8
Tchau (1984)
Vivemos uma febre de prateleira. As pessoas precisam de rótulos para saber onde vão
alocar você.
(Leandra Leal)
Há alguns anos, uma moça chamada Raquel me lembrou a personagem de
A bolsa amarela. Ela exultou com minha associação. Disse que, em criança, era
tão apaixonada pelo livro que ganhou uma bolsa amarela da qual não se
desgrudava. A idéia de me emprestar o primeiro volume do Harry Potter foi dela.
Logo li e adorei. Depois, em 2003, fui te encontrar numa Roda de Leitura, no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
CCBB1. Lá, um leitor perguntou sua opinião sobre os livros do Harry Potter. Você
disse que não tinha lido nenhum dos volumes e que não pretendia ler. Outras
pessoas da platéia elogiaram bastante a série. Você fechou a questão assim: ―Mas é
uma receita?‖.
Sabe, achei bem exagerado seu desprezo pela ―receita‖. Afinal, nos seus
dois primeiros livros, você seguiu uma à risca. Depois de anos escrevendo para
rádio e televisão, usou as regras aprendidas e deu show. Você fala desse trabalho
no primeiro livro de memórias: ―Mas nesse tempo [em que trabalhava para rádio]
o meu envolvimento com a escrita não mexia o fundo de mim; era um jeito
aprendido de escrever, digamos assim; eu lia e observava como é que se escrevia
pra rádio e depois seguia o modelo. Quando eu passei a traduzir, adaptar e escrever
peças para a televisão, eu fazia a mesma coisa; e só lia livros de peças ou de como
escrever pra tevê…‖ (Bojunga, 1988: 49)
Ao fechar a questão sobre o best-seller daquela maneira, porém, você abriu
este caminho de reflexão por onde sigo. Na hora, achei que sua opinião se devesse
ao fato de a autora ter feito uma série de livros a partir do sucesso do primeiro.
Hoje, observo que, neste caso, valeria ler ao menos o primeiro… Não sei. Outro
dia, fiquei folheando vários desses livros juvenis norte-americanos que vêm sendo
publicados em série. Eu queria te dizer alguma coisa aqui para avançar nesta
1
O projeto Rodas de Leitura, criado e coordenado por Suzana Vargas, durante 13 anos levou mais
82
reflexão sobre a ―receita‖, mas não consegui pensar em nada. É tão difícil, Lygia,
definir o limite entre a repetição da técnica aprendida e o uso dessa técnica para
levar a palavra adiante... Em Tchau, aliás, você ainda apresenta traços fortes
daquela receita aprendida nos tempos em que trabalhou para rádio e televisão.
A idade do leitor
Neste, porém, que é seu único livro de contos, desponta uma característica
que vai permanecer na sua obra futura chegando, até mesmo, a contaminar minha
leitura de seus livros anteriores: a indeterminação da faixa etária do leitor
implícito. O livro foi lançado em 1984 como infanto-juvenil. Logo mereceu dois
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
prêmios relativos ao gênero: no Brasil, ―O melhor para o jovem‖ (FNLIJ, 1985) e,
na Alemanha, entrou para a ―Seleção dos melhores livros da Biblioteca
Internacional da Juventude de Munique‖ (1987). Recentemente, sua própria
editora manteve a classificação, mas inseriu o ―Pra você que me lê‖, texto que
ainda não apresentou características de literatura infantil ou juvenil.
Aliás, acabo de ler Problemas da Literatura Infantil, de Cecília Meireles.
Achei que a autora de Ou isto ou aquilo e Olhinhos de gato iria finalmente me
ajudar a relacionar as características do texto literário infanto-juvenil. Mas Cecília
só me ajudou a intensificar minhas dúvidas. Disse ela em 1951:
Evidentemente, tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se
considera como especialmente do âmbito infantil.
São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência. Costuma-se
classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado,
talvez, assim classificar o que elas lêem com utilidade e prazer. Não haveria, pois,
uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori.
A confusão resulta de propormos o problema no momento em que já se
estabeleceu uma ´literatura infantil´, uma especialização literária visando
particularmente os pequenos leitores. Mais do que uma ´literatura infantil´ existem
´livros para crianças´. Classificá-los dentro da Literatura Geral é tarefa
extremamente árdua, pois muitos deles não possuem, na verdade, atributos
literários, a não ser os de simplesmente estarem escritos. Mas o equívoco provém
de que a arte literária é feita de palavras, não basta juntar palavras para se realizar
obra literária. (Meireles, 1984: 20-21)
Tenho um casal de amigos que adora Tchau e considera os contos bastante
pesados. Ela é psicanalista e ele, que é cineasta, chegou a te pedir os direitos para
de 400 escritores ao auditório do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), no Rio de Janeiro.
