Já que estava no contrato
Ela me enchia a paciência pela décima quarta vez em menos de quatorze
minutos. Dizia que era totalmente contra a Copa do Mundo no Brasil, e gritava
que as obras estavam todas atrasadas, ficando vermelha de raiva a cada vez
que o fazia. Eu não tinha escapatória, me via sempre no meio do falatório
inacabável daquela mulher que um dia fora a que eu amei.
Havia papeis espalhados por toda a parte em minha mesa sempre
bagunçada, porque eu nunca fui mesmo muito organizado e, depois de ter me
tornado jornalista, a contragosto de meu pai e de todos os políticos do mundo,
a coisa piorou ainda mais, a tal ponto de eu não saber mais onde começava a
tela do computador e onde terminava a conta de luz que ainda não fora paga.
Nesse olho de furacão no qual me perdia cada vez mais, minha mulher
continuava falando, falando, às vezes parecia que falava por séculos a fio,
ininterruptamente, só parando mesmo pra retocar o batom.
Estava sufocado. Precisava sair pra clarear as idéias naquele fim de tarde
cuja última luz crepuscular reluzia nas janelas do prédio vermelho, tudo muito
poético, pois quando a gente se sente infeliz sai por aí dizendo este tipo de
abobrinha pitoresca, talvez querendo se passar por Balzac ou Guy de
Maupassant.
Anoitecia com rapidez e logo a madrugada viria me pegar pelo colarinho.
Entretanto agora só podia sentir o vento congelante nas esquinas do bar, as
conversas tolas pela noite de sábado, as cervejas sem glória em cima das
mesas amarelas, os risos e a embriaguez, e o maldito coffe cream sem álcool
nem nada de especial. As horas passando, os uísques rodando, não por mim,
as contas, os petiscos aromáticos, os carros sem chegar a lugar nenhum, os
desejos longe... Mas nada disso fazia sentido, nem deveria fazer, porque eu já
estava pra lá de ébrio. Não sei bem como conseguia pagar a conta e voltar
para casa.
Mas no domingo a situação voltava a ser exatamente a mesma. Minha
mulher acordava, fazia um café bem fraco, mais parecido com água da chuva
misturada à terra do quintal de casa. Em seguida principiava a reclamar
novamente. Senão da Copa, das Olimpíadas no Brasil. Ela sabia de cor quanto
ia custar cada obra, dava detalhes sobre que tipo de cimento imprestável iriam
usar para baratear as construções. Devia ser fiscal de obras ao invés de
manicure. Não desejava mais ouvi-la. Queria mandá-la pra um lugar bem
longe, sem passagem de volta. Ou então eu mesmo dar um jeito de escapulir
dalí.
Era por essas e outras que, àquela altura da manhã, eu ligava a TV e
assistia às corridas de fórmula 1, torcendo sempre pra quem estivesse na
frente, pois desse modo me privava da frustração de ver o piloto do meu país
perder mais uma vez. No meio de uma grande ultrapassagem na chuva minha
mulher, num rompante, aparecia na sala, desligava a TV e mandava-me assar
a carne do almoço. Não sem antes dar a sua finíssima opinião sobre a corrida
que estava ótima, até ela ter interrompido. “Esse paspalho vai ganhar de novo?
Pra mim aí tem coisa. Devem fazer maracutaia... como você ainda consegue
assistir a essa roubalheira?”.
“Tá bom, vou fazer uma matéria sobre isso”, era o que respondia para ela.
Esse era o método mais eficaz para fazê-la ficar quieta por um tempo. Ela tinha
pavor das minhas matérias. Achava que eu era um fracasso em termos de
jornalista. “Papai tinha razão. Devia ter me casado com um advogado”, repetia
sempre que eu chegava em casa anunciando ter sido despedido mais uma vez.
A primeira matéria que escrevi tinha esse nome: Obcesssssssssssão
apocalíptica. Escrito assim mesmo, com tantos esses (s) quanto possíveis, só
para tornar ainda mais obcecada a palavra. Era para uma revista científica
especializada em psicopatia. Na época era moda essa coisa de psicopata.
Tinha um monte deles estourando nos noticiários. Psicopata que mata criança
em escola, psicopata que mata filha e joga o corpo pela janela, tudo isso.
É claro que minha mulher não gostou nada quando leu. Caiu matando em
cima da matéria. Fez desabar um temporal de críticas a respeito. Saí ensopado
de reclamações e perdi 98% da minha confiança literária. Os 2% que sobraram
uso atualmente para escrever receitas de bolo na coluna culinária do jornal.
Ao entardecer de domingo, lembro-me de gostar de ver o futebol anos atrás.
Não hoje. Nunca mais ousei gritar gol quando aquela mulher está em casa.
Coisas terríveis acontecem. Objetos da cozinha passam a voar quando ela se
enfurece. A enxaqueca dela é desencadeada misteriosamente pelo
campeonato brasileiro de futebol. E piora muito com a liga americana de
basquete. Pode até virar um câncer se eu não levá-la ao shopping nesta linda
tarde de domingo perfeita para se fazer qualquer coisa do mundo exceto as
coisas que ela me pede.
Onde foi que eu errei, afinal? Por vezes penso que não posso seguir adiante
nesse sistema carcerá...digo, nesse casamento. O contrato matrimonial era
claro: ela devia fazer-me feliz na alegria e na tristeza, para todo o sempre. Caí
que nem um pato nessa lorota. Pego a certidão de óbi..., digo, de casamento, e
hesito em rasgá-lo. Mas então ouço pela porta dos fundos minha mulher se
esgoelando ao gritar com nosso vizinho, defendendendo como nunca a minha
honra depois dele ter dito que eu nunca arrumo a infiltração da parede. Apesar
de tudo, deve me amar ainda. Ela entra furiosa, despejando seus reclames
direto na pia do meu ouvido. Curiosamente, é exatamente nessas horas
quando ela fala demais e retoca o batom que eu a descubro como sendo
novamente a mulher que um dia eu amei.
Por Dick Granello
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Já que estava no contrato