicação
infecciosa ou ainda de morte súbita. Mesmo diante de tantos riscos e de tantas
incertezas, as pessoas que pretendem transformar seus corpos são movidas por um
desejo intempestivo resistente a qualquer tipo de racionalização, mesmo porque, é
através do corpo que são experimentadas as sensações de prazer e de dor Trata-se de
uma urgência para que essas pessoas possam se sentir satisfeitas e felizes consigo
próprias, e essa urgência se chama “beleza”, muitas vezes traduzida por elas mesmas
como “dor da beleza”.
Percebemos então a grande dimensão da existência da travestilidade que parece ser a
concretização corporal do desejo pela feminilidade, o que muitas vezes sobrepõe a dor e os
riscos das injeções do silicone industrial. Lista-se os riscos do silicone escorrer e causar
deformações, como foi citado por Lady Gaga, que teve o produto alojado no braço e
felizmente não lhe causou danos maiores, e ainda o silicone pode espalhar-se pela corrente
sanguínea levando à morte. Aqui em Caruaru existem casos de mortes devido a aplicação de
silicone industrial, como o caso da travesti Carlos citada por Rihanna e Lady Gaga, que teve
inclusive repercussão na mídia.
Peres (2008) chama atenção para a inexistência de programas de saúde voltados ao
público travesti, bem como aos maus-tratos sofridos por elas no sistema de saúde, o que
segundo o referido autor aumenta ainda mais os níveis de vulnerabilidade ao qual estão
expostas, a falta de acesso à informação e cuidados também aparecem como agravante da
situação. Peres (2008, p. 4) vai além salientando que há na verdade um problema de saúde
pública, em que se faz necessário a criação de políticas sociais e públicas que garantam às
travestis brasileiras “o direito de ser e de viver, de acordo com as demandas de seus desejos e
37
necessidades básicas para que possam se sentir cidadãs de direitos e de bem estar bio-psicosocial e político”.
Rihanna: Fora o silicone... a gente tem que tomar bastante hormônio!!
Liza: E quando é que se pode começar a tomar hormônio?
Lady Gaga: Quanto mais nova... mais o hormônio faz efeito!!! Eu cheguei a mandar buscar
um comprimido Androcur no Rio de Janeiro por cento e vinte reais!!! Um comprimido só...
eu não tinha dinheiro para comprar uma caixa!! Eu cheguei a tomar mais de cem mil reais de
hormônio!! Por mês a gente gastava na época cerca de três mil... quatro mil reais de
hormônio! O que eu fazia de dinheiro na prostituição eu comprava mais hormônio!! O que
mudou as travestis de Pernambuco foi o hormônio Gestadinona que não existe mais... vários e
vários?
Rihanna: E as injeções também!!
Liza: Vocês tomam até hoje?
Rihanna: Eu não!
Lady Gaga: Tomo até hoje!!!
Eu cheguei a botar peito em uns quarenta... cinquenta
travestis... peito de hormônio... injeções localizadas! Aí cresce a carne sem precisar silicone...
mas eu optei pelo silicone porque eu bebia e se beber corta todo o efeito do hormônio!!! Por
isso que elas optam pelo silicone! Para umas o silicone é mãe e para outras é madrasta não é
isso? Porque não é em todas que o corpo aceita o silicone! Alguns chegam apodrecer a
carne... fica defeituoso... outros o silicone vasa para as pernas... outros o silicone fica
“tronxo”!!! Tiveram muitas que não tiveram a mesma sorte que a gente!
Rihanna: Quando a bombadeira é consciente ela diz logo... o prazo de validade é de sete
anos... depois disso você se vira... porque pode acontecer uma coisa pior com você!!! A
Marjorie fazia um teste antes de aplicar... mas quando eu desmaiei enquanto ela aplicava o
silicone ela queria me jogar num rio... foi quando uma outra travesti novinha não deixou!!!
Pelo desmaio eu tive que pagar oitocentos reais!!!
Liza: Queria saber mais do dinheiro...
Lady Gaga: É!! E tem outras bombadeiras que preferem bombar as outras em construções...
porque se elas morrem... lá mesmo elas ficam!!! Nenhuma tem responsabilidade com a
outra!!!
Lady Gaga e Rihanna estariam nos contando que para a construção do corpo travesti
existiria o preço da dor, da incerteza e até da perda da própria vida. Benedetti (2005) nos fala
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desse processo que também foi evidenciado em suas pesquisas realizadas com as travestis no
Rio Grande do Sul, onde o uso dos hormônios e silicone correspondem aos fatos mais
marcantes da transformação das travestis! É a partir daí que torna-se de fato feminina e a dor e
o sofrimento torna-se um mal necessário. Surge também outra questão, será que Lady Gaga e
Rihanna se dão conta que a aplicação de silicone e hormônios também podem se tornar uma
forma de violação? Peres (2005) nos diz que a aplicação destes produtos da forma como
acontece é nociva a saúde das travestis, uma vez que ocorrem deliberadamente sem orientação
médica, com produtos inadequados, sem as condições necessárias de higiene, o que leva à
morte muitas travestis no Brasil e ele cita ainda que este assunto tem sido incluído nas pautas
de encontros nacionais de travestis para que seja reivindicado junto ao poder público, para que
estes processos sejam custeados pelo Sistema Único de Saúde- SUS.
Liza: Vocês estão me dizendo que ser travesti em Caruaru também é sofrer?
Rihanna: Eu já sofri discriminação! Certa vez eu fui até o banco... no caixa preferencial por
eu ter essa deficiência na perna... onde eu sempre fui atendida... ele não quis me atender!
Disse que eu tinha que andar com a carteirinha falando da minha doença... da minha
deficiência! Eu vi que ele brincou... foi totalmente preconceituoso!! Eu abri uma ação contra
o banco... demorou muito... mas... eu ganhei!!! E isso acontece muito em lojas...
principalmente isso... de você está andando e ser motivo de apontar... até hoje eu fico triste!
Você está se sentindo bem... Quando sai no meio da rua escuta uma piada... “Oh o cabra
safado!! Filha da puta!!! Isso eu acho difícil a gente mudar!!
Rihanna nos revela que é vitima constantemente de situações discriminatórias e
preconceituosas e narra uma situação que vivenciou. Por fim ela fala das piadas que ouve e
aponta a dificuldade em romper com este fenômeno. Estaria Rihanna expressando o seu
descrédito em possíveis mudanças sociais? Peres (2004) narra que a própria constituição da
história do Brasil, é cerceada pelo estigma e discriminação, em que tais fenômenos vão sendo
naturalizados e aceitos pelas pessoas. O autor acrescenta que:
Vemos o surgimento de uma cultura de submissão ao invés de uma cultura de
resistência, transformando as pessoas e suas relações com o mundo em meras
espectadoras da história. Nesse contexto, perde-se a oportunidade de ser sujeito da
história (PERES, 2004, p. 22).
39
Considerando o que é dito por Peres (2004) será que Rihanna ao se dar conta que
estava sendo vítima de preconceito e discriminação, lançando mão dos seus direitos, não
estaria contribuindo para que as mudanças fossem possíveis? Parece que ao perceber a
situação de discriminação que viveu, Rihanna busca seus direitos como modo de resistência e
contestação. Como em toda cultura existem relações de poder, em contrapartida há também as
resistências, que são as estratégias possíveis para a superação das situações de opressão.
Nesse sentido, ao questionar o que está posto e buscar possíveis mudanças Rihanna reivindica
o direito a ter direitos (PERES, 2009).
Lady Gaga: Ser travesti em Caruaru é turbulência em vida!!! Porque até aquelas pessoas que
nos criticam de dia... a noite nos procuram!!! E isso precisa ser mudado!!! Porque em quase
toda família existe um homossexual!!
Chama-nos atenção aqui que Lady Gaga solicita mudança no que diz respeito ao
comportamento dos clientes, mas
será que ela se reconhece como co-responsável na
mudança? Ela parece aceitar quando o cliente solicita seus serviços.
Liza: As pessoas querem negar vocês?
Lady Gaga: Eles querem negar uma coisa que tem fora... mas que existe dentro da família de
muitas pessoas!!
Rihanna: É como ela falou... até aqueles que quando estão sozinhos procuram a gente...
quando estão com amigos... para dar uma de gostosão tiram piada!!! Quando está sozinho é
um amor!!!
Rihanna e Lady Gaga estariam evidenciando aqui algumas questões de gênero? Ao
falarmos da temática de gênero nos referimos a uma categoria de análise que deve ser pensada
considerando-se seus aspectos históricos e culturais e, sobretudo rompendo-se com toda
fixidez, afinal ele está em constante mutação (SCOTT, 1995). Em nossa sociedade estamos
acostumados a categorizar homens e mulheres por sua condição biológica, desconsiderando
os desdobramentos culturais, desta maneira concordamos com que “Gênero se refere,
portanto, à forma como nossa cultura diferencia homens e mulheres” (MEDRADO, 2008,
p.18).
Existe então, uma normatização entre sexo, desejo, e sexualidade, na qual considera-se
homem apenas, aquele ser que apresenta características culturalmente estabelecidas como
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próprias à masculinidade, desempenha o papel sexual ativo, sente-se atraído por mulheres,
sendo assim, os modos de ser homem que escapam a este modelo são sobrepujados (RIOS,
2011). Ao lançar mão das piadas e críticas estariam estes homens tentando manter-se na
ordem normativa vigente? Por esse motivo Peres (2011, p. 101) discorre que há na realidade
um sistema regulador da sociedade, responsável por manter as estruturas e o pensamento
“binário e sedentário”, salientando ainda que:
Estar fora da ordem da inteligibilidade imposta pelo sistema sexo/gênero/desejo
significa estar fora do mundo, ou seja, ocupar o lugar da abjeção, da vida sem
reconhecimento e sem direitos, a ter direitos, logo, sem acesso à cidadania,
entendida aqui como o direito de participação social e política nas tomadas de
decisão da sociedade em que vivemos como um todo.
Liza: E para vocês como é ouvir estas coisas dos próprios clientes que vocês atendem?
Lady Gaga: Eu... relevo!!! Eu penso por um lado bom!!! Penso em outras coisas... boto a
cabeça para o outro mundo... um mundo feliz!!! Pode ser que ele não estava feliz!!! E eu sou
feliz assim!!! Para completar minha felicidade eu quero a minha cirurgia de mudança de
sexo!!!
Rihanna: Eu fico triste porque eu sou um ser humano!!! E não deixo de ser como qualquer
um outro!!! E quando acontece isso eu não sei o que fazer! Às vezes me dá até uma
depressão!!! Quando estou em casa eu começo a pensar e choro porque isso não existe!!!
Será que aqui Lady Gaga procura ser indiferente como forma de minimizar o
sofrimento ou será que mais uma vez ela não se dá conta que também é co-partcipante desse
processo de discriminação e preconceito ao aceitar sair com estes clientes? Este processo nos
faz lembrar da chamada violência simbólica em que sem perceber muitas vezes a vítima
contribui com a violência e com outras pessoas que a dissemina (JUNQUEIRA, 2009).
Lady Gaga: Nós somos “trabalhadeiras”... nós temos cabeça!!! Nenhuma travesti ou
homossexual merece a vida da prostituição... a vida da droga... a vida errada!!! Porque a
gente tem a mente ótima para aprender as coisas e para arrumar profissões! Eu fico triste pelas
minhas irmãs travestis ou homossexuais que optam por essa vida das drogas... da vida errada
de roubo... eu fico triste por eles estarem sujando também a nossa parte!!!
Lady Gaga nessa narrativa ao tentar por em evidência as boas qualidades das travestis,
também estaria implicitamente dizendo que apesar de todos estes “dotes”, essas
41
possibilidades, o único recurso de satisfação das necessidades básicas das travestis é a
prostituição, que tem como consequência para algumas a drogadição e a “vida errada”? Sobre
tal fenômeno recorremos a Peres (2009) que revela a violência e estigmatização nas escolas,
sofridas pelas travestis participantes da sua pesquisa, em que percebe que tais momentos,
segundo elas, colaboram para a sua entrada na prostituição e drogadição, uma vez que não
tiveram acesso às condições dignas para estudar e consequentemente de trabalhar, e para
suportar o prostituir-se e as marcas das discriminações lançam-se nas drogas. O autor versa
ainda que:
A intensidade da discriminação e do desrespeito aos quais as travestis são expostas
nas escolas em que desejam estudar leva, na maioria das vezes, a reações de
agressividade e revolta, ocasionando o abandono dos estudos ou a expulsão da
escola, o que conseqüentemente contribui para a marginalização, pois bem sabemos
da importância dada aos estudos e à profissionalização em nossa sociedade.
