GENEALOGIA MATEANA: POR QUÊ TAMAR, RAAB, RUTE E BETSABÉIA? NAO ERAM MULHERES? NAO ERAM “ANORMAIS”? Joel Antonio Ferreira INTRODUCÃO O Evangelho de Mateus parece que estava pronto pelos anos 80 d.C. Sendo uma comunidade proveniente do judaísmo e que escreve para judeus, quer proclamar a mensagem de que Jesus Cristo está vivo e presente na vida da comunidade cristã. Em 1,23 diz que “e o chamarão com o nome de Emanuel, que, traduzido, significa, “Deus está conosco”. Em 18,20 afirma que “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles”. Quase no final, em 28,20 mostra Jesus dizendo que “eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”. Dois temas são fortes neste Evangelho, para se entender a presença de Jesus na comunidade: o Reino dos Céus e a Justiça. Para apresentar esta Teologia, a escola Mateana preparou uma “Introdução” (Mt 1-2) e uma “Conclusão” (Mt 28,16-20) e, aí no meio, como se fosse um bolo de aniversário, colocou cinco livrinhos bem estruturados. Cada livrinho tem os relatos “práticos” da vida e ação de Jesus e as partes “teóricas” que são cinco sermões ou conferências faladas por Jesus. No primeiro livro (Mt 3-7), temos o Sermão da Montanha (5-7) No segundo livro (Mt 8-11,1) o Sermão Missionário (9,31-11,1) No terceiro livro (Mt 11,2-13,52) o Sermão das Parábolas (13,1-52) No quarto livro (Mt 13,53-18,35) o Sermão da Igreja (18,1-35) No quinto livro (Mt 19-25) o Sermão do Futuro do Reino (24-25) Depois disso, Mateus faz um enfeixamento (Mt 26-28) para relatar o sofrimento e a vitória de Jesus, o Cristo. Como o nosso objetivo não é estudar todo o Evangelho de Mateus, mas a compreensão da Genealogia (Mt 1,1-17) e, aí dentro, o por quê dele contemplar cinco mulheres, sendo que quatro não tinham boa fama, entraremos, subitamente, no nosso escopo. PARA ENTENDER AS QUATRO REFERÊNCIAS DE MATEUS A comunidade mateana tem um grande objetivo: mostrar que o ponto alto da história é atingido na pessoa de Jesus, porque ele é o Messias aguardado. Portanto, ele veio e pertence à família real de Davi, no ponto alto da historia. Como é que Mateus faz? As letras consoantes na língua hebraica têm, cada uma, um valor. As vogais não. Ele toma a palavra “DaViD” como pilastra predominante. A letra D tem o valor de quatro (aparece duas vezes). A letra V tem o valor de seis. Então, 4 mais 6 mais 4 = 14. O número 14 é o duplo de 7 que na Bíblia simboliza a plenitude do plano de Deus. Mateus diz em 3,17 que a historia é a somatória de três etapas de quatorze gerações. O ápice da historia é, de fato, Jesus. Como a comunidade mateana redigiu a genealogia final? De Abraão até David aparecem quatorze gerações (mais ou menos mil anos). De David até o cativeiro da Babilônia existiram mais quatorze gerações (quatrocentos anos). Do cativeiro até Jesus, o último bloco de quatorze (mais ou menos seiscentos anos). Então, fazendo uma elaboração teológica e literária, Mateus vem mostrar que em Jesus se realizaram as profecias e as esperanças humanas de libertação. Nele aconteceu a total plenitude em Deus (BOFF, 1972, p. 178-180). E agora? Como entender Mateus violando a jurisprudência israelita, inserindo, na fina flor da genealogia de Jesus, quatro mulheres que fugiam de qualquer esquema legalista judaico? “Tamar” foi explorada pelos filhos de Judá e teve um casal de gêmeos com ele; “Raab” era prostituta; “Betsabéia” foi obrigada a ser adúltera pelo rei Davi. “Rute” era estrangeira pagã. EIS OS TEXTOS ( Mt 1, 3.5.6) v. 3ª: Judá gerou Farés e Zara, de “Tamar”... v. 5ª : Salmon gerou Boás, de “Raab”, Boás gerou Obede, de “Rute”... v. 6: Jessé gerou o rei Davi. Davi gerou Salomão, daquela que foi “mulher” de Urias. COMENTANDO OS TEXTOS O (a) leitor (a) precisa ter uma atitude de quem, de fato, está embasbacado com a postura da comunidade de Mateus. Este coloca cinco mulheres na genealogia de Jesus, sendo que a última é Maria, a mãe de Jesus. Ora, o importante é compreender isto: na jurisprudência de Israel a mulher não tinha importância na definição genealógica. Quer dizer: não entrava nas Genealogias e, se aparecesse uma referência, não tinha valor. Nem Maria, a mãe de Jesus teria importância. Como Maria já foi tão estudada e o papel dela parece ser um tanto diferente, ficaremos, nesta reflexão, com as outras quatro: Tamar, Raab, Rute e Betzabéia. Se isto era assim, por que Mateus foi tão ousado, referindo-se a estas quatro mulheres? Detalhe: elas não eram nenhuma Sara, Lia, Raquel, Rebeca, Miriam, Débora etc, mulheres ilustres da memória do povo hebreu. Ao contrário, eram mal afamadas. Tamar: Todo o capítulo 38 do livro do Gênesis aborda a história de Judá, o filho escolhido de Jacó (4º filho). Com a mulher que se chamava “Sua” teve três filhos: Er, Onã e Selá. Aí entra a história de “Tamar”. Judá (postura patriarcalista) arruma a mulher Tamar para ser esposa do primeiro filho, Er. Este morreu sem dar filhos. Pela legislação hebraica, o segundo irmão, Onã, deveria dar a Tamar um filho, que, pela lei, seria de Er. Então, Onã sempre que copulava com Tamar, na hora do orgasmo derramava o sêmen na terra (daí que veio o problema moral do onanismo). Para dar a descendência ao primeiro filho, já que Onã também morrera, caberia ao terceiro filho coabitar com Tamar. Porém, Judá, com receio de perder mais um filho, devolve Tamar ao pai. Mais tarde, sabendo que Judá passaria no vilarejo chamado de Enaim, a fim de tosquiar ovelhas, Tamar, espertamente, se