Durável e/ou Modificável?
Reflexões Acerca da Noção de Habitus em Pierre Bourdieu
Autoria: Luis Claudio Miranda Mangi
Resumo
Este ensaio pretende realizar uma reflexão sobre a noção de habitus em Pierre Bourdieu. A
partir da análise de sua matriz filosófica, vamos percorrer a obra de Bourdieu e analisar a
evolução do conceito. Neste percurso, serão identificadas as principais críticas ao projeto
teórico de Bourdieu em geral, e à noção do habitus em particular. O objetivo é identificar
possibilidades para pesquisas futuras que possam responder ou superar as críticas quanto ao
excessivo determinismo da noção de habitus, ou seja, como dar conta da questão da liberdade
do agente diante dos condicionamentos estruturais do habitus.
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Introdução
O que motiva a ação humana? Indivíduos agem em resposta a causas
externas, tal como é sugerido por grande parte das tradições sociológicas
vigentes? A ação individual é determinada pela "cultura", pela "estrutura
social" ou pelo "modo de produção"? Ou será que os atores agem movidos
por seus próprios interesses, como sugerem, nas ciências sociais, as escolas
fenomenológica, interpretativista e a teoria da ação racional? (Mangi, 2005,
p. 28).
A dualidade "estrutura/agência" está entre os principais debates teóricos e
metodológicos que caracterizam a sociologia desde suas origens. A questão da primazia entre
estrutura e agência em relação ao comportamento humano é uma questão ontológica central
em sociologia, ciência política e nas ciências sociais em geral, além de um tema recorrente
nos estudos organizacionais Nesse contexto, "agência" se refere à capacidade dos indivíduos
de agirem com independência e fazerem suas próprias escolhas livremente. "Estrutura", pelo
contrário, refere-se a arranjos padronizados e recorrentes que parecem influenciar ou limitar
as escolhas e oportunidades que indivíduos possuem. Resumidamente, trata-se de um debate
que confronta duas perspectivas bem distintas sobre o agir humano: de um lado, os fenômenos
sociais são encarados como resultado de ações individuais, produto de processos mentais e
cognitivos; do outro, o agir humano está submetido a condicionamentos estruturais impostos
pela socialização.
Pierre Bourdieu está entre os primeiros sociólogos da geração surgida após a II Guerra
Mundial a colocar esta questão como ponto central de sua sociologia. Sua proposta é conectar
agência e estrutura através de uma relação dialética. Bourdieu rejeita concepções que insistem
em definir agência como uma resposta direta, não mediada, a fatores externos, seja no nível
macro, como fatores culturais, sociais ou econômicos, seja no nível das microestruturas de
interação social. Discorda, também, da concepção de agência como simples produto de fatores
internos, na forma de intenções conscientes e calculadas, tal como postulam os modelos
voluntaristas e a teoria da ação racional. Para Bourdieu, explicações que privilegiam uma
dimensão de análise (macro ou micro) em detrimento da outra perpetuam a clássica dicotomia
objetividade/subjetividade (Bourdieu & Wacquant, 1992; Postone, Lipuma & Calhoun, 1993;
Swartz, 1997).
De forma geral, o projeto de Bourdieu pode ser descrito como uma tentativa
permanente de superar, no plano teórico e prático, as oposições que têm caracterizado a teoria
sociológica ao longo do tempo para, a partir deste esforço, formular uma abordagem reflexiva
sobre vida social. Nesse sentido, propõe uma teoria estrutural da prática, capaz de conectar
ação à cultura, estrutura e poder. No centro deste projeto, coexistem três conceitos
fundamentais e inter-relacionados: “habitus”, “capital” e “campo”. Sua concepção sobre a
prática social é concebida com base no relacionamento entre o habitus de classe e o capital
atualizado, na forma como se realizam e se estruturam no interior da lógica específica de um
dado campo.
O conceito de campo em Bourdieu cumpre o propósito de fornecer as bases para uma
“análise relacional”, por meio da qual pretende investigar o espaço multidimensional de
posições disponíveis e como os diversos agentes ocupam essas posições. Cada campo é
semiautônomo, caracterizado por seus próprios agentes, por sua própria história acumulada,
sua própria lógica de ação e suas próprias formas de capital. A posição de um agente
particular é o resultado de uma interação entre o seu habitus e seu lugar em um campo de
posições, conforme definido pela distribuição da forma apropriada de capital. A natureza e a
extensão de posições possíveis variam social e historicamente.
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A noção de capital em Bourdieu não se enquadra na tradição marxista tampouco na
teoria econômica clássica. Bourdieu se afasta de ambas ampliando a noção de capital para
além da concepção econômica convencional, caracterizada principalmente pela ênfase nas
trocas materiais, passando a incluir, também, formas imateriais e não econômicas de capital.