(PERES, 2009 p. 245)
Como exemplo, vemos no Documentário Memorial das Travestis e Trans de BH, uma
travesti que nos diz ter duas graduações e um curso de pós-graduação, no entanto, continua
sendo excluída e não pode usufruir do que ela mesma construiu a duras penas, sendo
discriminada durante todo percurso escolar. Por mais que a travesti invista e busque ascensão
por meio da concretização educacional, que por sinal também é uma exigência social, seus
direitos continuam a serem negados. Parece que o universo da prostituição constitui-se como
o único território possível para a sua socialização e aceitação (BENEDETTI, 2005;
PELÚCIO, 2009; PERES, 2005).
Liza: Você falou de trabalho... e a gente percebe que aqui em Caruaru a maior parte das
travestis estão na prostituição ou são cabeleireiras! Por que será que estas travestis estão
nessas profissões?
Lady Gaga: Não só da cidade... mas de todo o país!!! Eles excluem da sociedade a parte do
homossexualismo!!! Então alguns optam por ser cabeleireira... porque ele tem sua própria
casa e assim ele pode abrir um comerciozinho ali... sem depender de outras pessoas!!!
Rihanna: Eu me prostitui...! e a prostituição me deu muitas coisas sim!!! Tem gente que me
pergunta se eu tive vergonha ou me arrependi... eu não me arrependi!!! Me envolvi com
drogas sim... porque quando chegava na rua eu nunca entrava num carro lúcido... NUNCA!!!
Porque eu tinha vergonha!... então para me soltar eu bebia e me drogava! Eu gastei muito!!!
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Lady Gaga e Rihanna parecem nos falar da negação do direito ao trabalho, restandolhes profissões autônomas ou prostituição como saída. A prostituição parece estar ligada ao
processo de exclusão e discriminação à qual estão submetidas e aparece como principal saída
de sobrevivência para as travestis, visto que há um leque enorme de direitos que lhes são
podados como saúde, educação, moradia dentre outras Silveira (2006). E Carvalho (2006, p.
02) acrescenta que:
[...] a exclusão social é uma realidade vivida por esse grupo e que as áreas de
trabalho fora da prostituição, concentram-se nos serviços gerais, limpeza e em
menor grau salões de beleza. O mercado de trabalho se fecha para as transgêneros,
surgindo apenas subempregos, casos de carteira assinada são isolados e muito
específicos.
Nessa mesma direção Martins (1997) pontua que neste processo de exclusão ao
mesmo tempo em que há a inclusão econômica, por outro lado torna-se profundamente
excludente socialmente, moralmente e politicamente, isso é o que acontece com as travestis
em Caruaru, elas trabalham enquanto profissionais do sexo, as pessoas usufruem dos seus
serviços, no entanto elas permanecem à margem vivenciando situações de violência e
vulnerabilidade.
Podemos perceber ainda no documentário Memorial das Travestis e Trans de BH que,
algumas travestis nos apontam ainda que a dificuldade em arranjar emprego parece estar
ligada à própria aparência das travestis, como nos dizem algumas entrevistadas:
[...] quando eu virei travesti mesmo, de salto e tudo, foi quando as portas começaram
a se fechar mais!, Eu trabalhei numa grande rede de supermercados e quando eles
descobriram que eu estava me transformando, eles arrumaram uma bela desculpa e
me mandaram embora! Eu trabalhei lá durante sete anos, durante este tempo eu era
um funcionário exemplar!
Diante de todas essas dificuldades surge ainda como fenômeno o uso de drogas lícitas
ou ilícitas: “Me envolvi com drogas sim... porque quando chegava na rua eu nunca entrava
num carro lúcido... NUNCA!!! Porque eu tinha vergonha!...” Rihanna expõe aqui que o uso
de tais substâncias conduz a travesti profissional do sexo à mais situações de vulnerabilidade.
Nascimento; Pires; Santos (2009) e Peres (2008) concordam que tais fatores colaboram para
que haja mais exclusão e discriminação das pessoas que atuam como profissionais do sexo.
Todos estes problemas fazem parte da situação da inclusão precária e marginal e parece que a
mesma tem se agravado ainda mais, pois agora notamos que a existência dos “guetos” tem se
tornado mais frequente, é como se existisse uma outra humanidade “[...] é uma sub-
43
humanidade em todos os sentidos. Ela se baseia em insuficiência e privações que se
desdobram para fora do econômico [...]” (MARTINS, 1997, p. 36).
Liza: E você usava o que?
Rihanna: Eu só não usei “pico”... porque quando eu fui usar pico um rapaz que estava com a
gente teve uma convulsão e eu fiquei com medo! Aí eu usei muito craque... cheirei muito...
usei cocaína!!..
Lady Gaga: A maioria delas entram na droga... no meu caso mesmo entrei no vício da
bebida!!! Porque a gente enfrentava o cliente que nunca viu e se deitava com ele... além de
correr risco!!! Para isso ou agente estava bêbada ou drogada!!! Encorajava mais agente!!!
Sobre a prostituição assim... eu não vou “tacar” o pau nas minhas irmãs porque eu sei que
outras travestis ou transexuais elas precisam sim da prostituição!!! Para conseguir o que eu
conseguir... não foi assim uma boa casa ou um bom apartamento porque na época eu gastei
muito com hormônio... bebida e farras... eu tenho essa morada através da prostituição!!
Lady Gaga parece estar apontando que para ser prostituta é preciso inevitavelmente
lançar mão de alguma substância psicoativa na tentativa de suportar os riscos e enfrentar as
situações que se “impõem” ao estar nesse modo de viver a vida. Os riscos na profissão da
prostituição são muitos: risco de adquirirem doenças, a violência, dentre outros, então nos
reportamos a Macdowell (2010) que nos fala sobre o uso drogas entre as travestis prostitutas
em Brasília. Em sua pesquisa de campo ele percebeu que grande parte das travestis lançam
mão do álcool e/ou substâncias psicoativas como maconha e cocaína, para suportar a
realização do trabalho na prostituição.
Chama-nos a atenção também a fala de Lady Gaga: [...] eu não “vou „tacar‟ o pau nas
minhas irmãs porque eu sei que outras travestis ou transexuais elas precisam sim da
prostituição!!! Para conseguir o que eu conseguir[...]”. Ela parece reconhecer que através da
prostituição foi possível alcançar também realizações, apesar de todos os sofrimentos e
dificuldades, o que nos reportamos a Pelúcio (2009, p. 73) que narra um fato parecido
ocorrido com uma das suas informantes, a Bruna, que pode usufruir dos “benefícios” trazidos
pela sua profissão: “um bom padrão de vida e a possibilidade de relacionar-se afetivamente”.
Rihanna: O que evolui a travesti é ela ter o “pacote” grande!!! Eu sempre fui um pouco
dotada e a Marjorie sabia disso e me apresentou a Dorote que fazia intercâmbio para o
exterior... porque uma travesti de esquina... ela faz mais o papel ativo! Então de dez
44
programas... oito você transa com o cliente fazendo o papel de homem e dois você faz o papel
de mulher! Lá fora eu saia com os clientes... fazendo mais o papel de homem do que de
mulher!!! Eu fui para Rimini na Itália onde morei por três meses... cheguei a pagar trinta e
seis mil com o passaporte... e lá eu me envolvi com o êxtase!!! Lá além do frio ser terrível...
uma das normas da casa é você só trabalhar de calcinha e com um sobretudo por cima!!!
Tinha que ser uma droga mais forte e por isso eu comecei a ter muita convulsão!!
Inicialmente eu pensei que era por conta do HIV... mas depois percebi que não!... na verdade
as drogas ajudaram a desenvolver uma doença chamada neurotoxoplasmose que é um tumor
no cérebro!!! Então eu fui deportada e acabei voltando a Caruaru!!
Quando Rihanna nos fala em ter o “pacote grande”, e “fazer o papel ativo” ela estaria
discorrendo sobre algumas contradições do gênero das travestis? Através da sua fala Rihanna
parece estabelecer uma divisão entre o papel de homem, que seria ser ativo e o de mulher que
seria a passiva, isso nos remete às construções socioculturais que estabelecem o que é
tipicamente feminino e masculino, e neste caso estes papéis rigidamente construídos parecem
ser estilhaçados e as travestis transitam livremente por eles. Pensando nas questões de gênero
nos reportamos então a (LOURO, 2001 p. 542) que afirma:
[...] o que o torna ainda mais complexo é sua contínua transformação e instabilidade.
O grande desafio não é apenas assumir que as posições de gênero e sexuais se
multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas
binários; mas também admitir que as fronteiras vêm sendo constantemente
atravessadas e – o que é ainda mais complicado – que o lugar social no qual alguns
sujeitos vivem é exatamente a fronteira.
O gênero da travesti está permanentemente em trânsito costurando feminino e
masculino, num movimento que parece causar uma verdadeira reviravolta na sociedade que é
calcada em modelos binários e tradicionais de gênero. Os homens que buscam os serviços das
travestis ao exercer o papel sexual “passivo”, também encontram-se embaralhando tais
concepções de que, embora muitos busquem por resguardar o seu desejo, os home apresentam
características tidas como masculinizadas buscando relações sexuais passivas e as mariconas,
que no universo travesti aparecem como os enrrustidos e incapazes de assumir a sua
identidade (BENEDETTI, 2005, p. 23).
Liza: E em relação a violência já aconteceu alguma coisa com vocês aqui em Caruaru?
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Rihanna: Eu já vi travesti apanhar... levar carreira na Praça do Rosário!!! Teve uma época
que na Praça do Rosário tinha a “gangue da bicicleta”!!
Lady Gaga: Eles agrediam a gente com aquelas correntes!!! E tinha também outras pessoas
que não podemos citar o nome!!
Liza: Essas são pessoas influentes na sociedade caruaruense? Eles faziam isso com vocês?
Lady Gaga: Sim!!! Tinha o carro do lixo que passava e jogava bolsas de lixo nelas!!
Rihanna: Eu falo mesmo!!! Não tenho o rabo preso com ninguém!!! Quem comandava essa
gangue era o filho de um cabo aqui da cidade na época... e ele peitava mesmo !! Usavam cabo
de aço... corrente de bicicleta... eu via isso!!! Mas tiro não!
Lady Gaga: Hoje em dia não!... estamos mais livres! Mas antigamente a gente tinha muito
isso!!!
Lady Gaga e Rihanna explicitam aqui as situações de violência na qual elas e outras
travestis em Caruaru têm sido submetidas, violência esta que parece mais uma vez está ligada
à intolerância praticada frequentemente pela população. Será que aqui ambas estão mostrando
o que Marchi (2011) nomeia de “transfobia” (aspas da autora)? Para ela, a “transfobia” nos
remete à intolerância de gênero, à formação das novas identidades, sobretudo a abdicação por
parte da travesti ao seu papel masculino, o que há na verdade é a misoginia, compreendida
pela autora como a aversão ao gênero feminino. Avançando nessa discussão, Rios (2009,
p.60, aspas do autor) discorre que:
As definições valem-se basicamente de duas dimensões, veiculadas de modo isolado
ou combinado, conforme a respectiva compreensão. Enquanto umas salientam a
dinâmica subjetiva desencadeadora da homofobia (medo, aversão e ódio, resultando
em desprezo pelos homossexuais), outras sublinham as raízes sociais, culturais e
políticas desta manifestação discriminatória, dada a institucionalização da
heterossexualidade como norma, com o conseqüente vilipêndio de outras
manifestações da sexualidade humana. Neste último sentido[...], o termo
„heterossexismo‟ é apontado como mais adequado, disputando a preferência com o
termo „homofobia‟, para designar a discriminação experimentada por homossexuais
e por todos aqueles que desafiam a heterossexualidade como parâmetro de
normalidade em nossas sociedades.
Com base no que nos diz Rios (2009), percebemos que existe a perpetuação da
discriminação contra as travestis, manifestos em Caruaru por meio da “gangue da bicicleta” e
do “carro do lixo”, que seriam grupos de pessoas que se reuniam para atacá-las por meio da
violência física. Mais uma vez parece que a imagem da travesti na Praça do Rosário, atua
como uma afronta a moralidade da cidade necessitando de serem banidas daquele lugar. Em
decorrência de toda violência, discriminação, preconceito, negação de direitos dentre outros
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perpetrados contra a população LGBTT, foi criado o Programa Brasil sem Homofobia que
tem como objetivo: “promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis, transgêneros e
bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação
homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um desses grupos populacionais”
(BRASIL, 2004). A partir dele outros programas e políticas estão em andamento, no entanto
ainda assistimos a inúmeras situações de violação de direitos.
Rihanna: Eu já fui presa aqui em Caruaru! Eu tenho nove entradas nas delegacias em
Caruaru!!! Eu já fui obrigada a transar com outros presos aqui na delegacia! Para sair no outro
dia a gente lavava a viatura... fazia faxina na delegacia... e isso tem mais um detalhe... agente
de calcinha... e as que eram mais boizinhos de cueca!!! Tudo nesse estilo!!! Só não saía para
limpar a delegacia por fora! Tudo isso era motivo de chacota!!!