disfarça. Judá, pensando que ela fosse prostituta, a convida para dormir com ele. Ali, antes da consumação do ato, ela faz um acordo com ele, tomando-lhe o selo com o seu cordão e o cajado. Ela dormiu com ele e concebeu. Tendo desaparecido Tamar, após três meses, chegou a notícia a Judá que ela estava grávida. Seguindo a legislação contra a mulher, Judá manda que seja queimada. Porém, ela usa do trunfo contra seu sogro e agora pai: apresenta o cordão e o cajado. Judá refaz sua postura androcêntrica. Daí, de Judá e Tamar nasceram os dois filhos gêmeos Fáres e Zara. É importante, após compreender a história de Judá, que ele foi o herdeiro da bênção, passando para trás os outros três mais velhos, Rubem, Simeão e Levi. É preciso gravar bem o nome “Judá”, porque daí vem “judeu”, “judaísmo” etc. Judá é patriarca. Isso é muito significativo. A postura de Judá com Tamar foi de um lídimo patriarca. Tamar não participa das decisões, recebe as imposições, porque são os homens quem decidem pelas mulheres. É Judá quem decide que ela seria a esposa de Er (Gn 38,6). É Judá quem coloca a prática legal do levirato, entregando o segundo filho, Onan (Gn 38,8). Ela não é consultada. Esta prática era para as tribos descendentes de Abraão. Tamar era cananéia. Mais uma vez, ela é passiva. É Judá quem manda Tamar voltar para a casa do pai (Gn 38,11). Outra postura patriarcalista. Ele reina no ambiente. Se repararmos bem, nem os filhos homens, Er, Onan e Selá, participavam das decisões. Quem ditava as normas era Judá, o “pai”. Numa mentalidade dessa, como imaginar a situação pessoal de Tamar, totalmente esquecida. Além do mais, culpada. Os dois esposos morreram, relacionando-se com ela. Para eles, que Tamar é esta quem não dará um herdeiro? É uma amaldiçoada. Quem pensa que numa mentalidade patriarcalista as mulheres eram todas “bobas”, que só diziam “sim”, estão enganados. As narrativas quase só contam o lado masculino e, especialmente, o do poder. O autor de Gn 38, porém, mostra-nos o que se passa na cabeça das mulheres. Será que elas não conversavam, entre si, faziam planos, ironizavam os homens? Vejamos o caso de Tamar. Em vão, na casa dos pais, ela espera pelo terceiro marido. Mora lá nas serras, no povoado de Enaim. Porém, uma informação diferente fez surgir a força feminina entalada no interior de Tamar: já que Judá vai passar por ali, para tosquiar, é hora de agir. É ali que o plano de Deus vai se efetivar. Ela fora desrespeitada inúmeras vezes por Judá, o patriarca. Toma, pela primeira vez, a iniciativa. Quando o “homem” era quem ditava as normas, o plano de Deus não andava. Quando a mulher toma consciência das suas potencialidades, tudo muda. Tamar, para gerar vida, engana o todo-poderoso Judá. Ela elabora um plano perigoso, porém, genial. Tendo consciência de que a bênção de Judá só terá êxito se ele tiver descendência e, sabendo do seu papel de possível geradora da vida do herdeiro, protagoniza como “prostituta” uma aliança (o selo com o seu cordão e o cajado). Se antes, o patriarca sempre impôs, agora é Tamar (não reconhecida) quem impõe. Isto é, com “patriarcas” não existem diálogos francos, mas diálogos com subterfúgios, por isso, é preciso agir com esperteza, para mudar as relações humanas. A mentora intelectual se torna protagonista principal do plano. Ela concebe (Gn38,19), faz a vida renascer e realiza o projeto de Deus. Mais uma vez, o apelo à lei reivindicada por Judá, ou seja, queimá-la porque adulterou, cai por terra. Ele também não adulterou? Não. Homem, naquela mentalidade, não adulterava. Cumpria o prazer de ser macho: copular! O objeto “mulher” não interessava. No entanto, para Tamar, havia havido uma aliança. Esta virará a historia. O “selo, cordão e cajado” farão com que Judá “caia do cavalo”, com toda a sua ideologia patriarcalista, mais uma vez. Agora, quem dita as normas é a mulher. A prostituta nunca existiu (Gn 38,21-22). Quem existia era uma mulher que tinha sido ultrajada, por diversas vezes, que descobriu que tinha uma missão a cumprir: perpetuar a vida. Tamar não só fez Judá rever sua postura de patriarca ditador, como o recupera para realizar as bênçãos de Jacó. Javé, o Deus dos pobres, mais uma vez se mostra do lado dos indefesos. A mulher que, num primeiro momento, era passiva, viúva por duas vezes, abandonada, virou a história de um patriarca, portanto, deu nova dimensão à historia de Israel, terá, de Deus, uma vida em abundância: os gêmeos (Farés e Zara). Estes, com sua mãe, serão perpetuados na realização do messianismo de Jesus no Evangelho de Mateus (Mt 1,3a). Como Mateus viu Tamar? A comunidade mateana, fortemente judaica, teria muito para não citar Tamar. Ela não dera filhos aos filhos de Judá. Não era, à primeira vista, abençoada; enganou Judá, passando-se por prostituta; era mulher. No entanto, os mateanos não têm a ideologia do “purismo” legalista de seu tempo. Ao contrário, Mateus vai olhar Tamar não como excluída, mas como a mulher que ajudou a realizar o plano de Deus. Mateus será extraordinário para compreender que para Jesus, os “últimos” são os que realizam o verdadeiro projeto de Deus. Possivelmente, Mateus lera Gn 38,26 onde Judá reconhece Tamar como “justa” e percebeu que ela tinha lugar na genealogia. Mateus é o evangelista da Justiça. Por isso, ele supera a justiça dos escribas e fariseus, valorizando e reconhecendo a mulher, que não tinha voz nem vez. Ele entendeu que