VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ETNOGRAFIA DE UMA COMUNIDADE
NO FACEBOOK
Clarissa Sousa de Carvalho1
RESUMO
O presente artigo discute a questão da violência obstétrica como violência de gênero e
suas imbricações com a construção simbólica do corpo feminino e dos processos de
gravidez e parto nas sociedades ocidentais contemporâneas. Partindo do entendimento
de que o gênero é uma forma de distribuição de poder na sociedade e de que essa
distribuição repercute no acesso e na utilização dos serviços de saúde, bem como nas
determinações do sistema saúde/doença, cabe ressaltar a questão da violência obstétrica
como uma violência de gênero e, principalmente, como uma violência que muitas vezes
passa despercebida pelas vítimas, que entendem procedimentos e técnicas aplicados a
seus corpos como “naturais” e necessários. O termo, cunhado no meio acadêmico em
2014, pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr.
Rogelio Pérez D’Gregorio, refere-se a um tipo de violência que ocorre em ambiente
hospitalar, principalmente, mas não apenas, no momento do parto. Esse tipo de
violência se caracteriza por qualquer ato exercido por profissionais de saúde no que
cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres, expresso através de uma
atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas, medicalização e transformação
patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem como a negação do direito de
ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a serem exercidos em seu
corpo. Realizou-se pesquisa etnográfica na comunidade “Vamos falar sobre violência
obstétrica?”, no Facebook. Foram analisados relatos de violência obstétrica e os
comentários relativos a eles. Para melhor entender o fenômeno da violência obstétrica,
foi preciso situar o parto como evento produzido na e pela cultura, inscrevendo-o
historicamente no processo de disciplinarização dos corpos e de produção de um saber
científico sobre o corpo. Para tanto, buscou-se o aporte teórico de autores como
Foucault (1985, 1995, 2009), Martin (2006), Meyer (2005) e Tornquist (2004), dentre
outros.
1
Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFPI/2003), Mestra em Antropologia e Arqueologia
(UFPI/2012), Doutoranda em Comunicação Social (PUC/RJ). Professora do curso de Comunicação Social
(UESPI/Picos). E-mail: [email protected]
Palavras-chave: violência obstétrica; parto; parturição.
O presente ensaio busca discutir a questão da violência obstétrica como
violência de gênero e suas imbricações com a construção simbólica do corpo feminino e
dos processos de gravidez e parto nas sociedades ocidentais contemporâneas. O
entendimento da gravidez e do parto como fenômenos patológicos é fruto de
desenvolvimentos históricos. Para entender a institucionalização desse evento, que a
partir do século XX passou a exigir saberes científicos, e não mais empíricos, passando
das mãos de parteiras mulheres a médicos homens, é preciso situar o parto como evento
produzido na e pela cultura.
Até o século XVI o conhecimento sobre o corpo feminino se detinha,
sobretudo, quanto à sua capacidade reprodutora. O partejar era de domínio
exclusivo das mulheres, não apenas por ser do âmbito do privado mundo
feminino como principalmente por ser considerado de pouca importância
para que dele se ocupassem os homens (AGUIAR, 2010, p.39).
Badinter (1980) defende que, no último terço do século XVIII, inicia-se uma
revolução das mentalidades. Ocorre uma transformação nas práticas de cuidados
dispensados à crianças, que passam a ter valor inestimável. As mulheres são alçadas à
posição de interlocutoras entre o Estado e a família, e responsáveis pela nação.
Marilyn Yalom (1997) refere-se à “politização do seio feminino” para descrever
o processo que posicionou a mulher, como mãe, no centro das politicas de gestão da
vida nas sociedades ocidentais modernas. Nesse contexto, há um processo de educação
e medicalização dos corpos das mulheres em nome de sua responsabilidade na criação
de filhos saudáveis para a salvação da sociedade.
A medicalização do corpo das mulheres acontece dentro de um contexto maior
de medicalização da vida privada, através de mecanismos de biopoder (FOUCAULT,
2009) que visam o controle populacional, a disciplinarização da força de trabalho e a
higienização dos espaços e das relações sociais. Para Michel Foucault, a partir do século
XVII, opera-se um intenso processo de politização dos corpos, através do qual
desenvolve-se a organização do poder sobre a vida.
Nos processos em que se exerce o biopoder, acontece, ao mesmo tempo, uma
extensa produção de saber. A produção de um saber científico sobre o corpo se dá
concomitantemente à politização do corpo, que passa a ser objeto de controle. Nesse
contexto, se processa uma medicalização minuciosa dos corpos e do sexo das mulheres
em nome da responsabilidade que elas teriam em relação à saúde de seus filhos, à
solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade como um todo (FOUCAULT,
2009).
É ainda no século XVIII que a Medicina se configura como área de saber
técnico-científico, de domínio exclusivamente masculino. A medicalização social ocorre
como dispositivo biopolítico, redescrevendo eventos fisiológicos até então considerados
como naturais. Diante da nova condição de responsáveis pelo bem-estar dos filhos –
pela população, portanto - as mulheres, assim como as crianças, são atingidas
prioritariamente pela medicalização de seus corpos.