Para Bourdieu, portanto, capital é um recurso de poder: indivíduos lançam mão de uma
variedade de recursos materiais, culturais e simbólicos para manter e melhorar sua posição na
ordem social. Esta noção de capital também serve para mediar, no plano teórico, a relação
entre indivíduo e sociedade. De um lado, a sociedade está estruturada pela distribuição
diferenciada de capital, do outro, indivíduos lutam para maximizá-lo. O capital que os agentes
são capazes de acumular ao longo do tempo define, assim, sua trajetória social, além de
contribuir para reproduzir e consolidar as distinções de classe. Swartz (1997, p. 73) afirma
que Bourdieu conceitualiza esses diversos recursos como capitais na medida em que passam a
operar como uma “relação social de poder”, tornando-se valiosos e, por conseguinte,
convertidos em objetos de disputa.
Este ensaio não pretende realizar uma investigação do complexo arsenal teórico da
sociologia de Bourdieu. Tamanha empreitada exigiria um esforço incompatível com o
formato e a profundidade de um ensaio. O objetivo, mais modesto, é investigar a noção de
habitus em Bourdieu e identificar possibilidades para pesquisas futuras que possam responder
ou superar as críticas quanto ao excessivo determinismo do projeto bourdieusiano em geral, e
da noção de habitus em especial. Referências ao trabalho de Bourdieu são bastante comuns no
campo da Administração, particularmente no campo dos estudos organizacionais, e nos
trabalhos na área de educação, consumo e comportamento organizacional, mas é sobretudo na
tradição neoinstitucionalista onde uma apreciação crítica da noção de habitus é, seguramente,
bem-vinda (Mangi, 2009).
A pequena introdução feita aqui ao núcleo conceitual da teoria social de Bourdieu
cumpre somente o papel de contextualizar a proposta do ensaio. No entanto, ainda que o
ensaio vá privilegiar o estudo do “habitus", é importante esclarecer que os conceitos
bourdieusianos são relacionais, ou seja, não operam de forma isolada mas em conjunto. É
precisamente essa articulação entre os conceitos que confere o poder explicativo de sua teoria.
A primeira parte do ensaio será dedicada à análise da matriz filosófica da noção de
habitus e a evolução do conceito ao longo da obra de Bourdieu. Nesta parte, serão
inventariadas também algumas explicações que Bourdieu lançou mão para se defender das
críticas quanto ao determinismo da estrutura, e seu movimento em direção à psicanálise,
possivelmente influenciado pelos seminários de Foucault, aos quais assistiu regularmente. Na
parte seguinte, serão analisadas as críticas mais comuns à noção de habitus. Importa, aqui,
questionar a capacidade do habitus de se adaptar e/ou se modificar ao longo do tempo, ou
seja, como pensar a possibilidade da liberdade do agente diante dos condicionamentos
estruturais impostos pelo habitus. O ensaio é encerrado com uma conclusão, de viés mais
especulativo, onde serão indicados possíveis caminhos de pesquisa para tentar responder ou
superar essa tensão.
Ao lado da sólida formação filosófica e de uma personalidade irrequieta e polêmica, as
circunstâncias particulares nas quais Bourdieu foi treinado em Antropologia, Sociologia e
Estatística, levaram-no a desenvolver um estilo próprio de escrever. Bourdieu nunca pode ser
lido de formal casual (Swartz, 1997, p. 13). Seu texto é difícil, algumas vezes hermético. Seus
argumentos são apresentados de forma recursiva e espiralada, frequentemente construídos em
vários e longos períodos. Bourdieu faz uso consciente de técnicas de retórica para se afastar
do mundo "taken for granted", ou seja, daquilo que experimentamos na realidade como
“dado”, como "pronto", sejam objetos empíricos, formas de linguagem ou conceitos abstratos.
Por outro lado, seu estilo também pode ser visto como uma reação à ortodoxia intelectual
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francesa e sua inclinação teorizadora, e como uma estratégia para delimitar sua obra num
campo marcado por uma forte rivalidade e intensa competição por prestígio (Mangi, 2005).
Este ensaio não ficará imune a esse estilo peculiar de Bourdieu. Alguns temas e
conceitos serão expostos e frequentemente revisitados ao longo do texto, algo que poderia
soar prematuramente como repetitivo. A opção por esta estratégica é importante no contexto
deste ensaio, seja para ser fiel à trajetória intelectual de Bourdieu, seja para assegurar uma
introdução apropriada a leitores eventuais ou àqueles ainda não familiarizados com sua obra.
Esclarecendo o habitus
Em seu estudo minucioso sobre a matriz filosófica do habitus, Wacquant (2007)
afirma que as origens do conceito remetem à noção aristotélica de hexis, desenvolvida na
doutrina sobre a virtude, notadamente na Ética a Nicômaco, significando um estado adquirido
e solidamente estabelecido que orienta nossos sentimentos e desejos numa situação prática,
influenciando, consequentemente, nossa conduta.
