COMUNIDADE É TUDO
Sara Ferreira de Almeida
Djalma Ribeiro Junior
Maria Waldenez de Oliveira
Iraí Maria de Campos Teixeira
RESUMO
O presente ensaio é fruto de estudos e reflexões que vem sendo empreendidas pelas
autoras e pelo autor em grupo de estudos que vem se dedicando ao debate de questões
relacionadas ao fazer científico com engajamento político e compromisso social, em
especial, acerca das possibilidades metodológicas que garantam esses princípios. Nesse
sentido, temos refletido sobre diversas cosmovisões que situam o sentido de
comunidade num patamar amplo e complexo, quando deixa de considerar em sua
formação apenas os seres humanos, abrangendo também o que aqui chamamos de tudo
que, por sua vez inclui: outros seres vivos animados, inanimados, visíveis e invisíveis,
cujas relações dinâmicas compõem um determinado ecossistema de vida e de trabalho.
Assim posto, esse ensaio visa provocar questionamentos e reflexões sobre a
possibilidade de convivermos e pesquisarmos numa comunidade em que tudo está
implicado, portanto, que é complexa, dinâmica e multifacetada. Com isso, apresentamos
neste ensaio o que consideramos como início do diálogo que temos travado com
cosmovisões diferentes da instituída pelo pensamento dominante, buscando o que
Boaventura de Sousa Santos denomina Ecologia de Saberes, desafiando-nos a
reconhecer e legitimar outras epistemologias, para além da ocidental.
Palavras-chaves: Comunidade, Cosmovisões, Pesquisa.
Considerando-se os vários movimentos sociais, os saberes tradicionais de
povos originários, as novas emergências políticas como resistências ao capitalismo
global, Boaventura de Sousa Santos propõe uma ecologia de saberes. O autor parte da
crítica a uma única epistemologia – a epistemologia científica – alegando que o
conhecimento científico teve como desígnio original “converter este lado da linha em
sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto de conhecimento” (SANTOS, 2010,
perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento” (SANTOS, 2010,
p.20).
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atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis e os que são inúteis, ou
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p. 87). Uma epistemologia colonialista, que “[...] divide as experiências, os saberes e os
Para explicar o conceito de ecologia de saberes, o autor utiliza a metáfora da
linha da zona abissal que é categoria teórica cunhada pela ciência ecológica para
designar o local que corresponde às profundezas marinhas, onde não há vegetação
verde, não há luz, pois está situada entre 2.000 e 5.000 metros de profundidade
submarina. A partir da analogia, torna-se possível compreender o que, historicamente,
vem acontecendo com os pensamentos não ocidentais que são tratados pelo pensamento
moderno ocidental como estranhos, incompreensíveis e incapazes de produzir
conhecimentos científicos e não científicos relevantes ao mundo.
De acordo com Santos (2010), o sistema mundo está dividido por essa linha
abissal que ele também denomina como radical, fazendo com que a realidade social
exista em dois universos: o que está desse lado da linha e o que está do outro lado da
linha. É a partir dessas reflexões que o autor propõe a ecologia de saberes que prima
pela diversidade que compõe o mundo. É diálogo entre saberes e sob essa perspectiva
não busca romper com a hierarquização do conhecimento, tampouco subscreve uma
hierarquia única, universal e abstrata entre saberes. Subscreve-se como “[...] conjunto de
intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao
longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante”. Valoriza os “saberes
que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido” (SANTOS,
MENESES, 2010, p.11), possibilitando um diálogo horizontal entre os diferentes
conhecimentos. Enfim, uma diversidade epistemológica a ser construída.
