A lenda creditos auto c h a p e u crédito foto Em passagem pelo Rio para divulgar livro sobre meditação, o cineasta David Lynch muda o foco e revela uma persona surpreendente – que inclui a faceta de pintor surrealista por Cynthia Garcia O cineasta David Lynch é, de fato, pouco ortodoxo. Correu o país acompanhado do esquecido compositor escocês Donovan, sucesso nos idos dos anos 60, para divulgar o livro que assina sobre meditação transcendental, Águas Profundas: Criatividade e Meditação (Gryphus Editora), que faz parte das ações da sua Fundação David Lynch. Vive em Los Angeles (“Nova York me deixa claustrofóbico”). Comercializa café no seu site (www. davidlynch.com). Diz que foi o título que o levou a filmar O Homem Elefante (“me veio uma porrada de idéias”). Ganhou uma indicação ao Oscar pelo hipnótico Veludo Azul, em que pôs a ex-mulher, Isabella Rossellini, no centro da perversão da América suburbana. Deu ao roqueiro Sting o papel principal em Duna, uma ficção científica em clima de épico. Fez Nicholas Cage, no papel de Sailor, no violento e sexy Coração Selvagem, se declarar para Lula, personagem vivido por Laura Dern (“uma de minhas atrizes favoritas”), ao cantar “Love me Tender” no apoteótico happy end. Mas confessa não seguir o que rola no cinema mundial (“foco minha energia no meu trabalho”) e nem sabe se assistiu ao filme do momento, Batman, o Cavaleiro das Trevas (“não tenho certeza, talvez tenha visto no avião”). Americano de família de origem finlandesa, nascido 22 revista domingo foto eduardo monteiro em Montana, ele é o realizador-fetiche de muita gente grande. No ano passado, a Fundação Cartier, em Paris, prestou uma homenagem às diversas facetas da obra desse premiado cineasta, que também é pintor, fotógrafo e músico. Até quando é surpreendentemente “normal”, como em seu filme História Real (The Straight Story), uma road-movie sobre um homem que atravessa os Estados Unidos num cortador de grama, ele é acusado de difícil de entender. Além de significar reto, straight em inglês também é sinônimo de careta. De longe, coisa que Lynch não é, apesar de dizer não tomar drogas (“tomei nos anos 60, mas meus amigos me desaconselharam”). Sábado passado, depois da palestra aos alunos da Estácio de Sá, na unidade da Barra, onde dominou a platéia com seu discurso entre o brilhante e o absurdo, de camisa branca, sapato preto e terno preto, surrado, e com seu indefectível topetão, o cineasta do bizarro conversou com Domingo, entre baforadas no cigarro. Sentado no banco do jardim da entrada da faculdade carioca para nosso papo, o enigmático diretor lembrava um personagem do universo lynchiano de algum filme seu perturbador e cult. “Fazer cinema é contar uma história, a luz se apaga e embarcamos em uma viagem. É uma linguagem mágica. Mas podemos sair do cinema para um mundo de paz, para uma vida feliz.” Vamos começar? “O.k., cool.” Lynch in Rio e (no detalhe) imagem da revista domingo 23 instalação em que pintou o ambiente inteiro e n t r e v i s t a d a v i d l y n c h “ser bizarro para chamar a atenção é uma bobagem. a idéia é apaixonante ou não” Twin Peaks, o filme Você é um iluminado? Estou batalhando (para ser) como todos. Existe algum tema que ainda não é permitido abordar no cinema contemporâneo? Nunca haverá nem nunca houve. Somos livres para fazer e mostrar o que quisermos, mas somos responsáveis por aquilo que pensamos, falamos e fazemos. Qual foi a primeira vez que você “entrou” em um terreno inexplorado? Meu primeiro pensamento original foi aos 20 anos, quando eu cursava artes plásticas na faculdade. trabalho. 1968 The Alphabet (Curta-metragem, 16 mm, cor) 1973 The Amputee (Curta-metragem, vídeo, gênero terror. 1980 O Homem Elefante (The Elephant Man) 1984 Duna (Dune) 1986 Veludo Azul (Blue Velvet) perturbam? 