No século XIII, o termo foi recuperado por Tomás de Aquino na sua obra Suma
Teológica e traduzido para o Latim habitus (particípio passado do verbo habere, que significa
ter ou possuir), adquirindo o sentido adicional de capacidade para crescer através da atividade,
ou disposição durável, localizada entre potência e ação propositada. Foi usado de forma
parcimoniosa e descritiva por vários sociólogos da geração clássica como Durkheim, no seu
curso sobre a evolução pedagógica na França (Durkhein, 1995), Marcel Mauss, mais
especificamente no seu ensaio sobre as “técnicas do corpo” (Mauss, 2003), Max Weber, na
sua discussão sobre o ascetismo religioso (Weber, 1999), e Thorstein Veblen, na sua reflexão
sobre o “habitus mental predatório” dos industriais (Veblen, 1994).
A noção ressurgiu de forma mais destacada na fenomenologia de Husserl, que
designava por habitus a conduta mental situada entre experiências passadas e ações futuras,
mais tarde, traduzido para o Inglês por Alfred Schutz como “conhecimento habitual”, na
forma como seria adotado pela etnometodologia. Esta noção se aproxima também do conceito
de “hábito”, generalizada por Merleau-Ponty na sua análise sobre o “corpo vivido” (Leib)
como "veículo do ser no mundo", que experimenta suas intenções em ações, ligado
existencialmente ao mundo, fornecendo sentido para a atitude corporal e para o
comportamento social (Merleau-Ponty, 1999). O habitus também aparece ocasionalmente na
obra de Nobert Elias, em seus escritos sobre o “habitus psíquico das pessoas civilizadas”, no
seu clássico estudo O processo civilizatório (1994).
Habitus é uma noção central na teoria estrutural da prática desenvolvida por Bourdieu.
Seu intuito é transcender a oposição entre teorias que compreendem prática como
exclusivamente "constituinte" (constituting), conforme expresso no individualismo
metodológico e ontológico (fenomenologia), e teorias que entendem prática como
exclusivamente "constitutivo" (constitutive), tal como ocorre no estruturalismo de LéviStrauss e no funcionalismo estrutural dos herdeiros de Durkheim. Bourdieu problematiza a
vida social como uma interação permanente entre estruturas, disposições e ações, por meio da
qual as estruturas sociais e o conhecimento corporificado dessas estruturas produzem
orientações duradouras para a ação. Prática, contudo, não é vista como resultado direto de
orientações, como afirmam os estudos sobre atitudes, mas como produto de um processo de
improvisação estruturado por orientações culturais, trajetórias pessoais e pela habilidade de
"jogar o jogo" da interação social (Postone, Lipuma & Calhoun, 1993).
As primeiras elaborações de Bourdieu sobre o habitus ostentam a influência do
estruturalismo francês, expresso principalmente no emprego frequente da analogia linguística
para expressar o conceito. Retira a definição de habitus da distinção que Saussure faz entre
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discurso e linguagem. O habitus funcionaria como uma espécie de gramática cultural para a
ação, profundamente estruturada. Com o habitus, Bourdieu (1977; 1990; 2004a) desenvolve o
que chamou de “estruturalismo genético”, análogo à idéia de Chomsky de “gramática
generativa”. Assim como a gramática, que organiza o discurso, as estruturas do habitus
podem gerar uma infinidade de práticas possíveis. Em alguns momentos de sua obra,
Bourdieu destaca essa “capacidade inovadora” do habitus. Em sua análise feita sobre os
camponeses argelinos na década 1960, vivendo ainda em um contexto pré-capitalista e
expostos à invasiva economia monetária imposta pelo colonialismo francês, Bourdieu (2005a)
enfatiza que a reação dos camponeses não é uma acomodação forçada, puramente mecânica e
passiva, ao novo sistema econômico. Ao invés disto, os camponeses reagem com uma
“reinvenção criativa” em resposta à discrepância entre seus hábitos e tradições culturais e as
exigências de uma nova racionalidade econômica. De modo diferente da gramática generativa
de Chomsky, entretanto, a capacidade inventiva do habitus surge não de uma “mente
universal”, mas de uma “experiência e também de uma posse, um capital” (Bourdieu, 2003, p.
61). O habitus, portanto, não é uma capacidade inata, tal como a operação física do cérebro
postulada por Lévi-Strauss, ou a visão mentalista de Chomsky. Habitus é uma “estrutura
estruturada”, derivada das experiências específicas de classe, vividas através da socialização
na família e nos diversos grupos sociais.
Ao longo do tempo, o conceito de habitus em Bourdieu evoluiu de uma ênfase
normativa e cognitiva para um entendimento mais disposicional e prático da açãoi. Esta
mudança de foco pode ser vista na evolução de sua terminologia conceitual. O termo “ética”
que aparece em seus primeiros escritos dá lugar a “ethos”, absorvido mais tarde no conceito
de habitus. A linguagem mais recente de “disposições” indica a transição da analogia
linguística para uma perspectiva centralizada na socialização e na linguagem corporal.