Encontramos na ecologia de saberes proposta por Santos (2010) algo que
nos é familiar nesta Linha de Pesquisa. Diz ele: “Toda experiência social produz e
reproduz conhecimento”. Ainda, “não há, pois, conhecimento sem práticas e atores
sociais” (SANTOS, MENESES, 2010, p.15). Poderíamos traduzir essa última frase em:
Há processos educativos em práticas sociais. Em diversas produções de conhecimento
há várias epistemologias que, portanto, supõem as condições do que conta como
conhecimento válido, tornando a experiência social intencional e inteligível. Sendo
social, dá-se nas relações sociais, ou seja, conhecimento é interconhecimento
(SANTOS, 2010, p. 89).
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cultural, político. Todos os conhecimentos “sustentam práticas e constituem sujeitos”
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(SANTOS, 2010). Todo conhecimento válido, diz o autor, é contextual, portanto,
Na obra Epistemologias do Sul, o autor nos alerta que o reconhecimento da
diversidade cultural do mundo não significa necessariamente o reconhecimento da
diversidade epistemológica. Reflexões que nos impele, ao final deste ensaio, a pensar
nos desafios para construirmos este processo de reconhecimento de que nos fala
Boaventura.
Quando falamos em convivência, estamos nos referindo a um “com” que
não hierarquiza sujeitos, falamos de alteridade. O outro é um ser humano. A
convivência é a vivência com o outro ser humano, na alteridade. A comunidade de
trabalho é constituída por seres humanos, implicados num projeto de sociedade.
Examinando algumas cosmovisões, para iniciar uma análise desse desafio, nos
perguntamos: como nos situaríamos numa epistemologia do sul, numa ecologia de
saberes em diálogo com essas cosmovisões que colocam que comunidade é tudo, sendo
que esse tudo abrange não só seres humanos em relação entre si, mas com os demais
seres animados, inanimados, visíveis e invisíveis presentes num determinado
ecossistema de vida?
Na pesquisa feita por Vivian Parreira da Silva no Grupo de Pesquisa
Práticas Sociais e Processos Educativos, junto ao grupo de congada do Terno
Marinheiro de São Benedito, a convivência entre os participantes era uma constante,
sendo a construção de conhecimentos feita de maneira coletiva, colaborativa e
respeitosa. Mas, além desses conhecimentos construídos com os demais participantes,
Silva (2011) demonstra que
Os ensinamentos são transmitidos também por meio da relação entre as
pessoas do grupo com seus antepassados, com os ancestrais, com os santos
católicos e com as entidades de umbanda. Pedir conselhos aos mais velhos e
aos ancestrais sobre o que fazer, sobre a hora certa de ensinar e aprender
também faz parte da vida congadeira. Dizer que vão consultar Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito sobre alguma dúvida ou aprender a música com o
preto velho e sonhar com São Benedito e Nossa Senhora do Rosário dando
conselhos são saberes que estão presentes na tradição do Marinheiro de São
Benedito (p.116).
é compreendido em relação com o “nós” porque estão fundidos. Assim, o objetivo de
todos é atingir a pessoalidade que é se tornar uma pessoa não simplesmente porque
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Tedla (1997), está ligado diretamente à afirmação da vida. Para a autora o “eu” somente
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O sentido de comunidade na visão Africana Tradicional, de acordo com
tenha nascido como ser humano. A melhor definição para a autora vem da própria
comunidade. Tornar-se uma pessoa significa cuidar dos outros assegurando que através
delas todo mundo consiga atingir seus objetivos. O indivíduo, portanto, não vê a
comunidade como algo que o infringe ou sufoca. O conceito Africano de pessoa, assim
como a noção de comunidade, é baseado no conceito de vida. Em outras palavras, o
conceito de pessoa e de comunidade emerge do entendimento de estarem vinculados à
vida natural ou do sentimento de formarem a rede da vida. Dessa ideia segue que o
imperativo ético é não tratar o outro ou a natureza como uma coisa, mas como algo que
é parte de você mesmo. As pessoas pertencem às outras, estando vinculadas em uma
vida comum. Por isso, a consciência não é uma consciência do corpo, mas é a
consciência do fluxo da vida na comunidade e no mundo (SINDIMA, 1989 citado por
TEDLA, 1997).