83
adaptar o conto que dá nome ao livro, mas você negou. Foi este mesmo conto que
impressionou minha cunhada Dani. Quando leu, estávamos hospedadas no mesmo
apartamento e me lembro de sua fisionomia alterada. Sentiu até certa raiva de
você, por tanta violência na vida da Rebeca. É, Lygia, esse teu livro é forte!
Seus três leitores mencionados têm entre 30 e 40 anos. Você costuma
mesmo dizer que não escreve pensando na faixa etária de quem vai te ler. É como
disse a Laura Sandroni em crítica a este seu livro na época do lançamento: ―Tchau
é livro para ser lido por todos os que apreciam a literatura e reconhecem, sem
preconceitos, uma obra de arte.‖ (Sandroni, 2003: 154)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
O impacto e o mar
Algumas cenas de seus contos permanecem comigo, dia a dia. Em
―Tchau‖, Rebeca fazia um castelo na areia da praia e sua mãe olhava para o mar,
procurando nele a coragem para dizer: ―Rebeca, eu vou me separar do pai: não tá
dando mais pra gente viver junto‖. (Bojunga, 2005a: 22) Depois, Rebeca escuta o
pai dando um ultimato à mãe: ―Se você não leva eles agora, eu não deixo você
levar nunca mais. Abandono do lar, da família, de tudo: a lei vai estar do meu lado.
Então você escolhe: ou ele ou as crianças‖. (Bojunga, 2005a: 29)
Já Tuca, revoltado com o contraste entre sua vida na favela e o que acaba
de ver na casa de Rodrigo, se joga e ao amigo na mistura da água de poça com o
lixo acumulado. O conto se chama ―O bife e a pipoca‖ e mostra o nascimento da
amizade entre um menino pobre e um menino de classe média, em cujo colégio o
primeiro consegue uma bolsa de estudos. Em ―Lá no mar‖, o temporal é terrível e
as ondas levam o pescador, sob o olhar agoniado do barco. Este não podia
imaginar sua vida sem o amigo, mas não tinha braços para evitar que morresse.
Permanece também comigo aquela cena, Lygia, em que a narradora de ―A troca e
a tarefa‖ dá de cara com o noivo da irmã mais velha - e vê que é justamente o
rapaz de quem ela também gostava.
Mas o impacto de seus contos não se dão sem um preparo. Cada um deles
trata de um conflito que cresce cena a cena, desde o começo até o fim. E seu zelo
narrativo não pára por aí. Cada uma das cenas apresenta também uma tensão
84
crescente até o clímax, que dá lugar à conclusão. Para exemplificar, selecionei
parte do diálogo entre Rebeca e o pai, no bar. Ela o tinha visto ali por acaso e
insistira em sentar-se com ele. Na mesa, já encontrara muitos copos vazios. O pai,
bebendo mais um, comentou que nunca havia notado a semelhança entre a filha e a
mulher. Ele se debruçou para observar de mais perto e Rebeca também se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
debruçou para falar (que belo olho-no-olho para o filme do meu amigo!):
- Eu vou pedir pra mãe não ir. Eu vou pedir tão forte, que ela não vai, você vai
ver.
O pai fechou o olho:
- Eu queria que o tempo já tivesse passado e que eu já tivesse me esquecido dela.
- Eu vou pedir pra ela não ir embora; deixa comigo, pai.
- Eu queria que você e o Donatello já fossem grandes. O que que eu vou fazer
com vocês dois? me diz, me diz! Eu não tenho jeito com criança.
- Eu vou pedir.
- O que que eu faço com vocês dois, Rebeca?
- Deixa comigo, pai, eu te prometo que eu não deixo a mãe dizer tchau pra gente.
- Promete?
- Prometo. E agora pára de beber, tá?
- Tá. (Bojunga, 2005a: 33)
Rebeca não consegue cumprir a promessa, a mãe diz ―tchau!‖ e vai. Mas
nesta edição você encontrou um jeito curioso de continuar essa história. Incluiu
Rebeca na ficha técnica, como ilustradora, e acrescentou, a cada um dos quatro
contos, um desenho de mar. No próprio ―Tchau‖, vê-se o barco que Rebeca
desenhava enquanto a mãe se arrumava para ir.2 No conto do barco, um barco
também é desenhado sobre o mar, mas dentro dele há uma casa, com árvore e
tudo. É que o barco reencontra a razão de viver na companhia de uma criança que
o deixa parado, na areia, a abrigar brincadeiras.
