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“LÁ E AQUI”: percepções sobre os discursos antitabagistas no Vale do
Rio Pardo/RS
“THERE AND HERE ": perceptions about the antismoking speeches in the
Vale do Rio Pardo / RS
1
Carlise Schneider Rudnicki
Resumo: Este trabalho analisa percepções de jornalistas e produtores de tabaco
do Vale do Rio Pardo/RS sobre os discursos da saúde pública. Na arena discursiva
midiática, a disputa entre os interesses públicos e privados tensiona o direito à
liberdade individual e o controle do Estado; a saúde pública e o acontecimento da
doença e da morte; o trabalho e a geração de riqueza e desemprego e a
capacidade econômica limitada. Para tanto, foram realizadas entrevistas com
jornalistas e organizados grupos de discussão (GAMSON, 2011). Para os
entrevistados, as políticas públicas de saúde antitabagistas são consideradas um
problema do centro do país, alheio às regiões produtoras, ou seja, em territórios
nos quais ONGs e órgãos de saúde atuam. Percebe-se, pois, que nos seus
discursos as questões políticas e econômicas se sobressaem às questões de saúde,
percebidas como entrave ao desenvolvimento da região.
Palavra chave: Comunicação. Saúde Pública. Antitabagismo.
Abstract: This study analyzes perceptions of journalists and tobacco producers of
Vale do Rio Pardo / RS on the speeches of public health. In media discursive
arena, the competition between public and private interests tensions the right to
individual freedom and state control; public health and the occurrence of disease
and death; work and the generation of wealth and unemployment and limited
economic capacity. Several interviews were held with journalists and organized
discussion groups (Gamson, 2011). According to the interviewees, the public
policy of anti-smoking health are considered a problem of the center of the
country, oblivious to the producing regions, that is, in territories in which nongovernmental organizations and health agencies operate. It is clear, therefore, that
in their speeches the political and economic issues stand out to health issues,
perceived as an obstacle to the development of the region.
Keywords: Communication. Public Health. Smokefree.
1.Cenários de disputas entre sociedade, política e comunicação
1
Este artigo busca desvelar as percepções de jornalistas e de produtores de tabaco do Vale
do Rio Pardo/RS sobre os discursos da saúde pública antitabagista. As disputas por legitimidade,
na teia de relações entre sociedade, política e comunicação, no âmbito da cadeia produtiva do
tabaco, têm se apresentado como importante espaço de pesquisa. Conforme Weber, se a política e
as mídias detêm o poder das palavras, são as palavras que “carregam a legitimidade de quem as
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pronuncia e, se adotadas adequadamente, como táticas, produzem efeitos reais. No discurso está o
poder da mídia e da política” (2000, p.13). Assim, na arena discursiva midiática, a disputa entre os
interesses públicos e privados tensiona o direito à liberdade individual (de plantar e fumar o
tabaco) e o controle do Estado.
O mundo mediado pela comunicação faz parte da forma como as comunidades humanas
produzem símbolos, como produzem visões, sentidos (significados) sobre o que é o real no mundo
social. Ou seja, tem-se a comunicação como um ‘processo de construção e disputa de sentidos’
(BALDISSERA, 2004). Assim, a função simbólica faz significar, fornece sentido, permite mentir,
criar. No entanto é preciso levar em conta as relações de poder nos processos comunicacionais. No
caso da cadeia produtiva do tabaco o cenário político e econômico vem sendo alterado
drasticamente.
O Brasil é o maior exportador mundial de tabaco e o segundo maior produtor mundial
(AFUBRA, 2014) e o cultivo encontra-se nos três estados da região Sul: Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná. Em 2005, quando o Brasil assinou um tratado internacional de saúde pública
denominado “Convenção-Quadro do Controle do Tabaco (CCQT)”, iniciaram alterações
consideráveis no cenário político e econômico em regiões produtivas. As ações e políticas oriundas
deste tratado de saúde já apresentam mudanças, como a diminuição da área plantada do tabaco e
uma queda no número de fumantes no país. A área plantada, apensar de um aumento na safra de
2013 de 3%, deste a assinatura do tratado encontra-se em queda (AFUBRA, 2014).
