UM ESTUDO PARA PENSAR A SEXUALIDADE FEMININA:
ASPECTOS REFLETIDOS A PARTIR DO FILME FRIDA KAHLO
Maria de Fátima Ferreira Péret
Regina Célia
Ciriano Calil
RESUMO:
O presente trabalho discute algumas questões sobre a sexualidade feminina
segundo alguns pressupostos teóricos encontrados em Freud e Lacan. Pretende-se
apresentar algumas formas de amor na partilha entre os sexos destacando certas
problemáticas pertinentes ao feminino. Aborda-se o tema através do filme
de Julie Taymor, “Frida”, para ilustrar a perspectiva feminina diante dos
impasses sobre o enigma da feminilidade cotejando-se a angústia, a demanda de
amor e a devastação. Leva-se em conta que o destino da feminilidade, em
psicanálise, é problemático.
Palavras-chaves: feminilidade; sexualidade feminina; psicanálise.
ABSTRACT:
A STUDY TO THINK ABOUT THE FEMALE
SEXUALITY: REFLECTING
ASPECTS FROM FRIDA KAHLO’ FILM
This work discuss some issues about female sexuality according to some
presuppositions found in Freud and Lacan’s work. It intends to present
some shapes of love in the division between the sexes, noticing
someproblemactics belongs to the feminine, boarding the theme through
the picture of Julie Taymor, “Frida”, to illustrate a female’s perspective
in front of the impasses about the femininity enigma to put toghether with
anxiety, the demand of love and the devastation. To highlight that the
destiny of the femininity in Psychoanalysis is problematic.
Key words: femininity; feminine sexuality; psychoanalysis.
Considerações introdutórias
Estudar a sexualidade feminina do ponto de vista da
psicanálise, corresponde, dentre outras formas, reconhecer os processos
psíquicos implicados, no sentido de um entendimento a partir da estrutura
subjetiva do inconsciente, das escolhas objetais e também das formas de
amor na partilha entre os sexos.
Dentro desta temática neste estudo apresentaremos trechos
de um filme sobre a vida da artista plástica Frida Kahlo, para ilustrar e
discutir algumas problemáticas pertinentes ao feminino, tais como, a
angústia, a demanda de amor e a devastação.
Seguindo Freud (1914, p. 105), em seu estudo sobre o
narcisismo, ao comparar as escolhas objetais do homem e da mulher,
vamos constatar que embora essa diferença não seja universal, “o amor
objetal do tipo de ligação é, propriamente falando, característico do sexo
masculino”. Por outro lado, a mulher tende a desenvolver “certo
autocontentamento”: sua necessidade não é de amar, mas de ser amada.
Portanto sua escolha é narcísica.
Lacan (1958) ao abordar o amor e o desejo sublinha que o
homem dirige seu amor para uma mulher e, a partir daí, se
posiciona
como o homem desta mulher, mas seu desejo se encontra
para além dela. É uma forma de amor fetichista porque a mulher representa
para ele o falo materno inexistente, o que está de acordo com a própria
definição freudiana de fetichismo (Freud, 1927). Para além da mulher
amada, encontram-se as mulheres que representam os ideais fálicos,
objetos do desejo depreciados, conforme a tendência masculina de separar
o objeto do desejo, a mulher santa, sucessora da mãe, da mulher rebaixada
que pode assim ser desejada (Freud, 1912).
Por outro lado, a mulher, tal como sublinha Lacan (1958),
ama erotomaniacamente. Isso nos permite supor um amor delirante. Cabe
ressaltar que a certeza do amor do outro na paranóia corresponde à dúvida
do amor neurótico, sempre mordido pela dúvida: “será que ele me ama?” –
indagação muito freqüente de uma mulher.
A erotomania como modalidade de amor da mulher está
correlacionada à questão narcísica feminina apontada por Freud (1914),
que neste momento do ensino de Lacan (1958) aparece nesse circuito de
amor e desejo em que ao amar o homem, a mulher se ama através desse
amor, por identificação: “o homem serve aqui de conector para que a
mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele” (Lacan,
1958, p. 732).