De uma forma incisiva, Fernando Huanacuni, indígena Aymara, diz-nos que
“[...] quando falamos de comunidade, não falamos só de humanos. Comunidade é tudo:
animais, plantas, pedras” e para mudar o sentido de um rio o indígena vai dizer: ”não,
calma, espera, vamos pedir permissão para os nossos ancestrais e vejamos se é bom”,
enquanto o capitalista diz: “Claro que é bom, aqui vamos produzir”. “Ele não vê
importância no espiritual, não o sente. Por isso ainda não está entendendo” (BRASIL
DE FATO, 2009, p. 1).
O “nós” do indígena Aymara vai além do eu e você porque não vivemos sós.
Eu trabalho, você trabalha, mas não é por isso que existe vida. Existe vida
porque existe sol, porque existem ciclos, porque existe chuva, porque existem
sementes, porque existem rios, porque existem montanhas, porque existem
árvores (BRASIL DE FATO, 2009, p. 1).
É preciso compreender que “[...] a vida é uma complementação e
reciprocidade do todo, um equilíbrio perfeito [...] nós não somos seres humanos e
natureza, mas parte da natureza, não somos superiores (BRASIL DE FATO, 2009, p. 1).
Huanacuni atribui a desensibilização para esse “nós” à colonização que individualizou o
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conceito comunitário. Ele alerta que
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pensamento. Diz ele que é necessário agora nos naturalizar e nos fazer voltar ao
[...] os latinoamericanos têm que se encontrar com os indígenas, para depois
poder dialogar com a Europa. O seu pensamento não está relacionado com o
movimento indígena, tornaram o movimento indígena invisível porque
pensavam que ele era inferior. Eles simplesmente imitaram a Europa. Dizem
América Latina, percebe? Para nós, somos Abya Yala, assim chamamos
nosso continente há milhares de anos. [...] O indígena amazônico ainda briga
com os garimpeiros. Estes destroem florestas, destruíram árvores mãe,
árvores pai, árvores de milhares de anos, as cortaram para mandar para o
mundo ocidental. Para nós, são as avós, os avôs, é vida, são nossos mestres
(BRASIL DE FATO, 2009, p. 1).
É o que também encontramos na cosmovisão de grupos indígenas
amazônicos que fazem uso do Ayuhasca, onde o contato com os espíritos implica uma
noção ampliada da alteridade. É o que nos indica Maria Betânia Albuquerque,
pesquisadora junto a essas comunidades. Ela fala de uma Cosmovisão que não separa
ser humano e natureza, ser humano e animal. Não há um momento de ruptura, mas de
continuidade. O mundo humano se prolonga no mundo dos animais que os implica em
uma interpelação dinâmica que formam os ecossistemas do mundo (ALBUQUERQUE,
2009).
O estágio originário é de indiferenciação entre seres humanos e animais.
Informa-nos a pesquisadora que há “essências espirituais inerentes à natureza que são
determinantes da forma como esses grupos se relacionam com os objetos, animais,
plantas e seres humanos, vivos ou não” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 16) e que
constituem culturas. Uma ontologia fundada no animismo que admite a dimensão social
das relações entre humanos e não humanos. O positivismo, fonte da ciência moderna,
separou a pessoa da natureza, anima de corpo. Dicotomia que não existe nessas
cosmovisões evidenciadas acima.
Na ontologia ocidental somos todos animais. É o espírito que diferencia o
ser humano. Na cosmovisão acima, há a espiritualização de tudo: seres humanos,
animais, plantas. A divindade presente em tudo.
em torno da ecologia que supera a racionalidade científica, sendo denominada Ecologia
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Consideramos que tais cosmovisões constituem uma linha de pensamento
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Se o espírito permeia todo corpo vivo, isto alarga sobremaneira a perspectiva
da alteridade, em geral circunscrita ao mundo humano, passando a incluir
todos os seres nas suas mais diferentes formas de manifestação
(ALBUQUERQUE, 2009, p. 20).