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS) o tabagismo é considerado uma doença
epidêmica responsável por cerca de 200 mil mortes por ano no Brasil. Conforme o Vigitel
(Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), em
2013, o número de fumantes baixou para 11,3%, a terça parte do índice de 1989, quando havia
34,8% de fumantes na população, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), (INCA, 2014).
Assim, de um lado tem-se as ONGs e órgãos do governo que, assumindo o tema saúde
pública como sendo de inquestionável interesse público, evidenciam os danos sociais, culturais e
econômicos que o tabaco gera à saúde pública (seja para os que trabalham na sua produção, seja
para seus consumidores) e, discursivamente, procuram desqualificar as organizações da cadeia
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produtiva do tabaco; de outro lado, as organizações do setor tabagista também tornam presente a
ideia do interesse público à medida que ressaltam o argumento da liberdade individual de escolha,
ou seja, o direito de os sujeitos poderem optar por fumar ou não, plantar ou não e, com isso,
apresentam-se como isentas de responsabilidade sobre tal decisão. Assim, na arena discursiva
midiática, a disputa entre os interesses públicos e privados sobre essa questão tensiona e contrapõe
o direito à liberdade individual e o controle do Estado; a saúde pública (o belo, o estético) e o
acontecimento da doença e morte (o feio, o degenerado); o trabalho e a geração de riqueza e o
desemprego e a capacidade econômica limitada.
No Sul do Brasil, conforme informado pela Associação de Fumicultores do Brasil, tem-se
cerca de 180 mil famílias produtoras (AFUBRA, 2014). Ainda segundo a AFUBRA, foram
produzidos no Brasil cerca de 84 toneladas de tabaco para o consumo interno (12% da produção
total) e 627 mil toneladas destinadas à exportação (88 % produção total). Apesar do cenário de
risco devido às políticas públicas e ações antitabagistas, a área plantada e o número de famílias
produtoras no país (Sul e Nordeste), em declínio nos anos de 2011 e 2012, em 2013 voltaram a
aumentar. Na safra 2012/2013. Dessa forma, tal cenário abrange não apenas questões de saúde
pública, mas políticas e econômicas. Para Rudnicki (2012) no sistema de produção de tabaco,
criado e controlado pelas empresas do setor, a produção de tabaco pelos agricultores gera uma
“zona de conforto”, ou seja, ao receberem na propriedade os contratos, os insumos e a assistência
técnica, passam a não buscar mais informações em outros locais e fontes.
Assim como outros países, o governo brasileiro se comprometeu a tomar medidas para o
controle (e estímulo à redução espontânea) do consumo de cigarros e assemelhados, bem como
implementar políticas e ações que possam salvaguardar as centenas de milhares de famílias cuja
subsistência, hoje, depende da produção do tabaco. Esse compromisso implica ainda na geração de
oportunidades para diversificação da produção e melhoria das condições de trabalho, saúde e
gestão ambiental nas áreas dedicadas ao cultivo de tabaco.
Inicia-se, a partir deste tratado, um intenso processo de comunicação pública. Ressalta-se
que na comunicação pública, seja aquela praticada pelas empresas ou pelo governo, o caráter
público apresenta uma intenção que transcende o societário (associação mercantil por cotas),
referindo-se ao societal, ou ainda, à convivência comunitária (ESTEVES, 2011). A partir desse
novo cenário influenciado pela CQCT percebem-se alterações nas imagens/representações sobre a
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produção de tabaco e seu produto: do glamour da tela dos cinemas para as restrições sobre o tabaco
e seu produto: o cigarro.