Em ―O bife e a pipoca‖, o mar tem peixes, pois assim que Guilherme e
Tuca fizeram as pazes, foram pescar juntos. Curioso também é que, entre os
peixes, Rebeca desenhou uma sereia que tem toda pinta de auto-retrato… Menina,
ela fez ainda um coração bem no peito… Lygia, estou começando a achar que o
Rodrigo e a Rebeca estão namorando… Um livro por vir? Aliás, deve ser esta a
Rebeca que antes se chamava Renata3. E o Rodrigo se refere a uma Renata, colega
2
―Rebeca fingiu que nem tinha visto a mala da Mãe aberta em cima da cama e já quase pronta pra
fechar. (….) Fingiu que estava desenhando um barco.‖ (Bojunga, 2005a: 34)
3
Em texto publicado doze anos depois, você conta que encontrou a seguinte anotação num caderno
85
de turma! Ele diz, sobre duas meninas novas no colégio: ―Uma é metida a besta,
mas em compensação se chama Renata que eu acho um nome lindo. A outra
parece legal, mas não desgruda da Renata‖. (Bojunga, 2005a: 45)
Rebeca (ex-Renata?) ilustra ―A troca e a tarefa‖ com um livro que bóia,
entre os peixes, num mar iluminado pelo sol que se vê pela metade (ou nasce ou se
põe). Na capa do livro vê-se o nome do irmão dela, ―Donatello‖, sobre o desenho
de mais um barco. No dorso do livro, está escrito ―Rebeca‖.4
Mas o nome da ilustradora não é a única curiosidade da ficha técnica de
Tchau. Ela informa ainda que a ―caligrafia‖ é da autoria de Rodrigo. Rodrigo, de
―O bife e a pipoca‖, conta parte da história em carta, que parece mesmo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
manuscrita por criança. Lygia, isso que é brincar de fazer livro… Me lembra uma
vez que, para entregar um como trabalho de escola, criei um nome para a editora,
fiz parecer tratar-se de um volume de uma série e até mesmo redigi um prefácio
―do editor‖, explicando o propósito das publicações…
―Transformar‖
No conto ―A troca e a tarefa‖, a narradora conta que desde criança costuma
―transformar‖ elementos da vida particular em ficção. De forma figurada, diz que
se deu conta, aos nove anos, do ciúme que sentia da irmã mais velha. Anos depois,
entusiasma-se por um rapaz que lhe inspira o primeiro escrito:
Quando eu soube que o nome dele era Omar eu fui pro quarto e escrevi
uma poesia chamada O mar.
Foi a primeira coisa que eu escrevi. Aquela poesia pro Omar. E eu me
senti tão feliz.
Eu nunca tinha me sentido assim feliz; fiquei pensando que era por causa
do Omar (nem pensei que podia ser por causa da poesia). (Bojunga, 2005a: 90)
Passam-se meses, até que ela se dá conta de que Omar tornou-se noivo de
antigo: ―Fazer a Renata se chamar Rebeca‖. (Bojunga, 2005a: 132)
4
Aí já tenho um romance: digamos que a história de Rebeca se passasse exatamente como você a
conta, mas enquanto isso ela estava vivendo outra experiência difícil: a entrada num colégio novo,
na turma de Tuca e Rodrigo. O sofrimento com a atitude da mãe a leva a escrever. Então a história
dela absorve a do outro conto, ―A troca e a tarefa‖. O conto do barco poderia ser escrito por ela, na
linguagem dela, de criança. Pois a solidão do barco pode ser a solidão dela e o apelo do menino
para o barco brincar com ele pode se relacionar no texto do romance ao apelo do Rodrigo para
namorar com ela. Lygia, ficaria fofo.
86
sua irmã. Então, procura alívio à beira-mar:
Lá na praia tinha pouca estrela, barulho manso de onda e a lua era quarto
minguante. Tirei o sapato e fui pela areia. Já ia entrando no mar. Mas senti medo.
Dei pra trás. Me deitei na areia e fiquei lá tanto tempo que acabei dormindo.
(Bojunga, 2005a: 95)
Um sonho mudará sua vida. Nele, ouve uma voz que aconselha: ―Escreve a
história dessa dor e eu te livro dela. É uma troca: eu te prometo‖. (Bojunga, 2005a:
97) Ela aceita: ―Fiz que nem na poesia: transformei o Omar no mar‖, explica.