A necessidade de controlar as populações, aliada ao fato de a reprodução ser
focalizada na mulher, transformou a questão demográfica em problema de
natureza ginecológica e obstétrica, e permitiu a apropriação do corpo
feminino como objeto de saber (COSTA et.al., 2006, p.368-369).
Assim, ao longo dos séculos XIX e XX, emergem vários discursos sobre
cuidados a serem dispensados aos corpos femininos, principalmente aos corpos de
mulheres-mães. Meyer (2005) entende que a rede discursiva de cuidados específicos
com os corpos das mulheres-mães que se intensifica no Ocidente leva a uma politização
da maternidade, que “atualiza, exacerba, complexifica e multiplica investimentos
educativo-assistenciais que têm como foco mulheres-mães” (p.82), instituindo lugares
específicos para essas mulheres.
A medicalização do corpo das mulheres se mostrou de forma especial nos
processos relativos à gravidez e parto. “Centradas, inicialmente, em uma visão bastante
pessimista da natureza feminina, a obstetrícia e a ginecologia justificarão toda uma série
de inovações científicas (...) que tornaram a mulher um corpo passivo” (TORNQUIST,
2004, p.72).
Emily Martin (2006) argumenta que a partir do emergência do capitalismo, o
corpo passou a ser visto como uma máquina, uma força de produção. O parto passa a ser
entendido como uma linha de montagem, nos moldes tayloristas, onde seriam
produzidos humanos. A mulher deixa de ser a protagonista do próprio parto, que agora é
comandado pelos médicos. Os saberes femininos relacionados à gestação e parto são
rechaçados em favor dos saberes médico-científicos. Parteiras e comadres, que assistiam
parturientes baseadas em saberes construídos pela experiência própria e pela tradição,
são proibidas de partejar. O fórcepis permite a intervenção masculina e se torna
instrumento de um novo paradigma do parto, agora entendido como um evento
patológico e que deve ser controlado pelo médico homem. O parto assistido por
parteiras passa a ser visto como sinônimo de atraso e rusticidade, enquanto o parto
medicalizado é associado à civilidade.
O declínio da parteira e a ascensão do parto mecanicamente
manipulado e assistido por homens seguiu de perto a grande aceitação
cultural da metáfora do corpo-como-máquina no Ocidente e a
aceitação da metáfora do corpo feminino como uma máquina
defeituosa – uma metáfora que afinal formou a fundação filosófica da
obstetrícia moderna (DAVIS-FLOYD, 2003, p.51)2.
Assim, percebe-se, a partir do século XX, a transformação do parto, que era
entendido como evento fisiológico, natural, feminino e empírico, “em um evento
patológico, que necessita, na maioria das vezes, de tratamento medicamentoso e
cirúrgico, predominando a assistência hospitalar no parto, tornando-o, a partir daí,
institucionalizado” (CRIZÓSTOMO; NERY; LUZ, 2007, p.99), e deslocando a mulher
da posição de sujeito à de objeto do parto.
Vieira (2002) afirma que a medicalização do corpo feminino, objetificado
como corpo reprodutor, naturaliza um papel social de mãe, que é tomado como seu
destino biológico. Para isso, foi preciso construir um ideal de natureza feminina:
2
Tradução minha. No original: The demise of the midwife and the rise of the male-attended,
mechanically manipulated birth followed close on the heels of the wide culturally acceptance of the
metaphor of the body-as-a-machine in the West and the accompanying acceptance of the metaphor of
the female body as a defective machine – a metaphor that eventually formed the philosophical
foundation of modern obstetrics.
A ideia de “natureza feminina” baseia-se em fatos biológicos que ocorrem no
corpo da mulher – a capacidade de gestar, parir e amamentar, assim como
também a menstruação. Na medida em que essa determinação biológica
parece justificar plenamente as questões sociais que envolvem esse corpo, ela
passa a ser dominante, como explicação legítima e única sobre aqueles
fenômenos. Daí decorrem ideias sobre a maternidade, o instinto maternal e
divisão sexual do trabalho como atributos “naturais” e “essenciais” à divisão
de gêneros na sociedade (VIEIRA, 2002, p.31).
A fim de entender a construção do corpo feminino a partir de sua capacidade
reprodutora, recorremos à categoria gênero, de Joan Scott (1995). A autora afirma que
“o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos” (p.86). Por outro lado é, também, “uma forma primária de
dar significado às relações de poder” (p.86).
Como elemento constitutivo das relações sociais implica símbolos culturalmente
disponíveis, que evocam representações simbólicas; conceitos normativos, que
expressam interpretações dos significados desses símbolos, expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas e que afirmam o significado do masculino e do
feminino; inclusão de uma noção de política assim como uma referência às instituições
e à organização social nas análises de gênero; e a identidade subjetiva, que analisa
como são construídas e a relação com organizações sociais e representações culturais.