Nos territórios estudo têm sido organizadas pelos políticos e entidades ligadas ao setor do
tabaco. As reportagens produzidas no Vale do Rio Pardo/RS reforçam a saúde pública como um
problema para a região e não como um debate importante para a população. Esse cenário abrange
não apenas questões de saúde pública, mas políticas. Destaca Gamson (2011) que cada questão
política, objetivando a construção de sentido, apresenta um conjunto de ideias e símbolos usados
em fóruns públicos. Nessa direção, os discursos e práticas da saúde, carregados de símbolos e
ideias, podem ser considerados elementos relevantes para as mudanças institucionais na cadeia
produtiva desse cultivo. Dentre as questões institucionais que abalam o setor tabagista, a CCQT,
além de fomentar as proibições em publicidade e propaganda e a adoção de medidas em relação
aos aditivos nos cigarros, como o açúcar, também, indiretamente, exerce pressão para que sejam
implementadas ações governamentais no sentido de aumentar as cargas tributárias como
alternativas para a diminuição de acesso ao cigarro.
Diretamente articuladas a essas questões, na arena midiática (foco desta pesquisa),
organizações privadas, não-governamentais antitabagistas e órgãos governamentais voltados à
saúde pública, discursivamente, disputam visibilidade, credibilidade e, mesmo, legitimidade e
capital simbólico.
As reportagens produzidas no Vale do Rio Pardo/RS reforçam a saúde pública como um
problema para a região e não como um debate importante para a população. As audiências,
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organizadas por políticos envolvidos com a região, foram realizadas nas localidades de Herval
(Canguçu) e Rincão Del Rey (Rio Pardo), conforme o jornal, objetivaram discutir a posição do
Brasil na Sexta Conferência das Partes (COP6) da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco
(CQCT). A Reunião internacional, que acontece a cada dois anos, é uma iniciativa da Organização
Mundial da Saúde (OMS) e reúne representantes dos países que assinaram o tratado.
Mediante o acionamento de diferentes estratégias de comunicação, cada força em disputa
(empresas, ONGs, órgãos governamentais e outras forças) procura promover, tornar públicos seus
interesses e representações de mundo – suas “verdades” –, bem como obter opiniões favoráveis.
Nas práticas de comunicação, é possível pensar em disputa de sentidos uma vez que os
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interlocutores sempre estabelecem relações de forças com bases em informações e saberes que
permitem a utilização de estratégias de comunicação com o objetivo de direcionar ou manipular a
individualização dos sentidos.
Em sentido estratégico, cada organização, mais do que avaliar os alvos e as ameaças, seus
pontos fortes e fracos, tende a (e é provável que o faça) estudar os códigos culturais das forças
contrárias para, a partir disso, implementar estratégias que possam diminuir o nível das resistências
de tais forças que, de alguma forma, não compactuam com os desejos e fazeres da organização que
se apresenta. Portanto, ressalta-se neste trabalho a importância de entender o tensionamento entre
as organizações voltadas à saúde pública, tais como ONG`s, a Comissão Nacional para
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Implementação da Convenção-Quadro (CONICQ) , a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), o Instituto Nacional de Câncer (INCA) e a sociedade civil. Outro assim, importa
refletir sobre as consequências destas relações para o debate e a efetividade das políticas públicas
nestas regiões, as quais não têm alcançado êxito no que tange à adesão das famílias rurais nos
programas de diversificação das propriedades.
2.Sobre os Procedimentos Metodológicos
Esta é uma pesquisa de caráter teórico-empírico. Primeiramente foi efetuada revisão de
literatura sobre o tema de estudo – sistema produtivo do tabaco –, questões contextuais e
estruturais, sistema político-econômico, pesquisas online no jornal “A Gazeta do Sul”. A Gazeta
faz parte de um grupo local (rádio e jornal), concorrente do Grupo RBS TV Santa Cruz do Sul
(filada da Rede Globo). Também foram feitas leituras sobre temas fundamentais para os objetivos
de estudo, tais como: comunicação; comunicação pública; comunicação organizacional; relações de
poder (em particular a questão do poder simbólico); discurso e mídia; estratégias discursivas;
estratégias de visibilidade e legitimidade. Para aprofundamento da pesquisa e no intuito de
compreender o fenômeno em estudo foram empregados os seguintes procedimentos metodológicos
para a investigação empírica: entrevistas individuais e a realização de grupos de discussões como
unidades de análise. O trabalho de campo foi realizado no Vale do Rio Pardo, Rio Grande do Sul,
no decorrer do ano de 2014. A opção por essa região deve-se ao fato de ser a mais representativa na
produção do tabaco no Brasil. Além disso, muitas empresas localizam-se geograficamente no Vale
do Rio Pardo.