Dessa forma, a mulher dirige seu desejo para o parceiro
sexual, falicizando seu pênis, porém para-além do parceiro sexual e sob o
véu do recalque está o verdadeiro objeto de adoração da mulher, descrito
por Lacan como o “incubo ideal”, figurado pelo amante castrado, o homem
morto ou Cristo que detém, em si, os efeitos de castração no homem.
Lacan (1958) define o incubo como um lugar para-além da
mãe, o lugar do pai, de onde veio a ameaça de uma castração que não
concerne à mulher, já que ela é castrada desde sempre (Freud, 1924). Em
vez de operar como uma figura castradora e impedir o gozo, o incubo ideal
é libidinizado pela mulher e é através de amor de um homem que a mulher
tem acesso a ele.
A questão da feminilidade, se situa em algum ponto deste
percurso que vai do pai ao pênis fetichizado. Lacan observa que pode
haver um obstáculo neste percurso, a identificação imaginária com o falo.
A isso corresponde a posição histérica em que, ela ( a histérica ) disputa a
posse fálica, e rivaliza com o homem porque na falta de ter o falo, ela quer
sê-lo a qualquer preço, mesmo tendo o preço, o ônus de sua feminilidade.
Por outro lado, na psicose, decorrente da foraclusão do
nome-do-pai, a mulher acredita que encontrou “o homem” (Lacan, 1974) e
com ele o sentido de sua existência. Ela é então arrebatada pelo amor.
Dessa maneira, vemos como é complexo o lugar de um
homem na vida de uma mulher, levando-se em conta que o gozo feminino
é por si só enigmático. A tarefa de desvelar esse enigma é deixada, por
Freud, aos poetas e a outros que se interessem pelo tema. Lacan, após
Freud, então, sublinha que a verdadeira mulher se coloca numa dimensão
de álibi para um homem e isso é o que desperta o desejo masculino. A
verdadeira mulher, como sujeito dividido, vela a falta e faz borda àquilo
que é impossível ser completado.
Frida: do romance familiar ao encontro com Diego Rivera
Pensando nos pontos iniciais por nós colocados, tentaremos,
aqui, contribuir para a compreensão de aspectos da feminilidade,
utilizando, como metáfora, os conteúdos trazidos pelo filme “Frida”
deJulie Taymor.
Frida Kahlo, artista plástica mexicana, de Coyoacán,
México, gostava de declarar-se revolucionária e libertária. Politicamente
engajada na luta pela revolução comunista nas Américas. Admirava as
idéias de Marx e Engels. Endeusava Lênin e recebeu Trostky em sua casa.
Sobressaiu-se ao lado das vanguardas, principalmente do
surrealismo. Desenvolveu o seu próprio estilo artístico, ancorado na
cultura mexicana. Viveu na primeira metade do século XX, atravessada
pelas tensões culturais. Seu legado mostra à civilização sua sensibilidade
ainda hoje. Uma mulher que fez surgir o seu nome próprio.
Filha de um fotógrafo judeu-alemão e uma mestiça
mexicana, teve uma ligação afetiva intensa com o pai: “- meu pai foi para
mim um grande exemplo de ternura, de trabalho e acima de tudo de
compreensão de todos os meus problemas” (Fuentes, 1996). Da relação
com a figura materna podemos dizer que havia pouca intimidade.
Sua vida sempre foi marcada por grandes tragédias e
grandes angústias; aos seis anos contraiu poliomielite e permaneceu um
longo tempo de cama. Recuperou-se, mas sua perna direita ficou
afetada.Teve de conviver com um pé atrofiado e uma perna mais fina que a
outra.
Quando pode assimilar melhor essa deficiência, o ônibus em
que estava chocou-se contra um bonde. Ela sofreu múltiplas fraturas e uma
barra de ferro atravessou-a entrando pela bacia e saindo pela vagina. Por
causa deste último acontecimento veio a fazer várias cirurgias e ficou por
muito tempo presa em uma cama.
Começou a pintar durante a convalescença, quando a mãe
pendurou um espelho em cima de sua cama. Frida sempre pintou a si
mesma: "Eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o
assunto que conheço melhor" (Fuentes, 1996).