Gênero é “um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder
é articulado” (SCOTT, 1995, p. 89). Embora não seja o único campo, parece ter
constituído uma forma persistente de possibilitar a significação do poder no ocidente,
nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. Baseando-se em Pierre Bourdieu, a autora
afirma que, à medida que as diferenças de gênero estruturam a percepção e a
organização simbólica de toda a vida social e estabelecem distribuições de poder
(controle ou acesso diferencial a recursos materiais e simbólicos), o gênero se articula à
concepção e à construção do próprio poder.
BARATA (2012) chama a atenção para a utilização do conceito de gênero na
área de saúde
para marcar características próprias aos comportamentos de grupos de
sujeitos sociais e para estabelecer o contraste entre masculino e feminino,
mas, prinmcipalmente, para enfocar as relações que se estabelecem entre
masculino e feminino no âmbito social e que apresentam repercussões para o
estado de saúde e para o acesso e utilização dos serviços de saúde (p.73).
Partindo do entendimento de que o gênero é uma forma de distribuição de poder
na sociedade e de que essa distribuição repercute no acesso e na utilização dos serviços
de saúde, bem como nas determinações do sistema saúde/doença, cabe ressaltar a
questão da violência obstétrica como uma violência de gênero, como violência contra a
mulher e, principalmente, como uma violência que muitas vezes passa despercebida
pelas vítimas, que entendem procedimentos e técnicas a ela aplicados como “naturais” e
necessários.
Mas é preciso, primeiro, esclarecer o que queremos dizer com “violência
obstétrica”. O termo refere-se a um tipo de violência contra a mulher que ocorre em
ambiente hospitalar, principalmente, mas não apenas, no momento do parto. Podemos
dizer que esse tipo de violência se caracteriza por qualquer ato exercido por
profissionais de saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres,
expresso através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas,
medicalização e transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem
como a negação do direito de ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a
serrem exercidos em seu corpo (JUAREZ et al; 2012).
O termo foi cunhado no meio acadêmico em 2014, pelo presidente da Sociedade
de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr. Rogelio Pérez D’Gregorio, em editorial
do Journal of Gynechology and Obstetrics. É, portanto, um termo novo que nomeia um
tipo de violência bastante antigo, mas que passa, ou passava, despercebido devido ao
entendimento cultural do corpo feminino como destinado ao sofrimento no momento do
parto, o que justifica diversas práticas médicas que vieram a reboque da hospitalização
do parto.
Em 2013, o Estado venezuelano reconheceu em lei3 a existência deste tipo de
violência, tipificando-o e determinando pena específica para os perpetradores de
violência obstétrica. No Brasil, os debates sobre o assunto têm acontecido
principalmente no âmbito do Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento.
A publicização de casos de violência obstétrica compõe a agenda de movimentos pelos
3
Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a uma vida libre de violência.
direitos reprodutivos e sexuais principalmente a partir da divulgação de pesquisa4, em
2010, em que foi constatado que uma em cada quatro mulheres brasileiras relatam ter
sofrido maus-tratos durante trabalho de parto e parto (PULHEZ, 2013). Embora seja
ainda pouco conhecido, o termo tem ganhado espaço nas mídias sociais, como
Facebook e blogs maternos e já começa a chamar atenção também de instituições
públicas responsáveis pela garantia de direitos dos cidadãos e também pela saúde
pública.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, reconhecendo esse tipo de
violência, lançou em 2014 uma cartilha educativa sobre assunto. Embora a violência
obstétrica não exista de forma tipificada na lei brasileira, esse é um importante passo
para seu reconhecimento jurídico.
O material, desenvolvido pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos
Direitos da Mulher da Defensoria, pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de
São Paulo e pela Ong Artemis, caracteriza a violência obstétrica como:
Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por
profissionais de saúde, através de tratamento desumanizado, abuso de
medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da
autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos na
sexualidade (p.1)
O parto medicalizado como evento ritualístico – a eficácia simbólica da tecnologia
médica
Robbie Davis-Floyd (2003) recorre à concepção de rito de passagem do
antropólogo Van Gennep (2011) para analisar o parto hospitalar. A partir do
entendimento de que a ciência, a medicina e a tecnologia são também sistemas de
crença, Davis-Floyd defende que, ao invés de haver eliminado os aspectos ritualísticos
do parto, a medicalização do mesmo levou a um exagero desses aspectos:
Ao contrário, eu sugiro que o deslocamento do nascimento para o
hospital resultou na proliferação de rituais em torno desse evento
4
Fundação Perseu Abramo & SESC. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, 2010.
natural fisiológico mais elaborados que qualquer um conhecido até
hoje no mundo “primitivo”. Esses rituais, também conhecidos como
“procedimentos padrão para parto normal”, trabalham para
efetivamente transmitir os valores centrais da sociedade americana
em relação ao parto (DAVIS-FLOYD, 2003, p.3)5.