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Foram executados três grupos de discussão com população rural e dez entrevistas
individuais com jornalistas. Aponta-se que as respostas mantiveram-se similares no que tange à
questão norteadora dos grupos de discussão (de que forma as notícias/informações sobre políticas
públicas antitabagistas têm sido percebidas pelos comunicadores e pela população da região em
estudo). Importa ressaltar que a autora trabalha com pesquisa na região desde 2006, o que
propiciou uma facilidade para recrutar os participantes. O critério de escolha dos grupos de
discussão foi: a) sujeitos produtores de tabaco do Vale do Rio pardo/RS e b) produtores com certo
grau de proximidade (parentesco ou amizade). Para definir-se a quantidade de grupos e indivíduos
(jornalistas) entrevistados considerou-se o critério da saturação, quando as respostas começavam a
repetir-se, sem acréscimo de novas informações. Também foram feitas entrevistas em “paragens”
incertas, ou seja, a pesquisadora circulou pelas regiões e entrevistou propriedades sem marcação ou
conhecimento prévio para obter um controle melhor sobre a pertinência das respostas obtidas. Para
proteger suas identidades foram criados nomes fictícios e idades aproximadas. O primeiro grupo
foi denominados G1 e, assim, respectivamente (G2 e G3). Os jornalistas foram numerados de
acordo com a sequência das entrevistas.
As discussões aconteceram conforme o método de William Gamson (2011). Diferente dos
grupos focais, as discussões são realizadas nas casas dos sujeitos, ou seja, em espaços naturais e
entre pessoas que se conhecem, sejam relações de amizade ou de parentesco. Juntamente com um
mediador oriundo da região, filho de agricultores e estudante universitário, a autora se apresentou
como pesquisadora da Universidade. Foi, então, explicado que se estava fazendo uma pesquisa
com o objetivo de analisar a opinião das pessoas sobre questões de saúde pública (antitabagismo).
Tal escolha metodológica deu-se pelo fato de que grande parte dos estudos sobre a opinião
considerarem o cidadão comum sujeito incapaz de relatar criticamente fatos políticos.
3.Análise das Discussões em Grupo e das Entrevistas Individuais
Nesta seção foram resgatadas e analisadas as falas dos entrevistados. Devido à riqueza dos
achados na investigação empírica, optou-se por uma seção única, contendo os debates sobre
comunicação e política. As discussões e entrevistas foram intensas. Conforme procedimentos
metodológicos, os sujeitos pesquisados mantinham relações de proximidade que, provavelmente,
propiciou a intensidade das discussões. A questão norteadora (percepções sobre as políticas
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públicas antitabagistas) trouxe à tona diferentes assuntos: políticas públicas, saúde, comunicação,
publicidade e propaganda, êxodo rural, economia regional, relações de poder entre produtores,
governo e empresas de tabaco e, por fim, questionamentos sobre a veracidade das informações
(pesquisas) sobre tabagismo veiculadas pela mídia nacional.
Para os agricultores a mídia local não divulga informações sobre tabagismo no Sul do
Brasil. Por outro lado, para eles, a mídia nacional não é crível, já que as notícias que chegam “de
lá” não condizem com a realidade da região. Já para os jornalistas as notícias enviadas pelos orgãos
de saúde pública (“lá”) se referem a uma “outra realidade”, a realidade de Brasília e do Centro-Sul
do País (São Paulo e Rio de |Janeiro). Outro participante reforça o “medo do futuro” e desabafa: “A
maioria dos produtores, por causa do Ministério da Saúde, a maioria pensava que se ele (o tratado
internacional) entrasse eles iam acabar com o fumo” (Marlene, Grupo 2, 47 anos). De forma
inesperada outra agricultora retoma: “A maioria já sabe que não. Ou tô errada?” (Dulce, Grupo 2,
47 anos). Todos respondem que ela está correta em suas reflexões. O mediador questiona se a
mídia local trata sobre estas questões de saúde pública e as respostas são negativas: “Não, aqui
tudo quieto” (Darci, Grupo 2, 55 anos). Outro complementa: “Não se fala nisso. E quem usa
internet não procura por isso, né?” (Pedro, Grupo 2, 49 anos). E conclui: “É, na verdade a gente se
fuçasse mais um pouco, né?”.