Aqui aparece o fenômeno da violência advinda dos tratamentos da polícia para com as
travestis. Em Brasília Macdowell (2010) também percebeu essa prática, inclusive diante do
silenciamento da própria polícia, da sociedade e da mídia com relação aos assassinatos de
travestis. Tal violência constitui-se enquanto violência estrutural ou institucional, que seria
motivada por desigualdades (de orientação sexual, de gênero, étinico-raciais,
econômicas etc.) [...] que se formalizam e institucionalizam nas diferentes
organizações privadas e aparelhos estatais, como também nos diferentes grupos que
constituem as sociedades” (MEDRADO et al., 2008, p. 34).
Sendo assim, alguns apoiando-se no poder que detém, e em decorrência da educação
heteronormativa que tiveram terminam por realizar atos que violam os direitos dos LGBTT
além de cometem também violência física contra as travestis, como nos conta Rihanna.
Lady Gaga: Eu cheguei a ser presa por trinta dias no Presídio... pois dois adolescentes
menores de idade bateram em minha porta e pediram água! Eles estavam com um casal de
periquitos... e através desse casal de periquitos eu fui parar no presídio acusada de traficar
animais!!! Botaram muitas gaiolas... para sair na televisão e dizer que eu era uma traficante
de pássaros e chegou o IBAMA bateu em cima! Eu fui acusada de uma coisa que eu não fiz...
eu vi que ali era um preconceito por eu ser a pessoa que eu sou mas eu superei!!! E lá eu
encontrei pessoas mais honestas que aqui fora!!
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Rihanna: A gente é mais bem tratada quando cai dentro duma delegacia pelos presos do que
pelos próprios policiais!!!
Lady Gaga: Dentro do presídio eu não tenho o que falar sobre os presidiários porque eles
foram pessoas muito bem educadas comigo! Não existe dentro do presídio o que o povo fala...
que eles pegam os homossexuais para transar... isso eu não vi!! Lá de dentro eu conheci Drª
Carla que é a diretora do presídio e ela descobriu que eu era casada a onze anos na época e ela
me tirou da cela em que eu estava com noventa e seis homens e me colocou numa cela com
três pastores!
Liza: E você Rihanna também chegou a ir para o Presídio?
Rihanna: Não! Não! Eu sempre fiquei em delegacia!
Lady Gaga: Por eu ter ido para o presídio eu fiquei com o nome sujo na justiça... mas não
fiquei na sociedade!!! Porque eu sou uma sacerdote e toda Caruaru conheci a Lady Gaga!!!
Eu tenho um candomblé aberto neste bairro a mais de vinte e cinco anos... todos os
babalorixás e ialorixás me conhecem!... Eu sai do presídio devido a vários telefonemas ao
presídio de policiais amigos meus... que sabem que eu sou direita e que aquilo era uma
injustiça!!!
Rihanna: Eu não! Como a gente trabalhava em avenida... a gente era pega lá e no máximo
que eu cheguei a passar foi dois dias aqui na primeira Delegacia! Teve uma vez que tinha dois
presos e o policial queria me ver transando com eles e eu não queria... eu peguei a “pacata” e
disse... “eu não transo!... eu faço o que vocês quiserem mas... transar com eles não!!!” Aí eu
comi meia barra de SABÃO!!! E eles ficaram rindo!!! Eu comecei a passar mal e eles me
levaram para a Casa Santa Socorro onde fizeram uma lavagem em mim!!! Eu não podia dizer
o que era!!! O médico que fez exame disse que eu tinha comido sabão mas... ficou como se
eu tivesse comido em casa” Não podia dizer de jeito nenhum que tinha sido na delegacia!!!
Lady Gaga e Rihanna nos falam das situações que vivenciaram, na qual a polícia
parece ter agido de forma extremamente violenta, violando sua integridade físicas e
psicológicas, contrariando o que preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(Art. V, 1948): “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante”. Nesse aspecto sabemos que a polícia se constitui também enquanto
instituição mantenedora da heteronormatividade na sociedade do controle (ANTUNES, 2010).
Atualmente com os acirrados debates à respeito dos direitos humanos LGBTT e as intensas
reivindicações dos mesmos, começam a surgir alguns cursos e capacitações que visam
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informar e ampliar a discussão acerca da segurança pública sem homofobia promovido pela
SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública).
Liza: E em relação à oportunidade... vocês percebem se em Caruaru existem oportunidades
de emprego... de estudo... para as travestis?
Lady Gaga: Para o homossexualismo oportunidade... de dez a cem é dez... noventa por cento
das pessoas não dão oportunidade para o homossexualismo!!!
Rihanna: Se você for muito afeminada... não adianta nem você gastar seu tempo!!!
Lady Gaga: Os dez por cento aí cai para zero por cento!
Rihanna: Tem que ser uma “bicha boy”... o mais boy possível!!! E na hora do trabalho... por
mais que eles saibam que você é homossexual... não se pode demonstrar!!! Porque se você
chegar muito afeminado eles não querem!!! Mandam você vir depois... dizem que não está
precisando no momento!!!
Lady Gaga: Por mais estudo que você tenha... por mais educação!!...
Rihanna: Sempre eles inventam uma desculpa... e... não pega de jeito nenhum!!!
Será que aqui Rihanna e Lady Gaga estão indicando que socialmente existe a
categorização de gênero e que o feminino ainda é desvalorizado e marginalizado? Rihanna
quando fala “Por que se você chegar muito afeminado eles não querem!!!”, parece falar de um
feminino que as travestis constroem com tanta dificuldade e que em Caruaru é desprezado. De
acordo com Louro (2010, p. 48, grifos da autora) “Aqueles homens que se afastam da forma
de masculinidade hegemônica são considerados diferentes, são representados como o outro é,
usualmente, experimentam práticas de discriminação ou subordinação”. No caso das travestis
elas não apenas rompem com a categorização mas, trazem em seu corpo a marca do feminino,
este que em sua construção histórica e cultural sempre foi tido como oprimido.
Liza: E vocês tiveram oportunidade de estudar?
Lady Gaga: Eu tive!!! Meu pai sempre se interessou em me colocar em escolas... ele sempre
aceitou a minha vida!... Eu tive muito apoio do meu pai e dos meus irmãos! Eu sou a última
filha entre vinte e oito irmãos... E todos me aceitaram e me aceitam até hoje!!!
Liza: E como você se sente com isso?
Lady Gaga: Eu amo!!! Eu amo a minha família!!! Eu tenho duzentos e setenta e cinco
sobrinhos!... Eu amo todos eles!!! Porque eu fui muito bem acolhido dentro da família!!
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Rihanna: Eu estudei até a quarta série!!! Porque os piores momentos para mim na escola...
eram dois!... era quando eu chegava e tinha que cantar o hino antes de entrar... então eu era
motivo de brincadeirinha de empurra empura... de imitação... e eu não gostava!!! E o outro
era na hora do recreio!... Eu acho que eu corria mais do que todo mundo!!! Os meninos
sempre passavam e me davam tapas e chutes... ou então eu estava com a minha merenda e
eles metiam o dedo dentro da sopa e perguntavam se estava gostoso!!! Eu agüentei até os
quatorze anos!!! Eu também tive uma atitude um pouco trágica!!! Eu cheguei a reclamar umas
três vezes com o diretor sobre um rapaz que tirava muita onda comigo!!! Ele sempre abaixava
minhas calças de repente! Até que um dia ele veio com uma brincadeira... peguei e dei uma
“bolsada” nele!... Eu estudava no primeiro andar... ele caiu lá de cima!!! Foi bom porque ele
caiu bem na diretoria e quebrou a clavícula!!! Daquele dia para cá eu fiquei com medo e não
quis mais estudar!!! Não tive mais paciência não!!! E até hoje... uma escola que aceita um
pouco as travestis hoje em Caruaru é a Lugar Feliz!!! Mas eu não tenho mais cabeça para isso
não!... pois sempre tem isso!!! Essas brincadeirinhas!!!
Lady Gaga: Até porque nas escolas de Caruaru... quando eles sabem
que
existe
um
homossexual... ou um traveco eles procuram agredir mais ainda!!! As “travecazinhas” aqui da
nossa cidade são muito humilhadas e existe muito bullying contra elas!!!
Na fala de Rihanna e de Lady Gaga é possível notar a violência à qual as travestis em
Caruaru estão submetidas, leia-se violência como toda forma de violação de direitos. Assim
sendo desde a infância as travestis carregam em si essas marcas. Isso nos faz lembrar do que
Benedetti (2005) vivenciou com as travestis em Porto Alegre em sua etnografia:
Ações violentas, físicas ou simbólicas, são dirigidas diariamente contra as travestis.
Elas também vivenciam cotidianamente situações de exclusão e estigmatização
pautadas pela violência, o que lhes dá certa legitimidade para utilizar esse artifício.
Rihanna revela então que foi vítima de bullying que consiste na maneira consciente de
humilhar e depreciar o outro a fim de provocar ansiedade e tensão (FANTE, 2005 apud
MELO; GROSSI; UZIEL 2009. Nesse sentido chama a atenção que não houve reação da
direção da escola diante das insistentes reclamações de Rihanna sobre as piadas e
humilhações que sofria, isso nos faz refletir sobre o quanto o contexto escolar colabora com
as situações de violência vividas pela comunidade LGBTT, quando ela não se omite frente às
situações que solicitam um posicionamento, torna-se ela mesma autora de violação de
direitos. Nessa direção concordamos que:
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A intensidade da discriminação e do desrespeito aos quais as travestis são expostas
nas escolas em que desejam estudar leva, na maioria das vezes, a reações de
agressividade e revolta, ocasionando o abandono dos estudos ou a expulsão da
escola, o que conseqüentemente contribui para a marginalização, pois bem sabemos
da importância dada aos estudos e à profissionalização em nossa sociedade.
(PERES, 2009, p. 245)
A escola atualmente não pode se furtar dos assuntos relativos à sexualidade e gênero,
uma vez que ela é constantemente convocada, por mais que relute em permanecer apegada
aos modelos heteronormativos, sexistas e estáveis.
Rihanna: Essa diretora mesmo do Escola Feliz11... ela já fez trabalho com o grupo... mesmo
assim não dá conta!!! Uma coisa é a gente falar com ela que diz que vai ver... mas por trás não
acontece nada!!! Aí ela faz aquele planejamento bem bonito... que até você se encanta... mas
na realidade não é assim!!! Não é de jeito nenhum!!!
Liza: Parece que existe um sistema... não é?
Lady Gaga: Aos poucos até as diretoras e professoras vão se saindo daquele aluno
afeminado... elas acham também que é errado!!! Agora no meu caso eu tive ótimas
professoras! Eu cheguei a morar na casa de uma das minhas professoras... a professora Josefa
e estudei até a última série do colégio Estrela! E de lá eu não quis ir para outro colégio e parei
de estudar!! Porque os outros colégios aqui do Solaris não iam me aceitar como eu fui aceita
no Estrela!!!
Vemos então que, é na escola, um lugar em que normalmente as pessoas passam
grande parte da vida, socializando-se, onde as travestis em Caruaru são “banidas”. O sistema
escolar ainda não conseguiu dar conta das diversas possibilidades de gênero e por isso exclui
tudo que foge ao costumeiro binarismo macho/ fêmea, feminino/ masculino, e qualquer traço
de respeito às diferenças se perde nesta teia. De acordo com Antunes (2010, p. 111)
Muitas não conseguem levar adiante os estudos. Em geral nossas escolas se
apresentam como instituições incapazes de lidar com as diferenças e pluralidade.
Funcionam como uma das principais instituições, guardiã das normas de gênero e
produtora da heterosexualidade.
Liza: Ser travesti em Caruaru é ter vários direitos violados?
Rihanna: É mais fácil você dizer assim... ser uma travesti em Caruaru não é ter direito a
NADA!!! NÃO TEM DIREITO A NADA AQUI EM CARUARU!!!
11
Os nomes das escolas são fictícios utilizados para resguardar a instituição e as sujeito/participantes.
51
Rihanna solicita através dessa fala o direito a ter direitos, uma vez que todas as portas
se fecham para elas e o ser sujeito de direitos como travesti, parece inexistir em Caruaru. O
que Rihanna reivindica é legítimo e garantido pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), que
diz que todos tem direito à vida, igualdade, liberdade, segurança e à propriedade. E o Brasil
tem dado sinais importantes, no sentido ao menos da criação de estratégias para a garantia dos
direitos da população LGBTT como, por exemplo, a criação do Programa Brasil sem
Homofobia que tem como princípios:
A inclusão da perspectiva da não-discriminação por orientação sexual e de
promoção dos direitos humanos de gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais, nas
políticas públicas e estratégias do Governo Federal, a serem implantadas (parcial ou
integralmente) por seus diferentes Ministérios e Secretarias.