Os valores chave da sociedade tecnocrática e industrial seriam reforçados no
parto hospitalar: a separação corpo e mente, a submissão da mulher, a priorização da
tecnologia em detrimento de outras formas de assistência, o caráter patológico do parto.
A cesariana seria a forma mais completa de ilustrar esses valores,
uma vez que neste caso a mulher se submete a uma cirurgia da qual
não participa enquanto sujeito, sendo apenas um objeto na mão dos
cirurgiões, e todas as etapas do ritual estão carregadas dos símbolos
da sociedade tecnocrática (TORNQUIST, 2004, p.300).
Sheila Kitzinger (1996) argumenta que as maternidades modernas, assim como
as comunidades camponesas, têm sua cultura própria e seus rituais. Segunda a autora, a
relação médico-paciente é sempre assimétrica, uma vez que o detentor dos
conhecimentos que possibilitarão o parto é o médico, ao qual a mulher se submete de
forma passiva, ao contrário do que acontece nas sociedades pré-industriais.
O ritual de parto começa com a admissão da mulher no hospital: marido e
mulher são separados, e a mulher passa pela preparação que consiste por um lado no
registro de dados clínicos sobre a mulher e o feto, e por outro lado, em “ritos
predominantemente cerimoniais: rapar os pelos púbicos, clister, banho, vestir a camisola
de noite impessoal do hospital e ir para a cama”(KITZINGER, 1996, p.129).
A separação da mulher e sua despersonalização a partir da rotina de tirar suas
roupas e adereços fazem parte do ritual moderno de parto hospitalar. A rotina médica de
raspar os pelos pubianos é entendida por Kitzinger (1996) e outros estudiosos de
antropologia do parto, como Tornquist (2004) e Davis-Floyd (2003), como uma forma
de assexuar a paciente, justificando sua execução como ato meramente ritual, uma vez
que “(...) que não há qualquer prova de que rapar o períneo reduza a quantidade de
5
Tradução minha. No original: On the contrary, I suggest that the removal of birth to the hospital has
resulted in a proliferation of rituals surrounding thus natural physiological event more elaborate than
any heretofore known in the “primitive” world. These rituals, also known as “Standard procedures for
normal birth”, work to effectively convey the core values of American society to birthing women.
bactérias da pela mas, na realidade, há indícios de que a possibilidade de infecções
secundárias aumentem porque a lâmina raspa as células da superfície, permitindo assim
a introdução de bactérias” (KITZINGER, 1996, p.130-131).
Outra forma de despersonalização da área genital da mulher é a rotina de isolar a
parte de baixo de seu corpo com panos, de forma que a vagina fica visível apenas para o
médico e demais profissionais envolvidos no parto, e não para a mulher. A ideia de que,
ao isolar a parte de baixo do corpo da mulher, cria-se um campo esterilizado para
manipulação médica é visto por Kitzinger (1996) como uma “ficção conveniente, por
meio da qual ele assegura os seus direitos e insiste em que a mulher não toque no seu
próprio corpo, que lhe fica fora do alcance” (p. 131).
O uso de tecnologia de imagem é também rotina nos hospitais modernos, com
monitoramento das condições da parturiente e do feto, através de aparelhos que medem
a intensidade das contrações, batimentos fetais e outros sinais da evolução do trabalho
de parto. Os sinais que obstetras e demais profissionais recebem e interpretam não vêm
diretamente da mulher, mas de monitores e outras máquinas.
Não só as máquinas se tornaram o centro da atenção, mas também
imobilizaram a parturiente, que não se pode pôr de pé e caminhar, ou
mesmo mudar de posição na cama; pelo contrário nas sociedades préindustriais as parteiras encorajam-nas a adoptar várias posições e a
moverem-se a fim de facilitarem a descida da cabeça do bebé. Na
nossa sociedade, as modificações de comportamento durante o parto
foram aceites como necessárias devido à maquinaria, sem que
houvesse qualquer investigação sobre os possíveis efeitos dessas
transformações (KITZINGER, 1996, p. 134).
A posição tradicionalmente adotada pela mulher no parto hospitalar ocidental é
sintomática da relação entre obstetra e paciente. “Só na nossa civilização tecnológica do
Ocidente a parturiente tem de ficar deitada de costas com as pernas no ar, numa posição
psicologicamente desvantajosa pra fazer força” (KITZINGER, 1996, p.134). A posição
deitada favorece a intervenção do obstetra, mas dificulta o processo fisiológico de parir,
que se dá de forma mais fácil e rápida em posição vertical ou de cócoras.
O uso rotineiro de episiotomia – incisão feita no períneo para alargar a via de
passagem do bebê – é também uma forma de facilitar o parto para a equipe médica, que
pode apressar a expulsão do bebê, resultando em pontos e em uma cicatrização
frequentemente dolorosa.