Tamar desmantelou toda uma concepção androcêntrica de mulher como a “passiva” e objeto do prazer do “macho”. Percebeu que Tamar foi uma resistente e deu passos decisivos para superar o patriarcalismo: enganou, sabiamente, quem se aproveitou dela. Primeiro na entrada do vilarejo e, segundo, com o selo do cordão e o cajado. Foi resistente, salvando três vidas: os gêmeos e a si própria. Foi resistente, mostrando a Judá o papel que ele, parecia, havia perdido e que agora retomava. Raab: A história de Raab está no livro de Josué no capítulo 2 e também em Josué 6,17-27. Está dentro da compreensão da posse da terra pelos hebreus. Ela foi figura exponencial para se compreender a tática revolucionária da tomada da terra. Além deste ângulo de estratégia militar, o livro de Josué (corrente deuteronomista) sugere que ela fez a decisão radical de aderir ao grupo de Josué e à fé em Javé, por opção pessoal. Não foi obrigada pelos espias. Ela era gentia e prostituta. Recebeu, protegeu e libertou os dois espias de Josué das garras da polícia do rei de Jericó. Escondeu-os na sua casa. Pelo texto, parece, Raab tinha bens: a casa tinha terraço, ali ela guardava as canas de linho, morava num lugar estratégico (sua casa estava construída na muralha). Por isso, ela tinha visão para fora e para dentro da cidade. Como houve um pacto com os enviados de Josué (o cordão escarlate que ficaria exposto no momento do combate), somente ela com seus familiares e pertences foram salvos na devastação revolucionária feita pelos hebreus. A cor escarlate, parece, lembrava o sangue do cordeiro que os hebreus usaram para marcar os portais antes da fuga do Egito. Este cordão, então, se tornou o símbolo da aliança com o povo revolucionário de Josué e com Javé (Jos 2,21). Tornou-se, a partir daí, uma habitante israelita (Jos 6,25). Esta história foi guardada, com muito carinho, pela memória popular, como símbolo da resistência do povo na conquista da terra. A importância é que a liderança é feminina. Raab, embora estrangeira, faz a proclamação de que Javé é o mais poderoso dos deuses. Ninguém pode com ele. A mentalidade era a do Deus Guerreiro do êxodo que estava sempre ao lado dos seus, nos combates. Ela fez sua profissão de fé, não no Templo, não na casa de oração, não na catequese institucional, mas na sua casa, no ambiente do seu trabalho. Ali, ela compreendeu que Javé era o mesmo libertador do povo hebreu do Egito, ali, ela o anunciou. Não podemos dizer que Raab, pela fé em Javé e adesão à comunidade, é uma co-libertadora assim como Moisés? Quem foi instrumento de Javé e fez Josué e os hebreus entrarem na “terra” foi, exatamente, uma mulher. Por isso, ela vai receber de Javé a bênção, o marido (Salmon), o filho (Boás), a terra (junto aos hebreus) e, por tudo isso, será perpetuada por Mateus na genealogia de Jesus. Por que? Porque ela não tinha a “pureza” dos legalistas, mas se tornou “pura” para Deus. Como Mateus viu Raab? As genealogias judaicas, em geral, eram frutos de elaboração institucional. Nelas, só tinham presenças garantidas os homens e, assim mesmo, se estivessem dentro do esquema do palácio, da cidade de Jerusalém ou em torno da instituição religiosa. Em geral, em torno ao Templo. Mateus, em boa parte de sua genealogia, contempla a memória popular e, neste viés, introduz as pessoas mais rejeitadas para um “bom israelita”. As mulheres. Raab era mulher, era prostituta, era estrangeira. Para Mateus Raab entrou, legalmente, na história dos israelitas. A salvação vem dos “últimos”, os solapados pela sociedade. O Reino vai além dos limites prescritos pela lei. Raab salvou os seus parentes, a sua vida, a dos espiões e abriu as portas para a entrada na terra, pela fé em Javé. É, portanto, a perpetuação do nome de Raab na genealogia de Jesus, uma critica muito dura ao “purismo” dos escribas e fariseus, descendentes ideológicos de Esdras, bem como à sociedade machista dos tempos de Jesus e da comunidade mateana. O interessante aqui em Mateus é que não sabemos de onde ele teve informações de que Raab foi a mãe de Boás. Possivelmente, era uma memória popular que chegou até os redatores mateanos. Nas informações populares de Mateus, ele “arranjou um jeito” literário e teológico para informar quem era aquele extraordinário Boás que vai ser o Goel de Rute libertando-a com a lei do “resgate” e do “levirato” (cunhado). De fato, Boás, no livreto de Rute, será como um novo juiz, bem ao estilo tribal, que na época de Esdras, se oporá a todas as leis que matavam os pobres e expulsavam as estrangeiras. Boás será como o futuro Messias. De onde é Boás, conforme Mateus? De Belém (Rt 2,4). De onde é o Jesus de Mateus? De Belém (Mt 2,1). Daí vem a dinastia de Davi. Então, “Salmon gerou Boás, de Raab” (Mt 5,1ª). Portanto, a nossa Raab (= terra farta) e o Salmon (= luz) geraram um dos magníficos personagens do Antigo Testamento, o Boás, tão querido no livreto de Rute. Boás, no Evangelho de Mateus, é figura exponencial, também, porque faz o elo da grandeza das excluídas: ele é filho de uma ex-postituta (alijada no meio judaico) e assume uma estrangeira (execrada pelo mundo judaico-esdriano) que, com ela, gerará um filho que fará vir o Messias. Não é possível falar de Raab sem anunciar Boás; não é possível falar de Rute, sem proclamar Boás. É Raab, a segunda resistente incluída na genealogia para se compreender o messianismo de Jesus. E que resistente! Rute: Esta se tornou