O encontro com Diego Riveras resultou em casamento em
1929. Ele foi o pintor mexicano mais importante do século 20 e fez parte
do
movimento muralista,
que
defendia
a
arte
acessível. Rivera,
ajudou Frida a revelar-se como artista. Em 1930, o casal viaja para os
Estados Unidos para exposições de seus trabalhos.
Assim, ela diz saber das angústias, das vivências, dos
medos e principalmente seu amor pelo marido Diego Rivera. Suplica pelo
amor de Diego várias vezes. Uma paixão intensa circunscrita numa relação
amorosa bastante tumultuada: “(...) eu o amo mais que a minha própria
pele (...)” Diego tinha muitas amantes e Frida não ficava atrás,
compensava as traições do marido com amantes de ambos os sexos.
Através da história de Frida podemos fazer várias interrogações sobre a
vida amorosa.
Que lugar dar ao homem em sua vida, sem fazer dele a
sustentação de sua existência? Como se identificar imaginariamente com o
desejo dele? Estas são perguntas que se colocam para toda mulher. No
caso de Frida, podemos pensar que a erotomania foi sua resposta ao amor
de Diego, através de seus poemas podemos localizar a grande importância
desse amor:
Poema do diário de Frida
Diego. princípio
Diego. construtor
Diego. meu bebê
Diego. meu noivo
Diego. pintor
Diego. meu amante
Diego. meu marido
Diego. meu amigo
Diego. meu pai
Diego. minha mãe
Diego. meu filho
Diego. eu
Diego. universo
Diversidade na unidade.
Porque é que lhe chamo Meu Diego?
Ele nunca foi e nem será meu.
Ele pertence a si próprio.
Freud (1932) sublinha que a feminilidade é instaurada para
a mulher quando o desejo de pênis é substituído pelo desejo de filho, eis o
“desejo da feminilidade efetuada, realizada”. O desejo feminino
estaria relativizado através de uma equação fálica: ter um filho.
Através da história de Frida, vamos perceber que uma das
grandes angústias foi, justamente, a impossibilidade de ter filhos (embora
tenha engravidado mais de uma vez, as seqüelas do acidente a
impossibilitaram de levar uma gestação até o final). Muitos dos seus
quadros representam isso.
Poderíamos perguntar quanto à questão do desejo feminino,
qual a função do filho? Se o filho vem tamponar a falta, respondendo ao
lugar de desejo, isto não quer dizer que ele se situe como um objeto de
desejo da mulher. O pertencimento do pênis real ao parceiro em quem ela
vai encontrar seu significante do desejo, faz com que ela esteja ligada a
este homem de forma unívoca? Quem é o Outro para a mulher?
Foi pensando na comparação imaginária entre os corpos que
Freud fez surgir a descoberta da castração do outro pela criança. Menino e
menina, se deparam com a castração do Outro: um episódio da experiência
infantil que pode se atingir, ser encontrado num percurso de uma análise
pelo analisando, na maioria das vezes, sob a forma de um traumatismo.
Ou seja, para a mãe existe também a castração. Ela está
submetida a uma lei; e isto faz com que a alteridade na sexualidade se
encontre desnaturalizada. Não há nada de natural na sexualidade, na
medida em que o que ocorre no complexo de castração é da ordem de um
Outro simbólico. A alteridade sexual não é, portanto, equivalente ao que se
imaginariza: que o outro para mulher seja o homem.
O desejo de filho e o pertencimento do pênis do parceiro
parecem não responder aos enigmas da sexualidade feminina, a isso vamos
encontrar com Lacan (1973) esse algo a mais para além do falo: o gozo
enigmático, louco, tal como é encontrado nos místicos, que não tem
significante para conter em um universo.
Retomando a história de Frida, podemos observar através
dos seus quadros algo desse algo a mais, suplementar que refletia o
momento pelo qual passava e, embora fossem bastante "fortes", não eram
surrealistas: “Pensaram que eu era surrealista, mas nunca fui. Nunca pintei
sonhos, só pintei minha própria realidade”.
