Comentário Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal Rui Leandro Maia [email protected] O orçamento disponibilizado para a investigação científica é, tal como o orçamento global, escasso e quase que apenas limitada a verbas que advêm directamente do organismo que representa a área, ou seja, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Não conheço ninguém que tenha estado associado a uma candidatura da FCT para a obtenção de financiamento e que, tendo feito denodado esforço na sua burocrática construção, se tenha integralmente revisto na não aprovação. Ninguém. Daqui decorre que, com legitimidade, somos levados a pensar que, em si, o processo, a forma como está estruturado, levanta dúvidas. O ato de avaliar é, de resto, subjectivo. E há motivos para que se levantem dúvidas. Sublinho: (i) O da suspeição. A identificação das instituições e dos proponentes acompanha os projectos e isso, para além dos imensos pré-conceitos e desconfianças que, também na ciência, prevalecem por relação à prestação das instituições do subsistema privado, uma clara manifestação de incapacidade de evolução cultural, é muito passível de influenciar negativamente as apreciações, por júris constituídos, eles próprios, por quem de tais males enferma. (ii) O da ostracização. O desaproveitar os saberes, as ideias, o capital adquirido de toda uma geração de criadores que, em face das exigências burocráticas, “métricas”, desalinhadas com a idiossincrasia que caracteriza cada área de conhecimento, retira vontade, desinibe e afasta da responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento da ciência e do progresso, em geral, pessoas de elevadíssimo potencial. (iii) O da geração. A ciência “organizacional”, quase que inteiramente filiada e dependente de uma estrutura, a FCT, potencia, a par do afirmado, uma “guerra de gerações”, em que, tristemente, os que estão e são tendem a querer afastar os que estiveram e que foram e deveriam continuar a ser: na hercúlea tarefa de construção de conhecimento não há pessoas a mais. No modelo vigente percebe-se, claramente, que o investigador de renome, desapossado do seu pedestal institucional, rapidamente resvala para a valeta de indiferença, num descartar inaceitável para um País que, embora institucionalmente anuncie o contrário, não deveria desperdiçar sabres e talentos. Mas o que, ainda assim, mais abomino é saber que esteve “no sistema”, porventura há muito consciente destas afirmações, tardiamente solte o “grito do Ipiranga”. (iv) O do desconhecimento. A compartimentação artificial a que a própria “luta” entre as ciências conduz arrecada ao desconhecimento e, mesmo, ignorância sobre o que “o outro” faz ao ponto da idiotice levar alguns iluminados a pensarem pelo umbigo, isto é, a classificarem e desclassificarem áreas de conhecimento em função dos limitadíssimos conhecimentos de, eles próprios, dispõem. Perde-se, cada vez mais, em contracultura científica, o princípio do Homo Universalis e é por isso que, qualquer “aprendiz de feiticeiro”, se inebria ao ouvir falar um investigador que, compreendendo esta verdade, é capaz se saltar a limitada vedação dos campos de saber. Desses, em Portugal, temos poucos. (v) O da limitação. Não há político à altura de compreender a dimensão do que antes descrevi, tenha ou não passado académico, porque, desde logo, é humano. E ao humano, por mais longa que seja a existência, impõem-se limites totais e, sobretudo, cognitivos. Deve haver contudo capacidade para perceber que não é bom confinar a ciência a um qualquer organismo altamente tributário do poder político e das conjunturas ideológico-partidárias, para além da maior limitação que é, como se sabe, a do dinheiro. Que não se negue a quem quer contribuir a máxima de Arquimedes: “Dai-me um ponto de apoio e levantarei o Mundo”. A ciência necessita de vários pontos de apoio. É necessário criar condições, desde logo pela legislação, para associar mais, o que temos é nada, saber e fazer, ciência e empresas, em que se incluem organizações, públicas e privadas, fomentar a ciência em tudo, “de pequenino torcendo o pepino”, criar mecenato científico, retirar subvenções, tensas e privilégios, perceber em cada organização, pública ou privada, o potencial existente para o desenvolvimento endógeno, ou seja, em proveito próprio, do conhecimento. É necessário criar em Portugal a figura do investigador desfiliado da instituição, é necessário que não se veja apenas nos estrangeirado a emblemática figura capaz de decidir pelos bons destinos a dar ao dinheiro em ciência. É necessário, por fim, reconfigurar a credibilidade ou falta dela dos fóruns de discussão e de publicação dos resultados científicos. Não sou o único a pensar desta maneira, mas, admitindo-o, são púbicos os escândalos de artigos fraudulentos publicados em revistas “muitos credíveis”. (vi) O da humildade. Fundamental é mesmo que quem tem governado este País, que não apenas na política formal, seja capaz de, fazendo mea culpa, se deixar conduzir para um certo puritanismo socrático que o faça substituir a arrogância pela abertura ao outro, pela capacidade de integrar, com critérios justos e inteligentemente desenhados, todo o potencial de trabalho científico de que dispõe fazendo com isso uma espécie de take off tardio. Esperando que este desabafo, porventura perdido entre o racional e o emotivo, possa acrescentar ou, porventura, reforçar o debate que nos conduza a alguma mudança positiva, deixo os melhores cumprimentos. Rui Leandro Maia