Entende-se que há um problema de reflexão. Mesmo declarando saber que o tratado foi
assinado por vários países e que visa atenuar problemas de saúde pública. As contradições são
muitas. Nas falas os entrevistados defendem o seu trabalho como produtor e negam o problema de
saúde pública, tratada como algo surreal: “Mas essa política de combate ao fumo não é de Santa
Cruz” (Maria, Grupo 1, 52 anos), relata a agricultora. E outro participante prossegue: “Não, isso é
mundial, né. É uma outra realidade. Veio de fora, do mundo e está em Brasília agora. De lá foi pra
São Paulo, Rio, para as pessoas com cultura, com educação, dinheiro, cinema” (José, Grupo 1, 48
anos).
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Além disso, de forma problemática, no âmbito da possibilidade do debate e da
comunicação pública, não consideram legítimas as entidades científicas que organizam/divulgam
pesquisas e dados sobre o tabagismo. Por outro lado, ao serem questionados sobre os motivos pelos
quais cessariam a produção em suas propriedades eles relataram
que seriam por problemas
de saúde relacionados ao câncer ou suicídio na família.
Os sujeitos são coerentes, conforme suas lógicas de pensamento, em um mundo em que as
pessoas apresentam dificuldades de serem ouvidas e que, ao mesmo tempo, desejam ser ouvidas.
Da mesma forma, têm a percepção de que existem preocupações amplas, decisões políticas e
econômicas que são tomadas fora do Brasil, que “vêm de fora”. Eles não demonstram um
sentimento de auto piedade e compreendem que a mídia se utiliza de exemplos em reportagens,
sejam nas revistas da Souza Cruz ou em redes privadas de rádio, jornal e televisão. Entendem que
não se mostra a opulência, mas a miséria. Assim, a mídia não relata o que acontece “de verdade”,
mas exalta exemplos radicais e que não são “verdadeiros”. É a relatividade: é uma coisa ou outra.
Pode-se dizer que, neste momento, a cientificidade se perde. Os sujeitos sabem que há ciência para
tudo. Tal situação sinaliza a situação atual da ciência, que nunca foi isenta, ou ainda, que é uma
ciência comprometida com interesses diversos. Também não há participação destes agricultores nas
questões públicas, mas uma exigência que o outro o faça, que o outro informe. E informe da forma
que eles consideram “verdadeira”. Eles esperam que a produção de notícias, a prática jornalística
seja imparcial, mas também desejam que a imagem do grupo na mídia seja positiva.
Há, também, uma preocupação dos produtores com sua imagem na mídia: “Não vi uma
reportagem falando bem, só botam o endividado, a casa caindo. Às vezes é falta de informação da
mídia. Tinha que ser gente como aqueles que se vê na revista da Souza Cruz” (Edmundo, Grupo 3,
44 anos). Um deles propõe, inclusive, uma greve: “Todo mundo lê! Tinha que ter uma greve, pra
ouvirem. Nós agricultor não estamos bem organizados, ninguém se manifestou até hoje aqui, para
dizer que isso não tá certo, o que falam na televisão” (Gina, Grupo 3, 47 anos). E prossegue: “E do
futuro não tem nada de informação, do que tá acontecendo. Só o orientador agrícola contratado
pela empresa de fumo, mas de outra parte não tem nada”.