(Bojunga, 2005a: 98) A história fica grande e se torna um romance: ―Então,
quando a história ficou pronta, a vontade de morrer tinha sumido; o amor pelo
Omar também: no lugar deles agora só tinha a história deles‖. (Bojunga, 2005a:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
98)
O ciúmes da irmã, porém, continuou, então procurou ―transformá-lo‖:
―Tudo o que o Ciúme tinha feito eu sofrer eu transformei em aventuras que
aconteciam com aquele pássaro‖. (Bojunga, 2005a: 99) Foi a origem do segundo
livro. Passou então ao terceiro, ao quarto…
(….) pegava a lembrança de uma amiga de infância que eu nunca mais tinha visto,
imaginava a vida que ela tinha levado, virava ela num personagem principal;
pegava o quarto de um hotel em que eu tinha ficado numa viagem e virava ele
num capítulo; pegava a vontade que eu tinha tido aos 10 anos de ser astronauta e
transformava ela numa viagem espacial em 200 páginas; pegava a saudade da
minha mãe que tinha morrido (ela se chamava Violeta) e transformava a saudade
num buquê que o herói do meu último livro ia dar pra namorada. (Bojunga,
2005a: 101)
Um dia eu dei pra transformar coisa curta:
transformava uma dor em vírgula;
virava um alívio em ponto de exclamação;
transformava uma esperança em interrogação.
Gostei. Me senti meio feiticeira.
Escrevi 26 livros. (Bojunga, 2005a: 102)
A partir daí, a história se torna… Inverossímil? Piegas? Chata? Vamos aos
fatos: a narradora conta que, quando estava escrevendo o último capítulo do 27o
livro, o mesmo sonho voltou, com a mesma voz, dizendo outra coisa: ―Cada um
tem uma tarefa na vida: a tua é escrever 27 livros. Na hora que você botar o ponto
final no vigésimo sétimo livro, a tua tarefa vai estar acabada e a tua vida vai
terminar‖. (Bojunga, 2005a: 105) Ela interrompe o livro que estava terminando e
87
passa a evitar concluir qualquer outro, enquanto adoece sem que os médicos
consigam explicar o motivo. Finalmente se rende ao fato de que não pode deixar
de escrever e, ao tomar a decisão de finalizar o capítulo interrompido, morre: ―a
ponta do lápis fincada na paixão‖. (Bojunga, 2005a: 101)
Lygia, as idéias de troca, tarefa e transformação mereciam uma história
melhor… Desse jeito ficou ruim... Mesmo no início, quando você fala em
transformar ciúme em pássaro, o que uma coisa tem a ver com a outra…? Não
funciona...5 Já em relação ao aviso da morte, do que se trata…? É alguém que
entra numa paranóia de que vai morrer, chega a sonhar que sua morte está prevista
e de fato contrai uma doença terminal…? É um conto que fantasia a vocação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
literária como uma missão determinada por Deus…? Ou determinada pelo
destino…?
A dúvida neste caso não pode ser atribuída à multiplicidade de sentidos
potenciais que se encontra no restante de sua obra, mas a uma indefinição anterior,
Lygia. Não se trata de se poder ler de um jeito ou de outro, mas de você não ter
chegado a escrever nem uma coisa nem outra. Inclusive ―A troca e a tarefa‖ não
tem nenhuma característica de literatura infanto-juvenil, destoando assim dos três
outros contos que compõe o livro. Imagino sua dificuldade para levar a cabo essa
história! Parece que desejava ilustrar seu próprio jeito de ―transformar‖ (escrever)
mas não encontrou a tal ―frase verdadeira‖ de onde partir…
A ―frase verdadeira‖
Eu me refiro ao famoso conselho de Hemingway, que diz ser possível
engrenar um texto desde que se parta de uma frase verdadeira – simples e sem
ornamento:
às vezes, quando iniciava um novo conto e não via jeito de continuá-lo, sentavame junto ao fogo, espremia nas chamas as cascas das pequenas laranjas-cravo e
espiava as fagulhas azuis que elas faziam. Levantava-me, punha-me a contemplar
os telhados de Paris e pensava: ―Não te aborreças. Sempre escreveste antes e hás
de escrever agora. Tudo o que tens a fazer é escrever uma frase verdadeira.
Escreve a frase mais verdadeira que souberes.‖ Assim, finalmente conseguia
5
Já nos outros exemplos, acredito: uma amiga de infância de quem não se tem notícias, pode-se
transformar a saudade dela numa suposição do que tenha se tornado a vida dela. Uma vontade que
se teve de ser astronauta, numa viagem espacial. A saudade de uma pessoa com nome de flor, num
buquê dessa flor. E até mesmo o Omar em mar, por que não?