O termo “disposição” é uma expressão chave para Bourdieu, pois sugere dois
componentes essenciais que deseja trazer para a idéia de habitus: estrutura e propensão. Nesse
sentido, Bourdieu (1977, p. 214) afirma:
[...] a palavra disposição parece particularmente apropriada para
expressar o que envolve o conceito de habitus (definido como um
sistema de disposições). Primeiramente, ele expressa o resultado de
uma ação organizadora, com um sentido próximo ao de palavras
como estrutura; também designa uma maneira de ser, um estado
habitual (do corpo, especialmente) e, em particular, uma
predisposição, tendência, propensão, ou inclinação".
O habitus resulta de experiências iniciais de socialização nas quais as estruturas
externas são internalizadas. Como resultado, disposições internalizadas de parâmetros e
limites mais amplos daquilo que é possível ou improvável para um grupo particular, num
mundo social estratificado, desenvolvem-se por meio da socialização. Assim, de um lado, o
habitus estabelece limites estruturais para a ação, do outro, gera percepções, aspirações e
práticas que correspondem às propriedades estruturantes do processo de socialização. A
terminologia “estruturas estruturadas” e “estruturas estruturantes” parece adequada para
capturar essas duas características centrais do habitus.
Estruturas estruturadas e estruturas estruturantes
O habitus tende a moldar a ação individual de maneira que as estruturas existentes
sejam perpetuadas. As chances de êxito ou de fracasso são internalizadas e, a seguir,
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transformadas em aspirações ou expectativas individuais. Estas, por sua vez, são
externalizadas em ações que tendem a reproduzir a estrutura objetiva da ordem social.
Bourdieu entende este processo como:
um sistema de relações circulares que unifica estruturas e práticas;
estruturas objetivas tendem a produzir disposições subjetivas
estruturadas que produzem ações estruturadas as quais, por sua vez,
tendem a reproduzir a estrutura objetiva. (Bourdieu & Passeron, 1990,
p. 203).
Assim, Bourdieu observa que as aspirações e as práticas dos indivíduos e grupos
tendem a corresponder às condições formativas de seus respectivos habitus. O que os agentes
julgam como “razoável” ou “não razoável” para as pessoas de seu extrato no mundo social
deriva do habitus, que tende, assim, a reproduzir as ações, percepções e atitudes compatíveis
com as condições sob as quais foi produzido. É “necessidade tornada virtude” (Bourdieu,
1977, p. 77, 95). Para explicar porque arranjos sociais desiguais fazem sentido tanto para
dominadores quanto para dominados, Bourdieu emprega o conceito de habitus para
evidenciar o papel da classe no processo de socialização.
O habitus se origina da internalização, predominantemente inconsciente
(particularmente durante a primeira infância) de possibilidades objetivas que são comuns a
membros de uma classe ou extrato social. Similarmente à idéia de subcultura de classe, o
habitus traz consigo uma integração única, dominada pelas experiências de vida mais
precoces, e estatisticamente comuns aos membros da mesma classe social (Bourdieu, 1977, p.
79). Não obstante, é o produto de situações de classe, não sua causa. O habitus, assim,
representa uma espécie de “matriz cultural”, com forte poder estruturante, que gera “profecias
auto-realizáveis” de acordo com as oportunidades das diferentes classes. A explicação
“cultural” de Bourdieu para o desempenho educacional desigual, por exemplo, difere de
versões que fazem uso de argumentos típicos da “cultura da pobreza”, que culpam a vítima
pelo seu fracasso escolar. Para Bourdieu, o comportamento desviante tem origens culturais.
Isto demonstra como as desvantagens estruturais podem ser internalizadas em disposições
relativamente duráveis que podem ser transmitidas ao longo das várias gerações por meio da
socialização, produzindo formas de comportamento auto-destrutivas. O habitus oferece,
portanto, uma perspectiva que contorna o debate recorrente entre culturalistas e estruturalistas
em torno das origens e dos ciclos de perpetuação da pobreza (Bourdieu & Passeron, 1990).
O habitus nos convoca a pensar sobre a ação como sendo algo engendrado e regulado
por disposições fundamentais que são internalizadas através da socialização. Bourdieu fala da
internalização ou “incorporação” das condições sociais fundamentais da existência sob a
forma de disposições, descritas como sendo aquelas que determinam materialmente,
socialmente e culturalmente o que é provável, possível ou impossível, natural ou impensável
para um dado grupo social, similarmente ao conceito weberiano de “oportunidades de vida”
(Weber, 1999). Habitus é...
necessidade internalizada e convertida numa disposição... É uma
virtude feita de necessidade que continuamente transforma
necessidade em virtude, instituindo “escolhas” que correspondem à
condição da qual é o produto. (Bourdieu, 1984).
O habitus transforma a “necessidade” social e econômica em “virtude”, conduzindo
indivíduos a uma “espécie de submissão imediata à ordem” (Bourdieu, 1990, p. 54), legitima
a desigualdade econômica e social oferecendo uma aceitação prática e inquestionável (“taken6
for-granted”) das condições fundamentais da existência. Bourdieu enfatiza o caráter
“coletivo” do habitus, argumentando que os indivíduos que internalizam oportunidades de
vida similares compartilham o mesmo habitus. Embora Bourdieu reconheça a singularidade
das experiências de socialização de indivíduos biológicos, ele argumenta que:
“estilo ‘pessoal’... nunca é mais que um desvio em relação ao estilo
de um período ou classe, de modo que remete ao estilo comum não
somente por sua conformidade... mas também pela diferença”.
