O que é advocacy? 1 Exposição feita pela Dra. Gita Sen no marco do seminário internacional “Mulheres em movimento pelo direito à educação”, realizado em junho de 2008 em Montevidéu, Uruguai. O seminário foi organizado pelo Escritório de Educação e Gênero (GEO) do Conselho Internacional para a Educação de Pessoas Adultas (ICAE) e contou com a participação de mulheres líderes de todo o mundo. Estimadas amigas, O ICAE quis que eu falasse um pouco sobre advocacy, já que é disso que trata essencialmente esta reunião: uma preparação para o advocacy na medida em que avançamos para a próxima CONFINTEA e outros eventos. Vou falar de quatro coisas diferentes. Em primeiro lugar apenas uma definição muito geral de advocacy, pois vou usar muito esse termo ao longo da minha exposição. Em segundo (com base no anterior), algumas aprendizagens surgidas a partir da experiência de advocacy em DAWN, ao longo de quase 25 anos. Em terceiro, uma visão geral dos atuais contextos políticos – e vou fazê-lo rapidamente – como maneira de situar onde estamos em termos de espaços para advocacy, o que é que podemos fazer, quais são as possibilidades e quais os desafios que enfrentamos neste momento. E, por último, concluirei com algumas perguntas e reflexões críticas sobre qual deveria ser nossa posição como feministas. Onde nos colocamos, onde nos situamos para fazer este trabalho da melhor maneira possível? O que é Advocacy? Primeiramente, portanto, apenas uma simples pergunta sobre advocacy. Muita gente me pergunta – e isso não é brincadeira – como faço para continuar sorrindo? Porque quando se termina de olhar o mundo tal qual é, certamente não há ânimo para sorrir. Minha resposta para qualquer pessoa que diga: “como é que você pode continuar fazendo isto ano, após ano, após ano?” é que não vejo que tenha outra opção, e não sinto que como feministas tenhamos a opção de não fazê-lo. As coisas seriam muito piores se não o tivéssemos feito, e essa é justamente a causa por que o fazemos! E já que vamos fazê-lo, então é melhor sorrir enquanto ao fazê-lo. Seria muito mais difícil de outro modo! O outro ponto que é importante considerar é que, não importa o quanto pensemos que o mundo vai tremendamente mal – a militarização, a globalização, as mudanças econômicas que levam a uma desigualdade e pobreza crescentes, as complexidades para conseguir avançar no tema dos direitos das mulheres – é de grande ajuda compreender que o outro lado também está completamente em crise. Estão em crise, estão tão confusos e tão assustados! E ajuda recordar que, porque acreditamos que nós também estamos em crise, estamos confusas e assustadas. É claro que se escutamos o que estão dizendo do outro lado – e o outro lado pode significar pessoas diferentes e diferentes posições dependendo da temática – vê-se que ainda estão mais assustados (ou pelo menos tanto e mais frequentemente) que nós. Se for esse o caso, então devemos estar fazendo algo bem! E embora se veja que as coisas estão horríveis, cinzentas e lúgubres penso que para sentir que podemos avançar é de grande ajuda continuar observando como pensa o outro lado, quais são suas reflexões e o que dizem hoje. Portanto: o que é advocacy? Na década passada o simples termo advocacy tornou-se uma grande confusão, sendo uma das causas pela qual as financiadoras decidiram financiar advocacy. A partir do momento em que as financiadoras fazem algo, as coisas começam a se tornar confusas e a se complicar porque, em geral, as pessoas ajustam seus conceitos em função disso. E a lógica do financiamento, como bem sabemos, implica outras coisas: indicadores, mecanismos, especificações de marcos lógicos, etc. Aquelas idéias que eram simples começam a tornar-se, para muitas de nós, muito mais difíceis de compreender, ou sequer saber o que estamos fazendo! Segundo a minha compreensão básica e muito simples de advocacy, é simplesmente a arte da persuasão amável (“friendly persuasion”). Vocês estão persuadindo as pessoas, e uso a palavra “amável” porque se não for amável não é advocacy, é combate, é guerra. 