88
escrever uma frase verdadeira e avançava a partir daí. A coisa não era tão
difícil, nessa época, porque havia sempre uma frase verdadeira que eu
conhecia, tinha lido ou ouvido alguém dizer. Se começasse a escrever
rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma
coisa, achava logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los
fora, e começar com a primeira proposição afirmativa, verdadeira e simples
que tivesse escrito. (Hemingway, 1967: 16)
A escritora norte-americana Francine Prose considera que ―O que torna o
conselho de Hemingway tão difícil de seguir é que ele nunca explica realmente o
que ―verdadeira‖ significa.‖ (Prose, 2007: 70) Francine, que foi professora de
literatura e de criação literária por mais de vinte anos, em universidades como
Harvard, Iowa e Columbia, supõe que Hemingway ―estivesse simplesmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
confundindo verdade com beleza. Possivelmente o que de fato tinha em mente era
uma frase bonita — um conceito que, como vimos, é quase tão difícil de definir
quanto o de frase verdadeira.‖ (Prose, 2007: 70)
Discordo dela. Para começar, Hemingway não estava dando conselho aos
escritores que viriam depois. Ele estava apenas anotando suas memórias de
juventude - a passagem em questão é um trecho do livro Paris é uma festa. Além
disso, por ―verdadeira‖ ele poderia estar falando de frases não exatamente bonitas,
ora. Ele fala, isso sim, em frases que ouve dizer. Faz três anos que anotei uma
linda. Num ônibus, sentada perto da roleta, ouvi uma moça dizendo ao trocador
que, dias antes, havia esquecido algo num ônibus da mesma linha. Ela queria saber
se podiam ter guardado seu pertence na garagem da empresa rodoviária. Ele
respondeu: ―Possa ser que teja lá, como pode não estar. Agora... ajuda Deus que
sim, né?‖
Lygia, talvez o Hemingway estivesse simplesmente se referindo a uma
simplicidade que se diferencia de um certo literário rebuscado, que não precisava
ser escrito ou que precisa ser escrito apenas para satisfazer a vaidade do autor
(―Olha só como posso escrever bem!‖). Quanto a mim, confesso que já caí na
cilada de escrever para me exibir. Frases de efeito. Retórica. Isso é horrível,
porque põe a gente longe da gente mesma – você não escreve o que você quer
escrever, mas o que você pensa que vai encantar o outro. Fiz isso. Nunca por mal,
claro. Foi para pedir que gostassem de mim. Por favor, me fala que escrevo bem?
89
Falaram.
Eram frases não-verdadeiras. Frases das quais tento hoje distanciar-me para
manter-me perto de mim. No segundo grau, meu professor de português escreveu
em caneta vermelha e entre aspas que a minha redação estava com frases
―complexas‖ demais. Quando você é adolescente, precisa se afirmar de alguma
forma. Esse professor era o querido Nelson Santieve, a primeira pessoa que me
disse que eu era escritora. Eu tinha que manter essa imagem para ele e de vez em
quando saía do tom, com uma complexidade fora de hora.
Lygia, é nos meus cadernos que encontro o simples de onde partir. E não
precisa ser nos antigos. Podem ser bem atuais. Atualíssimos. Estarei sempre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
escrevendo esses cadernos de exercícios híbridos, entre o diário e a ficção. Em
meio a uma atividade corriqueira, escuto a minha voz e tomo nota: ―A mãe que eu
queria ter tido é a mãe que eu fui pra ela‖, disse-me. Desta frase verdadeira, posso
enfim partir - escrever.
Aos 25 anos passei para o computador muito do que já havia escrito em
cadernos, foi então que notei o quanto ler meus próprios escritos funcionam para
me inspirar a escrever mais. Então passei a me ler/ escrever com freqüência. Então
passei a ver a mim mesma como escritora. Vi o quanto de literatura eu já havia
escrito naqueles cadernos de exercícios. Aos 14 anos, por exemplo, deslocada num
grupo de meninas, desabafara: ―Elas não têm o meu jeito de ser!‖. Aos 18, em
dúvida sobre a opção a assinalar na inscrição para a faculdade, gritara por escrito:
―Eu quero desmaiar e acordar depois do vestibular!‖.
Aos 25, quando comecei a ler esse material, comecei também a selecionar
um trecho ou outro para digitar. Fui fazendo isso aos poucos, bem aos poucos.