(Bourdieu, 1977, p. 86).
A referência ao caráter coletivo é fundamental para Bourdieu. O habitus oferece a
imagem de uma “orquestração sem maestro” para enfatizar a “regularidade, unidade e
sistematicidade das práticas” sem uma coordenação consciente (Bourdieu, 1990, p. 59). Nesse
sentido, Bourdieu escreve que:
As práticas dos membros do mesmo grupo ou, em uma sociedade
diferenciada, da mesma classe, são sempre mais e melhor
harmonizadas do que os agentes saibam ou desejem, porque, como
novamente afirma Leibniz, 'seguindo suas próprias leis, cada um, no
entanto, concorda com o outro'. O habitus é precisamente essa lei
imanente, lex insita, inscrita nos corpos por meio de histórias
idênticas, as quais são pré-condições não apenas para a co-ordenação
de práticas mas também por práticas de co-ordenação (Bourdieu,
1990, p. 59).
As disposições do habitus representam uma forma de conhecimento informal e
prática, ao invés de discursiva ou consciente. Os esquemas do habitus, as formas primárias de
classificação, devem sua eficácia específica para o fato de que funcionam abaixo do nível da
consciência e da linguagem, além do alcance da análise introspectiva ou do controle pela
vontade (Bourdieu, 1984, p. 466).
Uma dimensão do habitus destacada por Bourdieu é o ajuste das aspirações e das
expectativas para o que chama, adotando a expressão de Bachelard, de “causalidade do
provável”. O habitus ajusta aspirações e expectativas de acordo com as probabilidades
objetivas de sucesso ou fracasso para um comportamento particular, comuns aos membros da
mesma classe. Um ajuste que não é consciente mas de natureza “prática”, como sugere,
abaixo, Bourdieu.
se alguém observa regularmente um correlação bem estreita entre
probabilidades objetivas cientificamente construídas (e.g., as chances
de acesso a um bem particular) e aspirações subjetivas (“motivações”
ou “necessidades”)... isso não é porque agentes ajustam
conscientemente suas aspirações a uma avaliação exata de suas
chances de sucesso. (Bourdieu, 1977, p. 77).
O habitus emerge através da socialização primária a partir de uma...
avaliação prática da probabilidade de sucesso de uma determinada
ação, numa determinada situação, [que] põe em jogo todo um corpo
de sabedoria, provérbios, lugares comuns, preceitos éticos (“isso não é
para gente como nós”). (Bourdieu, 1977, p. 77).
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As disposições do habitus predispõem os atores a escolherem formas de conduta mais
prováveis de terem sucesso à luz de seus recursos e experiências passadas. O habitus,
portanto, orienta as ações de acordo com conseqüências previstas. Com isso, Bourdieu coloca
um destaque especial na dimensão estratificadora da socialização primária, reafirmando que o
habitus transmite, a um só tempo, um senso de pertencimento e de não pertencimento num
mundo social estratrificado. Isto coloca o poder e sua legitimação no centro do funcionamento
e da estrutura do habitus, já que o habitus envolve um cálculo inconsciente do que é possível,
impossível e provável para indivíduos em suas posições específicas na ordem social. “A
relação com o que é possível é uma relação de poder” (Bourdieu, 1990, p. 4). A dinâmica
“virtude/necessidade” presente no habitus confirma que nem todos os mundos sociais estão
igualmente à disposição de todos. Nem todos os cursos de ação são igualmente possíveis para
todos; somente alguns são plausíveis, enquanto outros são impensáveis. Sobre isso, Bourdieu
explica que:
agentes constróem suas aspirações de acordo com índices concretos
do acessível e do inacessível, do que é e não é “para nós”, uma divisão
tão fundamental e tão fundamentalmente reconhecida como aquela
entre o sagrado e o profano. (1990, p. 64, grifo nosso).
Subjacente ao conceito de habitus de Bourdieu está o dualismo “sagrado/profano” de
Durkheim que, em um nível absolutamente fundamental para Bourdieu, divide o escopo da
agência entre o possível e o impossível. Aqui, vemos novamente a influência da lógica
estruturalista de oposições binárias no pensamento de Bourdieu.
O habitus é razoavelmente resistente a mudanças, já que a socialização primária, na
visão de Bourdieu, é mais formativa de disposições internas do que as experiências de
socialização posteriores. Há um processo contínuo de adaptação na medida em que o habitus
se depara com novas situações. Esse processo, no entanto, tende a ser lento, inconsciente,
mais voltado à elaboração do que propriamente a alterações fundamentais nas disposições
primárias.