1990 Coração Selvagem (Wild at Heart) As histórias refletem o mundo, e o mundo em que vivemos é obscuro e perturbado. O artista não precisa sofrer ao mostrar sofrimento, ele precisa apenas entender como se passa. Não é preciso morrer para fazer uma cena de morte, é só preciso entendê-la. Ainda bem (risos)! 1990 Twin Peaks (drama para tevê em duas O que o atrai no preto-e-branco, que vemos cada vez menos no cinema? Preto-e-branco pode ser um bom amigo quando a história é num mundo diferente. Na minha opinião, O Homem Elefante, que se desenrola na Inglaterra vitoriana, durante a Revolução Industrial, seria um equívoco em cores. Preto-e-branco é tão bonito. 24 revista domingo Quais filmes traduziram bem suas idéias? preto-e-branco) 1977 No Céu Tudo É Perfeito (Eraserhead) Seus temas são pesados, estranhos. Eles não o 1970 The Grandmother (Curta-metragem, 16 mm, cor) Há gente que classifica seus filmes como sendo do Tenho horror a filme de terror. Não descrevo, não faço isso nunca. Ser bizarro para chamar a atenção é uma bobagem. Tudo para mim gira em torno das idéias, se são apaixonantes ou não, e ao fato de permanecer fiel a elas na hora da realização. Quando a gente se apaixona (por uma idéia), é maravilhoso. Me apaixono por duas razões: pela idéia e pela versão da idéia em filme, que é uma linguagem fantástica. Ao todo são 15 filmes, em 30 anos de carreira. Todos surreais 1967 Six Men Getting Sick (Curta-metragem, 16 mm, cor, projeção sobre tela-escultura) No Céu Tudo É Perfeito Como descreveria seu trabalho? O estranho mundo de Lynch A palavra bizarro é, em geral, relacionada ao seu Tudo na vida depende do ponto de vista do observador. Falam muitas coisas, o.k., não vejo problema algum. Mas uma palavra não resume nada, é apenas uma palavra. Veludo Azul Estrada Perdida O Homem Elefante Coração Selvagem Todos em todos os momentos, porque todos os elementos que utilizo são baseados nas minhas idéias. Ao fazer um filme é importante estar conectado com suas idéias e reproduzi-las até sentir que elas estejam fielmente representadas. Só há esperança de que sua idéia atrairá os outros quando ela está nessa sintonia, íntegra. Suas idéias têm alguma ressonância na sua infância? Vivi minha infância no noroeste dos Estados Unidos, meu pai era cientista e pesquisador do Departamento de Agricultura (equivalente, no Brasil, ao Ministério da Agricultura), e minha mãe, professora de inglês. Brinquei muito no bosque perto de casa, ficava bastante tempo por lá. Pelo que me consta tive uma infância normal. temporadas, produzido pela ABC Network) 1992 Twin Peaks, o filme (Twin Peaks: Fire Walk with Me) 1995 Premonitions Following an Evil Deed, in Lumière et Compagnie (55 s, 35 mm, preto-e-branco) 1997 Estrada Perdida (Lost Highway) 1999 História Real (The Straight Story) Quais seriam alguns aspectos de sua obra que nunca 2001 Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) são comentados? 2006 Inland Empire www.davidlynch.com Inland Empire Eraserhead é o meu filme mais espiritualizado, mas nunca soube de alguém que o interpretasse dessa maneira. Cada um interpreta como quiser. Quanto mais abstrato um filme, maior revista domingo 25 e n t r e v i s t a d a v i d l y n c h a variedade de pontos de vista. Quanto mais óbvio, mais pessoas chegam à mesma conclusão. Quais são seus escritores de cabeceira? William Faulkner, Lewis Carroll, Franz Kafka e o alemão E.T.A. Hoffman. Que diretores o influenciaram? Qual dos seus filmes considera o mais redondo? Não falo sobre esse assunto. “brinquei muito no bosque perto de casa. ao que me consta, tive uma infância normal” Existe alguma mensagem que gostaria que o público captasse nos seus filmes? O cinema é um mundo que atrai porque as pessoas buscam uma sensação. É como a experiência de nascer e, de repente, entrar nesse mundo em que, durante a vida, observamos e tiramos nossas conclusões. Não tento ser provocativo nem manipulador. O que tenho é um caso de amor com uma idéia. Os mais