Mas aos 29 anos já tinha um bom material digitado e passei a bordar um pedaço
com outro. Foi em março de 2000 que escrevi o primeiro texto dessa forma - ―A
noite de Maria‖. Dos meus contos é o que prefiro e me impressiona como as partes
bordadas não tinham originalmente nada a ver entre si e muito menos ainda a ver
com o enredo que criei a partir delas.
Outros bordados não sofreram transformação tão completa. Mas o que eu
descobri, quando passei a reler esses meus cadernos, não quero nunca mais
90
esquecer e repito: é neles que encontro o simples de onde partir (as minhas frases
verdadeiras). É como você diz no último conto comentado: ―Achei tão bom poder
transformar o que eu sentia em história, que eu resolvi que era assim que eu queria
viver: transformando. Foi por isso que eu me virei em escritora.‖ (Bojunga, 2005a:
100)
―Pra você que me lê‖
Lygia, eu sempre tinha ouvido definirem literatura infantil como aquela
que a criança também pode ler. Quando comentei essa definição com minha
professora Vera, ela disse que não, que literatura infantil é aquela que o adulto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
também pode ler. Eu não diria uma coisa nem outra. Acho que depende do caso.
Neste seu livro, por exemplo, ―Lá no mar‖, ―Tchau‖ e ―O bife e a pipoca‖ são
contos no limite entre o infantil e o juvenil que o adulto pode apreciar (seu leitor
ideal teria entre dez e doze anos).
Publicados num livro catalogado como infanto-juvenil, esses contos se
enquadram na segunda definição: é a literatura ―que o adulto também pode ler‖.
Mas se os mesmos contos estivessem num livro pensado para o público mais
velho, eles seriam considerados literatura ―que a criança também pode ler‖. Em
relação ainda a esta edição de Tchau, ―A troca e a tarefa‖ e o ―Pra você que me lê‖
são textos de outra natureza. Eles não apresentam as características de literatura
infantil ou juvenil. Quanto ao primeiro, eu não arriscaria definir, mas o segundo é
dirigido a um leitor imaginado adulto.
Inclusive, acabo de saber do lançamento do seu 22o livro. Ele se chama
Querida, também trata do ciúme, e está sendo apresentado ao público durante o
11o Salão de Literatura Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro (estou em Lisboa). O
livro, no entanto, dirige-se ao público adulto. É o seu próprio site que informa:
―Quando perguntaram à Lygia se Querida é um livro para crianças e jovens, ela
respondeu: `É possível que também possa ser: depende do jovem e da
criança…´‖.6 Sendo assim, parece estranho que seja lançado neste evento,
promovido pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), mas não é
6
www.casalygiabojunga.com.br/novidades. Acesso em junho de 2009.
91
se minha impressão for de encontro aos fatos. Especulo que seus leitores se
vinculem à sua obra infanto-juvenil por dois aspectos: ou te lêem desde criança ou
são pais e professores de seus leitores (ou ex-leitores) mais novos.
Seja o que for, nos ―Pra você que me lê‖, parece que você tem se dirigido
sempre a um leitor imaginado adulto. Neste ―Pra você‖ de Tchau, você conta,
aliás, por que trocou a imagem da capa ao levar o livro para a sua editora. As
edições anteriores tinham um desenho de mar e só. Você trocou pela imagem do
quadro A solitária, do pintor norueguês Edvard Munch, que mostra uma mulher de
costas, com o mar à sua frente. Uma capa que em nada remete ao público infantojuvenil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
Ao ver o quadro pela primeira vez, você sentiu os personagens de Tchau se
levantarem após descansarem anos na sua memória: ―Mas agora, olhando ali para
A solitária, alguns dos personagens do TCHAU acordavam num pulo, feito coisa
que eu tinha recém-começado a dar vida a eles‖, você conta, para em seguida
explicar:
Ali estava a imagem criada pela mão de um pintor, me revelando, em outra
linguagem, o mesmo que a minha mão de escritora tinha procurado pintar nos
meus contos. Por que então não me sentir tomada pela sensação de familiaridade
se o pintor e eu falávamos de uma mesma sentença a ser cumprida: a solidão.
(Bojunga, 2005a: 11-12)
Lygia, a palavra ―sentença‖ usada para falar de ―solidão‖ ficou forte. Como
assim ―sentença a ser cumprida: a solidão‖? Você sente a solidão como uma
espécie de condenação? É curioso, porém, como o reconhecimento do que é
representado no quadro se dá numa ―sensação de familiaridade‖:
(…) a familiaridade que me vinha daquela figura era porque eu já tinha
me encontrado com ela, sim. (…) Eu tinha me encontrado com ela dentro de mim.