A produção de conhecimento para subsidiar a elaboração, implantação e avaliação
das políticas públicas voltadas para o combate à violência e à discriminação por
orientação sexual, garantindo que o Governo Brasileiro inclua o recorte de
orientação sexual e o segmento GLTB em pesquisas nacionais a serem realizadas
por instâncias governamentais da administração pública direta e indireta.
A reafirmação de que a defesa, a garantia e a promoção dos direitos humanos
incluem o combate a todas as formas de discriminação e de violência e que,
portanto, o combate à homofobia e a promoção dos direitos humanos de
homossexuais é um compromisso do Estado e de toda a sociedade brasileira.
(BRASIL, 2004)
Apesar do avanço significativo da criação deste programa, que por sinal serviu de
alicerce para a elaboração de outras políticas como o Plano Nacional de Promoção do Direito
da Cidadania e Direitos Humanos e de LGBT (BRASIL, 2009), ainda existem muitos
caminhos que precisam ser trilhados, para que haja de fato a efetivação de políticas públicas e
sociais para esse segmento, como pôde ser visto na fala de Rihanna, afirmando que sertravesti em Caruaru é não ter direito a nada. Parece-nos, portanto, que o compromisso do
Estado de combater todas as formas de violação de direitos não está sendo cumprida na cidade
de Caruaru.
Lady Gaga: E por conta disso muitas optam por ir para fora do Brasil!!! Eu agora estou
berando os quarenta anos e até hoje eu ainda recebo convite para sair para fora do país... por
que oportunidade aqui é zero!!!
Liza: E lá fora vocês acham que é mais fácil?
Rihanna: Eu era mais feliz lá fora!!! Por dois motivos... a minha família.... eu vivia longe
deles... mas eu vivia do jeito que eu queria!! Eu vim ver esse negócio de apontar aqui!!
Ninguém nunca me apontou... ninguém nunca passou por mim e gritou!!! Aqui você passa e o
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povo diz... “bota água no fogo!”... e o outro diz... “para quê?” “Para despenar o frango!!!”
Nunca escutei lá fora essas piadinhas!!!
Lady Gaga: Eles chamam “BICHA LOUCA!!! ISSO É UMA BICHA DOIDA!!! AQUELE
DERRUBADO!!!”
Neste trecho das narrativas Rihanna e Lady Gaga sinalizam as marcas da violência e
exclusão que tatuam as suas existências. Neste momento lembramos da música da cantora
Pitty, Comum de dois12, onde ela nos diz:
Quis se recriar/ Quis fantasiar/ No quarto de vestir/ Despiu-se do pudor/ Quis se
adornar/ Quis se enfeitar/ Vestido e salto/ Enfim pra si tomou/ Se transformou/ Se
arriscou/ Reinventou/ E gostou/ Ele se transformou/ Precisou correr/ Uma vida pra
entender/ Que ele era assim/ Um comum de dois/ E hoje vai sair/ Com a melhor
lingerie/ Não pra afrontar/ só quer se divertir/ Mas ele afrontou/ Provocou/
Assombrou/ Incomodou/ E ele nem ligou.../ Se acabou/E beijou/ E dançou/ Ele
aproveitou/ Quando apontam aquele olhar/ Ele sabe e deixa passar/ O salto dói, ele
sorri/ Mas machucava ter que omitir/ Prazer e dor de ser mulher/ Por essa noite é o
que ele quer/ Degusta bem, bem que valeu/ Ele se transformou.../ Sua dama ao seu
lado amparando o motim/ juntos rolam pela noite/ Nunca dantes par assim
Como é dito na música, ao se vestir da forma que sente-se melhor, ao se reinventar, a
travesti afronta, incomoda, assombra e balança as concepções tradicionais de gênero. Além da
existência dos atos de violência direta e verbal contra as travestis em Caruaru, percebemos
que há também um processo de exclusão social como pontua Peres (2005, p. 36):
A exclusão social vivida pelas travestis [...] também é atravessada por premissas da
ordem social que condenam as suas escolhas dos modos de composição existencial,
considerando a ousadia que as mesmas se apresenta por alterar os limites de seus
próprios corpos, na busca da felicidade.
Rihanna: E em Caruaru você não tem nenhum motivo para dizer eu sou uma cidadã
caruaruense!... e se você perguntar se eu tenho orgulho da minha cidade... NÃO!!! Nunca abri
a boca para dizer eu tenho orgulho da minha cidade! Eu tenho vergonha da minha cidade!!!
Nessa parte para agente que é travesti eu tenho vergonha!!! Eu não me sinto bem... eu vivo
uma coisa que eu não sou!!!
Rihanna estaria realçando que o direito à cidadania também lhe é negado. Na cidade
de Caruaru as mobilizações à respeito da busca da cidadania e direitos humanos LGBT ainda
acontecem de forma tímida, no entanto existem alguns avanços importantes como a existência
12
Disponível em: <http://letras.terra.com.br/pitty/1792225/>. Acesso em: 11 de novembro de 2011.
53
de dois grupos de resistência que realizam anualmente a parada gay na cidade e um deles, o
GRGC (Grupo de Resistência Gay de Caruaru), juntamente com a Secretaria da Mulher
promoveu pela primeira vez no agreste pernambucano a conferência LGBTT, como foi dito
pelos organizadores do evento. No caso da Parada Gay em Caruaru, são realizadas palestras
informativas, discussões, passeatas e culmina com shows e apresentações artísticas na
principal avenida da cidade.
Estes movimentos sociais são de fundamental importância,
possibilitando uma maior visibilidade e reivindicando a promoção dos direitos da população
LGBTT em Caruaru.
No Brasil o movimento LGBTT tem crescido efetivamente nos últimos anos e a
bandeira do arco-íris tem sido reconhecida em quase todos os lugares, trazendo reflexões no
campo da despatologização das sexualidades e do gênero, a superação da dualidade entre
“condição” e “opção” quando se trata de LGBTT, visibilização das diversidades, no entanto,
faz-se necessário que caminhemos ainda mais alguns passos, refletindo sobre o que
precisamos alcançar, o que ainda nos falta e questionando: “em que medida toda a visibilidade
conquistada pela temática nos últimos anos tem se convertido em direitos ou em legitimidade
social das demandas levadas ao espaço público? (FACHINNI, 2011, p. 196-197, aspas da
autora).
Liza É eu fiquei pensando em você Lady Gaga... teve algum tempo da sua vida que você se
considerou travesti?
Lady Gaga: Eu tive muito medo! No começo de tudo eu tive medo de aceitar o que eu sou
até por eu ter alguns irmãos violentos... e eu não sabia como contar!!! Apesar de que o meu
pai já sabia a pessoa que eu era!!! E eu pensava que meu pai não sabia que eu era uma
transexual... eu só tenho uns onze anos de transexual!!!
Liza: E qual a diferença entre ser uma transexual e uma travesti?
Lady Gaga: A mente muito mais afeminada e as partes do corpo!!! Não precisou levar
silicone e algumas mudanças em algumas partes... e o jeito de ser e viver!!! Porque o travesti
ele chega usar alguns homens... ele chega a ser ativo... e a transexual não!!! Ela só faz a linha
feminina!!! Essa linha mulher... isso sustenta a pessoa!!!
Lady Gaga estaria demarcando aqui que a feminilidade da transexual é mais
determinada e almejada? Ao falar sobre a sua feminilidade Lady Gaga parece estar afirmando
com certa fixidez o feminino, enquanto a travesti ostenta o feminino e masculino em sua
corporalidade. Sobre a transexualidade Silveira (2006, p. 15) afirma que:
54
O transexual vive numa essencial desarmonia entre quem é, quem acredita ser e a
sua aparência externa e, desse modo, desenvolve uma identidade de gênero
condizente com a do sexo biológico oposto ao seu. Portanto, para estes indivíduos, é
fonte de intenso sofrimento e inconformidade o seu corpo e suas características
genitais, os quais rejeitam dramaticamente, não as reconhecendo como possibilidade
de nascentes de prazer.
Parece que a condição existencial da transexual apresenta-se de forma fixa, o que nos
faz questionar o que Lady Gaga nos diz sobre a prática sexual que apresenta-se como sendo
um determinante para a distinção entre ser-travesti e ser-transexual, ela então diz “ele chega a
ser ativo... e a transexual não!!! Ela só faz a linha feminina!!! Essa linha mulher...”, estariam
explicitadas mais uma vez os binarismos que cerceiam a nossa cultura?
Rihanna: Como eu disse... tem as três etapas... tem a primeira etapa que todas passam que é a
gay! Eu sou uma gay... então eu sou “pintosa!”... andando na rua me requebrando... a etapa
dois é da travesti... então para você ser uma travesti você tem que colocar silicone... então se
você não colocar silicone você não é uma travesti!!! Elas tomam hormônio... aplicam
silicone!!!
Lady Gaga: Aí elas vão refazendo o corpo!!
Rihanna: Aí ela vira uma travesti!!! A travesti e a gay tem uma coisa que a transexual não
usa... que é o pênis!!! Com a maioria dos clientes que saímos a gente faz o papel do homem!!!
E a transexual não!... ela não se sente bem!!! Não se sente bem na frente do espelho... se sente
mal em ver o pênis dela!!! Eu conheço várias meninas... a gente teve um caso aqui em
Caruaru... que um dia ela se sentiu tão mal... que cortou o próprio pênis!!! Ela foi para o
Hospital do Nordeste e de lá foi para Recife e eles colocaram de volta o pênis dela!!! E é por
isso que muitas enchem a cara!!! E por isso hoje o SUS faz a cirurgia... porque muitas enchem
a cara de cachaça e cortam o pênis para fazer a cirurgia!!! Porque a transexual ela não
aceita!!!
Lady Gaga: Eu com onze anos de idade cheguei a passar o ferro quente no meu órgão!!! Pois
eu vi que aquilo não combinava comigo!!! DE MANEIRA NENHUMA!!! Meu pai chegou a
se aperrear e eu fui levada para o doutor!!! Fui assistida por psicólogos e psiquiatras para que
eu não fizesse algo pior com a minha pessoa!!! E até hoje eu chego às vezes a tomar remédio
controlado para a depressão... porque eu tenho depressão através disso... porque eu quero me
livrar desse pequeno problema!!! E até para as nossas operações de transexualismo tem a
discriminação porque muitas transexuais só estão se operando porque tem dinheiro e tão
55
pagando por debaixo dos panos para ser operada na frente daquelas que realmente são
transexuais !!! Porque tem travestis que estão se operando sem ser transexual porque tem
dinheiro!!! Aí estão entrando no SUS escondido enquanto outras esperam... fazem dezesseis
anos que eu luto pela cirurgia e até agora nada!!!
Ao falar do processo transexualizador Rihanna e Lady Gaga estariam trançando
diferenças fundamentais entre os modos de ser-travesti e o ser-transexual? Parece que sertravesti é buscar a aparência feminina sem anular as características culturais e biológicas
caracterizadas como masculinas, enquanto o ser-transexual estaria ligado à consolidação do
projeto de ser-mulher através da retirada do pênis. Benedetti (2005) pontua que a travesti
sustenta a ambigüidade entre feminino e masculino e não procura escondê-lo. O uso do papel
sexual de ativo e passivo é freqüente em sua sexualidade, enquanto que:
[...] as representações construídas pelas transexuais sobre a sua condição afirmam
um modelo de gênero definido, rígido, em que a separação entre o masculino e o
feminino está nitidamente marcada. As transexuais negam qualquer potencial erótico
do órgão genital masculino; elas não aceitam utilizar o pênis para o prazer por que.
Por isso desejam tanto a cirurgia de transgenitalização.
Outro aspecto importante destacado por Lady Gaga é a dificuldade da realização da
cirurgia de transegenitalização, será que aqui ela estaria reivindicando a efetivação dos seus
direitos sexuais? Atualmente a cirurgia de transegenitalização é realizada pelo SUS (Sistema
Único de Saúde), o que certamente foi um grande avanço na promoção da cidadania e direito
à saúde para as transexuais, no entanto, este processo ainda é perpassado pela ideologia da
anormalidade, da descompensação que precisam ser reparados como forma de se alcançar um
restaurar o seu status de normalidade. E ainda é necessário que a possível transexual preencha
todos os pré-requisitos estabelecidos pela nosologia médica para que seja considerada de fato
uma transexual (LIONÇO, 2009).