Bourdieu utiliza seu conceito de habitus para tornar viáveis conceitualmente
transições entre diferentes níveis de análise (micro para o macro), e para buscar
generalizações ao longo de diversos domínios da atividade humana. Sua originalidade é
sugerir uma possível conexão subjacente, ou uma impressão comum, ao longo de um leque
variado de tipos de comportamentos, incluindo comportamentos motores, cognitivos,
emocionais e morais. Exemplos do habitus em ação variam desde “os gestos mais
automáticos ou as técnicas do corpo aparentemente mais simples” até conceitualizações
bastante abstratas (Bourdieu, 1984, p. 466). Entretanto, esta versatilidade conceitual, bastante
conveniente, pode tornar ambíguo o que o conceito realmente designa empiricamente.
Durável e/ou modificável?
O habitus existe no nível macro de análise? Como a noção do habitus pode nos ajudar
a entender a ação humana em domínios complexos como a ética, a moral e a política? Como
pode explicar processos de construção de identidades múltiplas, diante de práticas préexistentes num dado contexto histórico, social e cultural? Quão durável é o habitus? Pode a
noção do habitus dar conta de transformações? Pode ser totalmente reconstruído ou
reconfigurado? Caso positivo, em quais circunstâncias poderia tornar o mundo um local
melhor para se viver?
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A questão da durabilidade do habitus é provavelmente o maior desafio que o conceito
enfrenta, tanto no plano teórico quanto empírico. Segundo Bourdieu (2005b, p. 45, tradução
nossa):
o habitus não é algo natural, inato: sendo o produto da história, ou
seja, da experiência social e da educação, pode ser alterado pela
história, ou seja, por novas experiências, pela educação ou
treinamento (o que implica que aspectos que permanecem
inconscientes no habitus sejam, pelo menos parcialmente, conscientes
e explícitos). Disposições são duradouras: elas tendem a se perpetuar,
a se reproduzir, mas não são eternas. Podem ser alteradas pela ação
histórica orientada pela intenção e pela consciência, e utilizando
dispositivos pedagógicos. [...] O habitus não é uma fatalidade, não é
um destino.
Com isso, Bourdieu sugere que o modelo de um círculo vicioso, onde estruturas
produzem o habitus que, por sua vez, reproduz as estruturas, denota um desconhecimento de
seu trabalho. Bourdieu indica que, onde as disposições encontram condições diversas
daquelas nas quais foram construídas, existe um confronto dialético entre o habitus e as
estruturas objetivas com as quais foi confrontado. Neste confronto, o habitus opera como uma
estrutura estruturante capaz de perceber seletivamente e transformar a estrutura objetiva de
acordo com sua própria estrutura, enquanto, ao mesmo tempo, sendo reestruturado, é
transformado em sua forma pela pressão da estrutura objetiva. Bourdieu aceita que o habitus
possa mudar, e o faz constantemente, mas dentro de limites inerentes à sua estrutura
originária.
Infelizmente, Bourdieu oferece pouco esclarecimento sobre como o processo de
internalização se torna ativado em um processo de externalização. Apreendemos pouco
também sobre o funcionamento do mecanismo deflagrador, ou porque certos tipos de
internalização são mais facilmente externalizados que outros.
O conceito de habitus de Bourdieu é bastante familiar para muitos pesquisadores em
sociologia, antropologia e no campo de estudo das organizações. No entanto, mesmo para
aqueles familiarizados com a teoria social de Bourdieu, existe muita discordância sobre o que
o conceito realmente representaii.
Parte do problema decorre das ambições teóricas de Bourdieu, levando até mesmo um
crítico simpatizante como DiMaggio (1979) a descrever o habitus como um "Deus Ex
Machina teórico”, ou seja, um conceito que surge repentinamente para resolver uma
dificuldade teórica aparentemente insolúvel: como relacionar estrutura objetiva e atividade
individual. Por outro lado, Bourdieu e Wacquant (1992) argumentam que essas críticas
surgem de leituras sistematicamente erradas do projeto teórico bourdieusiano, que insistem
em projetar, ainda que involuntariamente, variações da dicotomia objetividade/subjetividade
no próprio conceito que Bourdieu utiliza para transcendê-la.
Um dos debates recorrentes em torno da teoria social de Bourdieu, naturalmente, é se
o habitus é essencialmente estático ou se suas propriedades podem mudar dinamicamente em
diferentes condições e circunstâncias. Desde 2000, duas linhas relacionadas com este debate
têm recebido muita atenção na literatura: a questão colocada por Weiss (2003), resumido pelo
próprio autor na máxima “can old dogs learn new tricks?” (“cães velhos podem aprender
novos truques?”), e, num outro plano, a questão do papel da psicanálise nas elaborações de
Bourdieu sobre o habitus e sobre o inconsciente pré-reflexivo, que aparece, por exemplo, em
Fourny e Emery (2000), Frère (2004) e Mangi (2009).