É uma mutilação ritual pela qual tem de passar a maioria das
mulheres na nossa sociedade, a fim de serem mães. Embora seja
evidente que algumas mulheres precisam dessa intervenção e que
alguns bebés têm que nascer depressa, a episiotomia de rotina
praticada em 100% das mulheres, tal como acontece hoje em dia nos
Estados Unidos, é efectuada por ser o obstetra que comanda o parto e
porque ele quer o trabalho acabado tão rápida e eficientemente quanto
possível, sem perder tempo nem confiar nos caprichos da natureza, ou
em ritmos biológicos que não se conjugam com horários hospitalares
(KITZINGER, 1996, p. 134).
Para Davis-Floyd (2003) a prática rotineira de episiotomia em parturientes se
justifica em parte pelo fato de que a cirurgia é o núcleo central da medicina ocidental: “a
legitimação da obstetrícia necessitou da transformação do parto em um procedimento
cirúrgico” (p.130)6. A rotinização dessa prática se justifica também por reforçar a
mensagem de que o corpo feminino é uma máquina defeituosa que não pode fornecer o
produto (bebê) sem a ajuda do homem e da tecnologia.
Internet como esfera pública: relatos de violência obstétrica
Embora ainda não haja no Brasil uma tipificação jurídica desse tipo de violência,
a exemplo de países como Argentina e Venezuela, percebe-se nos ambientes de internet
uma publicização de casos e um questionamento de práticas rotineiras da assistência à
gravidez e parto. Pode-se pensar a internet como uma esfera pública digital, onde
anseios, reivindicações e demandas são expostas e compartilhadas.
Sem desconsiderar que o acesso à internet e aos saberes dos quais dependem seu
uso não acontece de forma democrática, principalmente em se tratando de países em
vias de desenvolvimento, como o Brasil, torna-se relevante perguntar de que maneiras
grupos organizados se utilizam dessa infraestrutra tecnológica, ou mesmo se organizam
através dela, para publicizar discursos que não encontram espaço nas mídias tradicionais
6
Tradução minha. No original: (…) the legitimization of obstetrics necessitated the transformation of
childbirth into a surgical procedure.
e debater demandas sociais de grupos específicos com pouco ou nenhum espaço na
agenda pública. Para Massimo Di Felice (2012), “o que se manifestou foi a assunção,
através do uso de uma nova tecnologia comunicativa, de um novo protagonismo
sociopolítico emerso da descentralização das redes” (p. 35).
Rousiley Maia (2014) destaca que na sociedade contemporânea emergem
variadas possiblidades democráticas de representação na esfera civil, a fim de defender
interesses e anseios de grupos étnicos ou de minorias de gênero ou sexuais, entre outros.
(...)novos vocabulários precisam ser criados, a fim de problematizar o que antes não
era reconhecido como problema, no contexto social. (...) Particularmente em casos
em que não há direitos garantidos, algo moralmente relevante, porém ainda não
tematizado, precisa ser mostrado, revelado como injustiça enraizada nas regras de
convivência ou nos arranjos institucionais mais gerais da sociedade (MAIA, 2014,p.
83).
A apropriação do ciberespaço, de forma organizada nas diferentes estruturas,
orquestrada com outras ações de natureza política, parece ser uma maneira que grupos
minoritários encontram para se fazer visíveis e levar suas demandas e necessidades para
a esfera política de decisão.
É a partir dos discursos construídos pelas experiências cotidianas de pessoas que
se consideram afetadas por algum tipo de injustiça que se constroem formas de
representação legítima. No entanto, a experiência subjetiva dos indivíduos não é
suficiente para a justificação na esfera pública.
(...)é preciso criar discursos abstratos e gerais de justificação que possam, inclusive,
ser representados politicamente em ambientes legislativos e executivos. Defendo o
argumento de que a geração de legitimidade deve ser buscada, sobretudo, através de
práticas discursivas contínuas (MAIA, 2014, p.81).
A autora entende ainda que os representantes informais são os que desenvolvem
recursos e uma estrutura de oportunidades para sustentar o debate na esfera pública.
Dessa forma, buscam dar visibilidade para questões até então negligenciadas de modo a
exercer influência contra ou dentro do Estado.
A partir do entendimento dos grupos pró humanização do parto como
minoritários em relação a uma cultura de assistência ao parto hegemônica
(medicalizada, intervencionista, patologizante, tecnocrática), aventamos que a
comunidade do Facebook “Vamos falar sobre violência obstétrica?” se organiza de
forma política, em busca de trazer visibilidade às suas causas e promover mudanças nas
esferas decisórias relativas à saúde reprodutiva feminina. Daí a importância de se buscar
o entendimento dos discursos sustentados por esse grupo e das possibilidades de
influência nas esferas decisórias.
Carneiro (2011) chama atenção para a importância do ciberespaço no
Movimento de Hukanização do Parto e do Nascimento. Entre suas informantes,
frequentadoras de cursos de preparação para o parto humanizado, a maioria tinha
ouvido falar de parto humanizado pela internet, por meio de sites, blogs e redes sociais.
O mundo cyber parecia operar como difusor e aglutinador de adeptas de
outros modos de parir e, somado ao letramento e ao acesso ao mundo digital,
vinha também um “capital cultural” ou “capital crítico”, no sentido da
existência de uma postura crítica perante o sistema de saúde do país, modelo
médico, sistema político e resguardo dos direitos sociais e individuais (p.80).
