JOVENS RURAIS, IDENTIDADE SOCIAL E REPRODUÇÃO GERACIONAL
Rosani Marisa Spanevello
Eng. Agrônoma, Doutoranda Programa Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, (PGDR/ UFRGS).
CPF: 919391350-87
Av. João Pessoa, 31 CEP: 90040–000, Porto Alegre – RS
E-mail: [email protected]
Área temática: 7 – Agricultura Familiar
Forma de apresentação: apresentação com presidente da sessão e sem a presença de
debatedor
XLIII CONGRESSO DA SOBER
“Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial”
JOVENS RURAIS, IDENTIDADE SOCIAL E REPRODUÇÃO GERACIONAL
Resumo
Esse artigo objetiva discutir as mudanças ou transformações na identidade social dos
jovens rurais pertencentes à agricultura familiar. Parte-se do entendimento que a identidade
social dos jovens é idêntica a do seu grupo familiar, construída no processo o qual a
família repassa para os filhos seu modo de vida, seus valores e a importância da
reprodução da unidade produtiva, havendo então uma identidade coletiva. Mas essa
identidade social perde esse caráter com a ampliação do espaço social rural e a introdução
de novos fatores estruturais como a Unificação do Mercado de Bens Simbólicos. Sob esse
fator, ocorrem mudanças ou transformações nessa identidade social dos jovens, capaz de
gerar não mais o projeto coletivo familiar, mas sim seus projetos individuais, cujos
reflexos se estendem na crise da reprodução da agricultura familiar através de processos
como a masculinização e o envelhecimento no campo.
Palavras – chave: identidade social, jovens rurais, crise reprodução.
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Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005
Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural
XLIII CONGRESSO DA SOBER
“Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial”
JOVENS RURAIS, IDENTIDADE SOCIAL E REPRODUÇÃO GERACIONAL
1. Introdução
A identidade social é hoje largamente definida pela atividade profissional
(Champagne, 2002) e existe fundamentalmente pelo reconhecimento dos outros perante
ela, reconhecendo-a com legítima, identificando-se como parte dela. Para Champagne
(2002) a identidade social, aquela que é enunciada para os outros e também para si mesmo,
é uma das formas que a necessidade social também assume de ser reconhecida e de se
justificar como é. Ela expressa um estado das estruturas sociais, ao mesmo tempo em que
contribui para mantê-las, porque essa identidade social deve ser constante além do tempo.
Essa identidade social que se mantêm constante além do tempo, associada à atividade
profissional, está situada dentro das unidades produtivas familiares, especialmente por suas
características de socialização do trabalho, gestão do estabelecimento e modo de vida. Essa
condição é encontrada no que Bourdieu (2000) denomina de microssomo fechado, presente
com maior freqüência nas sociedades rurais de outrora, cujas características são de um
espaço rural mais fechado sem ou com pouca interferência dos valores urbanos, seja pela
distância geográfica, econômica ou cultural, capaz de produzir seus próprios bens para a
sua sobrevivência, tendo seu próprio mercado de base local, bem com uma dinâmica social
muito específica.
Sob esses condicionantes, a identidade social familiar carregada dos seus valores
simbólicos e materiais juntamente com a profissão de ser agricultor, é repassada aos seus
filhos. A identidade social formada pelos filhos é fiel e produzida de maneira idêntica a do
grupo familiar. Neste sentido, os interesses dos filhos são também os interesses do grupo
coletivo, através da homogeneidade dos mesmos e da capacidade de formar novos
agricultores e, com isso, a garantia da reprodução das unidades produtivas e dos valores
fundamentais do grupo.
Mas essa identidade social passou por transformações e mudanças, especialmente
com a ampliação do espaço social rural, associada a um fator estrutural denominado por
Bourdieu (2000, p. 98) de “Unificação do Mercado de Bens Simbólicos”, cujo efeito são
transformações no espaço social onde vivem essas famílias. Uma das maiores implicações
que esse fator estrutural trouxe para o meio rural foi a diluição das fronteiras com o urbano
e a proximidade desses dois mundos, capaz de fazer com que os filhos deixem de lado os
projetos coletivos familiares e passem a traçar seus próprios projetos profissionais
individuais. Este fato implica na transformação da sua identidade social não caracterizada
como agricultor, mas voltada às profissões urbanas, bem como os valores e o modo de vida
em detrimento da negação dos valores e modo de vida rural.