Frida contraiu uma pneumonia e morreu em 1954 de
embolia pulmonar, mas no seu diário a última frase causa dúvidas: “Espero alegremente a saída – e espero nunca mais voltar – Frida”. Talvez
Frida não suportasse mais a vida, e a inexistência fosse um fim para aquilo
que nasce, vive e morre inacabado, dependendo sempre do outro para ser,
sentir e fazer. A incompletude cansa, e na morte procura o descanso.
Da angústia, demanda de amor, devastação à arte
O homem sempre buscou a completude e mesmo se
deparando com a falta-a-ser estrutural, tenta em alguns casos fazer
da hiância do inconsciente um mero detalhe e do desapontamento que esta
traz, um não querer saber.
Por outro lado, a descrição psicológica da posição feminina
em Freud e, sobretudo em Lacan, oscila-se por dois lados: da mulher como
aquela que perdeu (e que sofre as conseqüências disso) e daquela que não
tem nada a perder.
Frida, não tinha nada a perder. Ela se fez representar
publicamente. Pintou seu próprio rosto em muitos quadros que produziu.
Parecia usufruir-se de um impulso especial de ver-se esteticamente para o
contato com o público.
Notabilizou-se como artista plástica. Reconhecida em seu
próprio país e no exterior, pela sua própria pintura, circunscreveu sua dor,
mesmo muito fragilizada pela seqüência de sofrimentos físicos que
marcaram a sua existência, escreveu um diário íntimo, O Diário Íntimo de
Frida Kahlo.
Por dez anos, até a data de sua morte em 1954, deixa nas
páginas desse diário o produto do diálogo solitário que entretinha consigo
mesma, seus gritos de dor, suas confissões amorosas a DiegoRivera, o
amor permanente em meio a tantas outras experiências amorosas que não
se impediu de ter.
Por aí podemos refletir sobre a dor de Frida: Algo,
naturalmente, sem limites. Diferente da natureza do sintoma, o que vemos
em Frida, é a devastação. Se por um lado no sintoma pode se ver algo
localizado, algo elementar, identificável, na devastação vemos a outra face
do amor. Esse retorno da demanda de amor, é um índice da ordem de
infinito.
Esse infinito que seus escritos representam através das
várias páginas, circunscreve-se nos vários retratos e escritos das
mutilações físicas e psíquicas que sofreu. Junto aos sonhos políticos de
uma revolução comunista nas Américas, sua obra a faz existir e persistir.
São ao todo cerca de 70 gravuras coloridas - desenhos, cartas, auto-retratos
que nos levam a conhecer o processo criativo da artista e o modo original
de falar das vicissitudes de sua vida.
O interessante é que em todas estas referências,
construídas de palavras, desenhos e cores, observa-se um retrato belo e tão
bem delineado pela criação singular de sua experiência sofrida traduzida
em humor, e em cores vivas e exuberantes. Frida, se constitui, uma marca
singular.
Conclusão
Através deste trabalho podemos concluir que o caminho da
feminilidade é aprender a fazer algo com o nada. Ou seja a melhor solução
para a mulher está para além dos referenciais fálicos, encontra-se do lado
do ser: um ser a partir do nada.
A maternidade é uma saída para a feminilidade, assim
como a parceria amorosa, o desejo de pênis também o é, mas não somente.
Além disso, há algo que se distancia da maternidade (de ter um filho) e do
desejo de pênis, que é algo suplementar. Dessa forma a feminilidade
apresenta seu caráter fascinante de se localizar enraizada na falta, algo
próprio da mulher, do qual ela não diz nada.
Além do referencial fálico, a feminilidade se faz existir por
bordejar a falta, a incompletude. Frida Kahlo pôde saber fazer, através da
arte, sem tamponar a falta. Fez velar a falta, sem negá-la, apesar dos vários
obstáculos que se estabeleceram em seu caminho, apesar da extrema dor de
existir. Por aí, vemos em sua obra de arte o quanto esta inscrição
feminizou esta personagem da história mexicana que pulsou em carne viva
alcançando uma identidade própria.
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SERGE, André. O que quer uma mulher? Tradução brasileira de Dulce Duque
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TAYMOR, J. Frida (filme) IMAGEM - W MIX DISTRIBUIDORA
LTDA. Produção: EUA/Canadá, 2002.
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