Cabe questionar, portanto, se o ciberespaço não seria locus de expressão e
construção de discursos, ao nível do indivíduo, a partir das trocas de experiências e
saberes, e também ao nível coletivo, ao facilitar a articulação dessas demandas com as
agendas públicas relativas à saúde reprodutiva feminina.
Ao entender, com Castells (1999), que há um novo espaço que adquire
importância cada vez maior na estruturação das relações sociais, um espaço como uma
instância de fluxos que se organiza a partir de conexões e não localizações, defendemos
que “o campo da etnografia poderia converter-se no estudo dos espaços de fluxos, e
estruturar-se em torno das conexões mais que sobre lugares concretos e delimitados”
(HINE, 2000, p. 77).7 No entanto, as peculiaridades das interações que se operam no
ciberespaço trazem desafios metodológicos à aplicação da etnografia.
Para Christine Hine (2000) a metodologia de uma etnografia é inseparável dos
contextos/objetos específicos e por isso deve ser considerada a partir de uma perspectiva
adaptativa que reflete sobre o método. Ao pesquisar cibercultura, é preciso adotar uma
postura etnográfica que faça “justiça à riqueza e complexidade da Internet, uma vez que
advoga pela experimentação dentro de um gênero que responde a situações inteiramente
inovadoras” (HINE, 2000, p. 23).8
A autora sustenta, assim, que a etnografia virtual deve problematizar o uso
próprio da internet. “O status da rede como forma de comunicação, como objeto dentro
da vida das pessoas e como lugar de estabelecimento de comunidades, sobrevive através
dos usos, interpretados e reinterpretados, que se fazem dela” (HINE, 2000, p.80).9
Assim, busca-se apreender não apenas os processos de significação dos conteúdos
postados na página em estudo, mas também problematizar o uso da internet como meio
de
divulgação,
discussão
e
deliberação
democráticas,
e
como
locus
de
compartilhamento de experiências relativas ao poder de decisão de mulheres nos
processos relacionados à gestação e parto.
Compartilhamento de experiências e criação de uma gramática da violência na
comunidade “Vamos falar sobre violência obstétrica?”
A página “Vamos falar sobre violência obstétrica”, do Facebook, se
propõe a receber relatos de maus tratos durante situações de gravidez e parto. O header
da página, bem como avatar, aponta para o propósito do protagonismo da mulher nos
processos reprodutivos femininos.
7
Tradução minha. No original: “(…) el campo de la etnografía podría convertirse en el estudio de
espacios de flujos, y estructurarse alrededor de las conexiones más que sobre lugares concretos y
delimitados”
8
Tradução minha. No original: “(...) justicia a la riqueza y complejidade de Internet, a La vez que aboga
por la experimentación dentro de um género que responde a situaciones enteramente novedosas”
9
Tradução minha. No original: “El estatus de la Red como forma de comunicación, como objeto dentro
de La vida de lãs personas y como lugar de establecimiento de comunidades, pervive a través de los
usos, interpretados y reinterpretados, que se hacen de ella”
Figura 1 – Header e avatar da página
Na descrição curta, lê-se: “Página dedicada a dar visibilidade e combater a
violência obstétrica. Publique aqui seu relato, assinado ou de forma anônima”, o que
mostra a intenção clara de ser um fórum de compartilhamento de experiências entre
mulheres vítimas de V.O.
A descrição longa traz uma explanação sobreviolência obstétrica e
exemplos de procedimentos que constituem V.O. Além disso, aponta para a alta
incidência de casos no Brasil:
Problema que atinge uma em cada quatro mulheres, a Violência Obstétrica
está presente rotineiramente nos hospitais. Essa violência, sofrida durante a
gestação, o parto e o período pós parto, fere a autonomia da mulher sobre
seu próprio corpo e o direito de ser protagonista no próprio parto. (...) A
violência obstétrica se caracteriza por ações e omissões que envolvem o
tratamento desumanizado, o abuso de medicalização, a patologização de
processos naturais e a perda da autonomia e da capacidade das mulheres de
decidir livremente sobre seus corpos. A ideia de que a relação entre médico e
paciente é uma relação de obediência a torna ainda mais sujeita à
impunidade, fator que tira o protagonismo da mulher sobre o próprio parto e
contribui para a perda de seu empoderamento, além de permitir que más
condutas deixem de ser questionadas, como a imposição desnecessária da
cesárea ou a prática da episiotomia de rotina. (Grifo nosso)
Percebe-se no trecho acima a ênfase na questão da autonomia e poder de decisão da
mulher sobre o próprio corpo e seus processos, apontando claramente para uma questão
de gênero. No trecho abaixo, fica ainda mais claro o entendimento de que uma cultura
machista se impõe sobre os corpos das mulheres, subjugando-as e levando-as a acreditar
nas violências sofridas como “naturais” ou “normais”, através de uma operação
discursiva que institui um lugar específico (e subalterno) para a mulher-mãe:
Apesar do alarmante número de ocorrências, o de denúncias ainda é baixo.