(….) eu tinha me encontrado com aquela figura de outro jeito:
vestida de Rebeca, se agarrando com força na mala que vai deixar ela sem
mãe;
vestida de Mãe, olhando perdida pro mar, querendo encontrar nele a força
para aguentar uma torrente de paixão;
vestida de Escritora, amarrada a uma mesa de trabalho pra poder criar e criando - poder viver;
vestida de Barco, empacado, lá no mar, preso a uma grande saudade.
Desta forma, ao levar o tema da solidão para suas obras, você e o pintor
92
estariam irmanados em alguma medida. Levar o sentimento da solidão como
sentença a ser cumprida, por um ou outro personagem, atenuaria em alguma
medida a sua sentença e a do pintor. Lygia, eu acho muito bonito esse modo como
você vive: ao levar A solitária para a capa de Tchau, você ainda procura irmanarse com seu leitor - num espaço imaginado - procurando compartilhar com ele comigo - a emoção que o quadro te provoca.
Neste ―Pra você…‖, inclusive, você fala diretamente na relação entre
escritor e leitor e confunde autor e objeto-livro. Segundo você afirma, ―quem
escreve‖ e ―quem lê‖ podem tornar-se tão ligados, que o leitor pode querer manter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
para sempre por perto um livro cujo texto tenha amado:
E, se quem escreveu o livro consegue mexer com o nosso pensamento e
balançar a nossa imaginação - pronto! aí se forma uma relação, um laço, que
amarra pra valer quem escreve com quem lê.
Essa amarração é tão gostosa, que vai ser difícil - vida afora - a gente
querer desatar. Eu sei disso por mim: os livros que eu li e amei estão sempre por
perto. Não só pra, volta e meia, dar uma namorada de olho com eles, alisar um
bocadinho a lombada, fazer uma festa na capa, mas também pra, de vez em
quando, convidar, vamos de novo? e lá ficarmos os dois, outra vez esquecidos do
mundo, nessa tal de amarração de quem escreve e de quem lê. (Bojunga, 2005a: 8)
Segundo você afirma, o livro é que é seu amigo ―pra valer‖ por fazer
companhia a qualquer hora e em qualquer lugar (mas cadeira de dentista parece
exagero…7). Minha professora Vera me perguntou se essa ―intimidade‖ entre
leitor e autor não seria uma simulação da sua obra. É uma boa pergunta e ela tem
duas respostas, sim e não. Não, porque como sua leitora eu sinto você muito
próxima mesmo. Sim, porque se eu te visse passando na rua, teria que me
apresentar se quisesse dar um ―oi‖. Não, porque conheço sua letra, que você
reproduz. Sim, porque o manuscrito é escaneado e você caprichou na letra para
isso, sim, porque você fez igual no ―Pra você…‖ de outros livros, não, porque,
quando você conversa pessoalmente com leitores, sejam muitos ou poucos, a gente
vê que você é mesmo quem escreve gostoso assim, nesse tom de conversa em
casa. O ―Pra você…‖ de Tchau, que está em questão, você termina assim:
7
―Mesmo porque ele [o livro] é o único amigo que nunca cria caso pra ficar com a gente seja onde
for: sala, quarto, banheiro, cozinha, sombra de árvore, areia de praia, fundo de sofá, fundo de
mágoa; e fica junto da gente mesmo no pior lugar do ônibus, do trem, do avião; enfrenta até numa
boa cadeira de dentista e leito de hospital‖. (Bojunga, 2005a: 8)
93
Quis também que as outras pouquinhas imagens que aparecem no livro
fossem, apenas, uns rabiscos que a Rebeca andou fazendo, e que eu encontrei
numa mochila velha que ela largou pra lá.
Bom… acho que era mais ou menos isso que, hoje, eu queria te contar
(Bojunga, 2005a: 15)
Sem receita
Lygia querida, é a partir deste sétimo livro que você aponta para si mesma.
Além do óbvio, que é o fato de uma das histórias ter como protagonista uma
escritora que é também a narradora e não sabe escrever ―de porta aberta‖ 8, eu me
refiro especialmente ao momento em que ela observa: ―Tudo tem lugar certo na
minha mesa, o papel, o lápis, o apontador, a borracha. Não sei transformar com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
máquina, só sei virar à mão: apagando, riscando, sentindo o cheiro do lápis (na
hora de fazer ponta, então!)‖. (Bojunga, 2005a: 102)
Mais tarde, você vai revelar que costuma fechar a porta do aposento em
que escreve até mesmo se não houver mais ninguém na casa e que tem redigido
quase sempre a lápis. (Bojunga, 1988) Além disso, Lygia, a partir deste dado
evidentemente biográfico, eu passo a te ver nesta rápida aparição no conto ―O bife
e a pipoca‖, quando o narrador se corrige sucessivamente:
Quando o Tuca saía da escola, ele ia direto ajudar um amigo a lavar carro.