tão importante na memória hebraica, que, de estrangeira, mulher, pobre e viúva (quatro predicados desfavoráveis a ela), recebeu todo um livro bíblico com o seu nome, exatamente, por causa de sua resistência como mulher, como pessoa de fé e como solidária a Noemi, protótipo das excluídas de Israel. Este livrinho (quatro capítulos) aborda a história de três viúvas pobres, Noemi, Órfa e Rute, sendo que estas duas últimas eram estrangeiras. O texto é elaborado como se tratasse do tempo dos Juízes (após Moisés até Samuel). Porém, é um artifício que os autores ou autoras usaram para retratar o tempo em que estava vivendo. Esta época era, provavelmente, o tempo de Esdras (458 a.C.) ao de Neemias (445 a.C.), quase um século depois do cativeiro da Babilônia. Alguns judeus voltaram do exílio com o intuito de recuperar a nação judaica. Já tinham vindo antes Josué (não é aquele do tempo de Moisés) e Zorobabel. Agora vieram Esdras e Neemias. A situação era complicada, os conflitos eram fortes, a terra estava ocupada por estrangeiros e as condições sociais eram tensas: fome (Rt 1,1; Ne 1,3; 5,2), migração (Rt 1,1), falta de terra (Ne 5,5), morte (Rt 1,3.5), desunião, desagregação familiar e comunitária, enfim, uma pobreza bastante acentuada. Esses ilustres judeus fizeram ou executaram alguns projetos para a recuperação do povo israelita. Tentaram resolver, a seu modo, os conflitos (MESTERS, 1985, p. 2324). 1) O projeto de Zorobabel e Josué (Esd 3,1-13) com o apoio de Ageu e Zacarias: achavam que reconstruindo o altar e o templo de Jerusalém movimentariam e reuniriam o povo e reorganizariam os trabalhadores, os levitas e os sacerdotes. 2) O projeto de Esdras (Esd 9,1-10,44; Ne 8,1-18): ele estava a serviço do rei da Pérsia. Porém, para os judeus, o seu projeto foi marcante. Era da linhagem sacerdotal e um super especialista em leis. Ele via que o sofrimento do povo era proveniente de um castigo de Deus. Então, tomou atitudes seríssimas: a) nada de casamento com mulheres estrangeiras. As mulheres estrangeiras deveriam ser expulsas e também os filhos que delas nascessem (Esd 10). b) Os costumes pagãos não podem entrar dentro da convivência dos judeus. c) Observância total à Lei de Deus. d) A pureza da raça israelita deve ser preservada (Esd 9,2). Esdras nacionaliza a fé. Deus está a serviço da raça judaica. O seu projeto vai perpetuar na história israelita. 3) O projeto de Neemias (Ne 5,1-19): diferentemente de Esdras, o governador Neemias era sensível às assimetrias sociais e econômicas. Em Neemias 5, há um retrato de como ele via os ricos explorando os pobres. Ficou revoltado. O seu projeto é diferente e melhor que o de Esdras: a) Exigiu que os ricos devolvessem aos pobres as terras roubadas e perdoassem as dívidas acumuladas (Ne 5,7-13). Ele deu o exemplo. b) Procurou reconstituir as famílias e os clãs (Ne 7). c) Reconstruiu as muralhas de Jerusalém (Ne 2,11-3,38). d) Criou os anos jubilares, atualizando a visão do Levítico e Deuteronômio: de cada 50 anos deveriam ser desfeitas todas as compras e vendas de terras. O problema do projeto de Neemias é que ele jogou as leis para os ricos e nós sabemos que os poderosos não agem por lei, principalmente, quando é para haver transformação a serviço dos pobres. Então, o seu projeto, com o tempo, ficou só no registro. 4) O projeto dos pobres: livreto de Rute. Ao contrário dos projetos de Zorobabel, Esdras e Neemias, este não é um projeto pronto. Ia se construindo, na medida que a luta era mais desafiadora. Este texto fala que, neste tempo de fome, um homem chamado Elimeleque emigrou para Moab com a mulher Noemi e os filhos Maalon e Quelion em busca de trabalho. Os filhos se casaram com Órfa e Rute. Como o povo era desnutrido morreram, por lá, o marido e os filhos. Sobraram as três viúvas. Parece que as mulheres eram menos melindrosas. Noemi decide voltar de Moab com as duas noras. Após muita insistência, uma das noras, Órfa, fica em Moab, porém a outra, Rute, não aceita abandonar a sogra: ficará com ela até a morte. Retornam a Belém (casa do pão) de Judá. Quem reconhece Noemi? As mulheres. Após tantas desgraças, Noemi diz que agora se chama Mara (amargurada, cheia de dores). Nos campos de Belém estava começando a colheita de cevada (tempo de fartura). Aqui entra em ação, Rute, a mulher determinada e cheia de fibra. Para salvar a sogra e a si também, decide ir à lavoura, caminhando atrás, para catar os restolhos das espigas que sobravam ou caiam dos jacás dos catadores. A lei permitia aos pobres, estrangeiros, viúvas e órfãos esse procedimento (Lv 19,9-10; Dt 24,19). Rute tinha o triplo direito de catar, pois era pobre, estrangeira e viúva. Por acaso, ela foi parar na lavoura de Boás (Rt 2,3), um dos dois parentes de família de Elimeleque, o finado esposo de Noemi. Boás, no livro de Rute, lembra as pessoas de bem lembradas na Bíblia. Ele é como um juiz esperado. Lembra a ação de Javé, o Deus do povo. Através de Boás, Deus vai salvar os pobres. Vai dar pão, garantir a posse da terra, vai gerar um filho. Ele lembra os juizes Gedeão e Jefté, porque é definido como homem forte e de grande valor (MESTERS, 1985, p. 49). Ao chegar de Belém, Boás conhece a moabita Rute e se admira com sua tenacidade e fidelidade à sogra Noemi. Ele a agrega às outras trabalhadoras, dá-lhe condição de trabalho e até a chama para comer do pão com ele e os trabalhadores (Rt 2,414). Aí vem a primeira crítica ao projeto