Assim como acontece em casos de estupro, a vítima é culpabilizada pela
violência que sofreu. O parto ainda é visto por muitos como um momento de
penitência ou sofrimento pelo sexo praticado, pensamento baseado em
noções patriarcais. O machismo, novamente, tenta controlar o corpo da
mulher, nesse caso interferindo na medicina e em nossos partos e gestações.
A comunidade se propõe a ser um local de compartilhamento de experiências entre
mulheres, incentivando-as a denunciar casos de V.O, mesmo que anonimamente. A
partir dos relatos, é possível destacar algumas das práticas apontadas em documentos
como a cartilha da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, citado anteriormente.
Na comunidade “Vamos falar sobre violência obstétrica?”, ao narrar um caso
de diagnóstico equivocado de abortamento, uma mulher relata ter sido submetida à
tricotomia:
Antes fui vitima das violências "costumeiras" como por exemplo da
enfermeira que me trouxe um barbeador e exigiu que eu me depilasse, pois
isso seria cobrado deles pelo outro hospital, sem dar a mínima aos meus
argumentos de que eu estava sangrando muito e em risco de perder o bebê, e
que por tanto não queria ficar em pé por muito tempo (Marina Fraga).
A separação da mulher de pessoas de sua confiança (companheiro, mãe, etc.)
também é relatada em um caso, embora exista uma lei10 no Brasil que garante o direito a
acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, em vigor desde
2005.
Fomos logo informadas de que minha mãe não poderia ficar ali (...).Minha
mãe não pode ficar comigo e eu fui deixada sozinha, olhando para aquela
mesa de parto e todo aquele lugar fechado que me lembrava uma cela. (...)Na
manhã seguinte, tentei falar com o médico ou as técnicas sobre como seria o
procedimento, a que horas seria, se eu poderia ver minha mãe, ligar para
minha família, queria saber ate que horas seria seguro comer, etc. depois de
muitas perguntas sem respostas, eis que o medico vem e me da uma bronca,
pois eles estavam sendo muito legais e pacientes comigo e eu estava dando
10
Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005.
muito trabalho toda hora querendo coisas e informações. Que eu deveria ficar
calma e confiar no trabalho dele, que ele sabia o que estava fazendo, que eu
comeria normalmente e que ia deixar minha mãe entrar rapidamente, pra eu
parar de reclamar, mas que depois não poderia mais vê-la (Marina Fraga).
Outros procedimentos, como manobra de Kristeller, que figura nas recomendações da
Organização Mundial da Saúde como “conduta frequentemente utilizada de forma
inapropriada” são denunciados na página:
Ele me abriu e mandou a assistente subir em mim pra empurrar a bebê com a
famosa manobra de Kristeller...ela saiu depois de muito sofrimento e uma
enorme episiotomia que eu senti bem... E a placenta ficou presa. Aí ele
resolveu me cortar novamente enquanto tentava tirar a placenta com a mão,
que era enorme (disse ele) que ainda continuou: "olha vc não deve ter mais
filhos não, viu, filha... seu parto é muito difícil". Deixaram minha bebê longe
o
tempo
todo,
eu
nem
vi
a
cor
dela.
Ele me costurou sem anestesia e me mandou pro quarto (Anônima).
No relato acima, há também o uso de episiotomia, sem anestesia, procedimento cuja
utilização rotineira é entendida por Davis-Floyd (2003) como peça ritual que reforça a
simbologia do corpo feminino como defeituoso e necessitado da ajuda do homem e da
tecnologia para funci0onar a contento.
Todos os relatos analisados apresentam reclamações de negação do alívio
da dor, que, na opinião das parturientes, era subestimada pelo corpo médicohospitalar:
(...) mas meus pesadelos estavam apenas começando, a sala lotou e eu
implorei por algo para a dor mas riram de mim e uma das enfermeiras falou
que em todos seus anos atuando em partos era a primeira vez que alguém
pedia por medicamentos pra dor (Anônima).
Eu disse que doía aí ele pegou um vidro de iodo e enquanto ele me abria o
canal da vagina com uma mão jogava o iodo pra dentro com a outra. Eu senti
queimar tudo nessa hora e gritei de dor. Ele dizia "nãooo filha assim não"....
Quando ele resolveu terminar a seção tortura, bateu sarcasticamente na minha
perna e disse, tá de alta viu, pode ir pra casa...Eu pensei, ué, pari ontem as
22:10 e agora são 7:00, como vou pra casa com essa dor? (Anônima).
Os comentários feitos aos relatos de V.O., pelas usuárias da página do Facebook,
mesclam palavras de solidariedade e encorajamento. Frequentemente há menção à
possibilidade de reparo judicial e o reforço à caracterização dos procedimentos como
violência contra a mulher. Também aparecem dúvidas sobre termos utilizados nos
relatos e sobre sua eficácia. A partir de tais interações, percebe-se a construção de uma
gramática da violência obstétrica que começa a ser apropriada pelas usuárias da página,
que nomeiam e reconhecem práticas obstétricas rotineiras como violentas e
desnecessárias.