Parte-se do princípio que ocorre então, um processo de desajustamento da identidade
social dos filhos em relação à dos pais, que atinge inclusive os herdeiros ou os sucessores.
Trabalha-se com a hipótese que essa diferenciação de identidade entre os pais e os filhos
não assegura a garantia da reprodução das unidades produtivas familiares, configurando-se
na crise da reprodução geracional da agricultura familiar.
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Ao buscar retratar a mudança da identidade social por que passam os jovens rurais
pertencentes à agricultura familiar dentro do microssomo fechado e com a ampliação do
espaço social, pretende-se responder ao seguinte objetivo: Verificar como ocorrem essas
mudanças e/ou transformações da identidade social dos jovens e de que forma afetam a
reprodução geracional nas unidades produtivas familiares. Para atingir tal objetivo, além da
revisão bibliográfica referente ao tema, farei uso de estudos empíricos já realizados em
minha dissertação de mestrado.
2. A identidade social no microssomo fechado
Nas comunidades rurais mais fechadas e isoladas, as alternativas são escassas para os
jovens ao tentar traçar um projeto profissional individual diferenciado, porque o que
predominantemente ocorre é a profissão de agricultor, reproduzida nos moldes da tradição
sucessória familiar – dos pais para os filhos. Assim, a família garante a homogeneidade da
identidade coletiva (especialmente profissional) ao longo das sucessivas gerações, já que a
família 1 doa essa identidade para os filhos ao fazer com que os mesmos convivam e se
reconheçam nos valores internos do grupo e da comunidade, através do convívio nos
espaços de lazer, como jogos e festas e também da prática religiosa, bem como através da
socialização dos filhos desde muito cedo, quando ainda crianças nos processos de trabalho,
primeiramente através da ajuda em serviços mais leves, com aumento das
responsabilidades, conforme os filhos avançam na idade.
O fundamental nessas comunidades pertencentes ao microssomo fechado, é que a
identidade dos pais não se diferencia dos filhos, conseguindo garantir a reprodução da
unidade produtiva familiar, que além do capital econômico inclui seus valores, sobrenome,
suas tradições, enfim, seus bens simbólicos. Assim, a identidade é uma forma da garantia
da reprodução, cabendo ao sucessor a perpetuação da família e a integridade do patrimônio
que lhe pertence.
Para Bourdieu (1962, 2000), a lógica das práticas familiares está em se reproduzir
como patrimônio, cuja base está alicerçada sobre o princípio do habitus, enquanto um
conjunto de disposições internalizadas e naturalizadas que sustenta as práticas da
reprodução social, que está englobado nessa lógica e nesse espaço social. O patrimônio é a
família 2 e para assegurá-lo no seu interior, a família usa estratégias como, por exemplo, o
matrimônio feito através do que é considerado boas alianças, ou seja, aquelas que visam
resguardar esse patrimônio quer seja a casa, o sobrenome, a honra, a posição social, etc.
1
Para Bourdieu (1996, p. 131) “a família tem um papel determinante na manutenção da ordem social, na
reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do espaço social e das
relações sociais. Ela é um dos lugares por excelência da acumulação do capital sob seus diferentes tipos e de
sua transmissão entre as gerações: ela resguarda sua unidade pela transmissão e para a transmissão, para
poder transmitir e porque ela pode transmitir”.
2
Bourdieu (1996, p. 132) esclarece que “de maneira particularmente clara nas sociedades onde a casa é
importante, naquelas onde a preocupação de perpetuar a casa orienta toda a existência da unidade doméstica,
a tendência da família a se perpetuar no individuo, a perpetuar sua existência assegurando sua integração, é
inseparável da tendência de perpetuar sua existência”.