de Esdras que discriminava os estrangeiros e as mulheres. Ela pergunta a Boás: “Por que o senhor é tão bom comigo que sou mulher estrangeira?” Ele responde numa bela paródia a Abraão: “...você deixou pai e mãe. Deixou a terra onde nasceu. Veio para um povo que você nem conhecia. Deus lhe pague em dobro tudo o que você fez! Receba uma farta recompensa das mãos do Senhor, Deus de Israel, pois foi debaixo das asas dele que você veio buscar amparo...” (Rt 2,11-12). Quando, à noite, retornou do trabalho, na felicidade de Noemi, esta relata que Boás é um parente que tem “direito de resgate” sobre elas. A boa esperteza acontece agora, por parte de Noemi: articula um plano para aproximar, na intimidade, Rute do parente Boás: “tome seu banho, passe um perfume, ponha o melhor vestido e vá até o terreiro... Quando ele for dormir, repare o lugar onde se deita. Chegue perto, levante o cobertor dos pés e deite-se...” (Rt 3,3-4b). Acordando assustado, no meio da noite, ela responde à sua indagação: “sou Rute, sua serva. Estenda, pois, seu manto sobre mim, porque o senhor tem ‘direito de resgate’” (Rt 3,9c). Com esta expressão, “direito de resgate”, o projeto dos pobres do livro de Rute começa a mostrar seu rosto. É o oposto ao projeto de Esdras. Ele propõe a recuperação do sistema tribal do “resgate” e do “levirato”. O projeto dos pobres é uma crítica ao de Zorobabel e Josué, porque não prevê templo, altar, Jerusalém, sacerdotes, sacrifícios. É uma crítica a Esdras, porque, ao contemplar Rute, a Moabita, está colocando as estrangeiras como parte do povo de Abraão. Rute, a estrangeira, no texto, pode ser mãe do povo de Deus. É uma crítica ao projeto de Neemias, porque o seu plano veio do palácio e não escutou os pobres. O projeto dos pobres é viabilizado na luta de duas mulheres, símbolos dos resistentes. Quando os pobres ou as pobres se organizam é possível um mundo diferente do protagonizado por Esdras. Elas são viúvas pobres. Elas entendem que Deus não castigou, como pensava Esdras, mas, que a causa da pirâmide social e econômica estava, exatamente, na postura e controle dos poderosos, fossem persas ou judeus. Portanto, a esperança baseada em Gedeão, Jefté, Débora, Sansão é sinalizada nas ações de Noemi e Rute, que são semente de nova nação. A salvação, dada por Deus, vem dos pobres. A presença de Boás é importante, porque mostra que é possível, contra os planos sectaristas e segregacionistas de Esdras, o encontro total e completo da mulher (Rute) com o homem (Boás). O que podem propor os pobres, simbolizados nas mulheres sem marido e sem filhos? Elas não têm futuro, nem herdeiro, nem herança. É aqui que vamos percebendo como o livro de Rute é uma denúncia contra o projeto segregacionista de Esdras. Noemi tem a sabedoria dos pobres. Não quer Deus só para si e sua raça. Ela acolhe a estrangeira como parte sua. É uma bofetada em Esdras e seu grupo. A situação de Noemi é a do povo explorado pelos grandes de Jerusalém e do Templo que vão articulando, fortemente, a ideologia da raça e da observância da lei. Rute (estrangeira), ao decidir-se por Noemi (israelita) faz a entrada no povo de Deus, do jeito que os pobres entendem. Rute, ao contrário do plano de Esdras, é filha de Abraão (Gn 12,1), porque escolheu ficar com Noemi. Como diz Mesters, ela buscou amparo nas asas de Javé (1985, p. 55). Por que? Porque ela se compromete com pessoa e seu bem-estar. Ao deixar tudo, Rute se inclina por Noemi, colocando sua vida em torno do serviço e da renúncia. Ela vai entendendo, gradativamente, que estão reconstruindo comunidade, na base do amor. Amor não era um conceito muito querido pelo grupo de Esdras. Então, se Noemi lembra o povo abandonado, Rute é a história das mulheres estrangeiras expulsas por Esdras. Na conversa entre Boás e Rute, na intimidade, a palavra “resgate” foi pronunciada por sete vezes (Rt 3,9-13). O que é o resgate? No livro do Levítico (Lv 25,2325) houve uma interessante reflexão sobre a pobreza. a) Se o pobre ia vender sua terrinha, o parente mais próximo era obrigado a resgatar a terra, ou seja, comprá-la de volta, não para ele mesmo, mas, para o parente pobre que a estava perdendo. Era um modo de preservar a família e evitar assimetrias, isto é, um irmão se distanciar social e economicamente do irmão. b) Também o livro do Levítico (Lv 25,47-49) cuidou de uma outra questão intrafamiliar: se o pobre era obrigado a se vender (devia muito), o parente mais próximo era obrigado a resgatá-lo, ou seja, pagar para que o irmão mais pobre pudesse reaver a liberdade. Este que resgata é o Goel (aquele que resgata, no aperto). Também aqui a idéia era de que a família, base da organização social, deveria ser defendida e fortalecida, contra as ambições dos poderosos. Essas duas leis evitavam o acúmulo de terras ou a exploração dos irmãos. Até aqui, parece, o livro de Rute, não tem novidades, porque o Levítico já previa a presença do Goel (resgatador) para evitar as contradições dentro dos clãs e das famílias. Não é bem assim. Na prática, isto não estava acontecendo. Mesters (1985, p. 70) diz que a lei do resgate era usada para dar cobertura legal ao roubo. O outro parente aceitava resgatar a terra sem se comprometer com a família mais pobre. No caso, o outro parente (4,4) não estava interessado em Noemi, mas em si próprio. É, por isso, que Rute vai atrás de uma outra lei que estava no esquecimento: a “lei do levirato” ou lei do cunhado. Ela