Para a realização da intervenção cirúrgica da trangenitalização é preciso que a
transexual passe por um rígido acompanhamento com psicólogos, endocrinologista e
psiquiatras, este procedimento dura em média dois anos e é utilizado para a comprovação da
transexualidade. De acordo com Lionço (2009, p. 56):
No caso de transexuais e travestis, o poder médico impõe restrições normativas e
interdições para o acesso aos procedimentos que incidem sobre transformações
corporais de caracteres sexuais, intermediando de forma reguladora o acesso aos
bens e avanços biotecnológicos.
56
Rihanna: A diferença delas também... é que a gente guarda o órgão para trás... coloca o pênis
para trás e coloca a calcinha e fica a vagina!! E a transexual não!!! Ela injeta para trás o pênis
e coloca o emplasto Sabiá!!!
Lady Gaga: Assim agente tem dois sacos aqui em cima... abaixo do umbigo alguns dedos e
enfia para dentro os testículos... eu encaixo e enfio o pênis para dentro!!!
Rihanna: Só dói no começo!!! A primeira vez que a gente faz isso é uma DOR!!! Depois se
acostuma!!! (RISOS)
Lady Gaga: Vai se acostumando porque é o jeito né? (RISOS)
Rihanna: Mas é uma dor que... como dizem as cafetinas quando tão bombando a gente... é a
dor da beleza!!! A gente quer uma coisa que deseja TANTO que temos que passar por isso!!!
Mas eu acho normal! Tudo que a gente passou e que a gente passa hoje em dia eu acho
normal!!! Eu só não acho normal isso... da gente ser tratada como se fosse um ET... uma coisa
do outro mundo!!! Mas o restante é normal!!!
Rihanna e Lady Gaga estariam nos falando da construção dos detalhes de todo
empreendimento da construção do corpo travesti e as palavra que chamam a atenção é desejo
e dor. Peres (2008, p. 2, aspas do autor) afirma que:
Mesmo diante de tantos riscos e de tantas incertezas, as pessoas que pretendem
transformar seus corpos são movidas por um desejo intempestivo resistente a
qualquer tipo de racionalização, mesmo porque, é através do corpo que são
experimentadas as sensações de prazer e de dor Trata-se de uma urgência para que
essas pessoas possam se sentir satisfeitas e felizes consigo próprias, e essa urgência
se chama “beleza”, muitas vezes traduzida por elas mesmas como „dor da beleza‟
Lady Gaga e Rihanna parecem retomar as questões sobre desejo e dor, que se
misturam na estética travesti em troca da felicidade e bem- estar consigo mesmas, afinal o
corpo “é visto como expressão e realização de intenção, desejos e projetos” (CARMO, 2002,
p.79).
Liza: Mas e vocês são felizes do jeito que são?
Rihanna: Eu... tirando esses dois detalhes eu te disse... de não me sentir bem do jeito que me
visto... eu sou!... sou feliz sim!!! Porque eu acho que duas coisas a gente tem que ter!!!...
esperança e força de vontade!!! Porque se a gente não tiver isso ninguém é feliz! Então... eu
sou feliz não completamente... mas eu sou feliz sim!!!
Liza: E o que é que está lhe impedindo de ser completamente feliz?
57
Rihanna: É isso!... eu não poder me vestir como eu gosto e da minha família me aceitar!!!
Por ela ter uma mente diferente da minha por ser evangélica... então para eles é uma coisa do
demônio!!! É uma coisa do inimigo... então é isso!! As vezes eu estou tão feliz... mas eles
nunca estão satisfeitos... sempre me dão uma lapada!!!
Lady Gaga: Às vezes eu penso porque tantas pessoas evangélicas criticam a gente
homossexual? Porque tem coisas mais além que eles deveriam se preocupar mais do que com
a gente! A gente tem um viver... tem uma vida!!! Tem uma profissão... tem de que viver... a
gente não incomoda tanto!!! As drogas estão destruindo a humanidade!!! E porque eles não se
reúnem contra aquelas coisas? Vem sempre em cima da gente!!! Os que criticam mais a gente
é a nação evangélica!!!
Lady Gaga e Rihanna estariam narrando aqui que a religião colabora com
a
cristalização dos preconceitos e estigmas? Ribeiro (2009) salienta que as religiões cristãs tem
seus princípios como imutáveis e fixo, que se ancoram na Bíblia e tratam a homossexualidade
como pecado. Reis (2011, p.172-173) coloca que: “O fundamentalismo religioso talvez seja
um dos maiores problemas hoje enfrentados pela população LGBT, inclusive para a
aprovação de leis”. E adiante expõe a fala do pastor Silas Malafaia: “A homossexualidade é
uma rebelião consciente contra o que Deus estabeleceu na criação”.
Tudo isso conduz Rihanna a tentativa de adequar-se aos desejos da sua família e negar
os seus, no entanto as investidas parecem frustradas e a impedem de encontrar-se feliz.
Notamos então que existem mecanismos de poder que agem na família, igreja, na mídia e em
outras instâncias, atuando no sentido de naturalizar o binarismo de gênero e assim
sistematicamente há uma repetição para que a heteronormatividade se torne cristalizada.
Os outros, que fogem à norma, poderão na melhor das hipóteses ser reeducados,
reformados (se for adotada uma ótica de tolerância e complacência); ou serão
relegados a um segundo plano (tendo de se contentar com recursos alternativos,
restritivos, inferiores); quando não forem simplesmente excluídos, ignorados ou
mesmo punidos. Ainda que se reconheça tudo isso, a atitude mais freqüente é a
desatenção ou a conformação (LOURO, 2009 p. 90).
Dito desse modo parece que Rihanna por escapar das normas socialmente
estabelecidas, tenta adequar-se da maneira que lhe é possível às condições estabelecidas por
sua família o que lhe causa sofrimento.
58
Rihanna: É por isso que eu digo que sou mais feliz lá fora!!! E ao mesmo tempo não sou
feliz por causa da minha família! Não sei se foi porque eu sai muito cedo de casa.... eu não
tive aquele carinho!!! E eu sinto inveja quando eu vejo uma família tratando um amigo meu
bem! Porque tem muita mãe que trata bem! A mãe de Doug por exemplo... ela é um amor
com Doug! A irmã de Doug é sapatão então ela trata bem!!! Eu sinto inveja!!!
Lady Gaga: Eu não brinquei muito na vida porque... quando eu tinha uns quatorze ou quinze
anos eu tive que sustentar três crianças... dois meninos e uma menina! Eu tenho uma irmã
prostituta e eu sofri um pedaço para dar o melhor para eles!!! De manhã eu estudava... a tarde
eu trabalhava... a noite eu me prostituía!! Então o dinheiro servia para pagar um aluguel...
água... luz!!!..para que eles freqüentassem o colégio com uma roupinha nova!!! Porque minha
irmã ia para os cabarés aqui de Caruaru e região!!! Ela só se encarregava de ficar buchuda e
eu me encarregava de cuidar das crianças que ela trazia!!! Eu achava mais importante eu criar
porque são meu sangue do que ela doar para outras pessoas!!! Então eu sofri!... esperei as
crianças crescerem e então pude tomar outras atitudes para a minha vida!!! Elas cresceram e
não me envergonham... tem profissão!!! Não se envolveram com coisa errada!... A mãe deles
que é minha irmã até hoje é usuária de craque!!! E eu não quis isso para os meus sobrinhos!!!
Então eu cheguei a trabalhar em fábricas de doces... em cerâmicas... fui alfaiate de corte e
costura para que eles não sofressem... e não seguissem o caminho da mãe!!! Eles são lindos!!!
Lady Gaga estaria nos chamando atenção para as responsabilidades assumidas por
uma travesti em relação à sua família? Diferente da relação familiar de Rihanna, Lady Gaga
parece não apenas ter sido aceita pelos seus familiares, como também passou a cuidar dos
sobrinhos.
Liza: Eu quero agradecer a vocês pela participação!! E a fala de vocês foi muito importante
para o meu trabalho!!!
Lady Gaga: E a gente espera por um dia melhor!!!
Rihanna: E se você quiser e precisar eu não tenho problema nenhum de mostrar a cara!... Eu
não tenho rabo preso com ninguém!!!
Lady Gaga: Nós duas não é? Porque tem sempre que existir dentro da sociedade pessoas que
falem por aquelas mais oprimidas!!!
Rihanna: Porque eu acho assim... que a partir do momento que a gente está escondendo a
nossa identidade... é a gente mostrar uma coisa sem dar nomes... sem mostrar a cara... você
não está querendo lutar por um direito que é seu!!! Então se eu corro atrás de um direito que é
59
meu... então eu tenho que dar a cara a tapas... eu tenho que dizer... eu quero!... e preciso disso!
Então a sociedade... tem que ver que a gente está pedindo uma coisa que é nossa!... que está
para todo mundo ai!!! Então é ser humano!... Se precisar pode me procurar!!!
Liza: Ok meninas... eu vou procurar saber com a minha supervisora se pode! Mas desde já eu
agradeço a contribuição de vocês!!
Entrevista com Madonna 21/11/2011 às 14h.
Liza: Madonna, qual é o sentido de ser travesti em Caruaru?
Madonna: Para ser bem sincera... ser travesti em Caruaru não é muito fácil!!! Porque Caruaru
é uma cidade do interior onde as pessoas têm uma mente muito fechada em relação a tudo!!
Você passa no meio da rua e é o centro das atenções! Aqui em Caruaru ninguém me conhece
pelo nome da certidão... me conhecem pelo nome profissional... Madonna! Mas em alguns
casos as pessoas me chamam pelo nome da carteira de identidade! Então ser travesti em
Caruaru é muito difícil porque as pessoas não lhe respeitam... elas olham para você com um
olhar assim...como se você fosse um ser muito difícil... um ser estranho... um ser abominável
na face da Terra!!! Eu fui para São Paulo cinco vezes e lá as pessoas tem outra cabeça! Eu até
cometei com a minha amiga... "mulher... será que eu estou viva?" Porque eu estou
acostumada a andar em Caruaru e quando agente passa... é olhada... sendo o centro das
atenções!! Em São Paulo eu fui para todo lugar e ninguém me olhava!!! Eu cheguei no
shopping... eu que sou o que sou... me choquei... porque eu vi médicas se beijando... em plena
praça!!! Lá as pessoas têm a mente mais aberta... são pessoas de capital... São Paulo que é
lugar de se morar!!! Aqui em Caruaru você vai a um show... e muitas vezes você vai passar
pela fila dos homens e ele diz... "vá para a das mulheres!"...você vai passar pela fila das
mulheres... ele diz... "vá para a dos homens! Agora há pouco mesmo... durante um show eu e
minha amiga passamos por uma situação difícil onde o chefe de segurança perguntou a mim...
com qual direito eu me achava de ir no banheiro feminino? E eu respondi... “a partir do
momento que eu passei a ser travesti e fiz mudança no meu corpo para que eu tivesse
aparência feminina!”Ele disse... “mas... no seu registro você usa o quê?” “ No meu registro
eu uso nome de homem... porque até então a Lei não permite que eu mude! E para que eu
pudesse mudar hoje... eu tinha que fazer a mudança de sexo e isso não é o que se passa pela
minha cabeça! Mas você está muito mal informado! Deveria... por ser um chefe de
segurança... deveria aprender uma coisa... respeitar o direito do outro! Porque se eu estou aqui
60
é porque eu tenho direito! Se eu for ao banheiro masculino eu vou receber piadas ou ser
assediada como eu já fui... no banheiro de outra casa de Forró! ”Então assim... é tanto
constrangimento que você passa! Eu mesmo... eu só sou o que eu sou porque eu tenho minha
identidade própria e eu sou autêntica acima de qualquer coisa!!! Eu luto pelos meus direitos
até o último momento!!
Madonna aponta aqui as dificuldades que uma travesti enfrenta ao morar na cidade de
Caruaru, como a questão da aparência feminina e o nome no documento que ainda é
masculino. Ela parece nos dizer que o ser travesti carrega a ambigüidade entre o feminino e
masculino, onde até para ir ao banheiro torna-se difícil e constrangedor. Ela nos fala, também,
da diferença que demarca o tratamento do público LGBT numa capital como São Paulo e em
Caruaru que é uma cidade do interior onde as pessoas se incomodam até com a presença das
travestis da Praça do Rosário, como pode ser evidenciado num episódio ocorrido há dois anos
em que uma travesti foi presa no local supracitado por estar com uma roupa curta ferindo os
preceitos morais da sociedade caruaruense!13 Será que aqui ela nos fala que a infinidade de
possibilidades dos gêneros causa certo impacto nas concepções de gênero construídas pela
sociedade? A este respeito Peres (2005, p. 21) nos diz que
[...] são os modos de existência que escapam das redes de saber-poder,
embaralhando os códigos de inteligibilidades e causam mal-estares
insuportáveis para os aficionados em identidades cristalizadas.
Liza: Então você está dizendo que ser travesti em Caruaru é ser vítima de dificuldades e
desrespeito!