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Na agricultura familiar a garantia de haver sucessor e com ele a reprodução da sua
identidade está interligada com o que Abramovay (2001, p.27) salienta como sendo a
“fusão entre os objetivos da unidade produtiva e as aspirações subjetivas dos seus
membros [...] com forte pressão moral a continuidade da profissão de agricultor, até
porque os horizontes alternativos eram escassos e pouco acessíveis”.
A reprodução de maneira idêntica supõe que fiquem intactos simultaneamente a
concepção do ofício e o estilo de vida que ela torna possível. Isso implica uma adesão
inquestionável e coletivamente partilhada por todo o grupo acerca da identidade social, que
precisa se reproduzir e que participa do próprio processo de reprodução (Champagne,
2002). Ainda, segundo o autor (2002, p. 238) “para que um agricultor tradicional possa
reproduzir-se é necessário que acredite que seu estilo de vida mereça ser reproduzido e que
possa fazer com que seus filhos creiam nisso”. Desse modo, as tradições sucessórias eram
conduzidas pela família com a garantia da indivisibilidade do patrimônio, com a certeza da
continuidade da unidade produtiva familiar através dos herdeiros escolhidos dentro do
grupo.
3. A identidade social no espaço social ampliado
A ampliação do espaço social rural ocorreu associado a um fator estrutural que
Bourdieu (2000) denomina “Unificação do Mercado de Bens Simbólicos”, que faz parte de
um conjunto de processos econômicos e, sobretudo, simbólicos no interior do espaço social
de convivência dos agricultores responsável pela dissolução ou diminuição das fronteiras
entre o rural e o urbano – o microssomo fechado dá lugar ao universo infinito, permitindo
o confronto de valores entre esses dois mundos, ao qual o urbano se sobrepõe ao rural.
Essa sobreposição marca a introdução de valores urbanos que acentuam
objetivamente e subjetivamente a dependência do rural em relação ao urbano, quer seja
pela economia de mercado sobre a pequena produção agrícola, fazendo com que a
produção agrícola local e mais voltada para a subsistência se torne competitiva e
qualificada com alto grau de conhecimento técnico–agronômico, mão de obra qualificada e
investimento econômico que não com rara freqüência está distante da realidade das
famílias rurais.
Essa unificação passa a introduzir no rural valores opostos aos que os jovens
conviviam no grupo familiar e nas comunidades pertencentes ao microssomo fechado e,
com isso, enfraquece sua capacidade de recusa e resistência a esses valores, tais como o
modo de falar, de vestir, a negação da profissão de agricultor, entre outros, quando os
jovens tomam contato com eles (Bourdieu, 2000). Isso ocorre porque a unificação do
mercado de bens simbólicos produz um efeito de dominação que não respeita as
diversidades do local de origem desses jovens, tomando muitas vezes como
constrangedoras e até vergonhosas as condições de existência dos agricultores, pois não se
trata de um processo que é universalizante no sentido de agregar os indivíduos, e que,
conforme Bourdieu (1989, p. 128), “ao invés de abolir os particularismos, os constitui em
estigmas negativos”.
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Por conta desses condicionantes da abertura do espaço rural, modifica-se ou
transforma-se a identidade social dos jovens rurais em relação à dos seus pais e dos seus
próprios pares. O que os jovens buscam é o reconhecimento social da identidade legítima,
conquistado com a proximidade e incorporação da mesma e conseqüente anulação da sua
identidade rural. Esse desajuste da identidade social implica na crise da reprodução da
nova geração de agricultores, porque enquanto a família permanece ou busca resguardar
sua identidade, a dos filhos se diferencia. Para Champagne (2002), quando os filhos de
recusam em suceder os pais, estão recusando o seu estilo de vida, fazendo com que a crise
da reprodução se transforme numa crise da identidade social, porque é preciso fazer com
que os filhos creiam que o seu estilo de vida ainda mereça ser vivido e reproduzido.
Bourdieu (1983, p. 180) ao discutir a sucessão do patrimônio das gerações especifica
as diferenças que geram conflitos, afirmando que: “... as aspirações de sucessivas gerações,
de pais e filhos, são constituídas em relação a estados diferentes da estrutura de
distribuição de bens, e de oportunidades de acesso a diferentes bens [...] e muitos conflitos
de gerações são conflitos entre sistemas de aspirações constituídos em épocas diferentes”.