1 Ativista feminista e acadêmica, é fundadora de DAWN (Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres para uma Nova Era). Página 1 de 4 Vocês poderão não estar de acordo, mas têm que fazer com que a pessoa à qual estão tratando de persuadir sinta que vale a pena mover-se em certa direção. Pois bem, no informe do ICAE sobre o qual a Denise falou anteriormente, há um artigo muito interessante de Gina Vargas no qual ela se pergunta se deveríamos estar falando de advocacy ou de contra-poder. Creio que estamos falando de ambas as coisas, não é isto ou aquilo. E no mundo em que vivemos o contra-poder em si mesmo não é suficiente. É necessária também a persuasão porque temos que conseguir que as pessoas se ponham do nosso lado. E é disso que trata a arte e a política de advocacy. Aprendizagens da experiência de DAWN Na experiência de advocacy de DAWN ao longo de quase 25 anos – a maior parte dela no âmbito global, mas também nacional e regional – aprendemos alguns pontos críticos que espero que possamos retomar em nossa discussão. a. Estar preparadas Para realizar bem advocacy, é necessário fazer o dever de casa; isso é fundamental. Realmente há que insistir na preparação. Não se pode fazer advocacy a menos que estejamos preparadas. E dado que a maioria das feministas, estamos em uma posição subordinada de poder na qual, em realidade, tratamos de nos contrapor ao discurso dominante, às práticas dominantes, etc., a não ser que estejamos preparadas ninguém vai nos escutar, ninguém vai sequer se importar. E isso é simplesmente um trabalho árduo, cansativo algumas vezes, mas requer que alguém se sente e faça esse trabalho com antecedência. Realizar uma preparação exaustiva é absolutamente essencial para nossa credibilidade. b. Credibilidade A credibilidade é o requisito fundamental para bem fazer advocacy. Ou seja, que as pessoas acreditem quando se diz algo; a construção dessa credibilidade leva tempo. No princípio as pessoas não acreditam, não querem acreditar porque estamos dizendo coisas que frequentemente vão contra o discurso dominante, contra as relações de poder dominantes, etc. Portanto, a importância da credibilidade é que, ao longo do tempo, sejamos vistas como alguém que baseia seu discurso na realidade, que fala de fatos; assim vai sendo construída a credibilidade, e este é o ativo mais importante de uma pessoa que se dedica à advocacy. Eu diria que esta é A coisa mais importante que vocês terão, que teremos, na medida em que avancemos por este caminho. Penso que muitas de nós, nos diferentes espaços que transitamos, sabemos disso. Também sabemos quanto dano pode causar à credibilidade um passo em falso. E isso significa que, para nutrir nossa credibilidade devemos ser capazes de admitir quando não sabemos algo, em lugar de pretender que sabemos, quando na verdade não sabemos. Porque é muito fácil averiguar isso e então as pessoas dirão: “não a escute, ela só fala por falar, na realidade não sabe do que está falando”. c. Admitir nossos erros Se cometermos um erro, é muito importante reconhecê-lo imediatamente e dizer “Sinto muito, me enganei, desculpem!” As pessoas tendem a perdoar os erros, todos nos enganamos. Como já disse Sonia Correa na reunião da da REPEM: o direito a cometer erros é um direito humano muito importante! Mas o problema acontece quando não reconhecemos o erro. Cometemos o erro e o encobrimos. Em situações de advocacy, nossos erros podem ter um grande impacto sobre outras pessoas. Portanto, não somos apenas nós que sofremos os efeitos dos nossos erros, mas muitas outras pessoas também os sofrem; portanto, se não os reconhecemos e dizemos: “Ai, vamos retroceder e ver o que fizemos aqui”, podemos gerar um desastre não só para nós mas para muita gente. d. Responsabilidade O outro aporte à credibilidade é o sentido de responsabilidade que provém do fato de que sejamos realmente responsáveis. Fazemos o que fazemos como cidadãs públicas por alguma razão. Não porque sejamos pagas de forma privada para fazer esse trabalho na sociedade civil. Embora, é claro, saibamos que muitas pessoas são remuneradas, têm trabalho, etc. Mas ganhar dinheiro não é nossa motivação primária. É muito importante ter esse sentido de responsabilidade para estar seguras de que realmente não vão menoscabar o trabalho de advocacy. Página 2 de 4 Isso é muito importante, porque eu mesma já estive em muitas situações onde as pessoas – mulheres e suponho que também homens – entram no âmbito da advocacy, a uma reunião, a um contexto de advocacy, e depois vão fazer compras - literalmente. E quer o trabalho seja feito ou não, aí aparece