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Weiss (2003) argumenta que o habitus está continuamente em expansão em resposta a
novas situações. É um fenômeno generativo, conforme Bourdieu repetidamente enfatizava,
capaz de improvisação regulada, ou seja, dotado de capacidade de auto-transformação para se
adequar a novas circunstâncias e experiências em ocasiões onde as respostas habituais dos
agentes colapsam ou se confrontam, e quando os agentes refletem conscientemente sobre si
mesmos e seus contextos modificadosiii, reconstruindo seus habitus de forma compatível. O
habitus, portanto, não apresenta aos agentes simplesmente “soluções prontas ou modos fixos
de se visualizar um problema” (Weiss, 2003, p. 7). Pode se apresentar “clivado”, ostentando a
“marca das contradições que o produziram” (Bourdieu, 2001).
Além disso, nos dias atuais, a noção de um ator social como uma multiplicidade é
amplamente aceita no âmbito das ciências sociais. Reconhecendo a probabilidade de múltiplas
fontes de influência sobre o habitus, autores como Lahire (2002) defendem a conceituação de
indivíduos como atores socais com múltiplos habitus. Por exemplo, uma jovem mulher pode
considerar-se como uma filha adolescente, uma amiga da faculdade, uma “fã de rap”, um
membro de um clube de tênis, uma colega de trabalho, ou mesmo como parceira em algum
relacionamento amoroso. Em todos os casos, vemos várias identidades incorporando
diferentes habitus, senso de pertencimento e “sensação do jogo” (para utilizar uma expressão
frequentemente citada por Bourdieu).
Esta perspectiva poderia ser classificada como uma sociologia da experiência, na
medida em que nos leva a pensar cada indivíduo como um intelectual, ou seja, como um ator
capaz de dominar, conscientemente, sua relação com o mundo. O ator não pode ser reduzido
aos seus papéis sociais, tampouco aos seus interesses. O indivíduo não assume integralmente
nenhum de seus papéis, que cumprem a tarefa de articular lógicas de ação que o conectam a
cada uma das dimensões de um sistema. O ator é obrigado a combinar diferentes lógicas de
ação, e é precisamente a dinâmica gerada por essa atividade que constitui sua subjetividade e
sua reflexividade (Lahire, 2002).
As experiências socializadoras que vivemos com nossa família, na escola, com amigos
ou no trabalho, não são o resultado de um simples processo de acumulação. Sem
necessariamente postular uma lógica de descontinuidade absoluta, assumindo contextos
diferentes, é possível, seguindo Lahire (2002), pensar as experiências como não sendo
sistematicamente coerentes, homogêneas e compatíveis. O contato precoce com outros
universos além da família está cada vez mais presente em nossas vidas.
O tratamento do habitus como sendo múltiplo, interativo e evolutivo, sugere um
desenvolvimento da teoria de Bourdieu que deixa espaço significativo para a ação individual,
no sentido de que indivíduos não estão inextrincavelmente imersos num habitus qualquer,
mas podem mover-se de um para outro, desenvolvendo novos comportamentos adaptativos.
Uma descoberta recente nesta linha de interpretação, a investigação da apropriação por
Bourdieu dos métodos e ferramentas da psicanálise, sugere que, mesmo quando agentes têm
múltiplos habitus e operam em múltiplos campos, disposições psicossociais fundamentais e
(de certa forma) similares estão em ação. Fourny e Emery (2000), destacando as similaridades
entre a socioanálise de Bourdieu e a psicanálise, localizam as disposições referidas por
Bourdieu (“negação”, “anamnese”, “divisão do ego”, “retorno do oprimido” etc.) como
associadas a categorias centrais da disciplina da psicanálise. De fato, o trabalho tardio de
Bourdieu pode ser fortemente associado à psicanálise, refletindo, talvez, a influência de
Foucault e Deleuze. Traços das idéias de Foucault são cada vez mais evidentes nos últimos
trabalhos de Bourdieu, desde a sua abordagem genealógica do habitus em Science of science
and reflexivity” (2004b) até “Esboço de auto-análise” (2005a), onde declara, textualmente, a
influência inspiradora de Foucault em seu trabalho.
Por outro lado, vários autores têm destacado, recentemente, diferenças importantes
entre a socioanálise de Bourdieu e a psicanálise, alegando que, embora os métodos e técnicas
10
sejam similares, são aplicados na obra de Bourdieu a um sujeito irredutivelmente social, e
assumem como seu objeto de análise, estruturas muito maiores, mais flexíveis e
historicamente imbricadas do que as normalmente abordadas pela psicanálise. Este linha de
interpretação, portanto, aponta para uma possível inconsistência epistemológica, localizada na
incomensurabilidade entre níveis de análise. Conforme observa Crossley (2004 apud Hillier
& Rooksby, 2005, p. 14-15), para Bourdieu:
agentes agem com base em sentimentos, gostos e percepções
profundamente arraigados e socialmente moldados. Seu egoísmo é
necessariamente filtrado por meio de um processo de cultivação e
socialização que, como Durkheim enfatizava, é irredutivelmente
coletivo em natureza [...]. Eles inconscientemente censuram e
sublimam suas expressões para se adequarem às exigências do campo,
assumindo valores e idéias desse próprio campo, e sua ação é
sintonizada com a estrutura do campo até o ponto em que tais
estruturas parecem ser naturais, inevitáveis e corretas.