Nesse sentido, cabe assegurar que a reprodução do indivíduo se sobreponha a reprodução
de outrora, onde se valorizava o projeto da instituição coletiva familiar, que hoje se abre
para uma maior valorização dos projetos individuais.
Mesmo que os filhos participem dos processos de socialização familiar, Abramovay
(2001, p.28) esclarece que “estes conhecimentos não significam que os jovens organizam
seu futuro com os olhos necessariamente voltados para a propriedade paterna”. Dentro dos
fatores que abrem a possibilidade desse desajuste da identidade entre a família e os filhos
estão as relações familiares que, com a ampliação do espaço social, perderam o caráter de
“pressão moral”, da obrigatoriedade e responsabilidade de ter um sucessor para garantir a
reprodução do patrimônio familiar, sendo que essas novas relações enfocam um caráter
mais “democrático” nessas decisões, ao mesmo tempo em que não está mais centrado
única e exclusivamente sobre a figura paterna (Spanevello, 2003).
O sistema de ensino adotado pelas escolas que os jovens freqüentam valoriza muito
pouco esse meio, repassando conhecimentos universais com professores urbanos que
pouco conhecimento ou contato estabelecem com as necessidades e especificidades do
meio de origem dos seus alunos. A escola é reconhecida com um espaço capaz de mudar
os valores transmitidos pela família, fazendo com que essa última perca sua autonomia em
relação a transmissão. A identidade familiar perde espaço para a nova identidade que se
apresenta para os filhos na escola, seja pelo estilo de vida que faz surgir, preenchendo uma
função que Bourdieu (2000, p. 113) define como sendo de “instrumento de dominação
simbólica contribuindo na conquista de um novo mercado para os produtos simbólicos
citadinos”.
A escola impõe e faz-se reconhecer como detentora de uma identidade social legítima
que ganha espaço na transmissão de valores, anteriormente ocupada pela família, que faz
com que os filhos se desfaçam dos valores rurais, dos saberes antigos e do seu modo de
transmissão direcionando suas próprias estratégias de reprodução e seu futuro não mais
necessariamente ao espaço de origem. O próprio ambiente escolar cria uma maneira de
portar-se, de vestir-se e de expressar-se nas “gírias” ou palavras criadas por seus pares
urbanos, ocorrendo, na verdade, o distanciamento entre dois mundos próximos e ao mesmo
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tempo diferentes, onde os jovens convivem em um, mas chocam-se com os conhecimentos
e as especificidades existentes em outro.
Essa situação dá margem ao “processo comparativo” que os jovens fazem da sua
identidade de agricultor, tomando-a como negativa. Essa modificação dos eixos de
referência como, por exemplo, as transformações da percepção que os filhos (as) tinham de
si mesmo, cujas condições de vida objetivamente difíceis que poderiam parecer outrora
normais, se tornam insuportáveis quando comparam sua maneira de viver com a de outros
jovens, especialmente os urbanos. A conseqüência, é que são levados a se perceber em
situação desfavorecida. Essa construção da visão de si mesmos depende do conhecimento e
da comparação com outros grupos, caracterizando um processo de violência e dominação
simbólica 3 .
Os maiores anos de estudo possibilitam o rompimento com a identidade camponesa,
porque o acúmulo e o volume de capital adquirido pelos jovens cria uma multiplicidade de
interesses e estratégias que passam distantes da sua permanência ou retorno para exercer a
atividade profissional de agricultor no espaço rural. Mesmo que o retorno aconteça, os
jovens estão incutidos de uma identidade transformada, ou seja, muito mais urbana do que
rural, através de mudanças como o modo de vestir, de falar, de acesso a determinados bens
e confortos muito distantes economicamente do grupo familiar de origem, bem como o
acesso a determinados bens trabalhistas e construção do próprio patrimônio. Essas
condições afirmam a negação da identidade de agricultor por parte do migrado, que já foi
transformada, que já pertenceu aquele espaço social, pela afirmação de outra.