Apesar de 100% dos entrevistados terem acesso à internet, eles destacaram que não a
utilizam para buscar informações sobre o setor: “Nós deveríamos ser mais bem informado. E nós
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não somos. Da parte da firma não vem informação sobre isso” (Eraldo, Grupo 3, 51 anos). E
continua: “A pergunta mais frequente dos produtores com o instrutor é: viu, será que é certo que
vão querer acabar com o fumo? Será que vão acabar?”, finaliza. Nota-se que informar-se é um
processo não rotineiro do agricultor.
A esse respeito compreende-se que a comunicação sobre as ações/pesquisas antitabagistas
é, conforme jornalistas e produtores de tabaco, não científica, inconsistente e se refere a uma
realidade de “outro” Brasil (“lá”). Conforme relato de uma participante “As propagandas grandes
contra o fumo também, isso aí, automaticamente, vai aos pouco terminar fumo. Bom, quase
terminar. Essa tal de ANVISA, né!? É um atraso na nossa vida!” (Márcia, Grupo 2, 43 anos). E
prosseguem: “Eu calculo mais uns 2 ou 3 anos se nos continuar assim ninguém mais vai conseguir
pagar as contas gente! Só escuta. Ninguém mais vai pagar mais contas” (Gilberto, Grupo 2, 40
anos).
A comunicação da saúde pública para eles é ilegítima, não confiável. Conforme o editor de
um jornal na região, ao ser questionado sobre que notícias eles têm recebido (televisão e jornal) e
observado sobre saúde e tabaco, eles (jornalistas) têm recebido são notícias gerais, nacionais, “Que
vem de Brasília ou dos setores para cá, mas da região, gerada na região, pouca coisa. O que sai
daqui para fora, sobre tabaco ou tabagismo, a gente vê pouca coisa” (Jornalista 5). Percebe-se nas
falas dos jornalistas entrevistados uma diferenciação entre “local e nacional”, “lá” e “aqui”, na
“região” e “fora”. Outro comunicador entrevistado reforça que as informações são produzidas em
Brasília. Relata que as notícias sobre a região são produzidas também no centro do país, nunca na
região de produção de tabaco, “onde a realidade acontece” (Jornalista 3). Importa destacar que o
INCA e a ANVISA, citados regularmente como entidades opositores da imprensa da região em
estudo, encontram-se sediados no Rio de Janeiro.
Quando a pesquisadora interroga sobre a replicação das notícias oriundas do ‘centro do país
e de Brasília’, todos responderam que publicam “Apenas os textos mais singelos” (Jornalista 1), ou
ainda, sem conotação militante antitabagista. Conforme o segundo comunicador estas notícias
apresentam uma conotação muito particular do centro do país: “O enfoque de lá é ... por exemplo,
são tantos milhões de .... Uma base de cálculo que a gente não tem, a gente não tem como mensurar
isso” (Jornalista 4). O entrevistado segue citando um exemplo sobre a mais importante figura da
região. Segundo o relato do jornalista, o ex presidente da AFUBRA, Hainsi Gralow, falecido em
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2006, não era fumante, teve um problema cardíaco e foi internado em Porto Alegre. Ele declarouse como não fumante, mas na ficha foi inserida a informação de que ele era fumante pelo fato de
ser o presidente da AFUBRA. Alegou o entrevistado que “As informações divulgadas “de lá” são
para a gente, que vive aqui, relativas, não é uma base científica” (Jornalista 9). Assim, as pesquisas
feitas por institutos como FIOCRUZ e INCA, por exemplo, não são consideradas válidas e/ou
relevantes para a imprensa local. Por conseguinte, as pesquisas “reais” são aquelas colhidas e
divulgadas pelas entidades representativas do tabaco (dados sobre a importância econômica do
tabaco para região, como faturamento e exportação nacional, regional, empregos no setor do
tabaco).