Madonna: Com certeza!... Então ser travesti em Caruaru é ser autentica! Eu tenho várias
amigas que tentaram ser travesti e desistiram por causa disso! Por causa dos olhares... são as
indiretas... ser travesti aliás... ser gay em geral não é motivo de vergonha não! Agora você
tem que ter uma coisa... identidade própria acima de tudo e exigir seus direitos e também dar
respeito! Existem determinados casos em que é uma vergonha ser travesti... porque elas
escandalizam e se vulgarizam!!! Para eu me assumir e virar travesti mesmo... que foi quando
eu coloquei silicone... eu só fiz isso quando eu estava com a minha profissão! Eu disse... “a
partir de hoje eu posso ser o que eu sou”! Porque você sabe... você já viu em algum lugar um
travesti trabalhando no comércio? Nos hospitais? Em qualquer repartição?
13
Disponível em: <http://padom.com.br/policia-prende-travesti-em-caruaru-por-causa-de-roupa-curta/>. Acesso
em: 20 de Nov. de 2011.
61
Neste ponto Madonna parece reivindicar o seu direito a ter direitos, para isso é preciso
autenticidade, e respeito! As dificuldades em ser travesti em Caruaru parecem muitas e para
sustentar este ser travesti é preciso travar uma verdadeira batalha, a ponto de algumas não
conseguirem assumir o seu ser-travesti. Tal fato nos remete ao que Peres (2005, p. 56) afirma
sobre a indiferença que permeia a nossa cultura:
[...] que rouba o direito das pessoas em poderem expressar seus desejos e direitos,
tendo muitas vezes que viver de aparências, compondo uma imagem externa
visualizada como normal, e um mundo interno de horrores, culpabilizações e
sofrimentos.
Madonna nos diz ainda que só se assumiu após ter uma profissão. Será que neste ponto
ela chama a atenção para o fato do modo de ser travesti estar pautado na profissão? No status
profissional? Aqui lembramos de Gonzaguinha que nos fala da importância do trabalho: “Um
homem se humilha/ Se castram seu sonho/ Seu sonho é sua vida/ E vida é trabalho.../ E sem o
seu trabalho/ O homem não tem honra/ E sem a sua honra/ Se morre, se mata [...]”14
Liza: Não!
Madonna: Não existe! Pela escolaridade e também pelo preconceito! Você não vê uma
travesti em uma repartição pública! Há quantos e quantos anos não se elege uma travesti
vereadora? É um mundo muito resumido onde as pessoas não vêem que nós somos o que
somos... mas temos os mesmos direitos que os outros têm! A única coisa que mudamos foi a
nossa maneira de se vestir... o nosso ego por fora... mas que interiormente somos o mesmo ser
humano e devemos ter os mesmos direitos que todos têm! Eu só sou o que sou porque eu
tenho a minha profissão!!! Se fosse para eu viver trabalhando para os outros... eu acho que eu
não seria o que eu sou!
Liza: Você não seria travesti?
Madonna: Não! Até porque você iria ter que penar pelo resto da vida e sofrer preconceitos!
Mais uma vez ela nos fala da sua profissão como pilar de sustentação da sua
travestilidade. Entretanto, parece que quando Madonna fala de profissão, ela nos faz pensar
que, para uma travesti, as profissões tem que ser autônomas, sem que haja dependência por
parte delas, uma vez que ela diz: “Se fosse para eu viver trabalhando para os outros... eu acho
que eu não seria o que eu sou!”. E mais, a escolha da profissão está perpassada também pelo
14
Disponível em: <http://letras.terra.com.br/gonzaguinha/250255/>. Acesso em: 02 de Nov. de 2011.
62
grau de escolaridade das travestis que infelizmente, às vezes, nem freqüenta a escola como
afirma Carvalho (2005, p. 1) ao falar do grau de escolaridade das travestis em Curitiba,
lançando mão de dados obtidos através de pesquisa realizada pelo Grupo Esperança15:
[...] revela que a grande maioria (83%), é ou foi profissional do sexo. Outras
ocupações mencionadas são: cabeleireiras, cozinheira, auxiliar de produção,
estudante, recepcionista e maquiadora; destacamos que tais atividades são aquelas
atribuídas socialmente às mulheres, historicamente menos valorizadas e
remuneradas. Entre as profissões desejadas pelas travestis encontram-se: médica,
professora, administradora de empresa, enfermeira, estilista, etc; Apenas (2,13%)
gostariam de ser profissional do sexo. Quanto a escolaridade, das 94 sujeitos
entrevistadas, apenas 5 contaram ter completado o ensino superior, esse dado mostra
que uma parcela muito pequena consegue concluir uma graduação, e que
possibilitaria realizar o sonho de ser médica ou enfermeira.
Liza: E seria um sofrimento você não se assumir?
Madonna: Desde criança eu sempre me identifiquei! Pintava unha... me vestia de mulher...
colocava hidratante no corpo! Foi uma coisa que veio desde a infância! Tenho uma amiga que
diz assim... você deveria ser quem tu és... sem ser travesti! "NÃO!!! Porque eu decidi assim!!!
Quem me aceitar e me quiser me aceite como eu sou!!! Quando eu fui colocar meu silicone...
duas clientes se afastaram do meu salão... disseram que seria algo além da expectativa delas!!
Eu disse.. isso é um problema de vocês! Vocês têm que ver a questão do meu
profissionalismo e não a minha opção sexual! Quando é que eu faltei com respeito a alguma
de vocês? Eu exijo meu direito e meu respeito!
Madonna repete veementemente “sou o que sou!” e revela a aspereza com que é
tratada por algumas pessoas que questionam o seu ser-travesti, estaria aqui expressa a
violência velada à qual as travestis em Caruaru enfrentam e a negação da visibilidade do seu
modo de ser? O direito que Madonna reivindica é verdadeiro, afinal o que percebemos
cotidianamente é o desrespeito ao modo de ser das travestis como foi evidenciado na fala da
sua própria cliente: “você deveria ser quem tu és... sem ser travesti!”. O direito exigido por ela
é legitimado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todas as pessoas nascem
livres e iguais em dignidade e direitos.” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS, 1948). Referindo-me, agora à violência, esta parece descortinar-se como
fenômeno da “violência social”, que surge como um processo de invisibilização sofrido pelas
15
O Grupo Esperança é uma Organização Não Governamental, fundada em 18 de fevereiro de 1994. cuja
missão é trabalhar pela integração na sociedade de pessoas excluídas e em situação de vulnerabilidade social em especial as travestis.Tem atividades voltadas aos direitos humanos, cidadania, assistência e prevenção das
DSTs/HIV/Aids. Desenvolve cursos de capacitação profissional na busca de renda alternativa como cursos de
corte e costura e artesanato. (GRUPO ESPERANÇA, 2005 apud Carvalho, 2006 p. 7)
63
travestis, se expandindo no ambiente cotidiano sorrateiramente, de forma que muitas vezes
nem é considerada como uma ação violenta (SEFFNER, 2004 apud PERES, 2005). Este
fenômenno parece ser evidenciado na fala da amiga de Madonna e também na sua relação
com as suas clientes.
Liza: Aqui em Caruaru você acha que as travestis trabalham mais em quê especificamente?
Madonna: Para ser sincera... não só em Caruaru... mas em todo o Brasil... de 100% eu
classificaria 80% na vida de prostituição!!!
Liza: E por que isso acontece?
Madonna: Por falta de oportunidade... e às vezes por comodismo... por ser uma vida fácil!!!
E isso acontece não só aqui em Caruaru... mas em todos os lugares! Se você procurar travesti
trabalhando... é um número mínimo!! Agora... travesti fazendo prostituição é o que mais
tem.!!! E infelizmente as prostitutas quando fazem prostituição... elas são capazes de tudo!
Liza: Como assim?
Madonna: É um mundo fácil!! Elas roubam... usam drogas... quantas saem do Brasil... outras
vão e lá mesmo ficam! Eu tenho duas amigas que não tenho mais notícia delas! Não sabemos
se estão vivas ou mortas!! E teve outra que foi agora para São Paulo e voltou no mês de
junho! Em três meses ela colocou prótese... botou silicone no peito... voltou "montada!"
Então... assim... infelizmente é um mundo muito fácil!... Digo fácil em termo de dinheiro! É
um mundo que eu jamais queria para mim!!!
Parece que Madonna não considera a prostituição como profissão, salientando apenas
suas facilidades. Estaria aqui explicitado o preconceito que Madonna sente com relação a esta
atividade? Para Nascimento; Pires; Santos (2009) o ato de prostituir-se é muito antigo e
mesmo assim ainda é carregado de estereótipos e preconceitos.
Carvalho (2006, p. 1)
acrescenta que “o preconceito torna a prostituição uma solução imediata e rápida”, em alguns
momentos ela constitui além de um lugar de trabalho, também o local onde as travestis
mantêm intensas ou únicas relações sociais, é lá nas esquinas que se apropriam ainda mais do
feminino (BENEDETTI, 2005), Sendo assim, o preconceito mostrado por Madonna parece
partir de uma construção cultural, onde existe uma determinação dos padrões de normalidade
e anormalidade (ANTUNES, 2010). No caso da prostituição, esta ocupa um lugar dicotômico,
visto que ao mesmo tempo que é recriminada também é mantida, uma vez que existe uma
procura pela profissional do sexo.
64
Liza: Você sempre trabalhou como cabeleireira?
Madonna: Antes de ser cabeleireira... eu fui professora! Até então... eu não era travesti!
Liza: Você trabalhava com educação infantil?
Madonna: Sim! E depois de dois anos... terceira e quarta séries...onde trabalhei pelo
Estado!
Liza: Por que não continuou?
Madonna: Porque quando eu optei por ser travesti eu tive que sair do trabalho!!! Foi quando
eu comecei a trabalhar num salão... na profissão de cabeleireira! A partir daí eu comecei já a
mudança!!
Liza: Mas... quando você era professora... você já se percebia?
Madonna: Já! Mas eu não podia ser como eu sou hoje!!! Embora eu sempre gostei de usar
bolsas... de pintar a unha... eu sempre fui muito vaidosa!!! Eu me tornei travesti a partir do dia
em que eu coloquei meu silicone... com 21 anos!!!
Mais uma vez Madonna se reporta à importância da sua profissão em seu processo de
mudança, apontando que enquanto era professora não havia possibilidade de ser-travesti,
estaria exposta aqui o preconceito e discriminação no contexto escolar?
Liza: Para ser travesti é preciso usar silicone?
Madonna: Eu considero ser travesti como você ter silicone ou tomar hormônios!!! São os
hormônios femininos... que com o passar do tempo... vão tirando os formatos masculinos e
vão acrescentando formatos femininos!!!
Madonna atribui o ser-travesti ao fato das mudanças corporais possibilitadas pelo
implante de silicone e uso de hormônios. Anteriormente ela nos disse que já lançava mão de
acessórios femininos e vestia-se de mulher; será que ela quer dizer que o ser-travesti está
ligado à concretização do feminino corporalmente? Nessa direção Silva (2007, p.154, aspas
do autor) versa que:
[...] a veleidade de ver no próprio corpo uma roupa que a natureza quis inadequada
para, dependendo de quem emita o discurso, „sua alma‟, sua „cabeça‟, „o jeito que
me sinto melhor‟. A singela pergunta „com que roupa?‟ se adensa e se torna
dramática, quando traduzida para o seu aprofundamento lógico „com que corpo?‟
[...].
65
O posicionamento assumido por Madonna frente ao feminilizar-se através do uso de
hormônio e silicone, nos remete também ao que Pelúcio (2009) nomeia como “cuidar-se”,
este se caracteriza como aproximar-se o máximo possível do corpo de mulher, bem como dos
seus comportamentos.
Liza: Você toma hormônios?
Madonna: Já tomei!... hoje não tomo mais! Eu parei de tomar e coloquei o silicone porque é
um processo muito lento! Mas... independente disso... eu sou o que eu sou!!! Se eu nascesse
de novo... eu queria vir travesti novamente!!! Até porque o preconceito não só existe em
relação aos homossexuais em si... mas o preconceito ele existe em relação a tudo! Preto...
branco... novo... velho... gordo... magro... então... o preconceito ele existe em relação a tudo!
Como nós estamos em pleno século XXI... as coisas estão mudando... e hoje em dia nós temos
direitos que antes nós não tínhamos!!! Então o mundo está se globalizando... as pessoas estão
ficando com a mente mais aberta... quem sabe daqui há cinco ou dez anos... porque se formos
comparar o hoje com o antigamente... já evoluímos bastante!!! Daqui para frente tudo pode
evoluir mais!