A migração rural – urbana, ascendida pelos jovens, com vistas à instalação
profissional no mercado de trabalho urbano, começa ainda no meio rural com a presença
desses jovens na escola. O acúmulo do capital escolar pode ser a alavanca para a migração,
especialmente nos processos de migração enfocados sobre a condição de gênero, onde as
jovens ao freqüentarem por mais tempo a escola acumulam maior capital escolar, que
também é almejado pelos jovens que ascendem ao processo migratório. O que essa
migração tanto masculina como feminina tem em comum é a perspectiva de uma nova
identidade por parte dos migrados.
Essa nova identidade pode ocorrer pela não vontade dos filhos (as) exercer a
profissão dos pais, ou seja, a negação de ser agricultor – e com isso negar a identidade
social dos pais – aspirando às profissões urbanas 4 . Essa negação pela profissão do
agricultor tem como causa as dificuldades para se ter ascensão econômica nas atividades
3
Conforme Bourdieu (1989, p. 124) “quando os dominados nas relações de forças simbólicas entram na luta
em estado isolado, como é o caso nas interações da vida quotidiana, não tem outra escolha a não ser a da
aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição da sua identidade ou da busca da
assimilação a qual supõe um trabalho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no
estilo de vida, no vestuário, na pronúncia, etc) e que tenha em vista propor, por meio de estratégias de
dissimulação ou de embuste, a imagem de si o menos afastado possível da identidade legítima”.
4
É importante deixar claro, que sob determinadas condições os filhos (as) migram da propriedade paterna,
mas não necessariamente se mudam para o meio urbano em busca de mercado de trabalho, continuam no
meio rural, mas não trabalham na agricultura, e sim sob condições de trabalhadores assalariados em
atividades não agrícolas, que tem atingido taxas expressivas de crescimento no meio rural brasileiro, em
contraste com taxas negativas de crescimento das atividades essencialmente agrícolas.
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agrícolas devido a ser considerado um trabalho penoso, sem férias, sujeito a instabilidades
climáticas (Champagne, 2002) e ainda, a tenra idade em que se começa a ajudar no grupo
doméstico, a falta de políticas e preços agrícolas (Spanevello, 2003).
As profissões urbanas se tornam mais visíveis e desejadas pelos filhos (as) com a
aproximação entre o rural e o urbano. Mas esses desejos dos filhos(as) podem ocorrer de
maneira diferenciada entre eles, em razão do habitus constitutivo de cada indivíduo.
Bourdieu (2000, p. 98) nos coloca que há uma força de atração exercida pelo campo social
agora unificado ao redor das realidades urbanas dominantes, com a abertura de grupos
isolados, e da força de inércia que os diferentes agentes lhe contrapõem em razão da
categoria de percepção, de apreciação e de ação constitutivas de seu habitus.
A força de atração demonstra que a migração atinge os filhos (as) de maneira
diferenciada, estabelecendo relações de gênero e preferência pelos filhos que serão o (s)
herdeiro (s), que visualiza um descompasso entre o que querem os pais e o que querem os
filhos (as) mostrando que a nova identidade construída pelos filhos (as) ao ganhar o espaço
urbano é fruto também das relações gestadas e postas em prática pelo grupo familiar, o
qual não pode ou não permite espaço para todos na reprodução familiar. Isso permite
construir uma identidade social diferenciada entre os filhos 5 , especialmente sob a
perspectiva de gênero, através da condição econômica familiar ou falta de terra.