todo mundo e então não há ninguém a quem se possa apontar em particular e dizer: “Onde você estava? Agora não estamos preparadas. O que aconteceu?” Porque não há responsabilidade coletiva, só há responsabilidade individual. Mas isso é crucial, porque se não exercemos essa responsabilidade individual, podemos ir pelo caminho mais fácil, se não houver ninguém para nos perguntar: “O que você fez? Onde estava? O que aconteceu com você no momento crucial, à meia noite e meia quando os governos estavam decidindo sobre o tema e necessitávamos essa informação? Você a tinha e não estava ali, não podíamos encontrá-la em parte alguma”. Na verdade ninguém faz essas perguntas. Sabemos como somos corteses entre nós. Em algumas oportunidades, se for algo muito grave, as pessoas gritam umas com as outras, mas afinal, o sentido de responsabilidade tem que vir do nosso interior, do interior de nossas organizações. No entanto, é um requisito indispensável também para a credibilidade. Se você é catalogada como uma pessoa irresponsável, vão dizer “essa pessoa diz que vai fazer algo; não acreditem, não vai fazer”. E isso é um grande problema para alguém que se dedica ao trabalho de advocacy. e. Ser flexível O outro aspecto de advocacy sobre o qual me encanta falar é a importância da flexibilidade, porque a arte da persuasão amigável é exatamente isso. Não se pode ser como um pilar, irremovível: “Esta é minha posição, daqui não me movo”. É preciso ser capaz de se mover, e isso é o que em DAWN chamamos o “Zen” de advocacy, baseado no antigo principio Zen, “Inclina-te e não te quebrarás”. Como pessoas que fazemos advocacy devemos saber quando fazer concessões, porque, como sabemos, advocacy também é fazer concessões. Devemos chegar a um acordo. Empurra-se até não poder mais, e depois, muito bem. Mas é claro que quando fazemos isso, a verdadeira arte do Zen é não deixar que o outro lado saiba qual é o nosso limite. Porque se souberem até onde podem empurrar, então imediatamente empurram até lá. Sempre é preciso dissimular e dizer “oh, não, nunca vamos chegar a um acordo abaixo desse nível”. Mas talvez seu limite real seja um pouco mais baixo do que o que você mostra. Ser capaz de ser flexível é também algo importante porque, como defensoras do feminismo, vamos continuar fazendo isso por um longo tempo. Não creio que em vida ainda possa ver o mundo utópico feminista que todas nós gostaríamos de ver. Tenho certeza disso. Talvez algumas de vocês o façam, mas não creio que eu o possa ver! Vamos estar nisso por longo tempo; estamos pensando em uma transformação tão massiva que tão cedo não vai acontecer. Mas também temos que viver para lutar mais um dia, temos que estar vivas para poder lutar amanhã, e a arte de ser flexível é que possamos dizer também: “muito bem, vamos retroceder um pouquinho neste momento para poder voltar mais tarde”. Não se dar por vencidas, mas tampouco lutar a ponto de encontrar-nos destruídas a cada minuto e ficar tão acabadas que não possamos fazer nada além disso. Uma vez mais penso que as pessoas que são boas em advocacy em qualquer nível conhecem isto muito bem no seu trabalho: quando retroceder, quando dar um pequeno passo para trás. Uma analogia mais militarista do Zen é a tática da guerrilha: dar dois passos para frente, um passo para trás, mover-se para este lado; se não se pode ir ali, então se vai lá, dá-se a volta, faz-se o que for necessário. A arte de advocacy é realmente construir e criar constantemente aqueles canais pelos quais e desde os quais se possa de fato perceber os espaços para avançar. f. Integridade e princípios básicos Há dois temas sobre os quais espero falar no final, e é algo que aprendi em DAWN – a importância da integridade e os princípios básicos. E estou dizendo isto logo depois de falar de flexibilidade, porque não podemos ser flexíveis até o ponto de que não nos reste nenhum princípio básico, até o ponto de fazer seja lá o que for. É extremamente importante conhecer quais são esses princípios e ter a integridade de mantê-los. Falarei disso mais tarde. g. Construção de alianças Outro tema extremamente importante é o valor das alianças. Advocacy não é algo que possamos fazer sozinhas como feministas; pelo menos não neste mundo. Não temos suficiente poder como movimento feminista para ser capazes de fazer as mudanças que desejamos