é importante para se entender a lei do resgate. Esta lei dizia que se um homem morre sem deixar filhos, o irmão deve assumir e procriar com a cunhada (Dt 25,5-10). Quando o filho nascer, receberá o nome do falecido e os seus direitos. Portanto, o pai biológico, neste caso, não é o pai verdadeiro, mas o morto. Assim, se perpetuará a família. Na lei do “resgate” se salvava a grande família, ou o clã (comunidade). Na lei do “levirato” se protege a “pequena família”. Então, também aqui não tem novidade? É o que sugere à primeira vista. A situação de Noemi era gravíssima. Elimeleque, seu marido, morrera. Seu filho Maalon, esposo de Rute, também falecera, sem deixar filhos. O outro irmão que poderia aplicar a lei, também morrera (situação calamitosa no tempo de Esdras: os pequenos morriam antes do tempo). A lei não poderia ser aplicada. Os pequenos não tinham o amparo da lei. Noemi simboliza os pequenos que eram obrigados a vender suas terras e seus filhos (Ne 5,1-5). As leis estavam desatualizadas. Como não podiam esperar nada dos grandes, os pequenos elaboram suas próprias leis. O salto que o livro de Rute dá é algo novo é uma resposta ao projeto de Esdras. O texto vai unir a “lei do resgate” com a “lei do levirato”, a partir da experiência profunda de fidelidade de Rute a Noemi. Ela é definida por Boás como “mulher de grande valor” (Rt 3,11), expressão aplicada aos juízes. Ela é como Débora, a juíza do tempo tribal. Isso é novo, é transformador, porque partiu dos que não entendem de lei, os pobres. Surge dos espertos que vivem para sobreviver, mas que podem ter suas ferramentas de luta. Os pobres, representados por Noemi e Rute, criam a lei do “resgate/levirato”. Boás compreende o encontro das duas leis, porque percebeu a riqueza de Rute, identificada com Noemi. Boás não quer saber se Rute é estrangeira. Ele se entende goel de Rute. O salto é este: A “lei do levirato” (cunhado) deverá ser ampliada. Não só o irmão, mas qualquer parente da “grande família” é obrigado a observá-la. Então, o quadro dos defensores do pobres vai se expandindo. Se a lei anterior contemplava somente a “pequena família” agora irá estar na defesa da “grande família”, isto é, o clã, a comunidade. De familiar, a lei toma uma perspectiva social mais ampla. A preocupação se expande para a sociedade. Quando os pobres se identificam na luta, suas leis se tornam vivas. Como se dá o processo? Vimos antes que, no diálogo de Boás com Rute, esta lhe proclamou que estava sob o direito de resgate dele (Rt 3,9-13). Ele assumiu a nova concepção legal, vinda das marginalizadas. Porém, havia um outro parente que teria o direito do resgate (Rt 3,12). Este parente vai ficar na mentalidade de Esdras e só aceitaria resgatar a terrinha de Noemi. Na porta da cidade, diante de dez testemunhas, se dá o processo (Rt 4,1-12). Porém, quando o outro parente foi questionado que deveria assumir a estrangeira Rute (levirato), mulher do falecido, ele recusou para “não prejudicar sua própria herança” (Rt 4,6). Não entendia como “posse da terra” e “”situação familiar” deveriam estar ligadas. O outro parente, na ótica do egoísmo e do mundo legalista esdriano, recusa assumir o novo. Não entendeu que Rute era uma estrangeira acolhida por Noemi (Rt 1,18). Não teve a compreensão popular de vê-la como filha de Abraão e membro do povo (Rt 2,11). Não enxergou o que o povo via: uma mulher de grande valor (Rt 3,11), como os juizes tribais e o próprio Boás (Rt 2,1). Era incapaz de atingir o alcance das dez testemunhas aclamando que Rute “seja como Raquel e como Lia, que formaram a casa de Israel” (Rt 4,11). Quem entenderia? Ela é aclamada como a nova mãe das doze tribos. Como? Uma estrangeira? Uma pobre? Uma viúva? Uma sem-filhos? O outro parente não entende, por estar no universo dos poderosos, a linguagem dos excluídos. Então, ele passa a “sandália a Boás”, sinal de que o negócio estava fechado entre Boás e Rute (Rt 4,7-8): um negócio de amor. O outro parente era “a cara” de Esdras e não podia, também, alcançar a grandeza dos que se abrem aos pequeninos, como Boás. Ele deve ter ficado surpreso de ver o povo aclamando Boás “que se torne poderoso em Éfrata e nome em Belém” (Mq 5,1). Engraçado! Boás após ter feito tudo, fica sem nada. Sem a terra que comprou, sem o filho que gerou (Rt 4,13), sem o nome que perpetuou, sem o direito de resgate que conquistou, sem lucro nem vantagem (MESTERS, 1985, p. 50). Ele imita Deus, portanto, “serve”. Não é, por acaso, que o filho seu e de Rute receberá, da parte das vizinhas (=comunidade), o nome de Obede (= servo, o que esta servindo). O outro parente não podia entender nada. Ele devia estar perplexo vendo Boás mudando, na prática, as leis, ao unir os direitos do “resgate” e do “levirato”, superando o Levítico e o Deuteronômio. Ele não percebeu a novidade do encontro destas duas leis que salvavam a posse da terra e a situação familiar, portanto, a partir de agora, deviam estar juntas, porque se separá-las não se resolveriam os problemas vitais do povo. Será que Boás ficou sem nada? As dez testemunhas proclamaram: “E você, Boás, seja poderoso em Éfrata e tenha nome em Belém. Pelos filhos que Deus lhe der com esta jovem, sua família seja tão abençoada como a de Farés, que Tamar deu à luz para Judá” (Rt 4,12). Por que isso? Porque Boás falou ao coração de Rute (Rt 2,13-14) e pedira a Deus que desse a ela uma farta recompensa (Rt 2,12). Ele se tornará a