Profunda, cujo alcance é por outro nível de consciência que ultrapassa a objetividade da
vida. Segundo Aveline (1999), Arne Naess ao cunhar a expressão Ecologia Profunda em
1970, recusou-se a criar um sistema racionalmente coerente – um circuito fechado de ideias –
capaz de limitar o conceito de Ecologia Profunda e manteve-o como uma ideia aberta, uma vez
que a variedade da vida é um bem em si mesmo. Segundo o mesmo autor, esta “unidade
dinâmica não está limitada ao plano material da vida, mas também é psicológica e
espiritual”.
Ao nos depararmos com essas epistemologias, um especial desafio nos é
colocado ao refletirmos sobre convivência metodológica. Se compreendemos a
convivência como vivência na alteridade e se buscamos um diálogo entre sujeitos (e
seus saberes), além da constituição de uma comunidade de trabalho, precisamos
começar a entender que em outras cosmovisões, comunidade é muito mais do que o que
entendemos na epistemologia eurocêntrica, em que apenas seres humanos estão
inseridos. Como compartilhar vivências sem considerar que nas vivências que o outro
compartilha comigo há muito mais seres envolvidos do que eu (pesquisador e
pesquisadora de cultura eurocêntrica) possa inicialmente imaginar? Buscar a
convivência nessas comunidades requereria como ponto de partida, o entendimento das
cosmovisões e a abertura para a vivência em comunidades de trabalho muito mais
amplas? A compreensão dos processos educativos que se dão nas relações entre sujeitos
implicaria ampliar nossa visão de sujeitos para melhor compreender tais processos em
outras cosmovisões?
Com estas questões encaminhamos o final deste ensaio, abrindo-nos para
possibilidades desafiadoras aos nossos processos de pesquisar nesta Linha de Pesquisa,
pois, como nos ensina a Profa. Petronilha, o avanço do conhecimento, a construção de
um outro projeto de mundo e de sociedade, implica em sairmos de nosso lugar
confortável, lançarmos-nos a que-fazeres, a questões que, mesmo analisadas de forma
detida, nunca se encerram em respostas finais – encaminham novas questões. Olhar
detido na e para a diversidade como também ela nos ensina. Compartilhamos daquilo
questões e novos sentidos ao nosso processo de pesquisar e estar com o corpo no
mundo, sempre crítico e compromissado. Pois, “eu sou porque nós somos”.
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traçar argumentos de modo que juntos pudéssemos ir construindo sentidos a essas
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que Freire (2006) denominou como “pedagogia da pergunta” e, assim, procuramos
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Maria Betânia. Uma heresia epistemológica: as plantas com
sujeitos do saber. Oficina do CES- Centro de Estudos Sociais. Laboratório Associado,
Faculdade de Economia. Universidade de Coimbra. 2009. Disponível em
http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/328.pdf. Acesso em: 02/11/2012.
AVELINE, Carlos Cardoso. A vida secreta da natureza. Disponível em:
http://www.recriarcomvoce.com.br/blog_recriar/vida-secreta-da-natureza/. Acesso em:
08/11/2012.
BRASIL DE FATO. “Nosso modelo não é comunista, mas comunitário", afirma
aymara
da
Bolívia.
Edição
de
13/07/2009.
Disponível
em:
http://www.brasildefato.com.br/node/3275.
Acesso em: 15/10/2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido.13ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
SANTOS, Boventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boventura de Souza; MENESES, Maria Paula
(orgs). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do
Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SILVA, Vivian Parreira da. Do chocalho ao bastão: processos educativos do terno de
congado marinheiro de são benedito – Uberlândia-MG. 149f. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Educação, São Carlos/SP, 2011.
Página
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TEDLA, Eleny. Sankofa, African Thought and Education. New York, Peter Lang,
1995. p. 1-41.
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