importantes foram Hitchcock, Fellini, Bergman, Buñuel, Kubrick, Billy Wilder e Jacques Tati. E sua influência no cinema contemporâneo? Não tenho a menor idéia. Me dedico ao meu trabalho, não sei dos outros. Vejo pouco cinema, pouca televisão, mas adoro música, me vem muita idéia ouvindo música. Você dirigiu o filme publicitário da campanha atual da marca Gucci com a modelo brasileira Raquel Zimmermann e colocou a trilha sonora da Blondie. Já fez outros filmes publicitários? Já, uns 12 ou 13. O que me atrai é que, na realidade, trata-se de um curta. Claro que faço pelo dinheiro, mas toda vez aprendo alguma coisa, porque tenho a meu dispor a mais nova tecnologia. É uma ótima oportunidade para aprender. Quais tipos de música? Sou aberto a todo tipo. Não dá para saber qual gênero musical vai atiçar uma idéia. Tive a idéia para “Veludo Azul” ouvindo a versão de Bobby Vinton (cantor americano) para a música “Blue Velvet”, e durante a elaboração ouvi bastante (Dmitri) Shostakovitch (1906-1975, compositor russo de música clássica). E a modelo Raquel Zimmermann? Tem uma linda alma. Havia alguma idéia atrás do filme da Gucci? Vender Gucci. Como vai sua parceria com o compositor Angelo Badalamenti? O grande Angelo Badalamenti é um irmão. Já fizemos muita música juntos, sentamos ao piano, vou falando e ele vai musicando. Se não gosto do que ouvi, mudo as palavras (risos). É um processo (de criação) muito bonito. Uma música errada numa cena é pior que uma cena sem música. Cada música, cada efeito sonoro, tem de “casar” com a cena. Você vai experimentando, pesquisando, mas tem aquele momento em que a gente sente que “casou”. Como vê a nova tendência de óperas baseadas em filmes, como a ficção científica A Mosca, que está sendo encenada em Paris? Uma mulher na Alemanha transformou Estrada Perdida em ópera, acho que isso é uma moda. Aprecia ópera? Não, não me empolga, mas ao mesmo tempo gosto da idéia, mas conheço pouco de ópera. No caso dos atores, como faz? É como na música. Não importa se meus amigos são atores e querem participar do filme, é preciso achar quem é certo para o papel. Vejo as fotos, analiso os olhos, seleciono uns dez. Não peço para que o ator leia a cena, acho isso péssimo, converso com ele enquanto o filmo. É assim que escolho, observando como falam, como olham. E nos ensaios? Converso com o ator e ensaio, repito isso várias vezes, até que num dado momento ele consegue tirar das entranhas aquilo que quero. O sucesso da série de tevê Twin Peaks o surpreendeu? Fiquei muito surpreso ao ver como uma história sobre uma cidadezinha no Estados Unidos rodou o planeta. 26 revista domingo O que diria a um jovem cineasta? Busque seu caminho no seu interior. Permaneça fiel a sua verdade. Não deixe ninguém mudar sua idéia. Nunca diga não a uma boa idéia. Faça meditação transcendental para expandir sua consciência e desenvolver todo seu potencial. Ele pinta no ano passado Lynch fez até uma badalada exposição em Paris A The Air is on Fire foi realizada na Fundação Cartier, em Paris, e depois seguiu para Milão. Para ela, Lynch não só pintou as obras como projetou o espaço, com fotografia, desenhos, instalações e curtas. Foi elogiado pela crítica. Influências? Adivinha? Os surrealistas Magritte, Max Ernst, Dalí. “Também gosto de Francis Bacon e do Edward Hopper (pintor norte-americano que retrata a solidão do sonho americano). É só observar uma tela dele que surge uma história.” Não, Lynch garante que nunca transpôs nada das suas telas para o cinema. Por que faz cinema? Para me transportar para outro mundo, me perder num outro imaginário. O cinema é uma mídia mágica, que nos possibilita sonhar. Por que não faz filmes felizes? Em Águas Profundas trata de meditação transcendental Vem o pai e pergunta por que você não namora a fulana, uma loirinha linda, aí você responde: “Dad (pai), eu adoro as morenas” (risos). D revista domingo 27