imagem do futuro Messias. O Messias surgirá do amor entre Boás e Rute e do povo que aí nascer. A história do novo Israel, na perspectiva dos pobres, toma um novo rumo. Como Mateus viu Rute? Parece que Mateus entendeu que as autoras ou autores desse texto também esperavam o Messias, mas com sua ótica. Em vez dos reis opressores e exploradores (M1,6-11), no lugar de figuras ilustres (Mt 1,12-15), o novo Davi será descendente de Obede, portanto, será um Messias que serve. O novo Davi será descendente não só de homem, mas também de mulher: um desafio (ou um desrespeito) à jurisprudência judaica. Está a nossa comunidade mateana “jogando pesado” contra os tempos e os projetos de Esdras que chegaram até Jesus? Não serão os da linha de Esdras, as pessoas da lei discricionária, quem se oporão e até matarão Jesus? Rute vem do mundo estrangeiro. Ela era viúva e viveu, fortemente, a experiência dos pobres. Mateus deve ter olhado com muito carinho a história de Boás no livro de Rute, deve ter se empolgado com sua abertura para com a mulher estrangeira e, possivelmente, deve ter se impressionado com a determinação pela vida desta mulher e a fidelidade a quem não tinha teto, ficara sem família e não tinha pão para se alimentar. Deve ter pensado: como vou homenagear Noemi e os resistentes? Não teve dúvida: “Boás gerou Obede, de Rute” (Mt 5,b). Não tem nada da mentalidade de Jerusalém, do Templo e seu culto, da idéia de Zorobabel (que também entra na genealogia: Mt1,12c). Muito menos, da lei da “pureza” da raça de Esdras. Se Esdras havia expulsado as mulheres estrangeiras com seus filhos (Esd 10,30; Rt 1,1), Mateus entendeu que os pobres (Noemi) as traziam de volta. Assim como Esdras, Herodes (Mt 2,13-15) também não faz os pobres fugirem para o estrangeiro (Egito)? Não é, por acaso, que o Evangelho de Mateus terá uma carga interessante de abertura aos estrangeiros, do início ao fim. Além da genealogia (Mt 1,1-17), logo, após o nascimento do menino, a comunidade mateana “brinda” o mundo “das nações”, com o relato universal do Evangelho: a vinda dos magos do Oriente a Belém (Mt 2,1-12). Se a comunidade mateana era formada, fortemente por judeus convertidos e escreve para outros judeus, é muito importante perceber, como os redatores finais não têm nada do “espírito de Esdras” que estava forte em alguns partidos do tempo de Jesus. É muita abertura para as nações. O Jesus de Mateus lembra muito um outro homem de Belém, o Boás do livro de Rute. Vejamos: uma perícope importante é a do centurião romano que, segundo Jesus, tinha “mais fé” do que os seus conterrâneos israelitas (Mt 8,5-13) e ali, Jesus, numa compreensão genial, afirmou que “virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no reino dos céus, com Abraão, Isaac e Jacó...” (Mt 8,11). Portanto, ele abre a porta da salvação a todas as nações. Em Mt 12,18, a comunidade mateana atualiza uma perícope de Isaias (Is 42,1-4) na pessoa de Jesus que “anuncia o Direito às nações ... e no seu nome as nações porão sua esperança”. Já na alegoria de Mt 21,33-46, anunciando a vinha e a historia da aliança, é dito que o Senhor partiu para o estrangeiro. Na alegoria das bodas em Mt 22,1-14, todos são convidados, porém, os convocados das encruzilhadas são os pecadores e os pagãos, sendo que, ao final, mostra a força da “justiça” ligada à fé. O grande julgamento (Mt25,31-46) é para todas as nações (v.32). E, no final do Evangelho (Mt 28,16-20), mostra a missão universal, ou seja, para todas as nações (Mt 28,19). Possivelmente, o grupo ligado à mentalidade de Esdras não gostaria de escutar estes anúncios, para além do universo israelita. Se Esdras “bateu firme” na observância da lei, Mateus compreenderá a força do livro de Rute com uma outra lei: a do “resgate” e do “levirato” (as duas leis se tornam uma só). Assim, propõe a mentalidade de que se devem salvar a posse da “terra” aos pobres bem como a “família” no sentido mais amplo, para que também os pobres tenham pão. A Lei compreendida pela comunidade mateana é baseada, sempre, na “justiça”. Os cinco Sermões de Mateus, especialmente o primeiro (Sermão da Montanha: Mt 5-7) é um tratado vivo do que é a nova “Justiça” (FERREIRA, 1978, p. 9-31). O Sermão do Montanha é Evangelho. Os discípulos de Jesus conseguirão vivê-lo, ultrapassando a “falsa justiça” dos doutores da lei e fariseus, porque os seguidores de Jesus, nesta mentalidade da nova justiça, têm os corações pobres e livres. A nova justiça é uma raiz contra toda auto-suficiência. Outro detalhe importante no Evangelho de Mateus é que parece que ele, ao fazer a redação final, tinha o livreto de Rute de lado. Dá-nos a impressão, que ele via Noemi e seu marido, os dois filhos (portanto, os três com morte prematura) e, também, Rute. A persistência dessa comunidade deve ter levado Mateus a compreender melhor Jesus e sua opção pelos pobres. Todo o livro mateano tem esta clareza. Num momento (Mt 11,25-27), há a exaltação dos pequeninos. Os pequenos do tempo de Esdras e sua resistência lembravam, provavelmente, os pequenos do tempo de Jesus massacrados pelo Império Romano e a força de Jerusalém e do Templo. O Pai se revelou, não aos sábios e doutores, porém, aos pequeninos. Assim foi do agrado do Pai. Betzabéia: Em 2 Samuel 11 conhecemos a história dessa mulher. Ao contrário das anteriores (resistentes e dinâmicas), Betzabéia é apresentada como uma mulher acomodada e passiva. Esposa do hitita Urias, Davi