Madonna estaria sinalizando um possível cenário de mudança em nosso país, no que
tange à travestilidade? A este respeito Silva (2007, p. 187) sugere que:
O que há de novo é a circulação desse personagens em intensa relação com a
sociedade abrangente. O travesti hoje no Brasil tem uma inscrição popular e social
como um ator reconhecido e com o qual os circunstantes mantêm relações
cotidianas, absorvendo, inclusive, seus valores e linguagem. Isso é novo. Isso reverte
o quadro histórico. Social e solar, o travesti continua a falar de nós todos, mas,
sobretudo, a falar com todos nós.
Concordamos com Silva (2007), sobretudo se tomarmos em consideração a situação
das travestis na década de 1970 e 1980, como nos contam algumas travestis que foram
entrevistadas pelo Programa Conexão Repórter16, e acrescentamos que apesar das mudanças
com relação ao lugar da travesti socialmente, ainda será necessário inúmeras mudanças,
sobretudo no que tange às políticas públicas e sociais, a diminuição da violência, o
reconhecimento da cidadania e da dignidade para o segmento.
Liza: Você acha que tem mais algum sentido em ser travesti em Caruaru?
16
Programa Conexão Repórter exibido no dia 17 de agosto de 2011 na rede de televisiva SBT.
66
Madonna: Aqui não!... viu?!! Aqui os serviços são mínimos!
Liza: E violência você acha que existe?
Madonna: Demais!!... Demais!!... principalmente em relação a quem faz da sua vida uma
prostituição! Porque você está aberta a sair com qualquer pessoa... sem conhecer a índole das
pessoas...então tudo pode acontecer! A violência é muito grande!
Madonna nos fala da violência proveniente da prostituição, no entanto ela parece não
se dar conta que os fatos que narrou anteriormente, como por exemplo, quando foi proibida de
ir ao banheiro feminino ou quando a sua cliente diz que ela deveria ser quem ela é, mas sem
ser travesti, também são formas de violência. Aqui expressa-se como narra Bourdieu (2001,
apud ABRAMOVAY, 2002, p. 16) a violência simbólica que “se realiza sem que seja
percebida como violência, inclusive por quem é por ela vitimizada, pois se insere em tramas
de relações de poder naturalizadas”.
Liza: Tem diferença entre o tratamento da sociedade para com as travestis que trabalham em
outras profissões e com aquelas que trabalham especificamente com a prostituição?
Madonna: Com certeza!!! É como eu sempre digo... uma coisa que eu demorei a fazer foi
meu nome como profissional! Então é uma coisa que eu preso por ele!! Eu tenho minha
profissão! Me mantenho! E se for olhar em relação às outras colegas... querendo ou não!...
elas estão denegrindo a nossa imagem!!! Porque na verdade ao ver uma travesti... as pessoas
já partem para o lado de prostituição... de fazer programa! O povo não vê que independente de
ser travesti... você pode ter uma profissão!!! Você não deixa de ser uma profissional!!! Com
relação ao tratamento... pelo menos comigo é bem diferente! Eu tenho uma cliente que ela já
disse que se pudesse... na casa dela seriam todos travesti!
Nesse depoimento de Madonna aparece mais uma vez o seu não reconhecimento da
prostituição enquanto profissão, e ainda a generalização que existe da profissão das travestis,
como se todas trabalhassem nesse ramo. Será que aqui Madonna tenta estabelecer uma linha
de separação entre as travestis que trabalham como profissionais do sexo e as outras que
exercem outras profissões? Será que aqui Madonna tenta expor que o ser-travesti, por vezes
parece encobrir a humanidade do ser que se travesti, e ainda retirando-lhe as possibilidades de
existência fora da prostituição?
Liza: Por quê?
67
Madonna: Porque ela disse que o trabalho é outra qualidade! As travestis procuram zelar
melhor pelas coisas dela... fazem as coisas com amor... são detalhistas em tudo o que fazem!!!
Eu particularmente... não dou meu lugar para ninguém!!! Eu procuro fazer o melhor que eu
posso fazer! Gosto de prezar por aquilo que eu faço se é pra fazer... então fazer bem!!!
Liza: E em relação à família?
Madonna: Surgiu o comentário que eu era homossexual! A minha mãe dizia que preferia ter
um filho ladrão do que saber que o filho dela era homossexual!!! Quando contei a ela... disse
duas coisas... que eu nunca envergonhasse a família e nunca me vestisse de mulher! Aí eu
pensei... "meu Deus!... e agora?!"... se era o que eu mais queria! A gente nunca vira travesti
do dia para a noite! Você começa usando coisas femininas... depois você termina se montando
por completa! Eu sou de outra cidade e vim morar aqui em Caruaru... foi aqui que eu comecei
a fazer aquela mudança!!! A minha família no começo não aceitava e alguns diziam que eu
era a vergonha da família!!! E... eu disse sempre o seguinte... eu vou mostrar à minha família
que independente de eu ser o que eu sou... eu vou passar por cima de trancos e barrancos!
Hoje em dia se você conversar com a minha mãe... ela vai dizer que antes fôssemos os três
filhos homossexuais!!! Porque nem todos os meus outros irmãos conquistaram o espaço que
eu conquistei!!! Eu sou a única pessoa que se preocupa com ela... que tem cuidado!!! Ela
hoje... sempre diz que eu sou o orgulho da família!!!
A narrativa de Madonna nos leva a pensar sobre a questão das relações familiares no
contexto da travestilidade. Será que ela revela que rejeição e afetividade parecem se misturar
na descoberta da travestilidade por parte da família? O documentário Memorial Travestis e
Trans de BH mostra algumas travestis que como Madonna aos poucos se revelaram
homossexuais e depois travestis. A mãe de Priscila em uma cena diz: “Eu ainda não tive na
cabeça que ele agora é a minha Priscila, mas continua sendo o meu Gustavo!” Priscila: “E
nem quer tirar, né?”. Nos chama atenção também o fato da mãe de Madonna desejar que ela
não envergonhe a família e não se vista de mulher, estaria revelado aqui algumas questões de
gênero? É sabido que o lugar ocupado pela mulher na sociedade foi sempre subalterno e
inferiorizado, então a travesti traz em si o feminino, logo também é vítima da nossa cultura
machista, e uma das formas de tratá-la é chamando de “mulherzinha”, categorizando e
também na tentativa de diminuí-la. (MEDRADO et al., 2008). Outro ponto importe que
Madonna traz à tona é a descoberta da travestilidade que parece ocorrer como um ritual de
passagem, onde ela começa a utilizando “coisas de mulher” e depois se monta por completo,
68
materializando em seu próprio corpo o desejo da feminilidade, este aspecto da travestilidade
nos faz lembrar do que diz Pelúcio (2009, p. 227, grifos da autora):
Uma interioridade que precisa ser externalizada na materialidade do corpo,
compondo uma totalidade, que faz do corpo sexualizado o lucus da produção de uma
identidade que, mesmo flúida, se alicerça num sistema simbólico no qual as
representações de gênero, sexualidade e corporalidade são categorias estruturantes e
mutuamente referentes. Um gênero que pode ser transformado a fim de adequar o
desejo – e, assim, a sexualidade – valores morais que fixam papéis e prescrevem
comportamentos cabíveis ao feminino.
Liza: Tem alguma coisa boa em ser travesti em Caruaru?
Madonna: Eu gosto de ser travesti porque... tem homens que quando a gente chega num
lugar... se identificam melhor com você! Se for analisar assim... a coisa boa em ser travesti
porque... aparentemente você é o que você é... não tem como negar! As pessoas que se
envolverem com você... estão se envolvendo sabendo com quem estão se envolvendo! O
único problema é quando eles se envolvem com a gente pensando eles que somos mulheres...
e depois terminam descobrindo que nós não somos... como já aconteceu várias vezes comigo!
Mas a gente quebra esse tabu! (risos!)
Liza: E dá a volta por cima!
Madonna: Com certeza! Eu mesma... aqui e onde for... eu sou o que eu sou e acabou!
Independente se as pessoas gostam ou não! Eu digo... “quem paga minhas contas sou eu!...
então pronto!” Eu tenho que ser aquilo que eu gosto!!! Eu gosto de ser travesti!!! Infelizmente
o preconceito existe muito em Caruaru e pior é nos interiores menores que Caruaru!
Madonna estaria apontando aqui as dificuldades em ser-travesti em Caruaru? Estariam
expressas aqui algumas questões de gênero, bem como da construção da cultura machista e
patriarcal? Durante muito tempo, e por que não até os dias atuais, os modos de ser feminino e
masculino estiveram postos, e o que é ou são “coisas de meninas e de meninos” dados como
sendo fixos permanentes; desse modo apontam que as mulheres por sua vez nasceram para
cuidar dos filhos e do contexto doméstico, privado, enquanto os homens saíam para trabalhar
e cultivar a terra, no domínio público. Sendo assim, “[...] o triunfo do patriarcado não foi nem
um acaso, nem o resultado de uma revolução violenta: desde a origem da humanidade, seu
privilégio biológico permitiu aos homens se afirmarem como sujeitos soberanos
(BEAUVOIR, 1976 apud FÁVERO, 2010 p.50). Dito isso, é possível perceber então que o
reforço do patriarcado acontece por meio do machismo que busca veementemente a
supremacia do homem em detrimento da mulher. No caso das travestis isso se torna mais
69
grave para a sociedade, pois é como se ela abrisse mão do privilégio de ser homem, para ser
mulher.
Liza: Ok Madonna, muito obrigada pela entrevista! Você colaborou muito com minha
pesquisa!
70
5
COSTURANDO SENTIDOS DE SER-TRAVESTI EM CARUARU-PE
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
(LISPECTOR, 1977)
Durante esse percurso na busca dos sentidos possíveis de ser-travesti em Caruaru-PE
me deparei com uma realidade inimaginável vivenciada por essas pessoas, que não apenas
respigou em mim, mas deixou-me tatuada por suas histórias e experiências de vida. E agora
sem saber o que fazer com todas essas histórias que se revelaram de forma tão intensa, penso
que seria o tempo de me distanciar, mas depois retomo e percebo que ao contrário, é
impossível um afastamento uma vez que elas já estão comigo e em mim.
Estar envolvida com a temática de gênero e das sexualidades foi importante por
possibilitar uma maior reflexão acerca do quanto a nossa cultura machista e heteronormativa
colabora com a proliferação da discriminação, do preconceito e da violência, e também o
quanto muitas vezes estes fatos acontecem de maneira velada a ponto de não nos darmos
conta, que também contribuímos para que eles aconteçam. Desse modo ao inclinar-me em
direção as travestis em Caruaru pude percebê-las de um outro lugar, ampliando o meu olhar,
que por também compor a sociedade, em alguns momentos da minha vida pode ter sido
enviesado.
Afirmo que no caminho percorrido para a construção desse estudo, pensei por vezes
em desistir, no entanto quando me reportava à realidade das travestis em Caruaru, ela me
impulsionava a dar continuidade mesmo com dificuldades. Lagrimas e sorrisos de misturaram
nos contornos dessa construção, onde me vi mergulhada numa dura realidade, que me fez
querer fugir, esconder, desaparecer, mas assim como as travestis se vêem impelidas na
realização dos seus desejos, me vejo sendo convocada a retomar o meu objetivo que é
compreender os sentidos possíveis de ser travesti em Caruaru, por meio da questão
provocadora, quais os sentidos possíveis de ser-travesti em Caruaru-PE?
Ao começar esse capítulo utilizei a frase “Porque há o direito ao grito.
então eu grito” (LISPECTOR, 1977, p. 33), parece que a travesti em Caruaru lança mão desse
direito de gritar muitas vezes, a fim de clamar pelo reconhecimento dos seus direitos
mínimos, educação, saúde e dignidade, mas esta voz é constantemente silenciada, de forma
velada ou até mesmo brutalmente com
torturas e com a morte. Trago então algumas
narrativas de Rihanna onde ela relata que foi vítima de violência durante toda a sua vida e que
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parece continuar sendo, violências estas que são provenientes da sua família, escola, polícia e
da sociedade. Em sua narrativa Rihanna afirma:
Rihanna: Então foi pela rejeição da minha família que eu fui mudando!!! E terminei
sendo uma andrógina... porque hoje eu não sou nem uma travesti... nem tão gay...
sou uma coisa que as pessoas ficam na dúvida!
Rihanna: [...] É!... não me agrado!... eu fico triste e frustada!!! Não consigo!!! Eu
descobri a minha homossexualidade muito cedo e com onze anos de idade a minha
mãe me botou para fora de casa!!!
Rihanna: Por mais que você seja bonita... termina você sendo motivo de chacota!!
Ser uma travesti em Caruaru é isso!!!