Quer dizer, não era bem um amigo, era mais um patrão.
Ou melhor, não era bem um patrão, era mais um sócio.
Quer dizer, não era bem um sócio… Um momentinho: vamos começar
outra vez: quando o Tuca saía da escola ele ia direto ajudar um cara a lavar carro.
O cara era faxineiro de um edifício lá na Rua São Clemente. Ganhava salário
mínimo. Então, pro dinheiro não ficar assim tão mínimo, ele lavava os carros dos
moradores do edifício e ganhava em dobro. (Bojunga, 2005a: 57)
Nesse nível, você já esteve presente em livros anteriores. Nos seis, você
evidenciou num ou noutro momento a instância narrativa, sem que ela
predominasse como acontece de ―A troca e a tarefa‖ em diante. Aliás, esta não é
sua primeira narrativa na primeira pessoa do singular. A bolsa amarela já tinha
como elo entre suas diversas tramas a descoberta da vocação literária pela
protagonista e narradora Raquel.
8
―Levantava (levanto cedo), tomava café (com leite), escovava os dentes (já pensando o que que
eu ia escrever), fechava a porta (não sei transformar de porta aberta) e começava (….)‖. (Bojunga,
2005a: 100)
94
Mas é interessante que a instância narrativa predomine pela primeira vez
num conto cuja faixa etária do leitor implícito oscila entre o adolescente e o
adulto. Até então, seus livros eram notadamente infantis. Em Tchau, você publica
três contos entre o infantil e o juvenil, além de um cuja faixa etária do leitor
implícito não chega a se definir. Trata-se, porém, de um livro de contos, sem
dúvida. Você ainda escreve textos dentro do formato tradicional. Depois, já vieram
outros 15 livros. Seguindo a ordem cronológica das publicações, intuo um
progressivo afastamento da ―receita‖ que você desdenhou naquele dia, no CCBB.
Aliás, no livro de memórias já citado neste capítulo, você descreve a receita
de um best-seller que leu: ―um tanto de romantismo (era um ingrediente básico),
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
um tanto de violência, outro de erotismo (mas parece que ele tinha dificuldade de
encontrar esse ingrediente na forma pura e então acabava sempre usando um
quebra-galho, um tal de pornô); e aí ele salpicava suspense, misturava de um jeito
lá muito dele; e servia sem nem dar tempo de ir ao forno‖. (Bojunga, 1988: 18)
Você leu bem o que escreveu? Viu que, segundo você mesma, a tal mistura é o
jeito de o autor misturar? Se é o jeito que ele tem, Lygia, eu francamente não vejo
problema nenhum. A gente também não quer fazer tudo do nosso jeito? Este livro
que te escrevo não reflete, justamente, a nossa teimosia?
Engraçado que, no sentido contrário, alunos da Estação já me perguntaram
se um ou outro texto deles tinham características de conto… Um dia, aconteceu
algo assim comigo. Vai ver que essa preocupação é mesmo comum a quem
começa a escrever. Parece que, nesse momento, preferimos caber o mais possível
nos gêneros. (Mesmo que já tenhamos em mente a idéia de vir a escapar deles...)
Uma dessas alunas, aliás, adorou seu livro Feito à mão justamente porque, em
alguns momentos, lembra um diário de viagem que ela escreveu: ―Mas eu não
achava que estivesse fazendo literatura‖, disse.
Parece, portanto, que seus contos são um marco, uma passagem para um
exercício criativo que procura dizer sempre mais. Antes deles, você se sentia
presa? Agora deve estar muito bom! Sentir que o tempo passou, que as amarras
ficaram bem lá atrás... (Andei meio pessimista, andei achando que não ia
conseguir…) Obter, enfim, o que a receita não permitia (Clarice: ―Só quando falha
95
a construção é que obtenho o que ela não conseguiu‖). Colocar-se disponível para
o acaso, tirar proveito do vazio, deixar que o texto diga o que ele quiser. Deixar
que o texto seja escrito pelo outro que me habita. Também, claro, reconhecer que
há limites intransponíveis. Até mesmo, quem sabe?, aprender a amar alguns desses
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610658/CA
limites. Se não fossem os meus, aliás, eu já seria uma gata persa…
Download

8 Tchau (1984) - Divisão de Bibliotecas e Documentação PUC-Rio