Os filhos (as) mais bem preparados para fazer a conversão - tomados pela força de
atração, tornando-se mais aptos a construir uma nova identidade social - são também os
menos fortemente integrados ao grupo familiar, e conseqüentemente os menos apegados
aos valores familiares tais como as filhas, os filhos não herdeiros, ou ainda, os filhos de
famílias mais pobres (Bourdieu, 2000). A preferência familiar por filhos herdeiros, a não
valorização do trabalho feminino, reconhecido muitas vezes apenas como ajuda, o maior
acesso a educação por parte das mulheres, a condição econômica familiar aliado ao seu
aleijamento durante a partilha dos bens, são algumas das condições que tornam o
horizonte urbano mais próximo das filhas e segundo Bourdieu (2000, p. 105), “as mulheres
são menos apegadas do que os homens (e os próprios filhos mais moços) as condições
camponesas e menos empenhadas ao trabalho e nas responsabilidades de poder, logo
menos pressa pela preocupação do patrimônio a manter, mais dispostas a educação e as
promessas de mobilidade que ela contém”. A ascensão ao meio urbano perde a
especificidade de gênero, ao reconhecermos que tanto a migração masculina como
feminina é expressiva em contextos de unidades familiares economicamente
desfavorecidas, do qual a cidade passa a ser a esperança ou o horizonte promissor na
tentativa de melhorar as condições de vida (Abramovay, 2001) (Spanevello, 2003).
A pré-disposição das jovens em se aproximar da identidade legítima, da identidade
reconhecida como dominante, se correlaciona com a disposição do habitus que permite
romper com o modo de ser do agricultor e capaz de incorporar modelos culturais
dominantes. Essa incorporação está em reconhecer as vantagens da vivência urbana em
5
Conforme Champagne (2002, p. 272) “a identidade social tende freqüentemente, nos períodos de
transformação sociais rápidas, a estar atrasada em relação às estruturas sociais e a modificar-se por
decadências mais ou menos brutais que se manifestam então por uma rápida e profunda desmoralização do
grupo, sinal anunciados do seu desaparecimento, ou, no mínimo de sua transformação próxima”.
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detrimento das desvantagens da vivência no meio rural, do qual o urbano deixa de ser
despercebido para se tornar perceptível e apreciável, visível e desejável. Para Bourdieu
(2000, p. 103-104) “a atração ao modo de vida urbana só pode se exercer sobre mentes
convertidas a suas seduções: é a conversão coletiva da visão do mundo que confere ao
campo social a um processo objetivo de unificação de um poder simbólico fundado no
reconhecimento unanimemente concedido aos valores dominantes”.
Ao negar a sua identidade de agricultor, pela incorporação dos valores urbanos, se
nega os valores do próprio meio de origem e do grupo (quer seja no trabalho, ou no modo
de vida) que lá permanece. Uma das maiores nuances na negação da identidade social está
centrada sobre a condição de gênero e suas implicações nas questões da reprodução da
agricultura familiar, uma vez que as jovens migrantes (e muitas que permaneceram no
meio rural) ascendem à condição do matrimônio dando preferência aos citadinos e ao seu
modo de vida, negando assim a condição de união matrimonial com jovens agricultores e a
sua representação da identidade, cujos valores tem sido extremamente desvalorizados 6 ,
especialmente quando comparados com os citadinos, pela não posse dos valores
dominantes 7 .
Um dos fatores preponderantes sobre essa condição da negação da identidade de
origem por parte das jovens tem como conseqüência o surgimento de um processo recente
no meio rural brasileiros como masculinização do campo ou ainda celibato estudado na
França por Bourdieu (1962), cuja identidade diferenciada entre os jovens e as jovens é o
agente causador. A ascensão das jovens ao meio urbano, de maneira cada vez massiva, não
permite a constituição de novas famílias no espaço rural, porque, enquanto os jovens
persistem na condição identitária de agricultor, as jovens buscam outra, tornando
incompatível a união entre eles através do matrimônio – garantia da reprodução dos
agricultores.
A força de inércia presume que os jovens permanecem no meio rural e a sua
identidade social de agricultor está garantida através da continuidade da propriedade e da
família por conta de um habitus formado no seio familiar e envolto nos valores
fundamentais do grupo, cuja reprodução além de ser carregada de valores de ordem
materialista é também simbólica.