Em outras palavras, poderíamos argumentar que os termos e as técnicas da psicanálise
são úteis para a socioanálise, mas tendem a ser aplicadas de modo bastante diferente pelos
sociólogos, e a um agente cuja psique é estruturada pela vivência em múltiplos campos
sociais. O próprio Bourdieu (2004b) enfatiza a consciência histórica da socioanálise vis-à-vis
à psicanálise. Tendo em conta a noção de transformação do habitus, o inconsciente de
Bourdieu é adaptável, capaz de desenvolver uma percepção do “jogo social” em novos
campos, e sujeito à repressão, sublimação e aos demais processos característicos da
psicanálise como resultado de pressões dentro desses campos. Além disso, a preocupação do
sociólogo com o habitus não está limitada às técnicas específicas da psicanálise, como aponta
Leach (2005), baseado na noção de “apropriação” de Benjamim, nas elaborações de Judith
Butler sobre “identidade performativa”, assim como nas categorias da teoria psicanalítica em
geral.
Julgando pela riqueza de contribuições e influências multidisciplinares, futuros
debates sobre a natureza do habitus, no contexto contemporâneo pós-moderno, tendem a ser
bastante interessantes e profícuos.
Considerações finais
Tanto a adaptação quanto a distinção são dois tipos de agência justapostas no conceito
de habitus sem que sua relação exata fique esclarecida. De um lado, as práticas surgem com
uma adaptação funcional às necessidades da vida. Tais práticas têm a tendência de reproduzir
a posição social. Por outro lado, o habitus gera práticas que diferencia os atores de seus
competidores. Aqui, Bourdieu liga a tendência de reprodução a uma tendência do habitus de
“afirmar sua autonomia em relação a situações”, tendendo, portanto, a “perpetuar uma
identidade diferencial”. Este tipo de agência é mais relacional, pois emerge da interseção das
disposições do habitus e das estruturas de restrições e oportunidades oferecidas pelos campos
nos quais opera. Ainda assim, a adaptação é o tipo mais frequente de agência nas análises de
Bourdieu.
De um modo mais geral, como muitos comentadores observaram, sua ênfase na
adaptação do habitus às circunstâncias sobrevaloriza a conformidade dos atores à sua posição
social e faz a resistência parecer uma forma anômala de comportamento, ocasionada somente
por situações específicas. Se quisermos entender a resistência e as orientações e preocupações
11
normativas dos atores em relação à sua classe, precisamos modificar alguns dos conceitos
chave de Bourdieu, começando pela noção de habitus. Em particular, precisamos elaborar um
entendimento da orientação normativa do habitus, especialmente suas disposições éticas e
epistemológicas, que são marginalmente exploradas por Bourdieu ao longo da sua obra. O
habitus, afinal, tem profundas influências na nossa capacidade de julgar (tanto juízos morais
quanto estéticos) e conhecer. Essas modificações no conceito de habitus nos permitem ver
que a resistência pode ser intrínseca à formação do habitus ao invés de extrínseca.
Neste sentido, uma agenda para pesquisas futuras comprometida com esses objetivos
deve procurar um aprofundamento nos conceitos bourdieusianos, tal como ele os definiu,
como ponto de partida para o desenvolvimento de uma crítica construtiva, focalizando em
vários problemas correlatos: a relação entre habitus e habitat e a explicação do fenômeno da
resistência; a relação entre disposições incorporadas e racionalização, incluindo a
reflexividade; o caráter normativo e avaliativo do habitus; e, finalmente, a natureza das
emoções, compromissos e disposições éticas.
Vale esclarecer que o ponto deste argumento não é simplesmente desenvolver uma
crítica da abordagem de Bourdieu mas modificar seus conceitos de modo que eles possam
produzir novas possibilidades teóricas. A obra de Bourdieu contem muitas elaborações
diferentes do conceito de habitus, algumas delas, particularmente de seus últimos escritos,
mais próximas do que está sendo proposto aqui do que outras. Embora não exista intenção
alguma de deturpar a obra de Bourdieu, essa agenda de pesquisa deve se preocupar menos
com a proximidade ou distância do corpus bourdieusiano, e mais com o que pode ser
fundamentado e “defendido” teoricamente.
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i
Vemos essa ênfase cognitiva, por exemplo, em “O ofício do sociólogo” (Bourdieu, Chamboredon & Passeron,
2004), onde Bourdieu discorre sobre um tipo de habitus científico necessário para a pesquisa em sociologia.
ii
Para mais detalhes sobre às críticas à noção de habitus ver Brubaker (1993), Calhoun (1993), Everett (2002),
Fuchs (2003), Lau (2004), Lizardo (2004), Mutch (2003), Sewell (1992), Swartz (2002) e Warde (2004).
14
iii
O argumento da reflexividade, sempre defendido por Bourdieu. Para uma exposição detalhada sobre o papel da
reflexividade na obra de Bourdieu, ver Bourdieu e Wacquant (1992).
15
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Reflexões Acerca da Noção de Habitus em Pierre Bourdieu