sem alianças. Deveríamos, porque, como mulheres, sabemos qual a porcentagem da raça humana quesomos! Mas como feministas somos um grupo muito, mas muito menor. Portanto é essencial a Página 3 de 4 construção de alianças efetivas. Estes são apenas alguns princípios gerais da prática de advocacy de DAWN ao longo dos anos. Contexto econômico e político Agora desejo abordar o atual contexto político e econômico e que classes de espaços estão se abrindo ou fechando para nós como feministas em nosso trabalho de advocacy. Por causa da falta de tempo, não vou me alongar muito sobre os contextos nacionais e regionais. Vou falar principalmente dos espaços globais, embora o que sucede no âmbito global tem implicações nos outros níveis. No entanto temos que reconhecer que aquilo que está acontecendo no nível nacional e regional não tem necessariamente que estar sempre sincronizado com o que acontece globalmente. Pode haver muito melhores (ou piores) espaços no nível nacional ou regional do que no nível global. Portanto, se no âmbito global as coisas são vistas de certa forma, não significa que aconteça o mesmo nos outros níveis. Mas essa ausência de sincronicidade ou sincronização não significa que não existam vinculações. Sempre há vinculações e essas vinculações é que temos que tratar de entender e sobre elas é que temos que atuar, ao mesmo tempo em que reconhecemos as diferenças que poderiam existir em nossos diferentes contextos. Uma participante do Líbano já formulou esta pergunta: O que devemos fazer em contextos em que a situação das mulheres é muito diferente, onde não é como a do Uruguai, mas é outra coisa? É claro que esta é uma pergunta muito importante. Espero que possamos voltar a ela na discussão. Vamos dar uma olhada às semelhanças mais amplas. Não falarei sobre o que todas já sabemos – quais são os desafios globais no âmbito político e na economia em termos de globalização, desigualdade; das transformações que estão acontecendo na economia e na política, das dificuldades nas situações políticas, da militarização, dos riscos e dos perigos causados pela decadência da hegemonia norte-americana. A queda de um poder imperial é sempre um perigo e isso é o motivo de estarmos agora numa situação internacional muito perigosa. Voltando ao básico Finalmente, desejo voltar sobre os princípios básicos: o que significa ser progressista no mundo atual? Sabemos já há algum tempo que ser progressista em matéria de igualdade de gênero e direitos das mulheres atravessa transversalmente a tradicional linha esquerda-direita de forma muito diferente. Podem existir governos de esquerda que sejam horríveis em matéria de gênero, outros governos de esquerda que sejam bons; podem existir governos de direita que não sejam tão ruins em matéria de gênero e outros de direita que sejam terríveis nesse aspecto. Sabemos qual é a melhor situação e qual é a pior situação, mas a realidade é que não há uma congruência automática entre ser progressista em matéria de gênero e ser progressista no sentido econômico tradicional. Portanto, o que fazer nesse contexto? Mais importante ainda: O que fazer em relação aos governos socialistas, em particular, que aparentam ser bastante progressistas também em matéria de gênero? Podemos assumir automaticamente que vão fazer o que é correto? Creio que aqui eu diria que a experiência nos ensina que não podemos fazer tais suposições. A prova não está no falar, e sim no andar. Por isso, eu diria que, na medida em que avançamos em nosso trabalho de advocacy, necessitamos desenvolver o que em DAWN chamamos de “Ponto de Referência para a Prestação de Contas” (“Accountability Benchmark”), que se trata basicamente de como nós, as organizações feministas, deveríamos estar trabalhando com outros atores, aliando-nos a outros atores, seja com os governos ou com outros. Isto se aplica especialmente, e mais que a qualquer outro, àqueles que dizem serem nossos amigos. Já sabemos o que fazer com aqueles que não dizem serem nossos amigos; o problema é que não sabemos o que fazer com os nossos amigos. A aí reside, em minha opinião, a importância de fazer advocacy sempre desde uma postura crítica. É o ponto primordial para evitar a cooptação. Agradecemos a Choike (www.choike.org) pela transcrição de este discurso. Traduzido ao português por Beatriz Cannabrava. Página 4 de 4