Algumas considerações
Percebe-se que direitos sexuais e reprodutivos estão em disputa no campo das
políticas de saúde pública. Aguiar (2010) discute a autoridade médica nos serviços de
saúde e as bases para o exercício do poder na relação entre o profissional de saúde e a
paciente, enfatizando que tal relação é sempre atravessada por questões de gênero.
Entendemos, com Foucault (1995), que o poder se exerce de forma relacional, nas ações
de uns sobre os outros, em meandros.
No âmbito das práticas de saúde, este poder é exercido numa relação
hierárquica por definição – a relação profissional de saúde/paciente. No topo
desta hierarquia está o médico que é aquele quem dá a última palavra, ou,
dito de outra forma, é quem detém a maior autoridade sobre o corpo, a saúde,
o cuidado e o tratamento do paciente. Essa autoridade é, por assim dizer, a
fonte do poder médico (AGUIAR, 2010, p.33-34).
Os movimentos que reivindicam para a mulher o controle sobre o próprio parto
colocam o poder do médico em disputa, ao questionarem práticas obstétricas rotineiras,
classificando-as como violência obstétrica. Entendemos que essa disputa por direitos
reprodutivos e sexuais está perpassada por questões de gênero, uma vez que a
assistência (rotineiramente violenta) ao parto no Brasil se assenta em um saber/poder
sobre o corpo feminino que foi construído historicamente como corpo defeituoso, que
necessita do saber e da autoridade médicas para funcionar a contento.
A patologização dos processos naturais de gestação e parto e a medicalização do
corpo feminino aconteceram ao longo do processo de construção simbólica do corpo
feminino como fundamentalmente reprodutor, instituindo um lugar específico para as
mulheres na sociedade.
A operação discursiva que coloca as mulheres na posição de mães “por
natureza” também as inscreve como naturalmente dispostas à dor e ao sofrimento que
são entendidos como naturais do parto. Daí a dificuldade de se reconhecer em
determinadas práticas intervencionistas perpetradas por profissionais da área de saúde
casos de violência obstétrica. Nesse contexto, pode-se pensar na impossibilidade do
saber/poder obstétrico de abarcar (encarcerar) todas as possiblidades e potências dos
corpos:
Uma existência racional não pode desenrolar-se sem uma “prática de saúde”
– hugieine pragmateia ou techne – que constitui, de certa forma, a armadura
permanente da vida cotidiana, permitindo a cada instante saber o que e como
fazer. Ela implica uma percepção, de certa forma médica, do mundo ou, pelo
menos, do espaço e das circunstâncias em que se vive. Os elementos do meio
são percebidos como portadores de efeitos positivos ou negativos para a
saúde (...) (FOUCAULT, 1985, p. 107)
Ao mesmo tempo em que se vem construindo uma prática de saúde obstétrica
baseada em uma assistência costumeiramente violenta à gravidez e parto, pode-se bem
pensar que a internet proporciona, em seus diversos ambientes, fóruns de
questionamento e ressignificação dessas práticas por parte de mulheres que desejam
outro tipo de relação com seus corpos e seus processos de gravidez e parto. O termo
“violência obstétrica”, ainda novo e carente de definições, talvez esteja sendo delineado
e burilado a partir das interações de mulheres, em ambientes de internet, a respeito de
suas experiências cotidianas.
O corpo da parturiente violentado, escamoteado, revestido por dentro pelo panóptico
médico com toda sorte de seus fluxos biopolíticos – como o corpo do louco, amarrado à sua
camisa de forças; corpo patologizado, encerrado e cansado pelo propalado obstétrico - talvez
“humanizar” o parto seja algo da ordem de uma resistência frente à violência dos maníacos dos
bisturis, um guerrilha, uma fuga desse corpo criado e revestido pelo patológico:
Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de
bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar,
e depois ainda, de permanecer sentado. Como não se mexer, ou então, como
se mexer só um pouquinho para não ter, se possível, que mexer durante um
longo tempo? É, sem dúvida, o problema central dos personagens de Beckett,
uma das grandes obras sobre os movimentos dos corpos, movimentos de si e
entre os corpos. (LAPOUJADE, 2002, p.82)
Seguindo Peter Pál Pelbart, na esteira de Lapoujade, a questão seria desse corpo
cansado da máquina-civilizatória, máquina-médica, máquina-adestramento – corpo
farto de “(...) sua docilização por meio das tecnologias disciplinares” (PELBART,
2011). Controle dos fluídos, de práticas outras, dos desejos, dos ruídos –
encarceramento da vida, ou como prefere Agamben: uma vida nua, maquiada pelo
espetacular saber científico-médico e sua maquinaria de saber-poder.
Referências
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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ETNOGRAFIA DE UMA COMUNIDADE