Buscando situar as reflexões trazidas têm-se as reportagens. A Gazeta do Sul, no período
do Sexto Encontro das Partes (COP 6) que envolve gestores de saúde pública e políticos dos países
que assinaram o tratado em 2014, na Rússia, publicava frequentemente notícias sobre o evento. As
palavras usadas, com frequência eram preocupação, medo, futuro e fracasso. Audiências públicas
foram organizadas para “debater” sobre a participação do Brasil e os agricultores tiveram
visibilidade na mídia: “Preocupados com o futuro da fumicultura na região, Maristela e Henrique
Wolffenbüttel participaram da audiência pública em Rincão Del Rey nessa sexta-feira” (A Gazeta
do Sul, 2014). As falas dos agricultores ressoam as falas dos entrevistados e dos jornalistas da
região: “Se tirarem o tabaco daqui (da região), vai ser um fracasso para nós e para os municípios”,
exalta o entrevistado. A frequente declaração de medo do futuro demonstra a preocupação com a
viabilidade da reprodução social da família como unidade produtiva – social e econômica. Nesse
sentido, Gamson (2011) corrobora com as análises ao minimizar os efeitos da midia e refletir, nas
entrelinhas das conversações, a possibilidade de outras influências e motivações de ação dos
sujeitos.
Conforme a reportagem o casal de agricultores não entende por que o Brasil pode,
eventualmente, desejar restringir a produção e a comercialização do tabaco: “A propaganda contra
é grande. Muita gente reduziu a área da sua principal fonte de renda” (A Gazeta do Sul, 2014a,
relata o agricultor. E fica a dica: não é possível entender como o Brasil se preocupa em assinar um
tratado internacional de saúde pública, mesmo que este objetivo combater o tabagismo, causador
de milhares de mortes/ano.
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4.Reflexões finais
A partir da metodologia utilizada, mais do que entender se as discussões nos grupos se
referiam a uma reprodução dos discursos midiáticos, preocupou-se com as formas pelas quais os
sujeitos se utilizam dos discursos midiáticos para apoiar seus interesses e legitimar/justificar os
discursos e as verdades disponíveis para sua reprodução no mundo. Em suas falas, conforme
verificou-se, há uma “mágoa” relativa às imagens negativas das regiões produtoras de tabaco e de
seus personagens na mídia. Alguns sujeitos concordaram que não há esforço para buscar
informações. Os deslizes nas discussões intensas os permitem desabafar: os dados divulgados pelos
órgãos/entidades de saúde pública não são, assim, tão influentes. Em suma, os sujeitos assumem
suas contradições e demonstram conhecimento sobre as complexidades do mundo.
Se que cada questão política objetiva a construção de sentido e apresenta um conjunto de
ideias e símbolos usados em fóruns públicos (GAMSON, 2011), no caso das audiências públicas
realizadas no Vale do Rio Pardo, encontrou-se a voz da indústria que, defendendo os interesses do
grupo, se utiliza do termo (audiência pública) e da presença dos agricultores para reforçar suas
verdades. Estes encontros se configuram como relevante espaço de visibilidade pública e contam
com a presença dos prefeitos da região, dirigentes de sindicatos, produtores rurais, líderes de
associações e deputados estaduais e federais.
Para jornalistas que trabalham nos meios de comunicação locais não há comunicação, nem
relações estabelecidas entre saúde e a imprensa local. Seguindo os relatos há uma relação irônica e
desinteressada dos representantes dos órgãos de saúde pública em relação à mídia no Vale do Rio
Pardo.
Haja vista a necessidade do entendimento de uma sociedade complexa, individualista e
ainda pouco comprometida com os debates públicos, importa destacar, novamente, a partir de
Gamson, que “Um indivíduo alcança sua atualização pessoal não por meio de conquistas
individuais, mas pela criação de uma sociedade humana e decente, na qual as pessoas são sensíveis
às necessidades dos outros e se apoiam mutuamente” (GAMSON, 2011, p.180).
A cientificidade parece se perder na relatividade dos fatos e interesses. A ciência é
questionada, a mídia também. O que vem de “lá” é suspeito. O trabalho familiar é mais confiável
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do que aqueles que o condenam. Acima de tudo, nota-se que não há participação nas questões
públicas, mas uma exigência que o outro o faça, que o outro informe. Esperam os sujeitos que a
produção de notícias (a prática jornalística) seja imparcial. E ainda, que a imagem do grupo na
mídia, seja positiva, como publica a revista da Souza Cruz Tabacos. Espera-se, também, que a
produção da notícia seja a partir da sociedade, que o interesse público seja uma força motora do
jornalismo. Espera-se que haja a defesa de interesse de seu grupo.