se aproveita de sua função real, adulterando-se com ela, engravidando-a. Davi usa de uma artimanha típica dos a-éticos e anti-éticos, da falta de escrúpulos dos poderosos, colocando Urias à frente do campo de batalha em um lugar vulnerável para que morresse, com facilidade. Consumado o fato, Davi traz a viúva Betzabéia para sua casa. Após a intervenção do profeta Natã (2 Sm 12), que denuncia, duramente, a partir da história da ovelhinha do pobre, a atitude assassina do rei, há uma postura de conversão do rei. O primeiro filho morre e depois nasce, com a mesma Betzabéia, Salomão (2 Sm 12,24). A monarquia, tantas vezes, foi criticada por diversas escolas bíblicas. De fato, a experiência igualitarista do tribalismo, dos tempos anteriores, foi destruída com o surgimento da monarquia. As contradições assimétricas, provenientes de um sistema sócio-político-econômico e militar baseadas, sempre, na injustiça, atingiram, praticamente, todos os reis. Davi não foi exceção. Tido, na história israelita, como ícone para se entender o messianismo e como rei ideal, tem o seu nome “sujo” por causa da infame atitude com relação a Betzabéia e Urias. Quem manda e determina é o rei. Ele pensa e age por todos. O súdito não reage e nem pode. Imaginemos, então, a situação da súdita, a mulher. O texto de 2 Samuel mostra uma Betzabéia “objeto”, em todos os momentos. As únicas palavras dela são a expressão de quem é aviltada e explorada, em todos os sentidos. Em 2 Sm 11,5, manda avisar ao rei: “estou grávida”. Em 2 Sm 11,26 é dito que “ouvindo a mulher de Urias que seu marido era morto, ela o pranteou”. Duas dores: de uma gravidez não querida e a morte de seu companheiro! Duas punhaladas nessa mulher explorada pelo palácio. O que mais poderia ela fazer? Diferentemente de Tamar, Betzabéia não preparou um projeto. Diferentemente de Raab, Betzabéia não realizou um projeto. Diferentemente de Rute, Betzabéia não se determinou por um projeto. Não sabemos o que se passava no coração de Betzabéia. 2 Samuel foi narrado por homens. O fato é que Betzabéia foi mulher. Fora e dentro do palácio. Trancada, num segundo momento, lá dentro. Sua vida foi de alguém que foi marginalizada, injustiçada, explorada. Será que não foi estuprada por Davi? O rei a tira de sua casa, leva para o palácio enquanto o marido estava trabalhando (defendendo a nação), deita com ela e a engravida. Quando a mulher é desrespeitada e não vive inserida na sociedade, o plano de Deus se torna, cada vez mais distante. Betzabéia foi excluída e silenciada. Por isso, o projeto de Deus ficou tão distante de se realizar. Ao contrário, afastou-se das ricas experiências da época tribal. O silêncio de Betzabéia expressa conformismo ou decepção pela condução do povo pela casa real de Davi? Teve, entretanto, Betzabéia a experiência de ser geradora da vida, no silêncio interior. Ouviu o choro de duas crianças (uma era Salomão) com Davi. Acompanhou, minuto a minuto, os últimos momentos da primeira criança (qual era mesmo o seu nome? Por que os deuteronomistas silenciaram-se?). Querendo ou não, Betzabéia participou do plano de Deus na busca do Messias. Como Mateus viu Betzabéia? Mateus, na genealogia, não coloca “panos quentes”. Fala claramente que “Davi gerou Salomão, daquela que foi mulher de Urias” (Mt 1,6b). Mateus não coloca o nome “Betzabéia”. Porém, contempla o nome do estrangeiro Urias, o assassinado pelo rei Davi. A memória popular devia, provavelmente, ter vergonha desse relato sobre o rei Davi. Fazer o que? Era verdade. O relato atrapalha o projeto ou não? A comunidade de Mateus faz a memória “daquela que foi mulher de Urias”, o hitita (estrangeiro), entre as cinco mulheres destacadas na genealogia de Jesus. Isso, apesar do palácio a haver explorado, Mateus não tem como silenciar, porque Betzabéia teve Salomão com Davi, a principal pessoa, na perspectiva messiânica, da dinastia que chega até Jesus. Como Mateus contempla, na sua genealogia os altos e baixos da história da salvação, teve de lembrar aos seus leitores, não o silêncio de Betzabéia, mas a frieza, o calculismo, o aproveitamento, a exploração e o assassinato do palácio real contra os trabalhadores (Urias) e contra a mulher (Betzabéia). Remate: Vimos que Mateus tinha um projeto messiânico bem antagônico ao dos judeus do alto da pirâmide que esperavam um outro tipo de Messias: ufanista e triunfalista. O projeto mateano, ao apresentar as mulheres de má fama como partícipes da genealogia de Jesus, o Cristo (Messias), leva-nos a compreender que Deus fala uma outra linguagem: também as desfavorecidas têm seu espaço e voz. A quinta mulher, Maria, também não está fora do calculismo legalista e excludente das classes dominantes1. Ela também era mulher, era pobre, teve um filho (Jesus: Mt 1,16) como mãe solteira e era de uma terra marginalizada: a Galiléia. Maria, aos olhos da lei do “puro x impuro”, foi também rejeitada, como o foram Tamar, Raab, Rute, Betzabéia. Entretanto, Mateus compreendeu o plano divino: Maria, a mãe de Jesus, como as outras quatro excluídas, foi queridíssima de Deus, foi a escolhida e eleita por Ele. 1 No início, dissemos que não refletiríamos sobre Maria, porque existem muitos estudos sobre o seu papel na redimensão messiânica. Fazemos, apenas, esta alusão a ela para compreendermos que Mateus vê os pobres e as pobres como privilegiados (as) por Deus. Eles e elas fazem parte, preferencialmente, da herança davídica.