Mas a unificação do mercado de bens simbólicos que adentra no espaço rural, cujo
efeito maior, é a dominação sobre as famílias e os jovens, associado a fatores próprios do
processo de globalização como a maior presença dos meios de comunicação, com
mensagens como a falta de preços e políticas agrícolas, produção competitiva e qualificada
baseada em determinados mercados restritos e produzidas com esmeradas tecnologias,
saúde, educação, meio ambiente, etc, podem ser capazes de anular essa força de inércia e
conseqüentemente a identidade de agricultor dos jovens ao mesmo tempo em que as
6
O camponês apreende sua condição desfavorecida por comparação com a dos seus pares urbano, como por
exemplo, do pequeno funcionário ou do operário. A comparação já não é abstrata e muito menos imaginária
como antigamente. Ela se dá nos confrontos concretos no próprio interior da família, como os emigrados, e,
sobretudo, nas relações de concorrência real em que os camponeses se vêem comparados com os não
camponeses por ocasião do casamento (Bourdieu, 2000).
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Para Bourdieu (2000, p. 109) “as mulheres se recusam a casar com um camponês que lhes prometa aquilo
que querem fugir”.
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famílias, ao verem ampliadas o espaço de possibilidades, para os seus filhos, “abrem mão”
do “recrutamento familiar” da continuidade da unidade produtiva. Ainda que a família
permaneça com a sua identidade social, tem aberto espaço 8 para a construção ou
transformação de uma identidade diferenciada para os seus filhos, pois muitas vezes,
mesmo sendo o único herdeiro, o filho migra, porque não está disposto a “sacrificar sua
existência” à condição profissional de agricultor. Essa é a razão pela qual fez surgir um
processo conhecido hoje como envelhecimento no campo.
O que tanto o processo de masculinização do campo como o envelhecimento acentua
é a rejeição da herança através da transformação e/ou a construção de uma nova
identidade, com severas implicações no entrave à reprodução das unidades produtivas
familiares, seja nos seus aspectos simbólicos ou materiais, como a reprodução social e
econômica da unidade produtiva e da vivência social comunitária. Abramovay (2001)
ressalta que “para a sociedade é um problema que essas terras não venham a reentrar no
circuito da reprodução da mesma agricultura familiar e que, por meio do mercado, acabem
sendo incorporadas pela grande propriedade e/ou dedicada à pecuária extensiva, que reduz
o número de empregos e o efeito multiplicador do trabalho”. O autor ainda reforça a
dissolução dos laços de cooperação entre vizinhos e os encontros em torno da comunidade
local, ou seja, a desintegração do tecido social. Ao incorporar essa nova identidade social,
que gera a migração e a masculinização no campo, se observa a dispersão física e social
tanto dos filhos como da família.
4. Considerações finais
As relações no meio rural antes e após a ampliação do espaço rural através da
unificação do mercado de bens simbólicos nos mostra que ocorre mudança ou
transformação na identidade social dos jovens. E isso ocasiona entraves a reprodução
geracional, podendo até mesmo não haver garantias da reprodução da unidade produtiva
familiar.
Essa não garantia se configura na construção de diferentes identidades entre os
membros do grupo familiar, responsáveis por dois processos que entravam a reprodução
geracional nas unidades familiares: a masculinização e o envelhecimento do campo. A
masculinização do campo surge a partir de diferentes identidades construídas entre os
filhos e as filhas, especialmente sob a perspectivas de gênero que tradicionalmente
produzem o aleijamento das mulheres na partilha dos bens, ascendem a preferência das
mulheres ao meio urbano e a estilo de vida que possam encontrar nele, isso ocorre não sem
um mudança de identidade, da qual passam a negar a sua identidade de origem,
desvalorizando os valores camponeses e não permitindo a união como os jovens desses
meio e conseqüentemente a construção de novas famílias. Já o processo de envelhecimento
no campo mostra uma mudança na identidade social, tanto dos jovens como das jovens,
8
Esse fator pode ser observado com maior freqüência em unidades produtivas familiares com piores
condições econômicas.
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que engloba a negação de ser o herdeiro e da herança e com ele a negação da reprodução
das unidades produtivas familiares.
Desse modo, as transformações no espaço sociais geram não somente a mudança na
identidade com a incorporação de outro modo de vida e produção agrícola, mas
principalmente a questão da garantia ou não da reprodução das unidades produtivas
familiares e da formação de novas famílias no espaço rural.
5. Referências bibliográficas
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