A relação entre comunicação, política e sociedade pode ser pensada, então, a partir da
busca pela visibilidade e legitimidade dos discursos. Segundo Weber (2007), os movimentos da
política na contemporaneidade disputam, cada vez mais intensamente, espaços de visibilidade
midiática usando complexas estratégias para viabilizar relacionamentos e produzir informações
com potencialidade para repercutir.
Diante disso, e na perspectiva do estudo que se propõe aqui, a análise assinalou que: a) há
uma tensão materializada entre os interesses públicos (saúde) e privados (empresas e famílias),
entre organizações e sujeitos que tornam presentes diferentes estratégias discursivas e argumentos
para validarem suas falas e, em algum nível, neutralizar e/ou desqualificar o discurso da alteridade;
b) foram materializadas influências e motivações que interferem na ação dos sujeitos, além do
discurso de economia e do desenvolvimento encontrados na mídia. Estas são as questões de gênero,
de sucessão da propriedade e choques geracionais. A agricultura familiar, neste cultivo, ainda
encontra-se estruturada no patriarcado; c) a percepção dos entrevistados sobre a relatividade dos
acontecimentos e o questionamento destes. Há a percepção de que existem decisões políticas e
econômicas tomadas fora do Brasil, que “vêm de fora”; compreendem que a mídia se utiliza de
exemplos e que os interesses são de um grupo e não de todos.
1
Doutora
,
Pós-
Doutoranda
FAPERGS/CAPES
e
Professora
Colaboradora
,
[email protected]
1 Projeto intitulado “Comunicação, relações de poder e sistema do tabaco: discursos e estratégias de visibilidade e
legitimidade empregados por Ongs, organizações públicas e indústrias do tabaco na mídia do Vale do Rio Pardo – RS”,
tem como objetivo geral compreender, sob a perspectiva da comunicação, como se estruturam as relações de poder na
articulação entre as organizações voltadas à saúde pública (tais como Ong`s, ANVISA, INCA) e as organizações do setor
do tabaco, a partir de seus discursos na mídia do Vale do Rio Pardo – RS. iniciou em 2012 e será finalizada em 2016. O
estudo tem como fontes financiadoras CAPES e FAPERGS a partir do Edital DOCFIX/09 sob supervisão do Prof. Dr.
Rudimar Baldissera, PPGCOM/UFRGS. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UFRGS e teve seu parecer final
da Plataforma Brasil sob o Protocolo 16763113.8.0000.5347, emitido em 03 de março de 2013.
2 As audiências foram iniciativas da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da
Câmara dos Deputados e da Comissão de Agricultura, Pecuária e Cooperativismo da Assembleia Legislativa, foram
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propostas pelo deputado federal Alceu Moreira (PMDB) e deputado estadual Heitor Schuch (PSB). Na Assembleia
Legislativa do Estado do RS assinaram o pedido de audiência os parlamentares Marcelo Moraes (PTB) e Edson Brum
(PMDB).
3 A CONICQ refere-se à articulação, organização e implementação de uma agenda governamental Inter setorial para o
cumprimento das obrigações da CQCT Além disso, a Comissão busca promover o desenvolvimento, a implementação e a
avaliação das estratégias da Convenção-Quadro, planos e programas, assim como políticas, legislações e outras medidas.
Precedida pela Comissão Nacional para o Controle do Uso do Tabaco (CNCT), a qual foi criada pelo Decreto nº
3.136/1999, a CONICQ é presidida pelo Ministro da Saúde e integrada por representantes do Ministério da Saúde, como a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Instituto Nacional de Câncer (INCA). Ao INCA cabe o papel de
Secretaria-Executiva.
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“LÁ E AQUI”: percepções sobre os discursos