Nesta narrativa desvela-se o fenômeno da violência advinda da família de Rihanna, o
que parece lhe causar grande sofrimento, uma vez que é impossibilitada de ser-travesti,
vivendo no entre, no não-lugar. A chacota apontada por ela também configura-se como
violência, a saber violência moral que é considerada como a “ação destinada a caluniar,
difamar ou injuriar a honra ou a reputação de uma pessoa” (MEDRADO et al, 2008). E nesse
contexto trago, também, as narrativas de Lady Gaga. Madonna e Rihanna:
Madonna: Então ser travesti em Caruaru é muito difícil porque as pessoas não lhe
respeitam... elas olham para você com um olhar assim... como se você fosse um ser
muito difícil... um ser estranho... um ser abominável na face da Terra!!!
Lady Gaga: O sentido de você ser uma travesti em Caruaru é ser motivo de
agressão!!
Rihanna: [...] até aqueles que quando estão sozinhos procuram a gente... quando
estão com amigos... para dar uma de gostosão tiram piada!!! Quando está sozinho é
um amor!!!
As sujeitos/narradoras revelam que ser-travesti em Caruaru é enfrentar dificuldades,
apontando o desrespeito, a estranheza e agressão com que são tratadas. A sociedade
caruaruense parece tentar tamponar a presença não apenas das travestis profissionais do sexo,
mas das que ocupam outras profissões como no caso de Madonna que é cabeleireira e também
sente-se vítima de preconceitos e estereótipos provenientes da sociedade. Parece que essas
situações trazem em seu bojo, algumas questões culturais que são estabelecidas, como a
naturalização e a patologização do gênero, ou seja, tudo o que escapa ao modelo
heterossexual hegemônico é relegado. Nesse sentido concordamos com o que diz Rios (2009,
p. 76):
A naturalização da heterossexualidade acaba por distinguir, restringir, excluir ou
preferir, com a conseqüente anulação ou lesão, o reconhecimento, o gozo ou o
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exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais de tantos quantos não se
amoldem ao parâmetro heterossexista.
Chama-nos a atenção ainda ,quando Rihanna nos fala do comportamento dos seus
clientes, que as procuram a noite, no entanto quando estão em outros espaços agem de forma
grosseira e preconceituosa, estariam eles tentando adapta-se ao modelo heterossexista?
Percebemos então que a cultura heterossexista em Caruaru conduz também a outras práticas
sociais de violação de direitos, como a negação do direito à educação consequentemente do
trabalho, o que percebemos na fala de Rihanna e Lady Gaga:
Lady Gaga: Até porque nas escolas de Caruaru... quando eles sabem que existe um
homossexual... ou um traveco eles procuram agredir mais ainda!!! As
“travecazinhas” aqui da nossa cidade são muito humilhadas e existe muito bullying
contra elas!!!
Rihanna: Eu estudei até a quarta série!!! Porque os piores momentos para mim na
escola... eram dois!... era quando eu chegava e tinha que cantar o hino antes de
entrar... então eu era motivo de brincadeirinha de empurra empura... de imitação... e
eu não gostava!!! E o outro era na hora do recreio!... Eu acho que eu corria mais do
que todo mundo!!! Os meninos sempre passavam e me davam tapas e chutes... ou
então eu estava com a minha merenda e eles metiam o dedo dentro da sopa e
perguntavam se estava gostoso!!!
Vemos que o bullying aparece na fala de ambas mostrando o quanto a escola colabora
com a perpetuação de preconceitos, discriminação e violência em Caruaru, o que parece
conduzir as travestis à situação de humilhação e sofrimento. Entre as três travestis
entrevistadas, apenas Madonna concluiu o ensino médio, tendo sido professora e depois
tornado-se cabeleireira para poder, segundo ela, assumir-se enquanto travesti. Lady Gaga e
Rihanna recorreram a prostituição como meio de sobrevivência. Compartilhamos do que nos
diz Carvalho (2006, p. 1, aspas da autora) “É no escuro da „noite‟ que maioria dessas
batalhadoras, ganha o seu „dia‟, o preconceito torna a prostituição uma solução imediata e
rápida”. Percebemos então que o preconceito e a discriminação no contexto escolar restringe
os direitos básicos de gays, lésbicas e bissexuais, entretanto as travestis “[...] ao construírem
seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, não podem passar incógnitas. Por isso,
não raro, ficam sujeitas às piores formas de desprezo, abuso e violência” (JUNQUEIRA,
2009, p. 33).
Diante do exposto e também de outras leituras (BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2009;
PERES, 2005) e considerando o que surgiu nessa pesquisa percebi que grande parte das
travestis encontram-se inseridas socialmente de maneira precária e marginal, neste caso na
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prostituição (MARTINS, 1997). Não pela atividade em si, afinal Rihanna e Lady Gaga
afirmam que conseguiram dignidade através da prostituição:
Rihanna: [...] eu optei em ir para fora... para Recife... onde me joguei na avenida e
comecei a me prostituir e vi que na prostituição eu tinha uma vida digna... dormia na
hora que queria... comia o que queria... e comprava a roupa que queria!!! Então você
tinha uma VIDA!!! Não aquela vida que as pessoas dizem... „quem está numa
esquina é safado!‟ NÃO!!! A gente está na esquina porque precisa!!!
Lady Gaga: [...] Não importa o que elas digam!! Mas sim o que eu sou... o que eu
faço!!! Eu sou uma pessoa digna!... Eu fui prostituta de avenida... vendi uma coisa
que era minha... nunca peguei nada de ninguém...
A prostituição torna-se então uma forma de inclusão precária e marginal pela negação
da possibilidade de escolha e pelos riscos aos quais estão constantemente submetidas, a saber,
violências, IST‟s (Infecções Sexualmente Transmissíveis), uso abusivo de drogas, além da
montagem dos seus corpos que precisam estar impecáveis, pois além do desejo da
feminilidade existe também o fato de ser o seu instrumento de trabalho. A este respeito
Rihanna narra a primeira vez que colocou silicone por imposição da cafetina:
Rihanna: Para eu ficar na casa da Marjorie que foi a cafetina que me „bombou‟ uma
norma da casa dela foi essa... ter que colocar silicone!!! E como eu sair daqui sem
conhecer ninguém só conhecia ela por telefone! Eu não tive outra opção.
Neste acaso parece que ser-travesti em Caruaru, está ligado aos modos de construção
corporal, afinal Madonna e Rihanna afirmam que os hormônios e o silicone são peças
fundamentais para travestilização:
Rihanna: [...] então para você ser uma travesti você tem que colocar silicone...
então se você não colocar silicone você não é uma travesti!!! Elas tomam
hormônio... aplicam silicone!!!
Madonna: Eu considero ser travesti como você ter silicone ou tomar hormônios!!!
São os hormônios femininos... que com o passar do tempo... vão tirando os formatos
masculinos e vão acrescentando formatos femininos!!!
Percebemos que tais métodos podem comprometer a saúde das travestis, uma vez que
na busca pelo feminilizar-se, recorrem à utilização de hormônio sem orientação médica e
aplicação de silicone industrial, que acontece de maneira artesanal pela “bombadeira”, visto
que na maioria das vezes não possuem condições financeiras para colocar a prótese numa
clínica ou hospital. Chama-nos a atenção o desejo expresso pelas travestis em buscar o
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feminino, ao ponto destes riscos se tornarem mínimos diante da possibilidade de se travestir, e
ter um corpo adequado ao seu modo subjetivo de ser.
Quanto ao risco do uso abusivo de drogas, este parece está ligado ao suportar a
prostituição, como nos diz Rihanna:
Rihanna: [...] Me envolvi com drogas sim... porque quando chegava na rua eu
nunca entrava num carro lúcido... NUNCA!!! Porque eu tinha vergonha!... então
para me soltar eu bebia e me drogava! Eu gastei muito!!!
A prostituição apesar de ser uma antiga atividade, ainda é atravessa por moralismo e
preconceitos, nesse sentido o ter vergonha expresso por Rihanna, parece estar ligado a este
fato.
Na narrativa das sujeitos/narradoras foi desvelado também algumas contradições do
gênero das travestis, como podemos perceber no depoimento de Rihanna:
Rihanna: [...] Então de dez programas... oito você transa com o cliente fazendo o
papel de homem e dois você faz o papel de mulher! Lá fora eu saia com os clientes...
fazendo mais o papel de homem do que de mulher!!
Rihanna parece explicitar aqui uma divisão entre o que é próprio do papel sexual
masculino e feminino. Estariam expressas aqui algumas contradições do gênero das travestis?
É importante lembrar que a travesti transita entre feminino e masculino como nos diz
Benedetti (2005, p. 131) “Elas demonstram, por meio de suas práticas e dos significados
atribuídos ao masculino e ao feminino, as características culturais dos processos de fabricação
e construção do gênero dos sujeitos.”
Envolvida nesse universo das travestis percebo a infinidade das possibilidades de ser
dessas pessoas, sendo assim me deparo novamente com a questão provocadora: quais os
sentidos possíveis de ser-travesti em Caruaru-PE? Através do desvelar dos sentidos percebo
que o ser-travesti em Caruaru é cerceado por preconceitos, estereótipos, discriminação que
direcionam as atitudes violentas contras as mesmas dentro da própria família, na sociedade e
na escola e também é perpassado pela busca do corpo feminino e pelas questões de gênero.
Todos esses fenômenos provocaram em mim questionamentos mediante a experiência
com as travestis em Caruaru-PE, o que é preciso para promover bem-estar e qualidade de vida
dessas pessoas, que estão imersas numa situação de constante violação de direitos? Como a
escola em parceira com a família, enquanto instituições educativas e de socialização podem
contribuir para a formação de estratégias de combate à homolesbotransfobia?
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Aqui me lembro do Programa Brasil sem Homofobia (BRASIL, 2004) que existe no
país desde o ano de 2004, e a partir dele surgiram outras políticas voltadas para a comunidade
LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), no entanto chama a atenção na
cidade de Caruaru-PE a escassez de dados sobre a efetivação de políticas públicas e sociais
para este seguimento da população, lembrando que na cidade existem apenas o COAS (Centro
de Orientação e Apoio Sorológico), que trabalha no sentido de prevenir as IST‟s e o Centro de
Saúde Amélia Pontes, que atende as pessoas que já possuem as IST‟s, ambos tem a atenção
voltada não apenas para o público LGBTT, mas para a comunidade em geral. A cidade conta
também com dois grupos de resistência que atualmente tem se articulado melhor e já produz
alguma visibilidade da comunidade LGBTT, através da parada gay e este ano promovendo a I
Conferência Regional Agreste LGBT. Diante dessa problemática explicitada surge o
questionamento: Como os movimentos representativos da comunidade LGBTT, tem
trabalhado para que haja de fato a efetivação de políticas públicas para a categoria em
Caruaru?
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APÊNDICES
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu,____________________________________________________________________, R.G:
______________, declaro, por meio deste termo, que concordei em ser entrevistado na
pesquisa de campo intitulada “Com que roupa eu vou? Vestindo sentidos de ser-travesti em
Caruaru-PE” desenvolvida como exigência da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso II
do curso de Psicologia na Faculdade do Vale do Ipojuca, orientado pela Mestra Suely Emilia
de Barros Santos.
Afirmo que aceitei participar por minha própria vontade, sem receber qualquer
incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o desenvolvimento da
pesquisa. Tenho conhecimento dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em
linhas gerais, é compreender os sentidos possíveis de ser travesti na cidade de Caruaru-PE
Fui esclarecido de que os usos das informações por mim oferecidas estão submetidos
às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, do Comitê de Ética em
Pesquisa da Faculdade do Vale do Ipojuca. Fui informado ainda que a pesquisa não envolve
riscos à minha integridade física ou mental, nem constrangimentos de qualquer ordem, e de
que posso me retirar desse estudo a qualquer momento, sem prejuízos ou sanções. Sei que
tenho o direito de determinar que sejam excluídas do material da pesquisa informações que já
tenham sido dadas.
Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de entrevista aberta, a ser
áudio-gravado a partir da assinatura desta autorização. O acesso e a análise dos dados
coletados se farão apenas pelos (as) alunos(as) e professoras vinculados (as) ao presente
estudo.
Estou ciente ainda de que, caso eu tenha dúvida ou me sinta prejudicado, poderei
contatar as pesquisadoras responsáveis a qualquer momento que julgar necessário, ou ainda o
Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade do Vale do Ipojuca. Sei que posso encontrá-los(as)
no seguinte endereço Av. Adjair da Silva Casé, 800 Indianópolis CEP:55024-901 Caruaru/PE
e que o telefone é: (81) 37238080.
O(a) pesquisador(a) me ofertou uma cópia assinada deste Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, conforme recomendações do Comitê de Ética em Pesquisa.
Caruaru, ____ de _________________ de _____
Assinatura do participante:_________________________________________________
Assinatura do(a) responsável: ______________________________________________
Assinatura do(a) pesquisador(a):____________________________________________
Assinatura da testemunha: _________________________________________________
Assinatura da testemunha: _________________________________________________
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